VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de

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VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
20 a 24 de setembro de 2010
A Palavra (Mûthos) Sobreposta Pela Nova Palavra (Lógos).
Nestor Müller
Mestrado – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
[email protected]
Trabalhos de Eric Havelock, Michel Detienne e Luc Brisson, entre outros, conduziram a
uma completa revisão da antiga questão das relações entre mûthos e lógos. Ainda se
divulgam entre nós versões que desconhecem investigações rigorosas realizadas há mais
de quatro décadas, esclarecendo como temos ali, naquela questão, um exemplo nítido
das diferenças entre processos da tradição oral e processos da cultura baseada na escrita,
ambos ainda correntes nos tempos de Platão. Nosso propósito é mostrar que a poesia e
os mitos correspondem a um nível de excelência no seio de uma cultura oral e que a
filosofia, expressão do lógos, foi elaborada com os recursos emergentes nas tecnologias
da escrita. Sem desconsiderar a força das transformações socioeconômicas, para as
quais Jean-Pierre Vernant nos ensinou a olhar, aprendemos a notar melhor como uma
mudança nos meios de comunicação acarreta uma mudança na forma e no conteúdo dos
discursos e abre uma vasta reorganização das estruturas culturais.
...oo0oo...
Agradeço a Ana Paula Dezem Amorim pelas observações críticas
e a Danilo Ramos pelo acesso aos livros de Havelock e Brisson
em língua original. Ambos facilitaram a revisão formal do texto a
seguir, apresentado no VI Seminário de Pós-Graduação em
Filosofia da UFSCar.
INTRODUÇÃO
Esta comunicação situa-se no campo da historiografia. Apresenta resultados
ainda intermediários de uma pesquisa exploratória que acredito ser de interesse geral.
Pretendo mostrar como, segundo autores contemporâneos, as contribuições advindas
dos estudos da história oral modificam nosso entendimento sobre o contexto histórico
em que se formou a filosofia na Grécia antiga e trazem um novo enfoque para o
problema das relações entre o uso dos mitos e a linguagem lógica. Para isso vou
lembrar as tendências que dominaram os debates dessa questão até a década de 1960 e
em seguida vou relatar como o estudo das tradições orais mudou os termos desse
problema. Focalizarei, ainda, a experiência da memória, uma das principais
características de diferenciação entre o mito, a palavra da tradição oral, e o logos, a
palavra da tradição escrita.
A pergunta inicial é simples: como se criou uma dicotomia e mesmo um conflito
entre duas palavras que tinham, antigamente, o mesmo significado? Com efeito, ainda
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que provenientes de raízes diversas, mûthos e lógos significam, em Homero, Hesíodo,
Xenófanes e mesmo em Parmênides, o mesmo, ou seja, o que em português
denominamos “palavra”, “dito” ou “relato”. Ora, se denotavam uma realidade ou uma
experiência semelhante, como chegaram depois, em Tucídides, Platão e Aristóteles, a
ser contrapostas de modo tão cortante? O que mudou no entendimento que as pessoas
tinham sobre essas palavras? Houve alguma transformação cultural mais ampla que
justifique esse câmbio semântico? Como se formou o hábito de contrapor mûthos e
lógos?
O substantivo “mito” adquiriu em nossos dias um espaço semântico muito largo.
Basta pensar em como Ernst Cassirer (The Myth of the State em 1946) ou como
Theodor Adorno e Max Horkheimer (Dialektik der Aufklärung, editado em 1947)
usaram essa palavra. Porém no escopo desta comunicação usarei “mito” apenas no
modo como, pelas informações que temos, foi entendido na cultura grega antiga,
notadamente naquela época que importa para o processo de formação da filosofia.
