Existe um modelo neurobiológico da Perturbação

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Volume XII Nº6 Novembro/Dezembro 2010
Editorial / Editorial
Existe um modelo neurobiológico da Perturbação
Obsessivo-compulsiva?
A neurobiological model of Obsessive-compulsive disorder does exist?
Os doentes com Perturbação Obsessiva-Compulsiva (POC) têm consciência do absurdo das suas obsessões e compulsões mas, apesar do grande esforço que despendem, não as conseguem controlar.
As obsessões e compulsões geralmente não são bizarras, centrando-se o seu núcleo numa impressão
de que “algo está errado”. Alguns doentes sofrem sobretudo de obsessões, outros de compulsões e
outros de ambas, entendendo-se por obsessão, a percepção permanente de um erro/engano em algumas situações comportamentais e por compulsões, as respostas comportamentais transitórias que
visam aliviar a tensão gerada pela situação (reforços).
Este jogo entre obsessão/compulsão constitui um ciclo vicioso do qual o doente dificilmente sai. Uma
situação que gere tensão leva a uma compulsão como um mecanismo para diminuição temporária da
tensão que, por ser temporária, conduz a nova tensão mas, desta vez, já como resposta a um estado
motivacional interno que gera uma expectativa de reforço a qual, por sua vez, gera nova compulsão. E
o ciclo nunca mais pára!
Um comportamento tão estranho quanto disfuncionante necessitava de uma explicação neurobiológica
que pudesse sustentar a pesquisa de estratégias de intervenção eficazes. E o que inicialmente motivou
o estudo das bases biológicas da POC foi a constatação da associação entre os quadros de parkinsonismo pós-encefalítico e os sintomas obsessivo-compulsivos, na presença de lesões do estriado[1].
Posteriormente também foram descritos sintomas obsessivo-compulsivos em outras doenças neurológicas com envolvimento do estriado, tais como o Síndroma de Tourette, a Coreia de Sydenham e de
Huntington e a doença de Parkinson[2].
Baseadas nestas associações e nas funções comportamentais associadas à região dos gânglios basais,
as propostas iniciais para a estruturas cerebrais envolvidas na POC foram, precisamente, os gânglios
basais. Outro tipo de evidência também sugeriu que o córtice pré-frontal deveria ter um papel na POC,
consistente com os seus papéis funcionais. Também se constatou que os doentes com POC apresentavam anomalias numa série de medidas e paradigmas usados em neuropsiquiatria como, por exemplo,
nas medidas de identificação olfactiva, nos potenciais evocados, na inibição prépulsiva e intracortical[2].
Ao mesmo tempo também se reportava que estes doentes apresentavam alterações neuropsicológicas
na função executiva e na memória visual[3]. Este conjunto de alterações acabaram por sugerir que deveria
haver uma disfunção do sistema córtico-estriado-talámo-cortical (CETC) e a evidência sustentava que esta
disfunção seria específica da POC[4]. Recentemente, estudos de imagiologia cerebral, evidenciaram que
na POC existe um acréscimo de actividade no córtice órbito-frontal, no córtice cingulado e no estriado,
quer em repouso, quer aquando da exposição a estímulos de medo.
Estes dados influenciaram a elaboração de modelos detalhados para explicarem os sintomas da POC,
centrados numa falência da normal modulação inibitória nas ansas paralelas córtico-basais do sistema
CETC[5]. O mecanismo proposto é o seguinte: os sintomas apareciam quando o processamento dos
inputs corticais para os gânglios basais era deficitário, tendo como resultado uma desregulação da
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excitação tálamo-cortical com uma consequente actividade cortical defeituosamente modulada e uma
exacerbação do funcionamento dos gânglios basais.
Neste jogo anatómico o sistema serotoninérgico também poderá estar envolvido. A primeira evidência
desse envolvimento vem da eficácia da clomipramina (um tricíclico que é sobretudo um inibidor da recaptação da serotonina) no tratamento dos sintomas da POC. Contudo, apesar desta evidência ainda
não foi detectada nenhuma anomalia do sistema serotoninérgico nos doentes com POC. O mesmo não
se pode dizer para a dopamina. Em estudos pré-clínicos, a administração de agonistas dopaminérgicos
provoca comportamentos estereotipados e em estudos com humanos, esses agentes podem exacerbar
os sintomas e os tiques do síndroma de Tourette[6].
Dito isto, cabe questionar: a evidência do aumento da actividade nos córtices pré-frontal orbital e mediano,
bem como no estriado chega para sustentar que estas alterações são responsáveis pelo comportamento
obsessivo-compulsivo? Ou são, antes, consequência desse comportamento?
