Português RESUMO ESTENDIDO A fenomenologia da Vida de Michel Henry: introdução e possíveis contribuições à psicologia da religião WONDRACEK, KARIN H. K.1 RESUMO A fenomenologia da vida aprofunda questões nascidas no diálogo entre Freud e Pfister. Sua crítica da direção do pensamento ocidental aponta para os efeitos da redução galileana no monismo ontológico. Henry propõe a duplicidade do aparecer e a inversão do método fenomenológico para abarcar a fenomenalização da vida que doa-se como afeto na imanência. A jornada de Henry pelo cristianismo como uma proposta fenomenológica de acesso à verdade da Vida. O Cristianismo se torna paradigma para a filosofia, ainda pouco explorado, propondo a compreensão da vida na inteligibilidade do Logos invisível que gera toda realidade visível. A condição humana é de Filho, nascido na Vida absoluta. A leitura henryana da psicanálise indica que essa sustentou a vida dentro da aridez do pensamento ocidental, mas também foi afetada pelo seu reducionismo, especialmente na abordagem do afeto. Ao final, pontua-se as contribuições da Fenomenologia da Vida para a clínica e para a psicologia da religião. Palavras-chave: Fenomenologia da Vida; Michel Henry; filosofia do cristianismo; psicanálise 1.1. Introdução Entramos nessa pesquisa assumindo a dupla posição de Pfister(1998), de ser simultaneamente discípulo de Freud e pensador independente. Nesta última posição, esperamos segui-lo em sua busca por inserir o inconsciente numa esfera mais ampla de realidade. Também temos dois pontos de partida: o teórico e o clínico, mapeando momentos de fecundidade e esterilidade na clínica. No pensamento de Michel Henry encontramos contribuições significativas para aprofundar as questões levantadas por Pfister. Conforme Rosas: “A fenomenologia da vida, ao mesmo tempo em que inaugura um ‘outro começo’ filosófico, redescobre o pensamento que esteve na origem da filosofia moderna e contemporânea e assim consegue ir ao um plano prévio ao tradicional litígio entre a razão (conhecimento natural) e revelação (conhecimento sobrenatural) (2007, 135). 1 Psicóloga e psicanalista em Porto Alegre, RS; doutora em teologia pela Faculdades EST de São Leopoldo, onde é professora adjunta e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Fenomenologia da Vida. Sua pesquisa se situa na interface entre psicanálise, fenomenologia e teologia. Lattes: E-mail [email protected]. X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 1 O pensamento de Michel Henry se constitui basicamente de dois movimentos: 1. A crítica aos rumos do pensamento ocidental e a proposta de fazer uma investigação fenomenológica da vida, iluminando a condição humana através de uma abordagem filosófica do cristianismo. 1.2 A crítica: o distanciamento da vida Em Genealogia da Psicanálise: o começo perdido (2009) encontramos a melhor explanação henryana dos rumos do pensamento ocidental. A tese central do livro é que o esquecimento da vida como autoafetiva e autoimpressiva conduz a filosofia moderna e também a contemporânea a relegar a vinda da vida como afeto, e a privilegiar o aparecer na exterioridade e tomá-lo como fundamento. Em Descartes, as intenções de assegurar o método e de fixar a ciência ganharam o primeiro plano, desviando-o de suas metas anteriores e relegando-as finalmente ao esquecimento. Assim, a ênfase passou do conhecimento imediato do “pensar” ou “ver” [Videor] para o “pensar algo” ou “ver algo” [Videre]. Deslizamento que foi assumido por Kant (eu como “eu me represento”), passou por Husserl (eu como “intencionalidade”) e chegou até Heidegger (eu como “ser-no-mundo”). Henry comenta que a busca da subjetividade viva reaparece em Schopenhauer e Nietzsche, mas neles se reduz ao âmbito do anônimo, selvagem, impessoal, e assim transmite esse tom sobre a filosofia e a cultura. Essa perda deixa indeterminados não apenas o princípio do conhecimento de si (domínio da antropologia), mas também atinge as possibilidades terapêuticas (domínio da clínica). E aproximando ao nosso tema, também acarreta a compreensão reducionista do senso religioso. 1.3 Alguns conceitos básicos da fenomenologia da Vida Monismo ontológico: trata-se do conjunto de supostos que fundamenta o processo de conhecer, que se refere ao modo de apresentar o fenômeno mantendo a “distância fenomenológica” sujeito-objeto, que afirma que o fenômeno se nos apresenta distinto e separado do sujeito. A partir disso, o Ser será pensado sempre na exterioridade transcendental, em uma ruptura e separação originária, traço em comum da filosofia clássica e da filosofia moderna da consciência, desde sua origem grega. É esse marco que tornou possível a oposição – clássica a partir de Descartes – entre a consciência e a coisa. Conhecer é sempre conhecer a algo, nessa distância tomada como necessária. Duplicidade do aparecer: Além do movimento descrito acima, existe um outro modo de conhecer, anterior e mais originário, um movimento puramente imanente, que gera tanto o modo impressivo como o reflexivo. O ser do ego é o próprio elemento deste movimento. O ego é um poder, o cogito não significa ‘eu penso’, mas ‘eu posso’”(Lipsitz, 2009). Esse “eu posso” é X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 2 compreendido como conhecimento interior, um cogito imanente. Henry baseia-se em Maine de Biran: o ego conhece através do sentimento imanente de esforço, identificado com a ação pela qual ele modifica continuamente o mundo. No caso da dor: não se precisa ter a representação da dor para saber dela, ela é sentida na imediatez da sua revelação na própria imanência, e assim também acontece com a alegria, a tristeza, etc. Outros pressupostos básicos da Fenomenologia da Vida, aqui apenas esboçados: - “O invisível é a determinação primeira