IV Encontro Nacional da Anppas 4,5 e 6 de junho de 2008 Brasília - DF – Brasil ______________________________________________________ O Mercado de Carbono e a Suinocultura no Oeste Catarinense Verônica Korber Gonçalves (UFSC) Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC; Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Direito da UFSC, bolsista da CAPES [email protected] Resumo As diversas organizações sociais passaram a proferir, a partir de meados de 1980, um discurso quase homogêneo acerca da existência do problema das mudanças climáticas, divergindo, porém, quanto aos índices de aquecimento do planeta, e quanto às medidas a serem tomadas para “solucionar” o problema. Uma das respostas jurídicas ao problema ambiental anunciado é o Protocolo de Quioto, que estabelece metas de redução de emissão dos gases do efeito estufa e cria instrumentos de flexibilização das metas, entre os quais destaca-se o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). O objetivo do presente artigo é analisar o processo de reconhecimento da implementação dos projetos de MDL no oeste catarinense como uma resposta ao problema ambiental do aquecimento global, e, simultaneamente, do manejo dos dejetos decorrentes da atividade suinícola. Para tanto, inicialmente será apresentada a estrutura do Protocolo de Quioto, bem como dos mecanismos de flexibilização das metas de redução. Em seguida, focalizar-se-á no mecanismo aplicável no Brasil, qual seja, o MDL, relacionando-o com a atividade suinícola no oeste catarinense. Por fim, será apresentado o Projeto de MDL apresentado pela empresa Sadia, e questionar-se-á se este representa uma solução para o problema ambiental reconhecido. Palavras-chave Mercado de carbono; Protocolo de Quioto; Suinocultura O mercado de carbono e a suinocultura no oeste catarinense 1. Introdução A partir de meados de 1980 diversos atores sociais passaram a proferir um discurso praticamente homogêneo acerca da existência do problema das mudanças climáticas. Pesquisas e simulações amplamente divulgadas comprovaram um aumento considerável da temperatura da Terra em relação ao período pré-industrial. Este aumento, de cerca de 0,6° C (BRASIL, 2000. p.9), teve como causa principal a crescente emissão de gás carbônico - CO2 - na atmosfera, resultado da queima de combustíveis fósseis, que intensifica a ação do efeito-estufa. Em 1988 foi constituído o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), órgão intergovernamental formado por países membros do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Foi estabelecido com o objetivo de reunir informações científicas, técnicas e sócio-econômicas relevantes para o entendimento das mudanças climáticas. Cumpre ressaltar que o IPCC não realiza novas pesquisas nem monitoriza dados relacionados à mudança climática, apenas coleta e reúne informações, buscando subsidiar as discussões da comunidade internacional. O IPCC divulgou, até o momento, quatro grandes relatórios (1990, 1995, 2001 e 2007), nos quais afirma que as atividades humanas ligadas à industrialização aumentaram consideravelmente a presença dos gases do efeito estufa na atmosfera, especialmente do gás carbônico (de 280 ppmv1 do período pré-industrial para 358 ppmv em 1994) e do metano (de 700 ppbv para 1720 ppbv2) (BRASIL, 2000, p. 19). As maiores taxas de emissão decorrem da queima de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural), dos desmatamentos e queimadas (que devolvem para a atmosfera o gás carbônico retido em forma de biomassa), e da agropecuária (responsável por aproximadamente 25% das emissões de gás carbônico, 60% do metano e 80% de óxido nitroso presente no solo e em fertilizantes) (BRASIL, 1999, p. 9). Os efeitos já comprovados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas do aumento da temperatura são: aumento do nível do mar, alteração no suprimento de água doce, maior número de ciclones, tempestades de chuva e neve fortes e mais freqüentes, forte e rápido ressecamento do solo. Já o Programa das Nações Unidas para o meio ambiente e o Secretariado da Convenção apontam que já é possível notar um aumento de 0,2 a 0,6°C nas temperaturas desde o final do século XIX, o aumento de 10 a 20 cm do nível médio dos mares, a diminuição de cerca de 10% da cobertura de neve após 1960 no Hemisfério Norte, o aumento de precipitação pluvial de 0,5 a 1% em diversos locais do planeta (BRASIL, 1999, p. 9). 