Construções Lexicais Complexas com o verbo dar: estruturas

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Construções Lexicais Complexas com o verbo dar:
estruturas de significados ou instrumentos de construção
de sentidos
Leilane Ramos da Silva1
1
Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade Federal da Paraíba
(UFPB)
[email protected]
Resumo: O objetivo deste artigo incide numa reflexão sobre a natureza
polissêmica do verbo ‘dar’ em estruturas do tipo dar-se conta, dar com a língua
nos dentes e outras, denominadas de Construções Lexicais Complexas – CLCs
(Alves, 1998). Tal discussão visa estabelecer um ponto de contato entre a referida
teoria e as estruturações lingüísticas tratadas, no sentido de responder se tais
estruturas são portadoras de significados ou representam instrumentos de
construção de sentido.
Palavras-chave: Sociocognitivismo – Construções Lexicais Complexas – verbo
“dar”.
Abstract:The purpose of this article happens in a reflection on the polysemic
nature of the verb “dar” in structures of the type dar conta, dar com a língua nos
dentes and others, called of Complex Lexical Constructions – CLCs (Alves,
1998). Such discussion aims at to establish a point of contact between the related
theory and the treated linguistic structures, in the direction to answer if such
structures are carrying of meanings or represent instruments of direction’s
construction .
Key words: Sociocognitive perspective — Complex Lexical Constructions — verb
“dar”
Debruçar-se sobre a análise apreciativa do verbo dar, quando este constitui
‘Construções Lexicais Complexas’ – CLCs (Alves, 1998), traz à tona, dentre outras,
indagações inerentes à natureza polissêmica, nos termos propostos por Salomão (1999)2,
desse item lexical. Assim, entre as teorias a que se pode recorrer para descrição dessa
peculiaridade, está a perspectiva de base funcionalista denominada de ‘sociocognitivismo’.
Mas, em que consiste tal perspectiva teórica? Quais os seus fundamentos? O que ela
acrescenta ao estudo das CLCs com o verbo dar? Responder a essas questões prevê, no
mínimo, uma retomada, em termos de explicitação, dos postulados dessa teoria no rol dos
estudos lingüísticos e, evidentemente, das principais características do verbo dar enquanto
elemento formador de CLCs. Eis, então.
A perspectiva sociocognitiva dos estudos lingüísticos toma como paradigma a idéia
de que a linguagem humana não é alheia aos demais processos cognitivos. Para Chiavegatto
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(2002), uma abordagem de caráter sociocognitivo implica a observação de aspectos
estritamente cognitivos e, concomitantemente, de estratégias pragmáticas validadas pelos
falantes nas mais diversas situações de interação.
Outra questão subjacente reside na idéia de que as expressões lingüísticas são
derivadas de processos engendrados na mente — ditos figurativos (LAKOFF, 1987) — que
se correlacionam com o contexto social no qual são produzidas. Logo, tais expressões não
dispõem de significados primários; pelo contrário, representam ‘pistas’ para o
processamento de diferentes significados pelos usuários.
A propósito, no âmbito da vertente de análise lingüística aqui respaldada, ganha vez
a noção de que a maior parte das construções lingüísticas representa o somatório de
processos figurativos ‘metafóricos’ realizados entre domínios conceptuais. Seguindo essa
linha de pensamento, Lakoff e Jonhson (2002) sustentam a tese de que “...a maior parte do
nosso sistema conceptual é metaforicamente estruturado, isto é, os conceitos, na sua
maioria, são parcialmente compreendidos em termos de outros conceitos”(LAKOFF;
JOHNSON, 2002, p. 127).
Para validarem essa convicção, Lakoff e Johnson (2002) subcategorizam algumas
das formas metafóricas conceptuais existentes, entre as quais é possível citar uma que é
bastante viva na cultura ocidental: DISCUSSÃO É GUERRA, tendo em vista a sua
presença numa grande variedade de construções lingüísticas (como em Seus argumentos
são indefensáveis, Ela atacou todos os pontos fracos da minha argumentação, Suas
críticas foram direto ao alvo, Destruí sua argumentação, Jamais ganhei uma discussão
com ele3 e outras).Conforme esses autores, então, mesmo não havendo “... batalha física há
uma batalha verbal, que se reflete na estrutura de uma discussão — ataque, defesa, contraataque etc” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 47).De tal forma, conceptualizações desse
tipo representam informações — arquivadas na mente do falante por meio da relação que
mantém em sua vida social — a serem usadas na construção dos sentidos das formas
lingüísticas.
