Marcha contra a violência, por cidadania plena e direitos humanos – o crescimento dos movimentos sociais de migrantes e os seus desafios na cidade de São Paulo. Willians de Jesus Santos (Mestrando em sociologia – UNICAMP) Katiuscia Galhera (Doutoranda em Ciência Política – UNICAMP) Neste domingo dia 07 de dezembro, como parte do calendário de luta internacional, migrantes e refugiados(as) irão marchar na cidade de São Paulo, em um trajeto que vai da Praça da República até a Praça da Sé. Sob o lema basta de violência contra @s imigrantes pretendem realizar no trajeto a reivindicação de direitos específicos, através de diversas bandeiras de luta – uma nova Lei de migração, trabalho decente, direito ao voto, educação, saúde sem discriminação-, e, com isto, também, realizar protesto por uma cidadania plena. Visibilizar a violência é estratégico, atualmente. O lema-síntese expressa a complexidade e conformidade da realidade da vida da população em São Paulo. Trata de um conjunto extenso de violações que fazem com que migrantes e refugiados (as) vivam sob uma condição de quase não cidadania. O lema, portanto, vem para visibilizar quais direitos possuem, mas não são assegurados, pelo Estado e a sociedade brasileira. Portanto, a violência é entendida como difusa e descentralizada, sendo materializada no Estado (ou em sua ausência ou em sua presença repressora), na xenofobia, nas relações de gênero, etc. Neste sentido, dois fatos novos já se apresentam na organização desta edição da marcha. Ambos levantam questões mais profundas sobre tais violências sofridas e as condições de vida contemporâneas destas populações. O primeiro se refere à frente de mulheres migrantes que estará a frente da marcha, liderando a caminhada. E o segundo a presença de diversos(as) refugiados(as) de países africanos e do Haiti, bem como de latino-americanos, em ocupações para sem-teto na cidade. Fotos: Willians Santos & Patrícia Villen Porque marcham? O Dia Internacional do(a) Imigrante foi estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) no dia 18 de dezembro 2000, sendo que no mesmo dia, no ano de 1990, havia sido estabelecida a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos(as) os(as) Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias. Em 2006 o Fórum Social das Migrações realizado em Madrid (Espanha) declarou a necessidade de que os movimentos sociais do mundo realizassem neste dia 18 uma marcha – como parte do dia mundial de luta – pelos direitos dos migrantes. Segundo Paulo Illes1 – atual Coordenador da pasta de Coordenadoria de Políticas para Migrantes da Secretaria de Direitos Humanos – ao encerramento do fórum em setembro de 2006 organizações e migrantes procuraram realizar a marcha em São Paulo. A primeira marcha foi realizada na Praça Kantuta local que só atualmente foi reconhecido como patrimônio dos imigrantes bolivianos na cidade. À época também era disputada pelos mesmos como um direito, já que os(as) bolivianos(as) haviam sido expulsos de outra praça na mesma região por moradores locais. Outro espaço recentemente reconhecido como de patrimônio dos(as) bolivianos(as) em São Paulo é a Rua Coimbra, localizada próximo ao metrô Bresser, e que concentra um grande comércio2. A marcha portanto busca visibilizar a realidade migratória. È um protesto que procura, por um lado, levantar questões e bandeiras reivindicativas dos migrantes, e que buscam dialogar diretamente com as suas realidades, e, de outro lado, que busca promover um debate e diálogo com a população acerca da realidade que toca a ambos lados, buscando a resolução de problemas comuns. Se antes os imigrantes levantavam a bandeira de uma nova anistia (concedida em 2009), atualmente querem o direito ao voto para munícipe e uma nova Lei migratória. Desta forma, sob a bandeira “basta de violência”, estão inseridos discursos e práticas que visam a materialização de direitos. Desde 2007 o principal órgão a convocar a organização da Marcha é o Centro de Apoio ao Migrante (CAMI), mas esta não é a única organização responsável por construí-la. Grupos folclóricos, como Aquarela Paraguaia, de extensão das universidades, como Educar para o Mundo, de convergência das culturas e contra a