Revista UNIVERSUM . Nº 15 . 2000 . Universidad de Talca O ICUF1 COMO UMA REDE DE INTELECTUAIS Dina Lida Kinoshita (*) Enquanto os judeus que viviam na Europa ocidental adquiriram sua cidadania depois da Revolução Francesa, quando surgiram os Estados nacional-liberais, as grandes massas judaicas que viviam na Pale, região em que era autorizada a moradia de judeus no Império Czarista, continuavam sob o tacão da autocracia feudal. Em sua maioria, viviam nos pequenos “shtetl”, rodeados por populações hostis onde o Império utilizava-os como «bodes expiatórios», tentando culpá-los pelos problemas sócio-econômicos e étnicos que grassavam no país. Pertenciam às camadas miseráveis de pequenos artesãos: alfaiates, marceneiros, padeiros, sapateiros e pequenos comerciantes. Com exceção de Kharkov, São Petersburg, Moscou, Vilna, Varsóvia, Lodz, e Bialystok, o padrão de trabalho ainda era artesanal2. De toda maneira, na última década do século XIX, houve um grande desenvolvimento capitalista na Rússia, e em conseqüência, dobrou o número de operários fabris. Aliado a este fato, há uma grande ascensão das lutas sociais e no limiar do século XX, os cárceres encontravamse repletos por milhares de revolucionários, ansiosos por liquidar o despotismo reinante. Os judeus, como população essencialmente urbana, estavam envolvidos neste movimento. (*) Professora Doutora da USP. Membro do Conselho da Cátedra de Educação pela Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância – Instituto de Estudos Avançados, Universidade São Paulo, Brasil. 1 2 Iídicher Cultur Farband (Associação Cultural Judaica) Le Pain de la Misère, Ed. Maspero, Paris. 377 Dina Lida Kinoshita Foi neste caldo de cultura, que se desenvolveu o movimento sionista fundado por Theodor Hertzl no Império Áustro-Húngaro, e surgiu o movimento bundista3 no Império Czarista que acabam de completar há pouco, um século. São ambos filhos legítimos do Iluminismo e da Revolução Francesa. O primeiro é uma manifestação tardia da aspiração pela cidadania em sua versão liberal, na tradição girondina, em que prevalecem os direitos de primeira geração, ou os direitos civis, a questão democrática e a questão do Estado-Nação. O segundo, na tradição jacobina, em sua versão marxista, privilegia os direitos de segunda geração, isto é, os direitos sociais, conquistados e definidos através das lutas dos trabalhadores desde o século XIX. Talvez pela manifestação tardia do sionismo que se dá num momento de grande ascensão de lutas sociais, acabe ocorrendo toda uma gama de hibridismos entre as duas vertentes, com correntes que vão desde a extrema esquerda até a extrema direita. É muito difícil acomodar numa lógica binária que perdura durante toda a Era dos Extremos, como Eric Hobsbawm define o “breve século XX”4, personalidades como Borochov, que afirma o desejo de construir o socialismo num lar nacional judeu, e Jabotinski5, que tem concepções fascistas de nacionalismo judaico. Entre ambos há toda uma gradação de tons e semi-tons que o Holocausto e a Guerra Fria acabaram alinhando, de forma artificial. Enquanto o judeu da Europa Ocidental, a partir da Revolução Francesa, na qualidade de cidadão, foi adquirindo a cultura, hábitos e costumes e a língua do país em que nasceu, ou vivia, manifestando seu judaísmo através de sua fé, os que viviam sob o império czarista eram cidadãos de segunda classe, que tinham seus direitos civis, políticos e sócio-econômicos restritos na medida em que não lhes era permitido possuir terras, exercer determinadas profissões, movimentar-se por todo o território do império ou viver em certas cidades ou regiões e ao longo do tempo vigia ora o “numerus clausus” ora o “numerus nulus” quanto à matrícula escolar. Esses fatos acabam gerando um comportamento étnico muito particular, com hábitos e costumes próprios, mas sobretudo uma cultura específica que se expressa inicialmente num jargão do alto alemão que acaba adquirindo o status de uma língua culta, o iídiche, com uma literatura pujante, falada pelas grandes massas judaicas do império6. Por outra parte, apesar da pouca ou nenhuma educação formal, entre a parcela destas comunidades, vinculada aos círculos socialistas, surge um novo tipo de intelectual, dentro da “...tradição marxista que levou os movimentos políticos fundados nos trabalhadores a dar ênfase particular ao desenvolvimento da teoria, 3 O BUND (Aliança) é um movimento socialista judaico que surge no fim do século XIX, um dos grupos fundadores do Partido Social-Democrata Operário da Rússia, Polônia e Lituânia. 