e fundamental da fenomenalidade, modo fenomenológico de revelação da afetividade em sua autoafecção imanente.” (Lipsitz, 2008). Por isso, é preciso fazer a fenomenologia do invisível, mais primário que o visível. - A imanência radical é fundamento da transcendência: “o ser impressional enquanto tal, enquanto isento em si de toda a transcendência”, sem distância alguma entre o que se revela e a apreensão desse. (Henry, 2010, p. 6) - A vida se doa como afeto no pathos, nesse misto de paixão e passibilidade. Pathos originário é essa relação de si consigo na vida, essa relação originária do sofrer e do fruir. - - Dor e o prazer não são originários, mas reveladores de um poder anterior à sua distinção: o poder experienciar-se na vida, o provar de si, o padecer de si. Viver implica um padecer de si, e esse é possível se houver uma adesão interna ao si, um consentimento para ser a pura experiência de si. - Nascimento transcendental é nossa condição: Trata-se do nascimento originário [Urnaissance] pelo qual o Eu chega a si, nasce nesse autoengendramento da Vida absoluta. Nascer significa, para esse vivente, se tornar um si transcendental vivo dentre todos os que somos, como cada um de nós é. 2. A fenomenologia da Vida e o cristianismo Em sua busca por propor o invisível como origem do visível, Henry ressalta a grande analogia e também a coincidência entre a fenomenologia da Vida e os textos fundantes do cristianismo, especialmente os escritos de João: o cristianismo traz original contribuição para a compreensão do ser humano, pouco explorada pela filosofia: ali está “a primeira exposição conhecida de uma teoria transcendental do homem” (Lipsitz, 2004, p. 63). Nos seus três últimos livros, Henry se debruça sobre o cristianismo para dali compreender a condição humana: X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 3 2.1 Eu sou a verdade: por uma filosofia do cristianismo (1998) O prólogo de João é estudado como filosofia, e da relação entre o Logos e os humanos se compreende a condição destes: a tese decisiva do cristianismo expressa que a Verdade da Vida é irredutível à verdade do mundo e por isso não se revela nele. A Vida fenomenológica real encontra na Verdade do cristianismo sua explicação. A condição humana é a de filho nascido na Vida absoluta. (Henry, 1998, p. 49). 2.2 Encarnação: uma filosofia da carne (2001) O tema central de Encarnação: uma filosofia da carne é a chegada da vida como carne. O conceito joanino de carne é investigado com o objetivo de aprofundar a descrição da subjetividade encarnada, e assim “restituir uma plena inteligibilidade à gênese transcendental do vivente” (Lipsitz, 2004, p. 73), pois Carne é esse corpo transcendental que não é mais do que a corporeidade imanente que encontra a sua essência na vida. A carne invisível é a “autodoação primitiva”, “afetividade originária”, “um tipo de sabedoria própria do estado de inocência original”, a “memória imemorial dos nossos poderes”, na qual eles se experimentam interiormente “sem recordar nem antecipar” (Lipsitz, 2004, p. 73). Nascer é experienciar a si mesmo na carne. 2.3 Palavras de Cristo (2002) O último livro reafirma que a vida é dada no Logos, a Palavra da Vida. Situada no coração da realidade como sua revelação original, a Palavra da Vida “é a grande esquecida da reflexão contemporânea e do pensamento filosófico tradicional”. (p. 80). A Palavra da Vida revela-se como afetividade, sem jamais sair de si. O ser humano define-se pela ligação a essa Palavra, como destinatário dessa Palavra e pela sua natureza que consiste em escutar essa Palavra. 3 Psicanálise, fenomenologia e psicologia da religião A partir da fenomenologia da Vida, é possível experienciar a presença de outra dimensão, complementar ao ensinado pela psicanálise, como conhecimento sensível. (Bangel, 2015) É como se, simultaneamente, enquanto se escuta o paciente, se pode sentir nele e em si um movimento não em direção à exteriorização, mas na direção contrária – um movimento para dentro do corpo, e com Henry diria para dentro da carne, até um núcleo do puro afetar, do jorrar da vida. X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 4 Em outro escrito (2011) apontei para a fecundidade da fenomenologia da Vida de Michel Henry para a compreensão do religioso, trilhas que começam a ser abertas: Ser um filho nascido na Vida absoluta, na linguagem de Henry, implica reconhecer a dádiva da Vida para além dos pais biológicos, e abre para recriações de laços vitais com o sagrado, consigo e com o outro. No paradigma henryano do duplo aparecer, ambos os processos são considerados – o da filiação visível e o da filiação invisível, unidos entre si de forma paradoxal, intercambiando intensidades e energias. O religioso, dessa forma, também é abordado no duplo registro – o da representação e o do afeto, irrepresentável, e por isso entranhado e sentido. (Wondracek, 2011, p. 298) Este é o início de um diálogo vivo... Referências Bibliográficas BANGEL, Marina L. T. “O resgate dos começos (sensíveis) perdidos: a dimensão sensível do cuidado na clínica psicanalítica com crianças e seus pais numa perspectiva entre a teologia, a fenomenologia da vida e a psicanálise”. (Trabalho de Conclusão de Mestrado Profissional). São Leopoldo: Faculdades EST, 2015. Disponível em: <http://tede.est.edu.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=571> FREUD, Ernst; MENG, Heinrich (Orgs.). Cartas entre Freud e Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã. Tradução de Karin H. K. Wondracek e Ditmar Junge. Viçosa: Ultimato, 1998. FREUD, Sigmund. A questão de uma Weltanschauung. Rio de Janeiro : Edição Standard Brasileira, v. XXII, (1933-1977), p. 193-222. SE XXII. HENRY, Michel. 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