1 2 ppmv - partes por milhão por volume. ppbv – partes por bilhão de volume. 2 Os meios de comunicação exerceram (e exercem) papel fundamental para consolidar o aquecimento global enquanto problema ambiental na agenda política internacional. Uma breve pesquisa nas páginas eletrônicas dos jornais de maior circulação no Brasil demonstra que o aquecimento global é um assunto extremamente recorrente, presente, não apenas nos cadernos específicos que trata do meio ambiente, mas também nos cadernos de economia, política interna e externa, etc. Da mesma forma, diversas ONGs colaboraram para a popularização do problema ambiental, entre as quais o Greenpeace3 e o Fundo Mundial para a natureza (WWF)4. Em ação realizada na mesma data de uma reunião do IPCC, ambas as ONGs manifestaram-se pela necessidade de medidas imediatas para conter o aquecimento global. Stephanie Tunmore, do Greenpeace International, afirmou: Estamos numa encruzilhada do clima (...) Podemos seguir o caminho da energia renovável e de um uso eficaz e inteligente da energia e evitar os piores impactos da mudança climática. Ou podemos persistir na mesma direção para um futuro alimentado por energias fósseis, marcado por eventos climáticos extremos e 5 importante carência de água . Hans Verolme, diretor do programa de mudança climática do WWF, declarou no mesmo sentido: "Está claro que é possível reduzir as emissões de gases de efeito estufa abaixo dos níveis atuais, substituindo as energias muito poluentes como o carvão por outras limpas"6. É possível afirmar, desta forma, que o aquecimento global foi reconhecido como um problema ambiental pelos diversos atores sociais, divergindo estes, porém, quanto aos índices de aquecimento do planeta, e quanto às medidas a serem tomadas para solucioná-lo. Porém, tal reconhecimento não permite concluir que as medidas tomadas serão eficazes em solucioná-lo. Uma das respostas jurídicas ao problema ambiental anunciado é o Protocolo de Quioto, que estabelece metas de redução de emissão dos gases do efeito estufa e cria instrumentos de flexibilização das metas, entre os quais destaca-se o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). O objetivo do presente artigo é analisar o processo de reconhecimento da implementação dos projetos de MDL no oeste catarinense como uma resposta ao problema ambiental do aquecimento global, e, simultaneamente, do manejo dos dejetos decorrentes da atividade suinícola. Para tanto, inicialmente será apresentada a estrutura do Protocolo de Quioto, bem como dos mecanismos de flexibilização das metas de redução. Em seguida, focalizar-se-á no mecanismo aplicável no Brasil, qual seja, o MDL, relacionando-o com a atividade suinícola no 3 Site oficial: http://www.greenpeace.org/international Site oficial: http://www.wwf.org 5 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI1583755-EI8278,00.html. Acesso em 05 jun. 2007. 6 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/ciencia/interna/0,,OI1583755-EI8278,00.html. Acesso em 05 jun. 2007. 4 3 oeste catarinense. Por fim, será apresentado o Projeto de MDL apresentado pela empresa Sadia, e questionar-se-á se este representa uma solução para o problema ambiental reconhecido. 