4 Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. 5 Hobsbawm, E., A Era dos Extremos, págs 119 e 172, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1995. 6 Guinsburg, J., Aventuras de uma Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996. 378 O ICUF como uma rede de intelectuais considerado indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade...”7. O terror que imperava no Império Czarista atingia duplamente os judeus: como opositores ao regime e como judeus. Aliado à difícil situação sócio-econômica, e aos pogroms cada vez mais freqüentes, grandes levas de imigrantes passaram a dirigirse inicialmente aos EUA e à Palestina. Ao final da Primeira Guerra Mundial, após a Revolução Bolchevique constituíram-se diversos novos Estados, originados do colapso dos antigos impérios czarista, austro-húngaro e otomano, como Polônia, Lituânia, Hungria, Romênia, Checoslováquia, etc. Com exceção dessa última, a estrutura de poder nestes países era profundamente reacionária, funcionando como uma espécie de “cordão sanitário” para que “a praga bolchevista não se propagasse” e a política de perseguição às minorias étnicas, em particular aos judeus, persistia. Por outra parte, poucos dias após a tomada do Palácio de Inverno pelos bolcheviques, ocorreu no Império Britânico, a Declaração de Balfour, que prometia um lar nacional judeu na Palestina, dividindo a esquerda judaica. Apesar disso, parcelas significativas da juventude judaica mostravam simpatia pela nova sociedade que estava sendo construída na URSS. Uma parte destas massas tornara-se comunista ou socialista porque vislumbrara aí um caminho possível para a aquisição da cidadania embora pretendesse preservar prioritariamente sua cultura e tradição. Outros entenderam que a questão judaica não poder-se-ia resolver de forma particular, que fazia parte da solução dos problemas universais. Se a difícil situação econômica e a perseguição é condição geral para os judeus do Leste Europeu, os judeus de esquerda em todas as suas vertentes, são duplamente perseguidos. Embora a história dos judeus de esquerda hoje seja escamoteada e pertença à história dos silenciados e vencidos, sua importância pode ser conferida pela importância do BUND na formação do Partido Operário Social Democrata da Rússia, Polônia e Lituânia, bem como em obras literárias como A Família Muskat8 e outras de Isaac Bashevich Singer, nas memórias de velhos militantes como Hersch Smoliar9 ou em livros como Le Yiddishland Revolutionaire10. Com o estabelecimento das “quotas” por nacionalidade nos EUA, nos anos 20, e a política britânica de conter a ida de judeus para a Palestina, a partir dos anos 30, pelo menos parte do fluxo migratório muda de rumo, dirigindo-se para outros países, entre os quais, Argentina, Uruguai e Brasil. Embora já houvesse judeus de origem 7 Freire, R. Carta convite enviada a intelectuais brasileiros por ocasião da criação da Fundação Astrojildo Pereira, março de 2000. 8 Singer, I.B., A Família Moskat, Livraria Francisco Alves Ed., Rio de Janeiro, 1982 9 Smoliar, H., Oif der Letzter Pozitzie, mit di Letzter Hofnung, Ed. I. L. Peretz, Tel Aviv, 1982. 10 Brossat, Alain e Klingberg, Sylvia, Le Yiddishland Revolutionnaire, Balland, 1983. 