4.1. Natureza jurídica do embrião in vitro

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novo ser. A partir da fecundação, o que sucede é apenas a evolução do
processo biológico. Em outros termos, para tais argumentos, não há
nenhuma diferença essencial entre o embrião (mesmo o fecundado in
vitro) e um ser humano adulto, em termos de dignidade. A mesma proteção conferida pelo direito a este deve estender-se àquele, por conseguinte. A conclusão de tais argumentos é a de que os embriões in vitro
são sujeitos de direito e merecem, como os nascituros, tutela da lei.
4.1. Natureza jurídica do embrião in vitro
Em julho de 1978, numa maternidade londrina, os médicos Patrick
Steptoe e Robert Edwards convocaram a imprensa para anunciar que
havia sido dada à luz uma saudável menina, de nome Louise. Ela provinha de um embrião fecundado através de uma nova técnica, em pesquisa há mais de dez anos: a fertilização in vitro. Por essa técnica,
retiram-se cirurgicamente óvulos do ovário da mãe para fertilizá-los
com os espermatozóides do pai em laboratório. Em seguida, o óvulo
fecundado é implantado no útero. A imprensa chamou Louise de "bebé
de proveta" e deu ao fato o costumeiro destaque escandaloso. Desde
então milhares de casais com problemas de fertilidade, em todo o mundo, têm-se beneficiado da técnica para cumprir a mais gratifícante das
realizações humanas — ter filho.
Mas os custos e limitações das técnicas de fertilização assistida in
vitro acarretaram também uma situação inusitada, que tem provocado
sérios questionamentos morais e éticos. A fertilização in vitro origina
vários embriões, todos aptos a serem implantados em útero e se desenvolverem como seres humanos (cf. Leite, 1995; Araújo, 1999). Nem
todos eles, porém, têm esse destino. De fato, uma vez implantado com
sucesso qualquer um deles, e iniciada a tão almejada gravidez, os demais tornam-se excedentes. Além disso, pesquisas científicas têm demonstrado que embriões humanos são úteis no tratamento de algumas
doenças. O avanço dessas pesquisas e a aplicação terapêutica de seus
resultados dependem da existência de embriões não destinados ao ciclo biológico regular dos seres humanos (nascer, crescer, reproduzir e
morrer), mas a servirem de insumo de produtos e processos terapêuticos
aplicados em outros seres humanos. No limite, os embriões se tornariam bens de consumo como qualquer remédio, e poderiam ser industrializados e comercializados.
A existência dos embriões excedentes e dos destinados à pesquisa
científica ou terapias motiva debates intensos no campo da religião, da
moral e da bioética. Integra, além disso, a pauta de preocupações em
torno das quais tem sido construído o biodireito (Leite, 2001). Nesses
debates, tem importância central a questão sobre o fato que caracteriza
o "surgimento" de novo ser humano. Os argumentos desconfortáveis
com a existência daqueles embriões consideram que desde o momento
em que o espermatozóide fecunda o óvulo, seja in vitro ou in útero,
estariam preenchidas todas as condições para se considerar existente o
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O embrião fecundado in vitro e não implantado in útero é sujeito ou
objeto de direito? Não há ainda uma resposta consensual, na tecnologia
jurídica, para essa complexa questão.
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De outro lado, os argumentos não-desconfortáveis com a existência dos embriões excedentes e os destinados à pesquisa ou finalidades
terapêuticas sustentam que o "surgimento" do ser humano não pode
ser identificado com a fecundação. Enquanto o embrião não é implantado num ambiente orgânico propício ao seu desenvolvimento como
ser biologicamente independente, ele não pode ser considerado como
tal. O aparecimento do novo ser, segundo esse enfoque, se verificaria
no momento da implantação do embrião no útero. Lembram que a utilização deles no tratamento de doenças é fonte de renovação de vida
ou, pelo menos, de qualidade de vida. A decorrência lógica desse enfoque
é a de que o embrião in vitro não é sujeito de direito, mas bem da
propriedade comum dos fornecedores do espermatozóide e óvulo (alguns os chamam de "pais", mas esta não parece ser a melhor designação; vou chamá-los de "genitores").
O assunto evidentemente está sendo debatido em diversos países.
Em França, desde 1994, o Código de Saúde Pública limita o prazo de
conservação dos embriões in vitro e reconhece aos genitores o direito
de decidir o destino deles (cf. Labrusse-Riou e Bellivier, 2002), o que
importa atribuir-lhes a natureza de objeto de direito, e não de sujeito.
No Brasil, enquanto não editada norma legal a respeito, a operacionalização
dos conceitos jurídicos com vistas a precisar o início da existência do
sujeito de direito deve ser feita com cautela. Não há dúvidas, nesse
contexto, de que o embrião fertilizado in vitro, a partir da implantação
no útero, deve ser já considerado nascituro, quer dizer, sujeito de direito despersonificado. A sua natureza jurídica, enquanto não verificada a
implantação in útero ou caso nunca esta venha a ocorrer, é ainda incerta. A resposta que, por enquanto, a tecnologia jurídica pode dar à ques149
tão discutirei no contexto da interpretação do termo "concepção", para
os fins de aplicação do art. 2° do CC (item 4.2).