A par da idéia de que entender o funcionamento das línguas prescinde de uma
integração entre a cognição e o social, o Sociocognitivismo considera, enfim, que o “...
fenômeno lingüístico não seria tão autônomo em relação aos demais processos que
permitem apreender experiências e transformá-las em algum tipo de linguagem. O sujeito
falante, locus privilegiado no qual o processo ocorre, é um ser social”. (CHIAVEGATTO,
2002, p. 168). Daí a sua posição intermédia — no sentido de postular uma análise que visa
contemplar as duas faces de uma mesma moeda — no trato com a linguagem.
Uma vez comentadas — ainda que superficialmente — as bases teóricas do
Sociocognitivismo, uma pergunta se faz necessária: o que são “Construções Lexicais
Complexas” ou, ainda, “CLCs” ? Alves (1998) denomina de “Construções Lexicais
Complexas” estruturas lexicais constituídas de verbo + nome (ou variações) quando essas
expressam um todo significativo e podem ser reduzidas a um único item lexical: “Paulo,
como bateu numa pedra, preferiu voltar para casa, pois deu um jeito no pé e estava
doendo”4. Grosso modo, pode-se inferir que são construções que podem ser reduzidas a um
só item lexical.
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Tal característica as situam no inventário aberto da língua e representa o principal
motivo de não se poder apresentar uma sistematização fechada, ou mesmo rigorosa, do
número de Construções Lexicais Complexas existentes. Importa registrar aqui, também,
que uma CLC é normalmente usada em lugar de um verbo, substituindo-o. A característica
subjacente é a de que, via de regra, o verbo, primariamente com o poder funcional de
predicar, perde sua força predicativa e assume um caráter mais gramatical.Do ângulo
semântico-funcional, é possível observar, com base nos moldes propostos por Fillmore
(apud BORBA, 1996), em sua Gramática dos Casos, os diferentes tipos de funções casuais
ou papéis temáticos apontados pelas CLCs .
Não sendo o objetivo deste artigo proceder a uma descrição exaustiva de todas as
características das CLCs, tampouco apresentar o leque de verbos que vem,
recorrentemente, funcionando como elemento constituinte desse tipo de estrutura, optouse por observar o verbo dar, em razão do fenômeno da polissemia — nos termos
propostos por Salomão (1999)— que atinge esse item lexical, a fim responder se tais
estruturas lingüístico-discursivas são portadoras de significado ou representam
instrumentos de construção do sentido. Para tanto, parece necessária uma tentativa de
esboço do comportamento do verbo dar, procurando-se mostrar quais as alterações por ele
sofridas, enquanto elemento constituinte de CLCs.
Ora, analisar o verbo dar, quando este constitui uma CLC, desencadeia uma
reflexão em torno de suas bases históricas. Isso porque resgatar as origens desse item
verbal traz à tona o rico conjunto de sentidos que acumulou e vem acumulando tal verbo
desde os primórdios de seu uso, ainda no latim clássico. O que faz, então, com que esse
verbo seja tão recorrente na formação de estruturas do tipo dar mais carreiras, dar uma
voltinha, dar de comer, dar uma lição, dar graças e tantas outras?
Já no latim clássico, o verbo dar havia se cristalizado como um elemento formador
de CLCs , conforme exemplo apresentado em Faria (1955): “dou a sentença, declaro o
direito e confirmo a vontade das partes”.Essa constatação traz à tona a idéia de que esse
verbo vem assumindo uma extensão de sentidos desde muito tempo atrás, atuando ora
como pleno, ora como auxiliar de construções complexas.
Sob a ótica da perspectiva radial de transferência e/ou extensão de significado de
que trata Lakkof (1987), sabe-se que as mudanças operadas num determinado item
decorrem do uso sincrônico da língua, sobretudo quando são atestados os processos de
transferência de bases metonímica e metafórica.