2. O Protocolo de Quioto Seguindo a orientação do IPCC, em 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92) no Rio de Janeiro, foi adotada a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima, a qual entrou em vigor no dia 21 de março de 1994, e que tem como objetivos declarados: a estabilização das concentrações de gases do efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica [sic] perigosa no sistema climático. Nível esse que deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável (art. 2) É criada neste tratado a Conferência das Partes (COP), “órgão supremo” da Convenção, responsável por examinar a (...) implementação desta Convenção e de quaisquer de seus instrumentos jurídicos que a Conferência das Partes possa adotar, além de tomar, conforme seu mandato, as decisões para promover a efetiva implementação desta Convenção (art. 7.2). Nas reuniões periódicas são examinadas as obrigações das partes, trocam-se dados e informações sobre as políticas adotadas para a realização dos objetivos almejados e são apresentados os estudos do IPCC, para que se consolidem as bases científicas do problema da mudança do clima. Em 1997 foi assinado o Protocolo de Quioto que objetiva, num primeiro momento, que os países incluídos no Anexo 17 da Convenção-Quadro reduzam a emissão dos gases do efeito estufa. O Protocolo entrou em vigor em 16 de fevereiro de 2005, noventa dias após a ratificação de 141 Partes contratantes da Convenção, dentre elas 37 Partes do Anexo 1, que juntas contabilizam 61,6% do total de emissões de gás carbônico (art. 25 do Protocolo). Até o momento, 178 países ratificaram o tratado8. O Decreto n.º 5.445 de maio de 2005 aprovou o texto do Protocolo de Quioto no Brasil. 7 Os países do Anexo 1 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima são: Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco, Noruega, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suíça, Suécia, Bulgária, Eslováquia, Hungria, Polônia, República Checa, Romênia, Rússia, Ucrânia, Estônia, Letônia, Lituânia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Japão. 8 Disponível em www.unfccc.org. Acesso em 15 jan. 2008. 4 O Protocolo de Quioto da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima estabelece no artigo 3º que as partes listadas no Anexo 1 da Convenção9 “devem individual ou conjuntamente” assegurar que as suas emissões de gases do efeito estufa (não controlados pelo Protocolo de Montreal10) não excedam o previsto descrito no Anexo B daquele Protocolo11, “com vistas a reduzir esses valores em pelo menos 5 por cento abaixo dos níveis de 1990 no período de compromisso de 2008 a 2012”. O Protocolo de Quioto prevê mecanismos de flexibilização das obrigações e metas de redução. São eles: implementação conjunta (Joint Implementation), mecanismo de desenvolvimento limpo (Clean Development Mechanism) e comércio de emissões (Emission Trade). No artigo 3º do Protocolo estabelece-se que as medidas de reduções devem ser aplicadas individual ou conjuntamente. Desta forma, o mecanismo da implementação conjunta foi adotado na COP-1 e permite que um país do Anexo 1 possa receber “unidades de redução de emissão” dos gases quando contribua com o financiamento de projetos que reduzam a emissão em outro país do Anexo 1. Os dois países devem alcançar suas metas estipuladas no Anexo B, que apresenta os compromissos quantificados de limitação de emissões. Os acordos devem ser notificados à secretaria da Convenção e as políticas a serem implementadas serão analisadas nas Conferências. Poderão utilizar esse mecanismo, por exemplo, os países da União Européia ou outros mercados regionais. O mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL) permite que um país desenvolvido possa receber as unidades de redução de emissão, isso é, permissão para poluir mais, caso elabore, financie ou ajude a implementar políticas de desenvolvimento sustentável em países que não sejam parte do Anexo 1 (art. 12). Tais projetos, com a finalidade de obter reduções certificadas de emissão (Certified Emission Reductions), poderão ter a participação de entidades públicas e privadas, desde que observadas as orientações do Protocolo, da Secretaria e das Conferências das Partes. Os certificados poderão ser usados no momento da “prestação de contas”, quando da avaliação dos Relatórios das Partes apresentados à COP. Além disso, tais certificados poderão ser comercializados, quando, por exemplo, um país que já tenha alcançado suas metas de redução possuir mais certificados do que precisa, podendo vendê-los a outros países que não tenham atingido a meta estabelecida. 