4.2. Direitos do embrião in útero
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O embrião in útero é o nascituro. Se foi fertilizado já no interior
do corpo da mãe, sua fixação no útero dá início ao processo de desenvolvimento de que resultará o novo ser humano. Se fertilizado in vitro,
também não há dúvidas de que esse processo está em curso após a
implantação. Com efeito, qualquer que seja o entendimento adotado
acerca da natureza do embrião in vitro (sujeito ou objeto de direito), há
consenso em que, implantado no ambiente orgânico propício ao seu desenvolvimento como ser biologicamente independente, ele é humano.
Como nascituro, o embrião in útero tem os seus direitos protegidos desde a concepção, caso venha a nascer com vida. É o que decorre
do art. 2a dó CC, dispositivo que reproduz exatamente a mesma redação da norma equivalente do Código anterior, de 1916. Naquele tempo,
os elaboradores da lei desconheciam e certamente nem sequer sonhavam com a possibilidade de fertilização humana extra-uterina. É verdade que o projeto de 1975 não contemplava a locução "desde a concepção" no dispositivo em foco, que foi introduzida na tramitação pelo
Senado, com o objetivo de reforçar a amplitude da proteção concedida
ao nascituro (Fiúza, 2002:4/5). De qualquer forma, como o primeiro
bebé de proveta, a inglesa Louise Brown, nasceu em 1978, é provável
que, três anos antes, época da elaboração do projeto do atual Código
Civil, também os elaboradores da norma não tivessem considerado essa
possibilidade. Durante a longa e infértil tramitação do projeto, e a despeito da complexidade e seriedade das questões suscitadas pela difusão da técnica de fertilização in vitro, não se atentou aos problemas
que a expressão "concepção" iria despertar.
O embrião pode ser mantido in vitro por muito tempo. Se se interpreta o termo "concepção" no seu sentido imediato e literal, de encontro eficaz das células de reprodução dos géneros humanos (espermatozóide
e óvulo), os direitos do nascituro proveniente de fertilização artificial
estariam a salvo desde a fecundação in vitro. Se, por outro lado, aquele
termo é interpretado como designando a implantação do embrião no
útero, que é um fato biológico imprescindível para a constituição do
novo ser humano, não será relevante a data em que se operou a fertilização. Note-se que se pode estar falando de vários anos, durante os
quais o embrião permaneceu congelado num laboratório.
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Um embrião fertilizado in vitro pode permanecer congelado em laboratório por muitos anos. Uma vez implantado in útero, e vindo a nascer com vida, terá os seus direitos preservados desde a fertilização.
O fato jurídico que define a natureza do embrião in vitro é sua implantação, ou não, in útero. Se ocorrer esse fato, tenderá a ter o destino
biológico regular do ser humano (nascer, crescer, reproduzir e morrer).
Será sujeito de direito desde a fertilização, caso venha a nascer com
vida. Não implantado in útero, terá outro destino e sua natureza jurídica
será a de objeto de direito (coisa).
A questão é muito relevante. Imagine que o casal, cujo filho foi
fertilizado in vitro, decidiu não descartares embriões excedentes, mantendoos congelados, porque não estavam seguros se queriam ter mais filhos
ou não. Falece um deles. Se um dos embriões crioconservados é, posteriormente, implantado in útero, serão diversos os sucessores de acordo com o sentido emprestado à noção de "concepção". Entendida como
fertilização em qualquer ambiente, orgânico ou laboratorial, nascendo
com vida o ser, será ele sucessor porque já estariam a salvo seus direitos desde antes do falecimento do genitor. Por outro lado, considerada
a "concepção" como referência à implantação in útero, mesmo nascendo com vida o ser, não será sucessor porque seus direitos foram postos
a salvo depois do falecimento do genitor.
Uma resposta que a tecnologia jurídica poderia ensaiar para essa
questão seria a de privilegiar a vontade dos genitores. Se eles querem
dar ao embrião o destino humano regular (nascer, crescer, reproduzir e
morrer), em ocorrendo de vir a nascer com vida uma criança, esta deve
ter os seus direitos postos a salvo desde a fertilização in vitro. Será,
pois, sujeito de direito desde então, ainda que muito tempo se passe até
o nascimento. Se, contudo, os genitores querem dar ao embrião outro
destino (descarte, emprego em pesquisa científica ou tratamento), será
objeto de direito, com a natureza de coisa. A vontade dos genitores
deve ser manifestada preferencialmente em conjunto. Mesmo que já
esteja morto um dos dois, se ele deixou por escrito sua vontade de ver
um ou mais dos embriões fertilizados desenvolverem-se como seres
humanos, não haverá incertezas quanto à convergência do desejo dos
genitores se a mesma intenção manifestar o que ainda vive.
