ÉTICA: O que deve ser o Ser.1 Em nosso dia-a-dia, perdemos a conta de quantas escolhas temos que fazer desde a hora em que acordamos até o momento em que dormimos. Essas escolhas são orientadas por aquilo que consideramos bom, justo ou correto. Toda vez que isso ocorre estamos diante de uma decisão moral que irá nos orientar em nossas ações. “A característica específica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais.” (ARISTÓTELES, Política, p. 15). O ser humano age no mundo de acordo com valores. É um ser que avalia suas condutas a partir de valores morais. A palavra moral refere-se ao conjunto de normas que orientam o comportamento humano tendo como base os valores próprios a uma dada comunidade ou cultura. Os códigos morais podem ser distintos de uma comunidade para outra, assim como de uma época para outra. Assim, por exemplo, andar de pernas de fora pode ser moral ou imoral de acordo com a cultura ou a época. A palavra ética, por sua vez, vem do grego ethikos, “modo de ser”, “comportamento”. É uma disciplina teórica sobre uma prática humana, ou seja, o comportamento moral. No entanto é uma disciplina com preocupações práticas: orienta-se pelo desejo de unir o saber ao fazer, ou seja, busca aplicar o conhecimento sobre o Ser para construir aquilo que deve ser. As reflexões éticas levantam questões de caráter sociológico, antropológico, religioso etc. Se moral é o conjunto de normas de condutas de uma sociedade, qual a diferença entre normas morais e normas jurídicas? Ambas são estabelecidas pelos membros da sociedade e se destinam a regulamentar as relações nesse grupo de pessoas. Apresentam-se como normas que devem ser seguidas por todos afim de uma melhor convivência entre os indivíduos. 1 ARISTÓTELES. Política. Brasília, UNB, 1985. ARANHA, Maria Lúcia Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando - Introdução à Filosofia. 3. Ed. São Paulo: Moderna, 2003. p. 438, pp. 352-361. COTRIM, Gilberto. Fundamentos da filosofia – história e grandes temas. 16. Ed. reform. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 304, pp. 242-263. TELES, Maria Luiza Silveira. Filosofia para jovens: uma iniciação à filosofia. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996. p. 91, pp. 23-29. Orientam-se pelos valores culturais próprios de cada sociedade e mudam de acordo com as transformações histórico-sociais. As normas morais são cumpridas a partir da convicção pessoal de cada indivíduo, enquanto as normas jurídicas devem ser cumpridas sob pena de punição do Estado, em caso de desobediência. A punição no campo do direito está prevista na legislação, enquanto que no campo da moral, a sanção pode variar bastante, pois depende fundamentalmente da consciência moral do sujeito que infringe a norma. A esfera da moral é mais ampla, atingindo diversos aspectos da vida humana, enquanto a esfera do direito se restringe às questões específicas nascidas da interferência de condutas sociais. A moral não se traduz em um código formal, enquanto o direito sim. O direito mantém uma relação estreita com o Estado, enquanto a moral não apresenta essa vinculação. Ao contrário da norma jurídica, a norma moral não é sustentada pela coerção do Estado, ou seja, ela depende da aceitação de cada indivíduo para ser cumprida. Por isso a norma moral costuma ser vinculada, por alguns filósofos, à idéia de liberdade. Ética e liberdade O ser humano possui a faculdade de observar a própria conduta e formular juízos sobre os atos passados, presentes e as intenções futuras. E depois de julgar, o homem tem condições de escolher, dentre as circunstâncias possíveis, seu próprio caminho na vida. Essa qualidade de escolher o seu caminho, construir sua maneira de ser e sua história é o que chamamos de liberdade. Assim, se consciência moral e liberdade estão intimamente relacionadas, só tem sentido julgar moralmente a ação de uma pessoa se essa ação for praticada em liberdade. Quando não se tem escolha, quando se é coagido a praticar uma ação, é impossível decidir entre o bem e o mal (consciência moral). Exemplo: Tendo o filho seqüestrado, o pai cumpre ordens do seqüestrador. A ação desse pai está determinada pelo criminoso. Quando, entretanto, estamos livres para escolher entre esta ou aquela ação e fazemos uma escolha, tornamo-nos responsáveis pelo que praticamos e podemos ser julgados moralmente por isso. Concepções éticas Mito, tragédia e filosofia: uma das características da consciência mítica é a aceitação do destino: os costumes dos ancestrais têm raízes no sobrenatural; as ações humanas são determinadas pelos deuses; em conseqüência, não podemos falar propriamente em comportamento ético, por faltar a dimensão de subjetividade que caracteriza o ato livre e autônomo. A tragédia grega floresceu por curto período e os conteúdos das