379 Dina Lida Kinoshita askenazita na região desde o fim do século XIX11, a primeira grande corrente fixouse, entre 1890 e 1910, nas colônias do Barão Hirsch no Rio Grande do Sul e no norte da Argentina. Se havia interesse do Barão de ocupar as regiões onde havia recém construído as ferrovias, certamente a escalada do terror czarista após a frustrada revolução de 1905, a difícil situação econômica com a derrota na Guerra Russo– Japonesa e o pogrom de Kishinev devem ter influenciado a decisão dos primeiros grupos de colonos que chegaram da Bessarábia. Este fluxo de migração de judeus do Leste Europeu para a América do Sul, sobretudo para a Argentina mas também para o Uruguai e o Brasil, adquiriu maior expressão a partir dos anos 20. É uma imigração pós “pogroms” ocorridos durante a Guerra Civil, nas regiões do Império Czarista onde a Revolução de Outubro fracassou, especialmente, na Polônia e Lituânia. A ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, intensificou este fluxo. Esta emigração se dá em primeiro lugar por fatores econômicos, mas muitos fogem das ditaduras fascistas da Polônia, Hungria e Romênia não só devido à ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, mas também porque são militantes ou simpatizantes comunistas ou do Bund. Enquanto alguns preferiram inserir-se nas lutas gerais dos povos da América Latina, a maioria, ao chegar a terras de língua, hábitos e costumes estranhos, reproduz os seus modos de organização dos países de origem. No Uruguai, país de maior estabilidade democrática, com maior tradição de lutas socialistas e conquistas sociais mais avançadas, os judeus de esquerda, na condição de operários organizados, se integraram a um país de imigrantes, sem grandes problemas. Na Argentina, que recebe o maior contingente de imigrantes judeus da América Latina, o processo é mais complexo. Grande parte dos recém chegados exerceram a função de “cuentenic”, ou mascate, vendedor a prazo . Seria interessante resgatar a função social destes mascates, porque vendiam mercadorias a um pessoal que pela primeira vez na vida tinha acesso ao crédito e por outro lado, em suas andanças, estes mascates observavam as condições miseráveis em que vivia o povo, o que ajudava em sua conscientização política. Mas havia uma inserção operária expressiva, sobretudo nos sindicatos dos alfaiates, marceneiros, gráficos, onde inclusive havia bibliotecas e publicações em iídiche. Embora não tenham inserção entre os portuários e ferroviários, categorias muito fortes na época, trabalhavam na indústria metalúrgica. E já em 1918, a partir de uma greve nos Talleres Vassena, a Legião Patriótica, grupo argentino de direita fascista, organizara um verdadeiro pogrom em toda Buenos Aires. E neste mesmo ano, quando Rodolfo Ghioldi e Penelón fundaram o Partido Comunista Argentino, muitos judeus haviam feito sua adesão, e à moda russa e polonesa, criou-se uma IEVSEKCIA (Ievreiska Sekcia ou Seção Judaica), junto ao Comitê Central. O responsável por esta seção, era o operário gráfico, Menachem 11 Veltman, H., A História dos Judeus em São Paulo, Ed. Instituto Arnaldo Niskier, Rio de Janeiro, 1994. 380 O ICUF como uma rede de intelectuais Roizen. O peso da esquerda na comunidade era importante. No Brasil, grande parte dos recém chegados também exerceu a função de mascate, sob outro nome, “klienteltchik” e não, “cuentenic” e havia pouca inserção operária. Embora de menor expressão, a importância dos judeus de esquerda no Brasil pode ser inferida através de obras como Estratégias da Ilusão12 que dedica todo um capítulo à construção do aparelho repressivo no Brasil, a partir do começo do século até os anos 30, com a instituição do Estado Novo através da Constituição de 1937, mais conhecida como a “polaca”. Há trechos em que menciona especificamente a política do governo brasileiro com relação aos imigrantes judeus vindos das regiões do antigo império czarista e de suas possíveis simpatias com a Revolução de Outubro. A grande quantidade de fichas de comunistas judeus no Arquivo do DOPS, certamente uma percentagem muito maior que a de judeus no país, também é testemunha deste fato. Não se pode esquecer que nos fins dos anos 20 e até meados dos anos 30 a Internacional Comunista havia dedicado uma atenção especial