Uma bússola para os tsunamis Alterações no campo magnético da Terra podem alertar sobre a chegada de ondas gigantes — Igor Zolnerkevic 52 _ novembro DE 2011 _ eventos extremos E The Yomiuri Shimbun, Yasushi Nagao / AP / Glowimages Redemoinho formado por ondas do tsunami de março de 2011 em Iwaki, costa norte do Japão m 11 de março deste ano, um terremoto de magnitude 9 na escala Richter produziu uma onda gigante, ou tsunami, que devastou a costa leste do norte do Japão, causou quase 16 mil mortes e deixou cerca de 10 mil pessoas feridas e desaparecidas. Em meio às notícias da catástrofe, circulou pela imprensa uma nota curiosa: segundo estimativas de geofísicos norte-americanos e italianos, o terremoto japonês deslocou em alguns centímetros o eixo ao redor do qual se distribui a massa da Terra. Provocado pelo deslizamento de uma placa tectônica para baixo de outra durante o tremor, o rearranjo da massa do planeta também teria acelerado a rotação da Terra e encurtado o dia em 6,8 milionésimos de segundo, produzindo um efeito similar ao de uma patinadora no gelo que passa a girar mais rápido quando recolhe seus braços. Mas essas duas sutis alterações geofísicas não foram as únicas produzidas por terremotos seguidos de tsunamis. Segundo um estudo produzido por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, e do Observatório Nacional (ON), do Rio de Janeiro, esses grandes fenômenos naturais provocam ínfimas perturbações no campo magnético da Terra que podem ser medidas e usadas para monitorar o surgimento e a evolução das ondas gigantes. A viabilidade dessa abordagem é defendida num artigo científico que acaba de ser submetido a uma revista internacional. De acordo com os geofísicos brasileiros, as conclusões do trabalho podem servir de base para produzir melhorias significativas e de baixo custo nos sistemas atuais de alerta contra tsunamis. Não é novidade que os oceanos podem influenciar sutilmente o campo magnético percebido pelas bússolas e gerado no centro da Terra. Pesquisadores mediram já no final dos anos 1960 a variação no campo geomagnético induzida pelo movimento diário das marés. O sal dissolvido na forma de íons de cloro e sódio eletricamente carregados faz da água do mar um fluido condutor de eletricidade. Os movimentos desse fluido com respeito ao campo magnético da Terra induzem pequenas correntes elétricas no mar, explica a geo­física Virgínia Klausner, do ON, uma das autoras do estudo dos tsunamis. Chamado de efeito de dínamo, o fenômeno é o mesmo que gera corrente elétrica em um fio de metal condutor quando este se movimenta próximo de um ímã, afirma o físico Odim Mendes Junior, do Inpe, um dos orientadores de doutorado de Virgínia. “Essas correntes elétricas sustentadas no mar por sua vez criam um campo magnético que se sobrepõe física Geologia PESQUISA FAPESP 189 _ 53 Ondas gigantes na costa do Sri Lanka: um dos locais atingidos pelo tsunami de 2004 no oceano Índico 54 _ novembro DE 2011 nasa / earth observatory Nova abordagem poderia ser usada para monitorar o surgimento e a evolução de ondas gigantes tim EOS, da União Geofísica Americana, de 11 de janeiro de 2011, era consistente com a altura da onda detectada pelos sensores de pressão submarinos em alto-mar (15 centímetros). O artigo chamou a atenção de Virgínia, que, orientada por Mendes e pelo geofísico Andrés Papa, do ON, trabalha analisando perturbações geomagnéticas decorrentes da interação Sol-Terra, registradas pelo observatório de Vassouras (RJ) e pela Rede Internacional de Observatórios Magnéticos em Tempo Real (Intermagnet). O Brasil localiza-se numa região bastante peculiar do ponto de vista geofísico: está sob a influência da Anomalia Magnética do Atlântico Sul, do Eletrojato Equatorial e da anomalia de ionização equatorial (ou de Appleton). Tais fenômenos tornam mais complexo o efeito das pertubações do campo magnético sobre o território brasileiro, que podem atrapalhar a prospecção de minérios e afetar linhas de transmissão de energia elétrica. Os cientistas perceberam que poderiam usar um método numéri- O Projeto Análise das características do acoplamento eletrodinâmico plasma solar-magnetosfera com base nos efeitos das correntes elétricas planetárias - no 2007/07723-7 modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa Co­or­de­na­dor Odim Mendes Junior - Inpe investimento R$ 44.274,95 (FAPESP) nasa / noaa ao campo magnético da Terra e que você pode medir com magnetômetros adequados”, diz Mendes, cujos trabalhos são financiados pela FAPESP. Medir o magnetismo de um tsunami, entretanto, parecia algo impossível até pouco tempo atrás. Enquanto a intensidade do campo magnético da Terra é da ordem de 30 a 50 mil nanoteslas – 20 vezes menor que a de um ímã de geladeira – a variação nesse campo provocada por um tsunami seria de 1 a 10 nanoteslas. Até existem magnetômetros com a precisão necessária para medir essas variações, mas o sinal pode ser mascarado por perturbações magnéticas centenas de vezes mais intensas provocadas, por exemplo, por tempestades solares. O Sol, porém, passava por uma fase excepcionalmente calma quando, em 27 de fevereiro de 2010, um terremoto de magnitude 8,8 na costa do Chile gerou um tsunami que se propagou por todo o Pacífico. Com grande dificuldade, os geo­ físicos Chandrasekharan Manoj e Stefan Maus, da Agência Norte-americana de Administração da Atmosfera e dos Oceanos (Noaa), nos EUA, junto com Arnaud