9 Os países do a Anexo 1 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima são: Alemanha, Áustria, Bélgica, Croácia, Dinamarca, Eslovênia, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Liechtenstein, Luxemburgo, Mônaco, Noruega, Países Baixos, Portugal, Reino Unido, Suíça, Suécia, Bulgária, Eslováquia, Hungria, Polônia, República Checa, Romênia, Rússia, Ucrânia, Estônia, Letônia, Lituânia, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Japão. 10 O Protocolo de Montreal sobre substâncias que destroem a camada de ozônio foi adotado em 1987. As substâncias controladas pelo Protocolo são: CFC, Halogênios, Tetraclorometano, HCFC, HBFC, Brometo de metila e Metilclorofórmio. O objetivo do Protocolo de Quioto é limitar a emissão dos gases do efeito estufa que o Protocolo de Montreal não controla. 11 O Anexo B do Protocolo de Quioto prevê o compromisso quantificado de limitação ou redução de emissões através de porcentagem do ano base das partes do Anexo 1 da Convenção. 5 O comércio de emissões, terceiro mecanismo flexibilizador, é direcionado para os países do Anexo B do Protocolo. Estende-se a possibilidade, a um país que tenha alcançado as metas de redução, de “vender” o excedente a outros países do anexo. Diversos autores, entre os quais Olivier Godard, professor da Escola Politécnica da Universidade de Paris, defendem a aplicação dos mecanismos flexibilizadores, argumentando que apenas com esta compensação econômica será possível implementar políticas públicas com alto custo social (2005, p. 147-186). Para os críticos do Protocolo de Quioto, porém, os mecanismos, ao flexibilizarem as obrigações, refletem os interesses de valorar economicamente os gases, tornando-os, de acordo com a lógica capitalista, objetos de troca. Afirma, a respeito da criação do mercado de carbono, Monique Chemillier-Gendreau: A proteção da natureza não é negociável. Aplicar a ela a lógica mercantilista (do mercado) é arruiná-la. É verdade que o limite entre a esfera do mercado e aquela do interesse geral está em vias de desaparecer nas sociedades em que as fronteiras se apagam sob o efeito da globalização mas, de fato, o nível mundial é o único pertinente para reinventar o interesse geral, e dizer aquilo que deve por natureza “escapar” do negócio, o qual é sempre um compromisso. A proteção da humanidade e de suas condições de sobrevivência é um absoluto sobre os quais nenhuma transação é admissível. Não há outro meio para assegurar a igualdade dos humanos em relação ao (frente ao) clima e fixar eqüitativamente as emissões que tomam por base de cálculo o número de habitantes. Se certos Estados não emitirem as quantidades permitidas ou reduzirem-nas mais rapidamente que o previsto, é uma chance para o equilíbrio climático, e não um excedente que os mais vorazes podem consumir (Chemillier-Gendreau, 1998) – tradução da 12 autora . Assim, a alegação que sustentaria os mecanismos de flexibilização apoiar-se-ia em uma inversão da noção de desenvolvimento sustentável: afirma-se a necessidade de preservar o meio ambiente e frear a alteração climática sem prejudicar o desenvolvimento econômico ao invés de buscar o desenvolvimento econômico sem prejuízo ao meio ambiente. A partir da análise das metas estipuladas pelo Protocolo de Quioto, entendido aqui como a “resposta” jurídica internacional ao problema da mudança do clima, torna-se necessário desnudar o processo de definição do nível aceitável de diminuição da emissão dos gases, bem como das soluções propostas por determinados cientistas e aceitas pelos países signatários do tratado para reduzi-los. Cabe questionar se as medidas adotadas refletem os interesses declarados no Protocolo, isso é, comprometido com o “desenvolvimento sustentável”, com a 12 La protection de la nature n’est pas «negociable». Lui appliquer la logique marchande c’est la ruiner par avance. Il est vrai que la limite entre la sphère marchande et celle de l’intérêt général est en voie de disparition dans les sociétés dont les frontières s’effacent sous l’effet de la mondialisation mais, de ce fait, le niveau mondial est le seul pertinent pour réinventer l’intérêt général et dire ce qui doit par nature echapper au négoce, lequel est toujours un compromis. La protection de l’humanité et de ses conditions de survie est un absolu sur lequel aucune transation n’est admissible. Il n’y a pas d’autre moyen pour assurer l’égalité des humains face au climat et fixer équitablement les emissions que de prende pour base de calcul le nombre d’habitants. Si certains États n’émettent pas les quantités ansi attribuées ou les réduisent plus rapidemente que prévu, c’est une chance pour l’équilibre climatique, non un surplus que les plus rapaces peuvent consommer. 