violência, como Warmis, espaços de acolhimento para jovens imigrantes, como o projeto Sí Yo Puedo, associações esportivas, Organizações Não-Governamentais, militantes acadêmicos(as) e sindicatos, dentre outros, participam da construção da marcha. No ano passado, segundo esta e outras associações, os imigrantes marcharam, sobretudo, para demonstrar o desejo que tinham de vir ao Brasil, exercendo desta maneira um direito. Essa ideia de cidadania que ultrapassa fronteiras tem suas origens na própria mobilidade humana, datada mais longinquamente que o tratado de Westfália, que instituiu a ideia de Estado-nação. Desta forma, a 7ª marcha, ocorrida em 2013, Praça Kantuta e a Primeira Marcha dos Imigrantes – Cartografia dos Direitos Humanos de São Paulo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MNuvLSfLTKk. Acesso: 02/12/2014.19h01. 2 Disponível em: http://spressosp.com.br/2014/11/17/rua-coimbra-agora-e-oficialmente-patrimonio-povoboliviano-em-sp/. Acesso: 02/12/2014. 18h51. 1 reivindicou uma lei de migração mais justa e humana, baseada em valores universais e no respeito à dignidade da pessoa humana3 Dos motivadores destes desejos de mudança permanecem, certamente, as pautas relativas as oportunidades de trabalho. No entanto, há outras motivações, como as oportunidades de estudos, de residência, de bem-viver e principalmente do exercício da liberdade de migrar e se estabelecer em outro país direito que é exercido de forma precária também por brasileiros e brasileiras em outros territórios, devido a ideia de Estado-nação apontada. Os(as) migrantes e refugiados(os) denunciam que a sociedade brasileira e a Lei que a organiza restringem entrada no território nacional, contrariando sua própria constituição. Conforme o manifesto da 7ª Marcha em base ao artigo 5ª da constituição de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Embora esta realidade pareça estar em processo de mudança a restrição aos direitos de imigrantes e refugiados é preponderante. Até a elaboração e efetivação de uma nova Lei de Migração o documento oficial que regularizará a entrada e permanência de migrantes e refugiados é o Estatuto do estrangeiro - Lei 6.815 de 1980 que data da ditadura militar. Este estatuto, na prática, acaba sendo um impeditivo para o exercício do direito ao deslocamento pelo território brasileiro e ainda tem o efeito ideológico de representar os migrantes enquanto um caso de ordem nacional e problemas de segurança pública criminalizando essa população, relegando-a, portanto, á subalternidade e ainda sendo potencial para condizer com práticas de xenofobia, preconceito e racismo, como vem ocorrendo nos últimos anos. Também proíbe a liberdade de organização e participação política, um elemento básico do exercício da cidadania em países democráticos, já que não permite, por exemplo, que migrantes e refugiados(as) possam (na prática) eleger candidatos, participar regularmente e criar sindicatos, partidos políticos, dentre outras associações políticas comunitárias, midiáticas de classe, etc. A denúncia da vulnerabilidade derivada da condição de não cidadania e restrição de direitos, em conjunto com outras denúncias, é o escopo da marcha deste ano. O fato de os migrantes estarem sujeito as desigualdades econômicas regionais, ou a conflitos internos as nações de origem, que lhes impõe migrar, complementa-se com a exploração do trabalho na sociedade de chegada, aprofundada por questões como a barreira de idioma, não acesso a informação, desconhecimento das diferenças culturais, condições de escravidão (alimentado pela irregularidade formal que por sua vez se configura devido a burocracia que mais desestimula a regulamentação e altas taxas para solicitar documentos de registro, sujeitando os migrantes as relações de poder e dominação 3 Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/12/Manifesto-7-Marcha.pdf. Acesso: 01/12/2014. 