Para responder a esta questão teremos de dissecar os correlatos comportamentais destes sistemas
neuronais. Desde logo, estas estruturas são compostas por um mosaico de áreas diferentes, cada uma
tendo uma putativa função específica no processamento da informação:
(1) O córtice orbito-frontal (COF) constitui o centro mais alto para o processamento da informação
emocional que, em conjunto com as áreas ventromedianas do lobo frontal, desempenham quer um papel importante nas situações que envolvam um ganho por incentivo (os neurónios do COF activam-se,
especialmente, para situações em que se espera e recebe um reforço), quer um papel nas situações
em que é necessário proceder a alterações rápidas do comportamento para adaptação a alterações
ambientais[7]. Por outro lado, as lesões nestas regiões acarretam dificuldades em tomadas de decisão,
mantendo-se intacto o conhecimento da estratégia adequada (por incapacidade de antecipação de
possíveis consequências negativas das acções imediatas) e induzem os doentes a correrem riscos
independentemente da natureza da estratégia que usem[8].
(2) O córtice cingulado anterior (CCA) está envolvido em processos como a atenção, a motivação,
o reforço, a detecção do erro, a memória de trabalho, a resolução de problemas, o planeamento das
acções[9,10]. Está também envolvido no processamento das instruções visuais em situações que impliquem escolha, na antecipação ou na expectativa de um reforço e no planeamento de comportamento
sequencial fora da rotina[11]. Mas um dado importante da sua fisiologia é o facto de ser especialmente
activado nas situações em que há opções conflituais e grande probabilidade de se cometer um erro[8].
Este conjunto de funções leva a que tenha um papel determinante na (a) monitorização do conflito, (b)
no manejo da informação cognitiva e emocional (avaliação emocional das consequências dos actos) e
(c) nos processos de detecção do erro. Tendo isto em mente, percebemos bem que as lesões desta
região alteram os processos de identificação do erro e de monitorização do conflito, o manejo das
consequências emocionais dos actos e induzem uma ansiedade inespecífica[10, 11].
(3) O córtice pré-frontal dorso-lateral (CPFDL) está envolvido nos processos cognitivos mais superiores
tais como (a) a análise, processamento sequencial e manutenção online da informação relevante, (b) a
auto-elaboração de planos para contingências específicas, (c) a adaptação às mudanças contextuais,
(d) o controlo das respostas comportamentais, (e) a memória de trabalho, (f) a focagem da atenção
selectiva, (g) a integração das relações entre informações para as tomadas de decisão e (h) a aquisição
de regras de representação mental[12]. Dito numa frase: esta região desempenha um papel importante
na integração cognitiva das consequências dos actos, que se perde aquando das lesões nesta região,
resultando daí uma dificuldade em parar os comportamentos compulsivos[13].
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(4) O papel dos gânglios basais, nomeadamente o estriado, estende-se desde a integração das
diferentes informações que chegam do córtice, até ao uso desta informação para seleccionar certos
programas motores e/ou cognitivos. Estas funções asseguram a detecção de acontecimentos reforçadores não previstos, facilitam a discriminação e a predição de estímulos e a monitorização das relações
temporais entre acontecimentos contextuais[14]. O putamen e o caudado estão mais envolvidos na selecção e geração de novos padrões de actividade (rotinas) em resposta a informação com significado. De
forma sucinta, os gânglios basais controlam os diferentes aspectos do processamento da informação
envolvidos na selecção do programa mais adaptado, da aprendizagem por reforço e da integração dos
aspectos emocionais do comportamento durante uma acção planeada. As lesões deste sistema induzem
uma disrupção da “prontidão”, da modulação emocional da informação e da representação das consequências esperadas dos actos. Em consequência há uma disrupção do processamento informacional
ao nível cortical devido à perda de focagem sobre as entradas sub-corticais[15].
(5) A amígdala temporal está envolvida na expressão das emoções e da motivação (através das conexões com COF, o CCA e o estriado ventral). Uma disfunção neste sistema amigdalino medeia a ansiedade
não específica sentida em relação aos pensamentos obsessivos, bem como os sinais neurovegetativos
associados à ansiedade.
(6) O papel do núcleo ventro-anterior do tálamo nas funções cognitivas (atenção e memória de trabalho)
resulta da sua ligação ao CPFDL. Na verdade, algumas partes do núcleo médio-dorsal do tálamo são
importantes para o processamento cognitivo e emocional através destas ligações e das ligações ao COF.