1) O ENTENDIMENTO DA QUESTÃO mûthos-lógos ANTES DOS ESTUDOS
SISTEMÁTICOS SOBRE AS TRADIÇÕES ORAIS
A filosofia surgiu, em sua identidade própria, na segunda metade do século VI
a.C, nas cidades da Jônia. John Burnet em 1892, no livro Early Greek Philosophy, ou
ainda Bruno Snell em 1946, no livro Die Entdeckung des Geistes: Studien zur
Entstehung des europäischen Denken bei den Griechen, acrescentaram a essa afirmação
uma outra: o surgimento da filosofia naquele momento histórico é, também, a
inauguração do pensamento racional e representa um salto qualitativo e quase milagroso
da inteligência humana. E isso queria dizer que, ali e então, o logos ter-se-ia pela
primeira vez libertado do mito como as escaras caem dos olhos de um cego, nas
palavras sugestivas de Jean-Pierre Vernant (1973, p.293).
Aqui está a mudança e o conflito: a vitória do logos saudável contra o mito
descartável no decorrer do processo histórico.
Sobrevieram depois outros modos de interpretar aqueles avanços do
conhecimento. Francis M. Cornford, por exemplo, em 1912, em From religion to
philosophy, e também em sua última obra, Principium Sapientiae: the origins of greek
philosophical thought, editada postumamente em 1952, argumentou longamente sobre
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os estreitos laços que unem os primeiros filósofos com os antigos poetas. Em síntese,
Cornford defende que os filósofos não inventaram um sistema de explicação do mundo
pois suas teses centrais já estavam prontas, esparsamente, nos textos poéticos mais
antigos, textos aos quais, em parte, nós mesmos temos acesso. Aos primeiros filósofos
competiu colocar claramente as questões (a que os mitos atendiam sem serem
explicitadas) e em seguida formular as respostas dentro de uma nova linguagem, a
linguagem lógica que chegou a alcançar novos e fecundos campos de conhecimento.
A mudança do mito para o logos é vista agora como uma lenta sobreposição de
passos que transitam gradualmente desde os costumes antigos para os novos
procedimentos racionais. O conflito fica como que suavizado pela continuidade da
presença de mitos, ou de seus sinais, na obra dos primeiros filósofos.
Essa maior complexidade, no entanto, deixa quase intacta a questão original. Se
o nascimento da filosofia não representou o irrompimento súbito e maravilhoso do uso
da razão num ambiente ainda dominado pelas legendas míticas, o fato é que algo de
verdadeiramente novo aconteceu. Que mudança é essa? Qual é sua natureza, seu alcance
e seus limites? Que condições históricas condicionaram esse acontecimento?
Em 1934, a tese de doutorado de Pierre Maxime Schuhl (1902-1984), Essai sur
la fomation de la pensée grecque, investigou as causas daquelas intensas
transformações sociais, econômicas e políticas que caracterizam a Grécia durante o
século VII e início do VI a.C. Schuhl estudou principalmente a disseminação do uso de
moedas, o aperfeiçoamento do calendário, a introdução da escrita alfabética, o
incremento das navegações e a expansão do comércio. Todos esses seriam fatores que
criaram novas condições de convivência e exerceram uma função libertadora para o
espírito empreendedor, positivo e democrático.
O marxista George Derwent Thomson (1903-1987), em Studies in ancient greek
society de 1949, e depois em The first philosophers de 1955, aprofundou a análise
desses fatores. Thomson mostrou, por exemplo, que não é no campo das habilidades
técnicas que os gregos ou mesmo os jônios se distinguem das culturas orientais: nesse
terreno a Grécia nada inventou ou inovou. Thomson insistiu, ao contrário, em dois
fatores: (1) a falência ou mesmo ausência de uma monarquia de tipo oriental, o que
ensejou formas mais participativas de governo e (2) os começos de uma economia
mercantil, com a formação de uma classe de comerciantes para os quais os objetos se
despojam da sua diversidade qualitativa, presente no valor de uso, e passam a ter
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significado abstrato, imposto pelo valor de troca. Quer dizer, comerciantes se
acostumaram ao pensamento abstrato e geral presente na manipulação do valor de troca,
valor este que transforma objetos diferenciados em mercadorias quantitativamente
indiferenciadas, dado que intercambiáveis com quaisquer outras.