21h25. pessoal)4, tráfico de pessoas, assédio moral, bullyng e outras discriminações no ambiente escolar, agregado a não regularização migratória. Atualmente, porém, tramita no Ministério da Justiça uma Comissão de Especialistas sob a portaria nº 2.162/2013 formado por lideranças políticas, instituições internacionais, parlamentares, representantes do poder público e acadêmicos com a finalidade de elaborar e apresentar Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil após anos de pressão dos movimentos sociais para substituir o Estatuto, agora com base nos direitos humanos. Este projeto de Lei considerou as recomendações proposta pela COMIGRAR – Conferência Internacional ocorrida em São Paulo em Maio deste ano e que significou uma consulta pública sem caráter deliberativo onde se reuniram vários órgãos, associações, entidades, instituições, especialistas, migrantes, pesquisadores, etc interessados e atuantes no tema5. O crescimento migratório e de refugiados Embora a adesão da maior parte de imigrantes e dos refugiados(as) na organização da marcha ainda seja diminuta, se comparada com a quantidade de pessoas na condição de imigrante e\ou refugiada na cidade de São Paulo, e a população local conheça pouco sobre a realidade migratória (bem como grande parte dos movimentos sociais, partidos, sindicatos, associações culturais e etc), é preciso trazer à tona que as diversas organizações autônomas, ligadas ás Pastorais ou ao poder público vêm crescendo. Estas organizações tomaram para si a responsabilidade de, por um lado, lutar direitos dessas populações, através de práticas de atendimento jurídico, recebimento de moradia e promoção de práticas de socialização, cultura e educação, para citar alguns casos. De outro lado (e alguns casos), as organizações buscam fazer com que os imigrantes tenham autonomia em sua trajetória. O trajeto e as reivindicações da marcha, por exemplo, foram decididos por algumas destas organizações em diversas reuniões nos dois meses, as quais, devido aos atendimentos que fazem aos migrantes e refugiados, têm pleno conhecimento de grande parte da realidade migratória e de refúgio no país, tão discutidos ultimamente. No entanto, desafios se colocam ás instituições, órgãos, ao poder público, do Estado e da sociedade civil. Além da documentação, já comentada, a acolhida, certamente é um fator importante. Trata-se da questão do direito à moradia. Os novos fluxos migratórios que entram no país provêm do Haiti, do Congo, Costa do Marfim, Mali, além de refugiados(as) sírios(as) e libaneses, concentrando 26% do total de pedidos de entrada no Brasil até outubro deste ano6; além de outras nacionalidades sul-americanas que crescem cada vez mais como é o caso de Peruanos. 4 Sobre as questões de regularização e outras mais ver: Em São Paulo, imigrantes se mobilizam por políticas públicas e respeito. Disponível em: http://reporterbrasil.org.br/2013/12/em-sao-pauloimigrantes-se-mobilizam-por-politicas-publicas-e-respeito/. Acesso: 02/12/2014. 20h28. 5 Disponível em: http://migramundo.com/2014/05/30/o-que-esperar-da-comigrar-especialistas-militantese-migrantes-opinam/. Acesso: 02/12/2014. 19h48. 6 Disponível em: file:///C:/Users/willians%20santos/Downloads/youblisher.com-1029754-Artigo_Valor_Economico.pdf. Acesso: 02/12/2014. 15h07. Algumas instituições da sociedade civil estão recebendo a este contingente: a casa das Irmãs Palôtinas, o Centro para a Acolhida para Refugiados da Cáritas brasileira, a sociedade Islâmica de Guarulhos e a conhecida a casa do migrante da Missão Paz. As entidades ao longo do tempo manifestaram descontentamento com a postura do Estado e do poder público que teria invertido os “papéis” deixando a iniciativa das organizações e instituições da sociedade civil a promoção e efetivação do direito a moradia. Só mais recentemente duas iniciativas do poder público procuraram responder tais crítica. A prefeitura de São Paulo inaugurou o Centro de Referência e Acolhida ao Imigrante (CRAI) – com capacidade de 110 leitos – em funcionamento desde o dia 29 de agosto de 20147; e o Governo do Estado inaugurou a Casa de Passagem Terra Nova, também na capital paulista, – com capacidade de 50 leitos8. No entanto, tais iniciativas são tímidas e, por isso muitos africanos e haitianos há um tempo já se descolocam as ocupações sem-teto na cidade. Refugiados em Ocupações e a Luta por Moradia Este é o caso das movimentações que vem ocorrendo na ocupação Cambridge da Frente de Luta por Moradia (FLM) – MTSC (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Lá