Postula-se, então, com base nos significados no Latim (Cf. FARIA, 1955) para o
verbo dar, que as variações ou mudanças semânticas sofridas por esse elemento lexical, nos
dias de hoje, são as mesmas por que passou esse item em um estágio anterior. Quer isso
dizer que é possível proceder a uma análise das transformações operadas no verbo dar,
tomando como suporte o estabelecimento de um ponto X (relativo a um dado momento da
língua analisada) e um alvo Y (referente a outro período da língua analisada) para comparálos entre si e não somente apresentar uma abordagem diacrônica.
Quanto ao fenômeno da polissemia que atinge esse item lexical, vale salientar a
afirmação de Salomão (1999) de que o verbo dar representa uma categoria radial, isto é,
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tem um sentido básico, capaz de irradiar muitos outros. Logo, essa polissemia vai existir
em todos os estágios da língua portuguesa.
Na verdade, muitas são as mudanças operadas no verbo dar, quando este se junta a
um nome (ou variação) para exprimir um único sentido e formar uma CLC. Ou seja, esse
item lexical — assim como qualquer outro verbo que seja constituinte de CLC — diminui
(ou perde) seu sentido original, passando por um processo de ressemantização parcial (ou
total), que o encaminha para outros sentidos.
Entre essas alterações, destacam-se as seguintes :a) a perda da transitividade
objetiva, posto que não há mais uma relação de contigüidade verbal com o nome/variação a
que se junta; b) a conservação da função gramatical de veiculador de sujeito e/ou de objeto
através das desinências verbais de número e pessoa; c) a dependência semântica do verbo
em relação ao nome/variação com o qual compõe esse tipo de construção e, nesse sentido,
um sentido globalizado é decorrente das relações firmadas entre os níveis do discurso e da
língua.
Muitas outras alterações poderiam ser assinaladas aqui, mas, considerando o
propósito deste artigo — discutir a expansão de sentidos do verbo dar como formador de
CLCs sob a ótica sociocognitivista — parecem suficientes as que já foram
mencionadas.Cumpre, então, tentar responder à pergunta outrora feita — As Construções
Lexicais Complexas são portadoras de significados ou instrumentos de construção de
sentidos?
Pondo em relevo a noção de cálculo interpretativo de que trata Vale (199), ao
abordar as expressões cristalizadas quanto ao grau de transparência e opacidade, verifica-se
que a paráfrase discursiva de algumas de algumas CLC(D)s parece manter uma relação
muito íntima com o nome (ou variação) que as configuram.Para efeito de ilustração, eis o
exemplo:
I* (...)A juventude de hoje é um negócio tudo tudo embaraçado,danado só faz o
que eles quere, num respeita pai, nem respeita mãe. Os pais dão conselho pro
bem (...). (HORA; PEDROSA, 2001, p. 94, V.I)
Conforme mostra a situação discursiva acima transcrita, a CLC(D) destacada
corresponde, respectivamente, a aconselhar. Ou seja, o verbo a que se reduz essa
estruturação apresenta uma relação estreita com o nome (ou variação) que a configuram.
Mas, como já foi dito, nem sempre isso acontece, podendo não haver uma relação tão direta
dos elementos constituintes de uma CLC(D) com a sua significação externa, antes
representam um todo significativo. Tal característica se torna mais clarividente quando
observadas as CLC(D)s usadas com um sentido mais metafórico, como ocorre em
I* (...) Meu amigo foi duro de lá o moço passou a a a ser vigia, e aproveitaram ele
que ele é motorista e pessoal e dando uma colherzinha de chá a gente, eu
também aproveitando a colher de chá” (HORA; PEDROSA, 2001, p. 97, Vol.
III, ) ,
em que o contexto permite que a construção dando uma colherzinha de chá seja
parafraseada como ajudar (ajudando).
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Diante dessas especificidades, julga-se oportuno dizer que as CLC(D)s podem se
manifestar como uma expressão cristalizada, mas não se limita a essa forma de
representação discursiva. Em qualquer um dos casos — com sentido metafórico ou não —
, parece veemente afirmar que o grande número de CLC(D)s usadas na atualidade5 vivifica
a idéia de que o verbo dar é potencialmente polissêmico, tendo em vista a sua capacidade
de irradiar diferentes sentidos, como bem lembra Salomão (1999).