peças eram retirados dos mitos. Tomemos como exemplo Édipo rei, que na tentativa de fugir de seu destino, no exercício de sua liberdade, acaba por cumpri-lo. A tragédia consiste justamente em revelar a contradição entre determinismo e liberdade, na luta contra o destino levada a cabo pela pessoa que surge como ser de vontade. Gregas e medievais: A virtude se identifica com a sabedoria e o vício com a ignorância: portanto a virtude pode ser aprendida. Para os gregos a virtude resulta do trabalho reflexivo, da sabedoria, do controle racional dos desejos e paixões. Os gregos são antes de tudo cidadãos, membros integrantes de uma comunidade, de modo que a ética se acha intrinsecamente ligada a política. Na idade média, a visão teocêntrica do mundo fez com que os valores religiosos impregnassem as concepções éticas, de modo que os critérios do bem e do mal se achavam vinculados à fé e dependiam da esperança de vida após a morte. Os valores são considerados transcendentes porque resultam de doação divina, o que determina a identificação do sujeito moral com o ser temente a Deus. A moral iluminista: A partir da modernidade, a moral se torna laica, secularizada. Ou seja, ser moral e ser religioso tornam-se dois pólos completamente diferentes e o fundamento dos valores não se encontra mais em deus, mas no próprio ser humano. O iluminismo do século XVIII exalta a capacidade humana de conhecer e agir pela “luz da razão”. O formalismo kantiano: é a máxima expressão do iluminismo. Rejeita as concepções morais gregas e cristãs ou qualquer outra que norteie a ação moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o interesse. Por exemplo, não faz sentido agir “bem” como o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou ainda para alcançar o céu ou não merecer a punição divina. Agir moralmente se funda exclusivamente na razão. Nas palavras do próprio Kant: “Aja de tal modo que a máxima de sua ação possa sempre valer como princípio universal de conduta”. Exemplificando, suponhamos a norma moral “não roubar”, para Kant, ao aceitar o roubo e o enriquecimento ilícito, elevando a máxima ao nível universal, haverá uma contradição: se todos podem roubar, não há como manter a posse do que foi roubado. A norma se enraíza na própria natureza da razão. Marx: “o ser social determina a consciência”, ou seja, “o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”. Expressões da consciência humana – inclusive a moral – são o reflexo das relações que os seres humanos estabelecem na sociedade para produzirem sua existência, e portanto mudam conforme se alteram os modos de produção. Onde existe sociedade dividida em classes, com interesses antagônicos, a moral da classe dominante impõe-se sobre a classe dominada e torna-se instrumento ideológico para manter a dominação. Nietzsche: Seu pensamento se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas, subjugadas pela razão durante séculos. Em sua análise histórica da moral denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida: sob o domínio da moral, o ser humano se enfraquece, tornando-se doentio e culpado. Contra o enfraquecimento do homem, contra a transformação dos fortes em fracos é necessário assumir uma perspectiva além da moral. Sartre e o existencialismo: Segundo as concepções tradicionais o ser humano, possui uma essência, uma natureza humana universal. Para Sartre, ao contrário, a existência precede a essência. Ou seja, primeiramente o homem existe, se descobre no mundo e só depois irá se definindo tal como a si próprio fizer, a partir de suas escolhas. Assim não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. E se Deus não existe, então tudo é permitido, não existem valores dados por Ele e só ao próprio indivíduo cabe inventá-los. O existencialismo propõe a todo homem o domínio do que ele é e a total responsabilidade pela sua existência. A moral contemporânea: A busca de valores subjetivos e o reconhecimento do valor das paixões têm levado à inversão da hierarquia tradicional razão-paixão, ao individualismo exacerbado, à anarquia dos valores, o que culmina com a impossibilidade do equacionamento dos critérios da vida moral. Em paralelo existem inúmeros particularismos contrapostos ao antigo ideal de universalidade da moral. Mais do que nunca predomina a atomização em diversas morais: dos jovens, dos grupos religiosos, dos movimentos ecológicos e pacifistas, dos homossexuais, das feministas etc. Por outro lado não há como negar que existe um crescente interesse com relação às discussões éticas. Além dos grupos marginalizados e das minorias que lutam por seus direitos, outros temas correlatos intensificam o debate: os direitos dos imigrantes, a eutanásia, o aborto, se temos ou não obrigações morais com os animais, democracia, justiça social e direitos humanos.