reside atualmente Luambo Pitchou – há cinco anos no Brasil - e outros estrangeiros recém-chegados provindos da África e da América Latina. Em visita ao local, foi possível verificar que atualmente os refugiados tem dificuldade em conseguir moradia (casa própria ou alugada), devido a algumas questões que envolvem documentação, infraestrutura e preconceito. Segundo Pitchou, quem está se deslocando para as ocupações o faz pela luta por moradia e não apenas pela residência. São pessoas provindas da África, frequentemente sob a condição de refugiados de guerra, ou latino-americanas, ou haitianas. Morar na ocupação é uma estratégia de pressionar o governo, pois: “A moradia é um direito. Ao assinar a Lei de Refugiados o governo tem que garantir a recepção... o Brasil não é um sonho, aconteceu uma tragédia [no país de origem], aconteceu que estamos aqui, poderia ser outro lugar.” Esta luta se faz necessária porque as oportunidades de residência em albergues da Igreja ou da prefeitura não são suficientes: muitas vezes pode-se ocupar esses espaços por tempo muito limitado. E, mais importante, a moradia não é uma situação “provisória”, mas permanente. Lutam, portanto, porque desejam alguma coisa para ser permanente. Desta forma, é visível que a procura por ocupações ou casas alugadas no centro e na periferia da cidade se deve ao fato de que os locais de recebimento não suportam toda a demanda. Em locais como a Casa do Migrante, os solicitantes devem permanecer de três a seis meses e muitos(as), após este período, acabam se deslocando para alugar uma casa ou para as ocupações, uma vez que não podem mais ficar no local e não 7 Disponível em: http://www.cdhic.org.br/?p=2207. Acesso: 02/12/2014.15h31. Disponível em: http://migramundo.com/2014/10/06/governo-de-sp-inaugura-terra-nova-centro-estadualde-acolhida-para-imigrantes/. Acesso: 02/12/2014. 15h30. 8 conseguiram ainda estabelecer-se em emprego ou regularizar toda a documentação para que possam enfim conseguir um espaço fixo, quando, portanto, iniciam a luta. Uma questão alimenta a outra. Como muitos(as) não conseguem alugar uma casa, por exemplo, porque os proprietários não aceitam o RNE (Registro Nacional de Estrangeiros), e os refugiados não detém fiadores, não conseguem cumprir todas as exigências solicitada para alugar uma residência. Em adição, devido ao preço do aluguel na região central da cidade, muitos(as) refugiados(as) acabem se deslocando para áreas mais periféricas da cidade, como o bairro de Itaquera, citado pelo próprio Pitchou, onde muitas vezes a locação de uma casa ocorre com o próprio proprietário, não havendo as barreiras que a imobiliária impõe. Ocorrem também muitos casos de preconceito ‘velados’ contra africanos(as) e haitianos(as) nas imobiliárias, pois há muitos casos nos quais as imobiliárias não concedem uma casa sob a alegação de que a mesma já foi alugada, quando o argumento implícito é ser o solicitante justamente originário de algum país africano e suspeito de traficar. A burocracia não só contribui para a restrição de moradia, mas, para a própria empregabilidade. Formado em direito Pitchou indica que a regularização do diploma em advocacia de sua formação na República Democrática do Congo para o Brasil é dificultosa, dado que o carimbo da embaixada brasileira no país de origem e a tradução juramentada são requisitos caros, impossíveis de serem pagos por alguém em situação de vulnerabilidade financeira, levando ao deslocamento e manutenção dessas população em subempregos, nestes casos preponderantemente na construção civil, mas também em frigoríficos, dentre outras ocupações. Situação similar ocorre com latino americanos (as) que trabalham em oficinas de costura da cidade, sendo que neste caso o fator preponderante de não empregabilidade mais estáveis e melhor remunerada se deve preponderantemente ao desconhecimento, tanto do empregado quanto do empregador, das habilidades aprendidas formalmente por tais imigrantes, para além do fator discriminatório que também os(as) acomete. Segundo Pitchou poucas, ou quase nenhuma, OnG está problematizando ou sequer mencionando os problemas referentes a moradia para os(as) refugiados(as). Por este