ao Brasil, na medida em que Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, líder máximo da Coluna Prestes, havia ingressado no PCB e vinha-se preparando o Levante de 35. Há um número significativo de judeus envolvidos, com figuras de projeção no Movimento Comunista Internacional como Olga Benário, Guralski, Nute e Liuba Goifman, outras de projeção no PCB como Noé Gertel, José Gutman, Jacob Wolfenson e muitos militantes de quem se toma conhecimento através dos arquivos policiais. Apesar disso, no Brasil, talvez porque a comunidade fosse muito menor, nunca houve a IEVSEKCIA. De toda maneira, apesar das diferenças de integração aos respectivos países, o modo de organização da esquerda judaica é muito semelhante. Como já foi mencionado, a questão cultural era central na medida em que era considerada indispensável para orientar uma prática transformadora da realidade. De modo que, antes do surgimento da indústria cultural, os círculos comunistas e socialistas eram os grandes difusores da cultura nas classes populares. De todo modo, já nos anos 20, os judeus de esquerda se reuniam na Biblioteca Scholem Aleichem ( em homenagem ao grande escritor, um dos pais da literatura em língua iídiche) no Rio de Janeiro13 e haviam fundado o Jugend Club14 (Clube da Juventude) em São Paulo, e há pelo menos um boletim em iídiche, Der Unhoib (O Começo)15, sendo publicado no Rio de Janeiro; em Montevidéu, fundaram o jornal Unzer Fraint (Nosso Companheiro) e em Buenos Aires, o jornal Di Presse (A 12 Pinheiro, P.S., Estratégias da Ilusão, Ed. Companhia das Letras, São Paulo, 1992. 13 Malamud, S., In Ondenk fun Praça Onze, Ed. Iídiche Presse, Rio de Janeiro, 1981. 14 Entrevista particular com Reinstein, P. e Sendacz, H., 1996. 15 Milgram, A, trabalho apresentado em congresso, “Contribuição à História do Radicalismo Judeu no Brasil”, Universidade de Tel Aviv, Israel, 1998. 381 Dina Lida Kinoshita Imprensa), e uma série de instituições que privilegiavam o aprimoramento cultural, do ponto de vista marxista, dos operários e mascates, muitos deles militantes sindicais ou de bairro. Entretanto seria difícil dividir a esquerda judaica de forma reducionista entre os que militam na “rua judaica” e os que militam pelas grandes causas nacionais e internacionais. O processo é muito mais complexo e as situações se entrelaçam e interpenetram. A cultura da clandestinidade que impera, muitas vezes camufla este fato. É preciso considerar que a maioria dos partidos comunistas foram criados nos anos 20. De forma que muitos dos militantes judeus que chegaram ao Brasil, à Argentina e ao Uruguai nesta década ou antes, ainda eram membros do Bund e outras organizações de esquerda judaica, transferindo para a região suas formas e métodos de organização. À medida que se aclimatavam à nova terra, alguns passavam a militar nos PC´s, outros nunca deixaram de atuar da forma que o faziam na Europa Oriental. De forma que as escolas, cozinhas comunitárias, sociedades culturais e bibliotecas talvez tivessem dupla função: a função primeira de solidariedade e difusão de uma cultura progressista e talvez uma fachada legal para as atividades políticas clandestinas. Torna-se muito difícil avaliar estes fatos na medida em que estes velhos militantes foram treinados para dar o mínimo de informações e não conseguem desvencilhar-se desta postura mesmo quando estão dispostos a colaborar. Em entrevista, uma velha militante, viúva de um deportado do Brasil, que não autorizou a publicação de seu nome, relatou que ela e o marido militavam numa base de ferroviários e marinheiros, setor importante para a comunicação do Partido Comunista Brasileiro com os outros partidos através da Internacional Comunista e o Socorro Vermelho Internacional e com outras organizações do partido em regiões afastadas do Brasil. Ao mesmo tempo, o casal com outros imigrantes, mantinham toda uma infra-estrutura sócio-cultural voltada aos imigrantes judeus recém chegados. Quando pedi mais detalhes a respeito da relação entre as duas