Jean-Pierre Vernant (1914-2007) sistematizou essas pesquisas históricas em Les
origines de la pensée grecque, editado em 1962. Nesse precioso livro demonstrou como
o ambiente da polis formou práticas públicas e isonômicas, gerando novas formas de
convivência social. Nessas condições o domínio da palavra, a palavra persuasiva que
tomou forma na arte oratória, arte emergente no debate público, tornou-se proeminente
entre todos os instrumentos de exercício do poder. Criou-se assim um vínculo estreito e
recíproco entre a vida política e essa nova palavra, lógos, afeita às discussões e aos
argumentos convincentes.
Na sequência das pesquisas de Vernant, devemos citar
ainda o historiador britânico Geoffrey Ernest Richard Lloyd (1933-). Ele detalhou em
diversos livros como as várias instituições legais e políticas da pólis demandaram a
formação de uma audiência experiente na avaliação de evidências e argumentos. Foi
essa audiência que se tornou crucial para o desenvolvimento do tipo de raciocínio
especulativo que caracteriza o florescimento da sofística e da filosofia.
A tendência desses quatro últimos autores foi identificar o pensamento mítico
com a mentalidade religiosa antiga, superada gradualmente à medida que a
disseminação de empreendimentos econômicos, a partilha do tecido social publico e a
maior participação na vida política redundaram no processo de laicização da vida
urbana e na constituição gradual da retórica, mais tarde discutida por Platão e
Aristóteles.
2) O ESTUDO DAS TRADIÇÕES ORAIS
Entrementes, uma outra vertente de pesquisas veio se juntar ao esforço de
comprender a formação da mentalidade grega. Vou mencionar dois autores que abriram
o campo dos estudos sobre a passagem da tradição oral – oralidade - para a cultura
baseada na escrita – literacia - e depois lembrar a obra decisiva de Eric A. Havelock,
que nos interessa mais de perto.
Em 1928 o americano Milman Parry (1902-1935) publicou sua tese na Sorbonne
sobre os versos homéricos. Ele comprovou, mediante o cotejamento com exemplos
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populares do seu tempo, que a frequente recorrência de algumas fórmulas, por exemplo
eos rhododacktylos (a de róseos dedos) ou podas okus Achilleus (Aquíles de pés
ligeiros), denunciava, na Ilíada e na Odisséia, a presença de recursos mnemônicos,
característicos das rapsódias orais. Junto a outros pesquisadores como Matija Murko
(1861-1952) e Marcel Jousse (1886-1961), Parry é considerado o fundador do estudo
das tradições orais. Jousse, por exemplo, mostrou como, na Grécia, em Israel e em
outros povos, a poesia era sempre cantada e dançada. Milman Parry e seus
continuadores, como Albert Lord (1921-1991) e Walter Ong (1912-2003), entre tantos
outros, enfatizaram o papel fundamental da memória nas culturas onde não existe a
escrita. É em função da memória que emoção, palavra, canto e movimento corporal
emergem unidos na expressão esponânea e total do corpo, e que repetições são
regularmente realizadas.
Em 1963 Sir John (Jack) R. Goody (1919-) escreveu, com seu colega Ian Watt, o
artigo seminal The consequences of literacy, editado em 1968 no livro Literacy in
traditional societies. Como pesquisador em Cambridge, Goody dedicou-se aos estudos
comparados de antropologia das mas antigas culturas escritas. No referido artigo
argumenta que o surgimento da ciência e da filosofia na Grécia antiga tem como
condição imprescindível a criação, no século VIII a.C., do eficiente sistema de escrita
que é o alfabeto grego. Em relação à sua matriz fenícia, o alfabeto grego inovou ao
registrar as vogais que registram as inflexões fonéticas e portanto tornam a escrita
independente da memória ou de fórmulas fixas, antes necessárias para o leitor decifrar
qual seria exatamente a palavra ou variante que estava diante de seus olhos, inscrita na
pedra ou no papiro.