Essa solução, contudo, é insuficiente. Não se pode afastar a hipótese de o embrião ser implantado in útero contra a vontade de um dos
genitores, ou mesmo contra a vontade dos dois. Imagine que o labora151
tório em que os embriões se encontram em crioconservação é induzido
em erro pela falsificação bem-feita da assinatura de um genitor, e realiza-se a implantação no útero de uma mulher (da genitora ou de alguém que se passou por ela). Nasce com vida, enfim, uma criança.
Ainda que todos (laboratório, médicos, genitor fraudulento, terceiros
colaboradores etc.) venham a ser responsabilizados, civil e penalmente, isto não pode interferir nos direitos dela. Quer dizer, a despeito ou
mesmo contra a vontade de um ou dos dois genitores, devem estar a
salvo os direitos daquela pessoa desde sua fertilização in vitro. Em
outros termos, mesmo que a vontade dos genitores tenha sido a de não
dar ao embrião fertilizado o destino biológico regular do ser humano,
caso venha a ser, por qualquer razão, implantado In útero e nasça com
vida, terá sido sujeito de direito desde a fertilização.
O fato decisivo para marcar a natureza do embrião in vitro, assim,
é a sua implantação in útero. Verificado esse fato (com ou sem a vontade dos genitores), ele é sujeito de direito desde a fertilização. Não verificado, é objeto de direito, um bem, de cujas especificidades a lei
deve urgentemente tratar.
5. SUJEITOS DESPERSONIFICADOS NÃO-HUMANOS
Os sujeitos despersonificados não-humanos são entidades criadas
pelo direito para melhor disciplinar os interesses de homens e mulheres. São, em última análise, técnicas de separação patrimonial destinadas a cumprir uma finalidade. Todo ente despersonifícado não-humano
tem uma finalidade, que justifica a sua constituição e, principalmente,
circunscreve os negócios jurídicos que está autorizado a praticar. Como
examinado anteriormente, a personificação significa uma autorização
genérica para a prática dos atos e negócios jurídicos. A pessoa (física
ou jurídica) pode fazer qualquer coisa, desde que não haja proibição. O
sujeito despersonifícado não recebe, do direito, essa autorização genérica. Ele só pode praticar os atos ínsitos às suas finalidades ou expressamente previstos na lei.
Cada sujeito despersonifícado não-humano é examinado, com a
devida profundidade, em capítulos próprios do direito civil ou comercial. Abaixo, algumas poucas noções sobre ofcprincipais sujeitos dessa
categoria:
a) Espólio. A pessoa física, ao morrer, deixa de ser sujeito de direito. Não poderá mais, assim, titularizar direitos ou obrigações. Al152
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guns de seus interesses extrapatrimoniais permanecem tutelados, como
projeção de seus direitos da personalidade, mas nenhum direito ou obrigação
pode ser imputado ao falecido. Contudo pode haver, e geralmente há,
pendências obrigacionais deixadas pela pessoa morta. Dívidas que não
pagou, créditos que não recebeu. Há, por outro lado, os bens de seu
património que precisam ser administrados até a final partilha entre
sucessores (herdeiros ou legatários). Para cuidar daquelas pendências
e administrar provisoriamente os bens do de cujus, cria o direito um
sujeito despersonificado, que é o espólio. Ele é representado pelo
inventariante, nomeado pelo juiz perante o qual tem curso o processo
de inventário. Se o devedor do falecido resiste a honrar seu compromisso, o espólio tem ação contra ele. Se uma dívida do falecido não foi
paga porque contestada sua existência, não se podendo resolver o incidente no processo do inventário por sua complexidade, o espólio poderá ser demandado pelo credor.
b) Condomínio edilício. Os proprietários (e, para alguns efeitos,
também os locatários) de unidades autónomas de uma edificação (residencial
ou comercial) têm interesses comuns, relacionados às áreas comuns,
segurança, limpeza, manutenção de equipamentos e outros. A administração desses interesses comuns é feita por um sujeito de direito
despersonificado não-humano, chamado condomínio edilício ou de
edificação. Ele está autorizado a praticar os atos de contratação de
empregados, aquisição de material de limpeza, proceder ao rateio das
despesas condominiais etc. Além disso, o condomínio pode ser responsabilizado por atos culposos ou dolosos dos empregados, titularizar
crédito perante o condómino inadimplente e ser devedor dos tributos
incidentes sobre as áreas comuns e das taxas não discriminadas por
unidade (normalmente, o fornecimento de água, recolhimento do lixo
e outras). O representante do condomínio chama-se síndico.
c) Massa falida. Quando o exercente de atividade empresarial (comerciante, industrial, prestador de serviços etc.) não consegue honrar,
no vencimento, as dívidas, pode ser decretada sua falência pelo juiz.
Na falência, todos os bens do empresário falido serão arrecadados e
posteriormente vendidos em leilão judicial. Os credores só podem ser
satisfeitos com o produto da venda desses bens. Como provavelmente
não haverá recursos para pagar a totalidade do devido a cada um, procede-se, na falência, à divisão destes de forma mais justa: os mais necessitados recebem em primeiro lugar; o interesse público prepondera
sobre o privado; entre iguais, não sendo possível o pagamento integral,
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