motivo, o(a) angolano(a), bem como outros(as) africanos(as) e haitianos(as) estão procurando construir uma associação de “estrangeiros para estrangeiros”, para lutar por moradia e informar aos(às) conterrâneos(as) as leis brasileiras e o motivo da ocupação destes espaços. A seu ver, há demasiado desconhecimento geral da condição de africanos(as) e haitianos(as). Além da residência na ocupação há, no espaço, a criação de uma parceria com os movimentos de moradia onde, para além dos estudos sobre as leis, procura-se informar a população sobre os motivos das ocupações, necessidades específicas de refugiados(as), bem como as características culturais de cada país – com a finalidade de combater estranhamentos e “choques” culturais. Pitchou, por exemplo, já realizou palestras na Escola Santa Cruz onde falou sobre questões de educação e sobre a realidade social de Angola. As reuniões das pessoas engajadas em formar a associação ocorrem aos domingos, as 16h, na ocupação. E é quando muitos procuram Pitchou: “todo domingo chegam pessoas procurando moradia... aqui eu faço a ponte [das lideranças da ocupação] com o movimento dos estrangeiros”. No entanto, nem todos que participam das reuniões estão residindo em moradia, embora reúnam-se por sua luta. O desafio dos movimentos e da mídia no combate ao racismo A recepção de “novas nacionalidades” se expressa também na marcha. Como nem todas as organizações que participam da construção trabalham no atendimento e compreensão da realidade desta imigração em particular, bem como a maioria de seus organizadores estão ligados a questões latino americanas, há um risco de sub-representação das pautas, ou seja, de perda de legitimidade e representatividade no processo de construção coletiva. Nas reuniões para a construção da marcha, apenas representantes da Cáritas organização responsável pelo recebimento a apoio aos refugiados na cidade - estiveram presentes na organização, com a possibilidade de apontarem as demandas de refugiados(as). Contudo, a presença de apenas uma organização que represente imigrantes mais recentes, não é suficiente para responder á reivindicativas coletivas. Para a marcha, portanto, o desafio deste e dos próximos anos será entender as necessidades das nacionalidades vinculadas aos novos fluxos migratórios e representalas. Condição que, atualmente, é questionável em uma marcha que se pretende de todos(as) os(as) imigrantes. Outro desafio que se coloca sobre a visibilidade dos direitos de migrantes e o recebimento destes novos movimentos é o racismo e o preconceito por origem social e regional. Apesar do mito da democracia racial ainda permanecer nos discursos oficiais que, inclusive, são difundidos por lideranças que tratam dos direitos dos migrantes para legitimar a presença de novos povos a cidade, o racismo brasileiro ainda é constitutivo das relações sociais e das instituições. O racismo brasileiro institucional é a discriminação diferenciada do Estado brasileiro ás populações de origem negra (frequentemente aquelas que se configuram também como pobres), e a dispersão de mecanismos e práticas de exclusão e repressão sistemáticas. Em outras palavras políticas estatais são dirigidas ou negligenciadas conforme os interesses do Estado e visando o mantenimento do satus quo e a hierarquia social que, no caso brasileiro, também é racial. A falta de políticas de acesso à educação pública superior é expressão deste fato. E a forma do destrato que o Estado relega aos haitianos, por exemplo, não os acolhendo, ou acolhendo em condições precárias, é outro forte e violente indicativo deste racismo institucional. As populações africanas e haitianas são negras, tendo o Brasil acordos econômicos com os países de origem dos africanos, e mantendo um exército no Haiti. Além disto, a maior parte de sua população também possui origem africana. No entanto, o que vemos é o racismo institucional brasileiro expressar-se também na política migratória e de concessão de refúgio, na forma como o Estado tem atuado, dificultando-a ou simplesmente tratando-os como cargas que se transporta de um lugar, o Acre, a outro, o Sudeste e Sul do país. A estigmatização pelo traço racial, ou a origem social, estende-se também aos