Dito isto, retomemos o núcleo fenomenológico da obsessão: uma percepção permanente de um erro.
Como se pode conceber, sob o ponto de vista modélico, a génese neurobiológica desta percepção de
que algo está errado? Desde logo, a hiperactividade descrita no COF destes doentes induz uma avaliação
natural das consequências da acção imediata muito aumentada, que pode traduzir-se em pensamentos
e comportamentos descontrolados. Estes fenómenos induzem, por sua vez, uma geração cognitiva de
“detecção de erros” não apropriada por parte do CPFDL que, pelas ligações ao estriado, induz neste
uma “escolha e execução” de comportamentos destinados a corrigir definitivamente estes sinais. Estes
sinais são correlativos do sentimento de que “algo está errado”. Eis o modelo neurofisiológico que está
sob teste empírico.
Em síntese, o dado crítico na POC é uma disfunção no processo de reconhecimento do erro (o sujeito
identifica uma situação normal como possível fonte de erro responsável pelo seu conflito mental). O
comportamento compulsivo repetitivo que visa reduzir a ansiedade gerada pela situação não obtém o
reforço esperado.
Nesta óptica, os comportamentos compulsivos recorrentes podem ser considerados como resultando
da expressão excessiva destes processos orientados para o reforço que podem ser assimilados para
aliviar a tensão.
A hiperactividade do sistema dopaminérgico meso-córtico-límbico (envolvido em situações em que o
sujeito enfrenta um novo estímulo reforçador), desempenha um papel fundamental na emergência das
obsessões, reflectindo uma computação excessiva acerca da predictibilidade do acontecimento. Por sua
vez, a hipoactividade serotoninérgica facilita a expressão dos comportamentos compulsivos e repetitivos,
porque as projecções serotoninérgicas do rafe exercem um controlo inibitório tónico sobre a actividade
do sistema dopaminérgico no estriado e no córtice.
Ou seja, a POC parece resultar de uma disrupção do processamento de informação nas ansas que ligam
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o córtice pré-frontal aos gânglios basais. Na verdade, a investigação neurobiológica da POC partiu do
estudo dos mecanismos cerebrais envolvidos no reconhecimento do erro e das funções energéticas que
lhes estão associadas: as funções emocionais e motivacionais. Estas asseguram a activação necessária
para a iniciação e sustentação do comportamento de reconhecimento do erro, acabando por desenvolver
uma tendência para a promoção do reforço desse mesmo comportamento. Ora, os circuitos que estão
na base destes mecanismos são o córtice óbito-frontal, o córtice cingulado anterior e o estriado ventral.
Por sua vez, estes circuitos neuronais podem disparar comportamentos e pensamentos repetitivos
que coexistem com outros em plena consciência, sugerindo que o disparo pode ser despoletado por
acontecimentos frequentemente inócuos[9, 10, 16].
Quer isto dizer que temos um modelo heurístico para explicar a POC? Talvez sim, mas há alguns pontos
por resolver. Desde logo é necessário saber se as alterações documentadas resultam das estruturas ou,
pelo contrário resultam das alterações estruturais das fibras que ligam essas estruturas?
Menzies et al.[17] mediram a anisotropia fraccional da substância branca através da DTI em 30 doentes
com POC, em 30 familiares de 1º grau não afectados e em 30 controlos saudáveis. Verificaram que
os doentes apresentavam valores significativamente inferiores da anisotropia fraccional da substância
branca, numa extensa região do lobo parietal inferior direito, comparativamente com os controlos e uma
anisotropia fraccionada superior numa região frontal mediana direita. Ou seja, estes dados sugerem que
a POC está associada a anomalias da substância branca nas regiões parietais e frontais. Sendo assim,
ainda não sabemos se as alterações neurobiológicas da POC são devidas a alterações nas estruturas
atrás descritas, se são devidas a alterações da conectividade entre essas estruturas ou se a ambas.
Para além disso, uma outra questão se levanta: as alterações documentadas são traços da doença ou
apenas estados do doente?
O mesmo estudo esclarece-nos quanto à resposta. Na verdade, os autores também verificaram que os
familiares de 1º grau sem doença também apresentavam anomalias significativas da anisotropia funcional
nestas regiões, sugerindo que estas alterações podem ser putativos endofenótipos da POC.
Parece que o caminho está traçado, mas falta ainda muito caminho para percorrer. Não há dúvida que
foi possível identificar os substractos neurobiológicos dos sintomas da POC, mas ainda não sabemos
se esses substractos são a causa ou a consequência desta perturbação.
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