Chulliat, do Instituto de Física do Globo de Paris, na França, conseguiram distinguir visualmente um sinal de 1 nanotesla captado por um magnetômetro instalado na ilha de Páscoa, a 3.500 quilômetros do epicentro do terremoto. O sinal coincidia com a chegada do tsunami à ilha e sua intensidade, de acordo com os cálculos publicados pelos pesquisadores no bole- co que tinham desenvolvido, há mais de seis anos, para o estudo de perturbações geomagnéticas na busca por sinais dessa natureza associados aos tsunamis. A técnica matemática é chamada de “análise wavelet” – ondas pequenas seria a tradução de wavelet. Ela é muito usada por físicos e engenheiros para distinguir estruturas localizadas ou, posto de forma mais coloquial, “agulhas em palheiros”. A ferramenta age como uma espécie de microscópio capaz de dar um zoom em características de sinais que passariam despercebidas. Essa propriedade permite identificar irregularidades locais no sinal geomagnético, entre as quais o começo de um tsunami e a assinatura típica de sua propagação. Utilizando uma implementação dessa técnica, Virgínia, Mendes e Papa analisaram junto com Margarete Domingues, especialista do Inpe em wavelets, os dados de estações nos oceanos Índico e Pacífico que fazem parte da rede Intermagnet, mantida por 44 países, incluindo o Brasil, e que disponibiliza seus dados pela internet. Para três tsunamis recentes – o japonês de 2011, o chileno de 2010 e o de Sumatra-Andaman, que em 26 de dezembro de 2004 causou quase 300 mil mortes em vários países do oceano Índico –, os pesquisadores encontraram sinais magnéticos antecedendo a chegada das ondas gigantes em 10 estações da Intermagnet. Virgínia lembra que não foi fácil encontrar estações magnéticas próximas 10 teslas é a variação máxima provocada no campo magnético da Terra por um tsunami aos centros de origem dos tsunamis, sobretudo para os eventos de 2004, que atingiu uma área de países pobres, com poucas estações, e o de 2011, que ocorreu tão perto da costa que houve interrupção no fornecimento de dados do observatório mais próximo, o de Kakioka, no Japão. O fato de nem sempre conseguirem dados de estações costeiras equipadas tanto com magnetômetros como marégrafos também dificultou uma comparação mais detalhada entre sinais magnéticos e o nível do mar. A exceção foi a estação de Papeete, na Polinésia Francesa, equipada com ambos instrumentos. Ali foi possível captar sinais magnéticos do tsunami chileno de 2010 até duas horas antes da chegada da onda. Como nasce um tsunami Modelo do Noaa sobre o tsunami japonês de março de 2011: tons mais próximos do preto e púrpura indicam áreas do Pacífico com previsão de ondas maiores Geralmente produzidos por deslocamentos abruptos de falhas geológicas no assoalho oceânico (a causa também de terremotos), os tsunamis começam como ondas de comprimento da ordem de centenas de quilômetros. De início em águas profundas, elas se propagam rápido, cruzando os oceanos com velocidades entre 600 e 800 quilômetros por hora, mas se elevando apenas algumas dezenas de centímetros acima do nível do mar, passando despercebidas por barcos e navios. Quando alcançam o lito- ral, porém, a mudança de profundidade produz uma transformação radical em seu formato: o comprimento da onda encolhe, sua velocidade cai e, o mais impressionante, sua altura cresce, podendo alcançar dezenas de metros. Como nem todo terremoto oceânico provoca tsunamis, os sismógrafos espalhados pelo planeta não são suficientes para alertar populações em áreas de risco. Para tanto, existem dezenas de sensores de pressão instalados no fundo do mar, a maioria no Pacífico. Entretanto, apenas os países mais ricos têm recursos para bancar a instalação e manutenção dos sensores, situação que deixa várias populações litorâneas vulneráveis. Além disso, o sistema pode levar horas para identificar um tsunami e nem sempre calcula com exatidão suas dimensões. Um boletim meteorológico japonês do último 11 de março, por exemplo, alertava para a chegada de um tsunami com pelo menos 3 metros de altura, quando as ondas de fato alcançaram até 50 metros. Algumas limitações do sistema atual de alerta sobre a chegada de tsunamis talvez possam ser suplantadas com a adoção da abordagem defendida pelos brasileiros. O geofísico Maurício Bologna, da Universidade de São Paulo, que não participa do trabalho da equipe do Inpe e do ON, nota “uma vantagem importante” do sensoriamento magnético sobre os sensores submarinos de pressão: a capacidade de determinar não só a amplitude, como a direção e o sentido das ondas, o que ajudaria nos cálculos das propriedades dos tsunamis em tempo real. Bologna também destaca o baixo custo do método, que aproveitaria os observatórios já existentes da Intermagnet. A construção de novas estações em terra também seria mais barata que a instalação de sensores no fundo do mar. Para o geofísico Robert Tyler, da Nasa, a agência espacial americana, o trabalho dos brasileiros é “importante e oportuno”. Tyler explica que o método desenvolvido poderia ser usado para analisar os dados, por exemplo, da missão Swarm, da Agência Espacial Europeia, que lançará em 2012 três satélites dedicados a medir variações geomagnéticas provocadas por alterações nas correntes oceâ­ nicas. “Os fluxos dos oceanos têm um papel central nas mudanças do sistema climático e também em desastres naturais, como os tsunamis”, ele diz. n PESQUISA FAPESP 189 _ 55