latino americanos. O racismo institucional, o preconceito racial e pela origem social ou regional presentes no cotidiano, colocam-se como um desafio á mídia nacional hegemônica e alternativa, em tratar de modo mais ético e humanizado a entrada e estadia das populações citadas. Dois casos recentes são exemplares e demonstram a necessidade de combater o racismo. O primeiro caso se trata do comentário proferido em agosto de 2013 pela professora doutora em Direito Internacional da USP, a qual, chamada para comentar no Jornal da TV Cultura um caso que envolvia a diplomacia brasileira em relação ao estado boliviano, na concessão de asilo ao senador boliviano Roger Pinto Molina, afirmou a Bolívia ser “insignificante em todas as perspectivas” para o Brasil – comercial, político, etc. E acrescentou que os(as) imigrantes bolivianos(as) que vêm para o país não contribuiriam para o desenvolvimento tecnológico, cultural e social do país. O segundo caso é mais recente e se trata das violências simbólicas e agressões físicas que os(as) Haitianos(as) vêm sofrendo no Paraná. Após notícia de que houve no Brasil um caso de pessoa de origem da Guiné suspeita de estar contaminada pelo vírus Ebola, em Cascavel, cidade do interior do Estado, moradores locais passaram a hostilizar todo estrangeiro(a) negro(a). Na mesma cidade um homem de origem haitiana foi esfaqueado em um posto de gasolina onde trabalhava. Já em Curitiba, capital paranaense, um outro migrante haitiano foi violentado simbolicamente de modo constante por outras pessoas na empresa onde trabalhava, chamado de macaco, até um dia em que foi realmente agredido. Os dois casos demonstram que o discurso contra a xenofobia proferido pelos migrantes e refugiados que participam da marcha não ocorre por acaso. No entanto, estes casos são também formas descaradas de preconceito social, devido a origem dos(as) migrantes bolivianos, no caso, acusados de pertencerem a um “país menor” – será que se fossem imigrantes provindos da Ucrânia teriam o mesmo tratamento? – e ainda associados a parasitagem uma vez que, do ponto de vista da professora, não contribuiriam em nada a sociedade local, sob uma visão economicista e utilitária da migração questionável. Migrar é um direito. Os casos de haitianos agredidos não podem ser vistos somente sobre a ordem da xenofobia. Negros(as) no Brasil são constantemente violentados, seja pela própria população, seja pelo Estado através das forças militares. E é esta realidade de ódio que os imigrantes haitianos estão enfrentando. Não é por acaso que as agressões ocorreram em um Estado e sociedade que publicamente procura representar-se como de colonização europeia - num país de maioria da população ser de origem africana. Ambos casos colocam desafios à mídia, em prover outro retrato a imigração, no sentido de não reificar preconceitos e racismos já promovidos educando e informando em outro sentido, através de uma abordagem ética e promovendo uma visão humana sobre cada população que vem ao país. Para a mídia uma possibilidade de abordagem que evite estereótipos e reducionismos sobre migrantes pode ser encontrado no Guia de Diversidade Cultural para Comunicadores - Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural para comunicadores: Migrantes no Brasil de Denise Cogo e Maria Badet. A mulher migrante, o combate a violência de gênero e a perspectiva de organização democrática Outra questão que se coloca em pauta, não alijada do debate de raça e dos “novos” fluxos migratórios, é a questão de gênero. Sabe-se que 70% das vítimas de tráfico de pessoas no mundo são do sexo feminino 9. Nas sociedades de acolhida, apesar de as mulheres comporem metade dos fluxos migratórios10, ocuparão os postos de trabalho mais precarizados, inclusive quando dividem o mesmo espaço produtivo junto aos homens. Enquanto os homens ocupam os postos de maior remuneração dentro das oficinas de costura, por exemplo, as mulheres ocuparão funções como cozinha e ajuda geral (menos bem remunerados). Adicionalmente, mulheres imigrantes de “minorias” raciais são mais vulneráveis aos empregos precários e ilícitos: ocupam as funções consideradas “femininas” menos valorizadas e de menor valor remunerativo. Com