O passo decisivo na compreensão do nosso problema foi dado por Eric Alfred
Havelock (1903-1988). Antigo aluno de Cornford em Cambridge, tornou-se professor
em Toronto e depois em Harvard. Em 1963 publicou o livro Preface do Plato, onde
expõe uma visão inédita sobre o processo da gradual assunção da escrita silábica na
Grécia antiga. Havelock mostrou como a escrita e suas práticas se mantiveram
submetidas à preponderância da cultura oral até o ocaso do século V a.C, mas
provocaram uma revolução intelectual
que transformou não apenas a sintaxe da
linguagem como também o significado de palavras-chave. Ao ampliar o alcance e
modificar a organização da mente grega, a literacia passou a exigir um novo sistema de
instrução que substituísse a antiga paidéia baseada na memorização dos versos
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homéricos. Eis uma preocupação fundamental de Platão, que se tornou, segundo
Havelock, ator decisivo nas transformações que se estavam operando.
As teses de Havelock foram depois ampliadas em outros livros. Apesar das
insuficiências metodológicas que os críticos lhe apontaram, sua obra tornou-se
influente. Seu colaborador Walter Ong – autoridade indiscutida no campo dos estudos
da tradição oral - atribui-lhe a tese que nos importa: as categorias mentais necessárias
para o desenvolvimento das ciências naturais e também para o florescimento da análise
histórica e filosófica na Grécia antiga dependeram substancialmente das condições da
cultura escrita.
3. OS TRABALHOS DE DETIENNE E BRISSON
O historiador belga Marcel Detienne (1935-), professor na École des Hautes
Études e na Universidade John Hopkins, dedicou algumas obras à nossa questão, em
especial L’Invention de la mythologie em 1981, e L’Écriture d’Orphée” em 1989.
Leitor de Goody e de Havelock, crítico pontual deste último, Detienne organizou em
1984 um simpósio cujas contribuições foram editadas em 1988 na coletânea Les savoirs
de l’écriture en Grèce ancienne, notável pelas circunstanciadas análises de textos
pertencentes a ambientes diversos como o comércio, a medicina, as leis ou as inscrições
fúnebres.
Para Detienne não há dúvidas de que a introdução do alfabeto, a partir do século
VIII a.C, impôs mudanças na cultura grega que por séculos permaneceram obscuras aos
historiadores. Por exemplo nas longas epopéias que imputamos a Homero, podemos
hoje detectar estratos ou frações de incontestável forma oral e ao mesmo tempo uma
composição cuja coerência, que supõe uma audiência já exigente em termos de retórica,
não seria viável sem o recurso alfabético. O intrumental do alfabeto grego mostra-se
imprescindível, ao lado das condições sócio-políticas, para os procedimentos analíticos
das disciplinas racionais, na matemática, na medicina, na história ou na filosofia.
A disseminação dos livros na Grécia antiga parece ser um fenômeno do final do
século V a.C. e até a primeira metade do século IV a.C. o costume de leituras públicas
ainda nutria a cultura oral vigente. Nesse século IV, a escrita ocupava papel secundário
na vida social, mas já exercia sua função de sustentar o avanço das investigações que
nós chamamos de científicas.
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A reflexão de Detienne tornou-se, entretanto, crítica em relação a todas as
tentativas feitas para se detectar uma caracterização específica para aquilo que nós
denominamos “um mito”. Com a “mitologia” já os gregos inventaram, no mau sentido
da palavra, um pretenso estudo sobre um gênero que enfim não existiu, afirma Detienne.
Houve, na cultura oral, relatos, contos, fábulas, legendas, provérbios, etc, mais ou
menos guardados na memória e a cada vez recitados de forma um pouco diferente,
segundo as condições do orador, da audiência e das circunstâncias, mas enfim nenhum
gênero que se possa, nas condições da literacia, recortar em sua particularidade própria.