Indubitavelmente, entender as CLC(D)s exige muito mais dos falantes do que o
conhecimento do sentido primário (transitividade) do verbo dar. A par do funcionamento
de estruturas do tipo dar pizza (em lugar de resultar), Chiavegatto (2002, p.134) valida as
seguintes idéias: a) as palavras não carregam significados próprios, apenas representam
guias de processamento para o usuário; b) há processos cognitivos que mapeiam o
“deslizamento” de significados mais primários em itens lexicais como “dar” e estes são
responsáveis, dadas as correlações que estabelecem com o contexto em que ocorrem, pela
sua extensão de sentidos ; c) a experiência sociocultural dos falantes é incorporada à
estruturação das formas da língua , de modo a permitir a distinção de um significado de
outro, conforme a situação tratada.
Mesclando (e por que não dizer aplicando?) os pressupostos acima referidos à
observação do fenômeno aqui abordado, pode-se inferir que o sentido das CLC(D)s
correlaciona-se aos processos cognitivos engendrados na mente dos falantes e,
simultaneamente, à natureza sociocultural da interação, que fornece os elementos
necessários à interpretação das formas lingüísticas.Nesse sentido, diz-se que as CLC(D)s
têm seus significados empreendidos pelos falantes que as utilizam e, por isso, “... as
possibilidades construtivas desses significados devem estar embutidas no próprio sistema,
sem o que ele não funcionaria como instrumento de comunicação”. (CHIAVEGATTO,
2002, p. 172)
Por fim, cumpre salientar que essa constante recorrência de CLC(D)s pelos falantes
não só evidencia a idéia de que a língua está em movimento, mas também que esse
movimento torna vivo o papel que esta tem de intercambiar as experiências dos usuários
que dela se utilizam. Que mais a dizer? O que é bastante comum a um trabalho científico:
as observações aqui registradas, além de incompletas, no sentido de que sempre há algo a
acrescentar, são passíveis de discordâncias. Mas, à primeira vista, os mínimos aspectos
tratados parecem já responder ao questionamento proposto inicialmente e, se é melhor
pecar por excesso do que por omissão, fica claro que as CLC(D)s não são portadoras de
significado e sim instrumentos de construção de sentidos.
Notas:
2
Nos dias atuais, conta-se com um grande número de conceitos de polissemia, conforme as diferentes
perspectivas teóricas. Segundo a Teoria do Léxico Gerativo proposta por Pustejowsky (1995), por exemplo, a
polissemia representa um processo de indeterminação semântica. O referido estudioso, ao conceber a vagueza
e a ambigüidade como os dois processos de indeterminação semânticos básicos, propõe que a polissemia é um
tipo de manifestação desta última e a classifica como uma ambigüidade complementar (ou polissemia lógica),
em oposição à homonímia, entendida como uma ambigüidade contrastiva. Neste artigo, entretanto, optou-se
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por não abordar tal questão com mais vagar, validando apenas a perspectiva endossada por Salomão (1990),
para quem a polissemia representa uma extensão de sentidos inerente a um dado item lexical.
3
Exemplos dos próprios autores
4
Exemplos extraídos do corpus composto de textos narrativos escritos utilizados durante a realização do
projeto de pesquisa “A Representação Discursiva de Construções Lexicais Complexas em Textos Narrativos
Escritos” (1998-2000).
5
Foram encontradas quase 500 ocorrências nos cinco volumes que compõem o Projeto Variação Lingüística
do Estado da Paraíba (HORA; PEDROSA, 2001), por exemplo.
Referências
ALVES, Eliane Ferraz. Construções Lexicais Complexas com o verbo levar. Tese de
doutorado. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFPe, 1998.
ALVES, Eliane Ferraz et al. A representação discursiva de Construções Lexicais
Complexas em textos narrativos orais e escritos — projeto de pesquisa. João Pessoa:
UFPB/CNPq/PIBIC, 1998-9..
BORBA, Francisco da Silva. Uma gramática de valências para o português. São Paulo:
Ática, 1996.
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