6 “justiça global”, etc., ou se a postura dos atores estatais e dos cientistas resulta da análise do alto custo (econômico, político e social) de determinadas práticas consideradas sustentáveis (diminuição do número de carros individuais, por exemplo). Isso significa que o fato de existir um acordo internacional que reconheça o risco de mudança climática não garante que haja uma intervenção efetiva sobre o problema. Dessa maneira, embora a percepção de risco seja uma condição indispensável para uma possível interferência prática, não permite concluir que as medidas tomadas serão eficazes em solucionar o problema anunciado. A análise da eficácia destas medidas pode ser feita a partir da verificação da implementação do Protocolo, dos mecanismos de flexibilização e dos impactos destes na realidade, de forma a compreender se a intervenção sobre o problema ambiental construído é percebida pelos atores envolvidos como uma solução para este. 3. O MDL e a suinocultura no oeste catarinense Dentre os mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto, o único dos quais o Brasil pode participar é o MDL. A elegibilidade dos projetos de redução de emissão para o MDL é condicionada ao cumprimento dos seguintes requisitos: - Mensurabilidade: a empresa precisa ser capaz de medir o volume de gás que é capaz de reduzir, evitar ou absorver. E isso deve ser feito por meio de metodologia aprovada pelo Conselho Executivo de MDL. - Voluntariedade, ou seja, o projeto não pode ter sido criado por força de lei. - Adicionalidade: a atividade de projeto deve, comprovadamente, resultar na redução de emissões de gases de efeito estufa e/ou remoção de CO2, adicional ao que ocorreria na ausência da atividade de projeto do MDL. Devem portanto ser posteriores à entrada do Protocolo em vigor. Além disso, é necessário que a atividade de projeto seja aprovada pelo país no qual essas atividades forem implementadas e contribua para o desenvolvimento sustentável do país. O projeto deve levar em consideração a opinião de todos os atores que sofrerão os impactos das atividades de projeto e que deverão ser consultados a esse respeito; e não pode causar impactos colaterais negativos ao meio ambiente local. O processo de certificação de créditos de carbono no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) consiste nas seguintes etapas: 1. Elaboração do Documento de Concepção do Projeto (DCP), que deve conter a descrição do projeto, bem como indicar qual seria a previsão de emissão de gases do efeito estufa se o projeto não fosse implementado, para que se calcule a quantidade de gases que a atividade permitirá reduzir. Além disso, deve-se indicar no projeto a metodologia para o cálculo das 7 emissões, que será avaliada pelo Painel de Metodologia do MDL, grupo formado por cientistas de diversos países que dá suporte técnico ao Conselho Executivo do MDL. 2. Encaminhamento do projeto para a Entidade Operacional Designada13, para análise e validação. Essa entidade deve ser qualificada e reconhecida pelo Conselho Executivo do MDL e, no Brasil, pela Comissão Interministerial de Mudanças Globais do Clima. São exemplos de EODs que atuam no Brasil as empresas Det Norske Veritas (DVN), Société Générale de Surveillance UK Ltd (SGS), TÜV Industries Service e Japan Quality Assurance Organization (JQA). 