O canadense Luc Brisson (1946-), diretor de pesquisas no Centre National de la
Recherche Scientifique e por muitos anos vice-presidente da International Plato Society,
vem defendendo, desde 1985, as teses centrais de Havelock, com base em análises
detalhadas da obra de Platão. Exemplo disso é o texto Mythe, Écriture, Philosophie,
onde afirma que a passagem da cultura oral para a cultura escrita, na Grécia só se
consumou no século V a.C. e propiciou o surgimento de dois novos tipos de discurso,
aqueles que conhecemos sob os nomes de história e de filosofia. Esses discursos irão
exercer as funções de memória e de formação antes cumpridas pelos mitos e pela
poesia, não por serem comparativamente superiores mas simplesmente porque com o
adevento da cultura escrita mito e poesia mudam de caráter e de função.
Em 1994 Brisson editou uma revisão e atualização do livro Platon, les mots et
les mythes, cuja primeira edição é de 1982. Trata-se de uma análise sistemática do
importante papel exercido por Platão no delineamento efetivo da mudança que estamos
focalizando. Brisson afirma, contra Detienne, que Platão estabeleceu as diferenciações
decisivas entre, de um lado, a poesia e o mito enquanto modalidades próprias da cultura
oral antiga, que precisava ser superada, e do outro lado a dialética e a razão enquanto
novas e mais exigentes formas de exercício da inteligência, correspondentes aos
recursos próprios da escrita. E com isso Platão definiu o significado de mito tal como a
cultura letrada ocidental passou a usar.
Platão sempre usa os mitos ou a eles se refere como testemunhos de uma
memória coletiva e duradoura dentro da tradição oral, expressando um acontecimento
passado e exemplar, capaz de transmitir algo fora do comum, algo que precisa ser
transmitido às novas gerações e precisa ser por elas bem entendido e assimilado. Nesse
sentido os mitos têm utilidade ética e política pois constituem notável instrumento de
persuasão.
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Em Platão, por força da emergência de um lógos que se apresenta como discurso
verificável e argumentativo, o mito passa a significar aqueles discursos antigos que não
são verificáveis nem são argumentativos. Desenha-se aqui a oposição entre lógos e
mûthos, em traços que vão daquele para este. O mito não é verificável porque seus
referentes habituais, deuses, heróis, homens e fatos de um passado distante, são
inacessíveis tanto à experiência sensível quanto à fixação lógica coesa. E nem é
argumentativo porque seus referentes são trazidos à cena por um recurso mimético,
como se fossem seres sensíveis.
Num balanço provisório desta rápida descrição historiográfica, podemos afirmar
que os estudos mais recentes indicam como ao lado das instituições políticas que se
formaram nas pólei gregas – bem estudadas por Vernant ou Lloyd – cabe à introdução
da escrita alfabética
um
papel
decisivo
na consolidação,
disseminação
e
desenvolvimento da filosofia grega.
Esses estudos atestam que lógos, em cuja raiz se acham os verbos “reunir”,
“apanhar” e “escolher”, foi usado para denotar os processos de organização do
pensamento que se tornaram possíveis no ambiente racional propiciado pelos
instrumentos da escrita alfabética. M thos, por sua vez, passou a denotar os relatos
antigos, típicos da cultura oral.
A diferença real entre logos e mito deve ser entendida, portanto, nos termos das
diferenças estruturais entre uma cultura oral e uma cultura escrita. É isso que cabe
verificar nos próximos passos da minha pesquisa.
Vamos ainda nos deter, um pouco, numa das principais características da cultura
oral.
4) A MEMÓRIA NUMA CULTURA ORAL
Numa sociedade sem escrita, todo o conhecimento em poder da comunidade irá
se perder em curto prazo se não for transmitido para a nova geração e se esta não efetuar
a sua memorização. A memória, seja manual ou verbal, é a matriz fundamental da
tecnologia de pensamento (na expressão de Pierre Lèvy, 1993) de toda cultura oral.