atividades, e da sua relação com Olga Benário e Luiz Carlos Prestes, recusou-se a fazê-lo, alegando que era muito cedo para tratar destes assuntos que ocorreram há mais de 60 anos16. No caso brasileiro, parte dos comunistas judeus nascidos no Brasil ou que chegaram aqui muito jovens, entre os quais poder-se-ia citar Leôncio Basbaum, Hersch Schechter, Sara Becker (mais tarde Sara de Mello), Felícia Itkis (mais tarde Schechter), os já citados Gertel, Wolfenson e Gutman, abraçavam em primeiro lugar, as lutas gerais do povo brasileiro, já que a comunidade era e continua relativamente pequena e nunca se respirou o “idishkeit” (atmosfera judaica) da Europa central e oriental com muita intensidade. Por outra parte, se o PC argentino tentou organizar a massa judaica desde o início, no Brasil, vários membros que já vinham dos círculos socialistas europeus, 16 Rifka Gutnik faleceu em março de 2000, levando seus segredos. 382 O ICUF como uma rede de intelectuais como Jacob Frydman, tentaram inserir-se inicialmente nas lutas gerais do povo brasileiro, e só após muitas perseguições e deportações, os que permaneceram no país, muitas vezes se organizaram no meio judaico. Na Argentina também pendia sobre a cabeça de estrangeiros a Lei 4144, que previa a deportação por atividades políticas, mas apesar da repressão violenta sofrida pelos militantes, foi utilizada muito parcimoniosamente. Talvez, no Brasil, o Levante de 35 organizado pelo PC em consonância com a III IC, tenha propiciado um acerto de contas internacional, uma vez que os integralistas, que tinham forte simpatia pelas forças do Eixo, participavam do governo Vargas. De toda maneira, a violenta repressão que se abate a partir dos anos 30, na época de Vargas no Brasil e de Uriburu na Argentina, praticamente liquidam essa primeira onda de entidades da esquerda judaica nos dois países. Com a ascensão do nazismo, em grande parte pela divisão entre socialistas e comunistas na Alemanha, inicia-se uma discussão no movimento comunista internacional, que desemboca nas teses de Gyorgi Dimitrov das “frentes populares”. Em julho de 1935, acaba ocorrendo o VII Congresso da III Internacional, quando a política de “classe contra classe” foi substituída pela política de “frentes populares”, que reaproxima setores democráticos e socialistas na luta contra o fascismo. Foi neste contexto que se realizou em Paris, em junho de 1935, o Congresso dos Escritores Antifascistas, conclamando os intelectuais de todo o mundo a lutar contra o fascismo com o lema “Em Defesa da Cultura”. Entre os participantes estavam: Heinrich Mann, Henri Barbusse, Máximo Gorki, Romain Rolland, Bernard Shaw, Sinclair Lewis, André Gide, Selma Lagerloff, Ilya Ehrenburg e outros17. A fração judaica presente ao Congresso dos Escritores Antifascistas, deu início à preparação do Congresso realizado em Paris, no verão de 1937, fundador do Idisher Cultur Farband (ICUF) ou Associação Cultural Judaica. Na convocatória, constava “... nossa frente de luta é parte da batalha geral contra o fascismo, luta que devemos adaptar a nossas condições específicas... e quando enumeramos as encarniçadas lutas e conflitos que ocorrem em todos os países, e em primeiro lugar na Espanha, entre as forças reacionárias, nazistas e fascistas e as forças radicais, progressistas e autenticamente democráticas – uma luta de vida e morte, defrontamo-nos com o fundo político-social sobre o qual se criou a frente popular, a frente cultural, filha legítima da frente popular.” Os sociais democratas de direita estavam temerosos com o crescimento das frentes populares. Desde a convocação do congresso, realizada pela executiva da Frente Cultural Judaica da França, começou uma empedernida batalha entre os que eram favoráveis e contrários a sua realização. “Os reacionários totais e encobertos do mundo judaico, farejaram uma rebelião na iniciativa, embora alguns nomes moderados e “decentes” tenham assinado a convocatória. Por todos os meios tentou-se 17 Ehrenburg, I., Memórias, vol 4, A Europa sob o Nazismo, Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1966. 