3. Análise do projeto pela Comissão Interministerial de Mudanças Globais do Clima; 4. Análise do projeto pelo Conselho Executivo do MDL; 5. Monitoramento e medição das emissões durante a execução do projeto feito pela empresa; 6. Submissão dos dados de monitoramento à análise da Entidade Operacional Designada; 7. Submissão dos dados ao Conselho Executivo do MDL. Após comprovada a redução das emissões o Conselho Executivo do MDL emite os créditos de carbono, podendo então a empresa negociá-los no mercado de carbono. .Em 7 de abril de 2008, um total de 3.219 projetos de MDL encontrava-se em alguma fase do ciclo de aprovação previsto no Protocolo de Quioto e acordado nas Conferências das Partes posteriores14. O Brasil ocupa o 3º lugar em número de atividades de projeto, com 280 projetos (9%), sendo que em primeiro lugar encontra-se a China com 1110 e, em segundo, a Índia com 901 projetos. A maior parte dos projetos brasileiros é desenvolvido na área de geração elétrica e suinocultura, os quais representam 64% dos projetos15. O grande número de projetos de MDL ligados à suinocultura deve-se, entre outros fatores, à enorme quantidade de gás metano emitido pela atividade16 e à possibilidade de seu tratamento por meio de biodigestores. O biodigestor é um equipamento que cria um meio anaeróbio por meio do qual bactérias metanogênicas transformam a matéria orgânica presente nos dejetos. Dois elementos da maior importância são produzidos pelo processamento dessa biomassa: o biogás, composto principalmente de gás 13 O Conselho Executivo do MDL: Supervisiona o funcionamento do MDL. Entre suas responsabilidades destacam-se: (i) o credenciamento das Entidades Operacionais Designadas; (ii) registro das atividades de projeto do MDL; (iii) emissão das RCEs; (iv) desenvolvimento e operação do Registro do MDL; (v) estabelecimento e aperfeiçoamento de metodologias para definição da linha de base, monitoramento e fugas. 14 Todas as fases previstas para a aprovação dos projetos de MDL serão abordadas detalhadamente na dissertação. 15 Disponível em: www.mct.gov.br/clima. 16 A decomposição dos dejetos dos suínos libera o gás metano, considerado 21 vezes mais nocivo para a atmosfera do que o gás carbônico. 8 metano e dióxido de carbono, e, em percentuais menores, de outros resíduos gasosos; o biofertilizante, que além de servir como nutriente para as plantas, é um importante agente condicionador de solos (CHRISTMAN, 1988 apud MIRANDA, 2005). O carbono equivalente obtido com o uso desta tecnologia pode ser negociado enquanto projeto de MDL, de forma que os créditos de carbono obtidos com o tratamento do gás metano podem ser comercializados internacionalmente. Projetos ligados Total dos projetos em à suinocultura validação/ aprovação Aprovados 47 280 Previsão de redução anual 2.330.444 37.909.404 22.246.324 281.224.213 Número de projetos 17% 100% Redução Anual de emissão 6% 100% em t CO2 Redução de emissão no 1º período de obtenção de crédito em t CO2 Tabela 1 – Projetos de MDL ligados à suinocultura 17 Santa Catarina é o quinto Estado com o maior número de projetos de MDL apresentados até o momento, correspondendo a 8% do número total18, e é também o maior produtor nacional de suínos, sendo responsável por 24% do abate total nacional (GUIVANT; MIRANDA, 2004, p. 78). Os projetos de MDL referente à instalação de biodigestores nas granjas de suínos, ao transformarem estas “externalidades negativas” em possibilidade de geração de renda, são apresentados como uma resposta ao problema ambiental construído, qual seja o aquecimento global. Além disso, surgem como solução para outro problema ambiental, qual seja o gerado pela produção dos dejetos dos suínos. De acordo com Guivant e Miranda, a dificuldade de manejo dos dejetos produzidos pela suinocultura representa um dos mais graves problemas ambientais do oeste catarinense com a crescente concentração geográfica da produção animal e sua intensificação através de fertilizantes de confinamento, junto com a difusão de fertilizantes 17 18 Dados extraídos do site do Ministério de Ciência e Tecnologia (www.mct.gov.br/clima). Dado disponível em: www.mct.gov.br/clima. 