Numa cultura oral a sobrevivência do grupo depende das acuradas observações
de cada um de seus membros. É uma questão de vida ou morte observar bem, com todos
os sentidos abertos, e lembrar de todos os detalhes de modo a poder tudo relatar aos
outros. É claro, assim, que os antigos tinham uma certa ascese da apreensão pelos
sentidos e também da emissão vocal. Escuta e fala assumem, em tais culturas,
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relevância e uso bem diferentes do nosso. Fala-se de outro modo, pois os jovens
precisam gravar o que é dito. Escuta-se, portanto, com outra intensidade. E cuida-se da
memória como capacidade superior para toda a vida.
Na Grécia, a Memória é uma das deusas mais antigas: Mnemósyne, filha dos
deuses primordiais, Ouranós (Céu) e Géia (Terra), irmã de Chrônos (Tempo), tia de
Zeus, mãe das Musas, as inspiradoras da criação humana. Temos hoje uma noção
estreita e ignorante sobre a memória. Quando se ouve essa palavra pensa-se logo em
lembrar datas, nomes, números de telefone, essas coisas, o que seria um ultraje para um
grego antigo. Para este Memória pouco tinha a ver com tais ninharias, pois ela era a
geradora das ciências e das artes, da criatividade em todas as suas formas. O que é para
ser guardado e lembrado são as experiências decisivas, as memórias de infância e
adolescência que por vezes emergem e fecundam o pensamento, as delicadas intuições
que nos atravessam rapidamente, os sentimentos mais íntimos que abafamos com
enorme gasto de energia. O que temos a escutar são as palavras dos mais velhos e
também as inspirações da poesia, da música, da dança, da investigação (historia), ou da
ordem cósmica (astronomia), todas regidas pelas Musas. É isso que está dito na
personalidade da deusa. E em honra a ela, por cuidado com seus dons, deve-se também,
mediante técnicas mnemônicas que requerem repetição disciplinada, guardar fielmente
os costumes e os relatos ancestrais que nos são confiados, notadamente aqueles
executados ciclicamente nas festas rituais.
A memória humana não conserva grandes números: calcular, lembremos,
significa literalmente registrar com pedrinhas um certo número de objetos importantes.
A memória também não guarda discursos
ou dissertações, nem muitas frases ou
palavras soltas. Mas guarda uma história.
O único modo que os antigos dispunham para conservar, de geração em geração,
os ensinamentos ancestrais era enfeixá-los em histórias exemplares. Essa é a origem dos
mitos. As legendas míticas são a forma possível e necessária de conservação e
transmissão dos conhecimentos numa cultura oral. Tais legendas, quando públicas,
tomam a forma ritmada, cantada e dançada que caracteriza a arte mais antiga. Mitos são
a tecnologia de conhecimento apropriada ao âmbito da cultura oral. Mitos representam,
portanto, nas culturas orais, a forma por excelência de reunir e transmitir os
ensinamentos vitais da comunidade.
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Mais tarde, com o advento da escrita, toda a tecnologia do pensamento pode e
deve mudar. A inteligência pode então se desdobrar em direções antes impedidas e
passa a efetuar operações antes inimagináveis. A abstração e a análise podem avançar
seus lances, assegurados pelo registro dos conceitos e dos juízos. O quanto elas
conquistam e o quanto elas se esquecem do que antes se sabia, são questões que se
impõe, mas já não cabem mais aqui.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Alegre, vol 47, nº 1 (mar 2002), p. 71-79.
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CORNFORD, Francis M. Antes e depois de Sócrates. São Paulo: WMF Martins Fontes,
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_______ A domesticação do pensamento selvagem. Lisboa: Editorial Presença, 1988
HAVELOCK, Eric. Preface to Plato. Third Printing. Cambridge MS: Harvard
University Press, 1982
_______ Prefácio a Platão. Campinas (SP): Papirus, 1997
_______ A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. São Paulo:
UNESP; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996
_______ A musa aprende a escrever. Lisboa: Gradiva, 1996
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VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Difusão
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_______ As origens do pensamento grego. 12 ed. Rio de Janeiro: Difel, 2002
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