383 Dina Lida Kinoshita impedir a realização do Congresso da Cultura Judaica, em todos os países onde houvesse comunidades judaicas askenasitas. O ar estava impregnado de pólvora, que podia estalar a qualquer momento. A tensão atingia seu máximo grau. Concomitantemente ocorriam os combates na Espanha, onde o sangue derramado de seu povo mártir era visível. Enquanto o Pen Club envidava esforços para eludir a política e buscava meios para tranqüilizar os espíritos, no Congresso dos Escritores em Defesa da Cultura, ao contrário, reivindicava-se uma política pronunciadamente anti fascista. No recinto havia um retrato enorme do poeta Federico Garcia Lorca assassinado pelos franquistas. A primeira sessão do Congresso ocorreu na Madri sitiada, o que enfatizava o caráter combativo do Congresso. Era visível o temor, o aviso, o alerta, de que se estava às vésperas de uma catástrofe cultural e mundial. Imperava uma mistura de luzes e sombras, de esperança e tristeza, naquele verão em que se gestava o projeto audaz de convocar os representantes da criatividade judaica, da cultura judaica de todo o mundo para debater e trocar experiências em defesa das posições culturais ameaçadas. De todos os rincões afluíam notícias entusiastas e estimulantes, cheias de fé e esperança, mas havia também desistências e boicotes por parte dos setores retrógrados e reacionários, que se opunham à frente cultural e popular”18. Entre os objetivos declarados no Congresso de fundação do ICUF, consta, “Preocupar-se em ampliar, aprofundar, enriquecer a cultura judaica laica e progressista, estimular seu crescimento visando a justiça social e a liberdade”. Pinie Katz representou 23 entidades judaicas da Argentina e Uruguai, e M. Kopelman, o Brasil. Cabe lembrar que enquanto ocorriam estes fatos, judeus provenientes da Argentina, do Uruguai e do Brasil estavam lutando nas Brigadas Internacionais 19. O ICUF teve grande atuação na Argentina mas esteve presente também no Uruguai e Brasil. Havia nos estratos populares, fome de cultura. Forjavam-se verdadeiros autodidatas eruditos, para os quais nada do que é humano era indiferente. Possuíam uma presença ativa e militante, adotando uma atitude de entrega às melhores aspirações populares. Num caminho de vai e vem, abraçavam todas as causas condutoras ao enraizamento na nova terra e ao mesmo tempo preservavam os valores político-sociais, humanistas e literários adquiridos em suas terras natais da Europa Oriental. A organização do ICUF tinha uma estrutura que consistia de um comitê internacional inicialmente sediado em Paris, posteriormente transferido para os EUA, devido à invasão nazista; os comitês nacionais, nos países onde havia comunidades que se expressavam na língua iídiche, e uma vasta rede de entidades locais. A cada três 18 Resumo de um artigo do escritor-historiador judeu-polaco americano, Nachmen Maizl, Revista ICUF, Nº 107, Buenos Aires, junho-julho, 1952. 19 ”In Gang” (Em Marcha), Editado por Pinie Katz, Abril de 1937 e entrevista oral com Rivka Gutnik. 384 O ICUF como uma rede de intelectuais anos ocorriam os congressos nacionais. Essa estrutura seguia muito de perto, a das Internacionais Socialista e Comunista, bastante hierarquizada e verticalizada. Certamente não corresponde às redes modernas, onde as novas tecnologias propiciam muito mais horizontalidade. Mas com certeza, havia um grande intercâmbio entre estes setores socialistas e progressistas das diversas comunidades. A II Guerra Mundial e o extermínio dos judeus europeus haviam diminuído a importância do Comitê Internacional e os comitês regionais e nacionais adquiriram mais força. De toda maneira a frente formada em torno do ICUF, é a que se havia constituído nas organizações clandestinas de resistência nos guetos e nos destacamentos partizans durante a II Guerra Mundial e que perdurou no imediato pós guerra, em que atuavam comunistas, bundistas e sionistas de esquerda. Basta verificar os nomes e