9 químicos e a separação da produção animal da produção agrícola. Os dejetos animais são cada vez menos reutilizados como fertilizantes nas lavouras, no que era um ciclo fechado, típico nas unidades produtivas familiares em pequena escala. Armazenados em esterqueiras ou tratados em lagoas, estes dejetos produzem metano, amônia e outros gases que provocam cheiros desagradáveis e contribuem para o comprometimento da qualidade do ar, trazendo riscos à saúde de seres humanos e animais. Os vazamentos são comuns nestes depósitos, o que provoca a contaminação de cursos de água superficiais e profundos, assim como dos solos (GUIVANT, MIRANDA, 2004, p. 8). Logo, tais projetos são apresentados como a necessária conciliação entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental. Nesse sentido, afirma Josefa Garzillo que O destino adequado dos dejetos em sistemas intensivos de criação é tema de discussões há muitas décadas. Por muito tempo foi considerado como problema e custo. Através de projetos MDL, o manejo de dejeto transforma-se em oportunidade e ganho. A implementação de Projetos MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo) na agropecuária, pode ser vista como a combinação perfeita entre produção, tecnologia, ecologia e investimento (GARZILLO, 2005, p.39-40). 4. MDL: uma resposta ao problema ambiental? Recentemente um projeto de MDL apresentado pela Empresa Sadia foi aprovado19, enquadrando-se na modalidade “MDL Programático”, instituída na Reunião da Conferência das Partes em 2007. Esta modalidade caracteriza-se por facilitar o registro de um grupo de pequenos projetos com a metodologia igual, porém desenvolvidos em locais ou tempos distintos. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (ABIPECS), a empresa Sadia representou 17,52% do número de abates de suínos, sendo a maior agroindústria do país. Esta empresa criou o Programa “Suinocultura Sustentável Sadia – Programa 3S”, que prevê a instalação de biodigestores em regime de comodato nas granjas dos produtores integrados da empresa. O sistema de integração agroindustrial representa cerca de 85% do rebanho industrial. Neste sistema os produtores integrados responsabilizam-se em criar os suínos dentro de determinados padrões tecnológicos estabelecidos pelas integradoras que, por sua vez, comprometem-se a fornecer a assistência técnica, parte os insumos e a receber a totalidade da matéria prima ofertada (GUIVANT; MIRANDA, 2004, p. 81). Os créditos de carbono obtidos com a instalação dos biodigestores nas granjas dos integrados serão negociadas no mercado e o montante recebido será distribuído entre os suinocultores de acordo com o seu respectivo potencial de redução de emissões, sendo, porém, 19 Disponível em: http://cdm.unfccc.int/ProgrammeOfActivities/Validation/DB/XCH8BCVGVGQBLUE1OWYT4ID47EN3XA/view.html. Acesso em: 05 de maio de 2008. 10 abatido o investimento realizado nos biodigestores e os custos de execução e operação do programa. A negociação no mercado de carbono será feita por um instituto criado pela empresa, o “Instituto Sadia de Sustentabilidade”, entidade sem fins lucrativos que também realizará auditorias para verificar o andamento do programa. A previsão, de acordo com a página eletrônica da empresa, é de que sejam negociadas de seis a dez milhões de toneladas de carbono no primeiro período de compromisso do Protocolo de Quioto (2008-2012). Segundo afirma a empresa “o Programa 3S é um exemplo de sustentabilidade, que considera três dimensões: social, ambiental e econômica”20. Ressalta-se que por diversas vezes a tecnologia dos biodigestores foi apresentada como solução para os impactos gerados pela suinocultura, tendo sido, por exemplo, incentivado pela possibilidade de geração de energia em meados de 1980 no Estado de Santa Catarina por meio de um programa governamental que resultou na “construção de cerca de 750 biodigestores, dos quais estima-se que apenas 30 continuam em funcionamento” (MIRANDA, 2005, p.182). Entre os fatores que contribuíram para o abandono desta tecnologia, menciona Miranda, citando Palhares et al: o enfoque eminentemente energético do projeto – assim, à medida que a crise do petróleo foi atenuada, o uso do biogás na geração de energia deixou de ser economicamente atrativo; a pouca durabilidade da campânula – 5 anos; o trabalho diário de manutenção exigido para o adequado funcionamento dos