efeito, profissionais do sexo, serviço doméstico e emprego em sweatshops são as três ocupações preponderantes da mulher imigrante11. Desta forma, debates em torno de questões como “feminização da pobreza”12 ou afirmações como “a pobreza tem rosto de mulher”13 não ocorrem no vácuo: as mulheres efetivamente recebem menos que os homens em postos de trabalhos remunerados. Adicionalmente, as mulheres são aquelas que mais ocupam trabalhos que não oferecem retornos financeiros: limpar a casa e cuidar dos filhos, por exemplo, ainda são preponderantemente reconhecidos como funções da mulher. Chamados de trabalhos reprodutivos, são aqueles que oferecem à mulher jornadas duplas ou triplas e ainda são realidade tanto nas tradições da maior parte das pessoas imigrantes, quanto no Brasil. Em outras palavras, a sociedade brasileira não fornece perspectivas de emancipação de gênero nesse sentido. Antes pelo contrário, fomentam a inserção de mulheres nos mencionados “trabalhos femininos”: faxineiras domésticas são preponderantemente migrantes brasileiras ou imigrantes. Há ainda, dentro das relações de trabalho da mulher imigrantes, assédios específicos ligados à sua condição de dupla vulnerabilidade: para além do assédio moral, o assédio sexual é uma constante e muitas mulheres não procuram ajuda de órgãos públicos de denúncia quando são assediadas por meio de deportação, má atendimento (frequentemente ligado à xenofobia) e controle dos seus parceiros conjugais quando da tentativa de denúncia, dentre outros. 9 http://www.inpacto.org.br/2014/11/relatorio-lancado-pelo-unodc-aponta-aumento-do-trafico-de-criancasno-mundo/ 10 http://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,imigracao-feminina-cresce-na-america-latina-e-nomundo,85920 11 TRUE, Jacqui. The political economy of violence against women. New York: Oxford University Press, 2012. 12 http://www.pnud.org.br/Noticia.aspx?id=1301 13 http://revistageni.org/10/a-precarizacao-tem-rosto-de-mulher/ Estes temas não esgotam o debate: há violência obstétrica no sistema de saúde brasileiro, seja ele público ou privado: 52% dos partos realizados no Brasil são cesarianas14. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que este percentual seja de até 15%. A violência obstétrica torna-se ainda mais violenta dentro de contextos nos quais as mulheres estão acostumadas à cultura do parto normal ou humanizado, como as bolivianas dos povos originários. Quando da matrícula de seus filhos nas creches e escolas públicas, enfrentam a ignorância do corpo burocrático desses espaços, que desconhece os direitos de imigrantes em matricular seus(suas) filhos(as) com a apresentação de um documento de identidade simples. Com frequência não existem vagas para todos(as) os(as) filhos(as) da mulher imigrante em uma mesma creche ou escola, de modo que ela é obrigada a matricular cada filho(a) em um espaço educacional diferente. Uma vez matriculado(a), o bullying sobre os(as) filhos(as) da mulher imigrante é uma constante. Embora todos esses problemas que afetam em maior medida a mulher imigrante não sejam nenhuma novidade dentro (e fora) do contexto migratório, é a primeira vez que as mulheres participam da marcha de forma institucionalizada, em uma frente de mulheres imigrantes (e brasileiras que apoiam as suas pautas). A frente é composta por militantes de organizações diversas. A intenção da frente é viabilizar as questões relativas a gênero dentro das pautas de reinvindicação imigrante na marcha em questão. Portanto, embora não deseje configurar-se como uma marcha separada da 8ª Marcha d@ Imigrante, inegavelmente desloca parcialmente o debate e foca-o dentro de questões específicas, além de neutralizar alguns aspectos discursivos que se pretendem universais, mas que privilegiam preponderantemente os homens. O arroba (@) dentro da marcha é um aspecto representativo desta participação das mulheres, já que neutraliza o gênero do evento. Marcha dos migrantes, 07 de dezembro, domingo. Concentração ás 09h. Saída da Praça da República. 12h chegada na Praça da Sé. Facebook: (https://www.facebook.com/events/1503406906598674/?fref=ts) 14 http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/04/140411_cesareas_principal_mdb_rb