biodigestores; a falta de um maior envolvimento de outras entidades públicas e privadas que pudessem colaborar no sentido de viabilizar alternativas para uma utilização mais eficiente e ampla do biogás; a desativação da equipe de especialistas que a extensão rural mantinha para orientar a construção e prestar manutenção pósinstalação aos biodigestores. Além disso, a intensificação da atividade suinícola que aconteceu na década de 80 provocou o aumento no número de animais nas propriedades e os biodigestores já em funcionamento tornaram-se subdimensionados; conseqüentemente, deixaram de produzir biogás em volumes satisfatórios e tiveram que ser abandonados (PALHARES et al., 2003) (MIRANDA, 2005, p. 183). De acordo com Miranda, na década de 1990 foram criados diversos programas que buscavam transformar o enfoque agronômico do problema dos dejetos da atividade suinícola em um reconhecido problema ambiental: Os principais programas que se desenvolveram durante os anos 90 abordando direta ou indiretamente a questão ambiental da suinocultura foram: o Programa Microbacias I, o Programa de expansão da suinocultura e controle dos seus dejetos e o Programa de controle dos mosquitos borrachudos. Apesar das especificidades de cada um desses programas, a estratégia adotada para enfrentar o problema dos dejetos era a mesma, ou seja, a construção de estruturas para o armazenamento dos dejetos (esterqueiras e bioesterqueiras) e o uso deles nas áreas de lavoura. A justificativa para esse enfoque devia-se ao resultado de um levantamento realizado pela Epagri junto aos produtores 20 Disponível em: http://www.sadia.com.br/br/empresa/informativo_37889.asp. Acesso em: 12 jan. 2008. 11 integrados, o qual apontava que, no inicio da década de 90, apenas 15% das granjas suinícolas possuíam estruturas para o armazenamento dos dejetos (TRAMONTINI, 1999 citado por PERDOMO, 2001). (MIRANDA, p. 163-164). Assim, torna-se fundamental questionar se o retorno dos biodigestores como uma solução para os problemas decorrentes do manejo dos dejetos dos suínos no oeste catarinense representa, para além de uma solução econômica, uma solução social e ambientalmente adequada. Conforme afirma Miranda, citando Kunz et al. (2004, p. 4), deve-se atentar para que os biodigestores não sejam divulgados como uma ‘solução definitiva e sim como parte de um processo, haja vista que este sistema possui limitações’, pois, apesar de a utilização do biogás proporcionar geração de energia térmica e elétrica, diminuindo custos com os processos de tratamento, os biodigestor, por si só, não é considerado como um sistema completo de tratamento e, portanto, continua persistindo a necessidade de se dar um destino adequado ao biofertilizante gerado (MIRANDA, p. 183). 5. Considerações Compreende-se, assim, que o fato dos biodigestores voltarem a ser apresentados como a solução para os problemas ambientais gerados pela suinocultura no oeste catarinense não significa necessariamente que esta é uma opção técnica pela melhor resposta ao problema ambiental anunciado. Trata-se, de fato, de um processo permeado por interesses e conflitos, entre os quais destacou-se neste trabalho a possibilidade de comercialização dos créditos de carbono obtidos com os projetos de MDL. Para a compreensão deste processo é necessário que sejam considerados os possíveis conflitos que envolvem a atividade, bem como de que forma foi e é construída a percepção do problema ambiental e de sua solução na região. 6. Referências bibliográficas AB’SÁBER. Aziz Nacib Ab’Sáber, opinião divergente. Sessão Vozes. National Geographic, set. 2007. BRASIL - MINISTÉRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA, BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL. Efeito estufa e a convenção sobre mudança do clima. Brasília, 1999. 38 p. BRASIL. Convenção Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima. Bonn: Secretariado da Convenção sobre Mudança do Clima. Tradução do Ministério de Ciência e Tecnologia do Brasil. 30p. BRASIL. MINISTÉRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA. 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