filiações partidárias dos mais destacados comandantes, militares ou intelectuais, da resistência antifascista judaica na Europa Oriental: Mordechai Aniliewicz, Josef Kaplan e Arie Wilner do Hashomer Hatzair (Jovem Guarda, movimento juvenil da extrema esquerda sionista), Josef Lewartowski e Itzik Vitenberg do Partido Comunista Polonês, Marek Edelman e Michal Klepfisz do BUND e Dr. Emanuel Ringelblum do Linke Poale Tzion ( Esquerda dos Operários de Tzion). Cabe aqui ressaltar que o imediato pós guerra constituiu um momento em que por um lado a comunidade judaica engrossou sua simpatia pela esquerda e por outro, é um momento de grande unidade do povo judeu. Sionistas e comunistas apoiam a criação do Estado de Israel – se para os primeiros essa criação simboliza a realização de um sonho milenar de volta à “Terra Prometida”, para os segundos, trata-se de um movimento de libertação nacional em que o apoio soviético para um Estado judeu, afetaria os interesses imperialistas numa região altamente estratégica como tem sido ao longo deste século, o Oriente Médio. Por outra parte, não se pode ignorar que embora houvesse um apoio firme da URSS e das Repúblicas Populares na ONU à criação do Estado de Israel, e a Checoslováquia tenha fornecido em grande medida as armas utilizadas pela Haganá (Organização Militar Judaica na Palestina, precursora do exército do Estado de Israel), a atitude dos comunistas sempre foi matizada por um outro sentimento: havia a esperança de um reflorescimento das comunidades judaicas no Leste Europeu, que seria a experiência socialista, e não sionista, de solução da “questão judaica”. Uruguai e Argentina permaneceram países neutros durante a II Guerra Mundial de modo que as entidades filiadas ao ICUF seguiram a política da URSS e criaram comitês antifascistas clamando pela abertura da Segunda Frente. No caso brasileiro, durante o período do Estado Novo e sobretudo durante os anos da II Guerra Mundial, com a proibição de atividades de estrangeiros, o ICUF praticamente não teve nenhuma atuação. Entretanto no imediato pós guerra, as entidades vinculadas ao mesmo tiveram um grande florescimento e se associaram às congêneres argentinas e uruguaias. Como primeira atividade, trabalharam no auxílio imediato aos sobreviventes do nazismo que se encontravam sobretudo na Polônia. 385 Dina Lida Kinoshita Enquanto ainda se desenrolava a Batalha de Stalingrado, um dos militantes do ICUF em São Paulo, Manoel Cossoy, fez uma promessa: se os soviéticos ganhassem tal batalha, no final da guerra doaria uma soma de dinheiro para erigir um monumento em memória aos heróis e mártires tombados na guerra. A promessa foi cumprida e os judeus simpatizantes do ICUF, reunidos no Clube Cultura e Progresso, decidiram pela construção de um Instituto Cultural ao invés de um monumento, mais conhecido como Folks Hois ou a Casa do Povo. Para sua construção, colaborou a maioria da comunidade em São Paulo, mesmo que fosse com um único tijolo, demonstrando o grande apoio logrado pelos progressistas. Este projeto foi acompanhado pela construção de uma escola, a Scholem Aleichem; um clube infanto juvenil, I. L. Peretz, em homenagem ao grande escritor progressista da língua iídiche. As atividades culturais ainda eram preenchidas por um coral que cantava músicas folclóricas e revolucionárias em iídiche e por dois grupos de arte dramática, um em iídiche e outro em português, que se apresentavam inicialmente em teatros alugados e posteriormente, no Teatro de Arte Israelita Brasileiro – TAIB, construído no mesmo local. No Brasil, havia também organizações filiadas ao ICUF: no Rio de Janeiro, a Biblioteca “Scholem Aleichem”, que deu origem à Associação “Scholem Aleichem”, que também tinha seus grupos teatrais e coral e a Escola Israelita Brasileira “Scholem Aleichem”; a União Israelita de Belo Horizonte, o Clube de Cultura de Porto Alegre, a Sociedade Cultural Israelita do Paraná, Sociedade Israelita da Bahia, o Clube Canaã de Santos, entre outros. A edição do jornal “Unzer Shtime” (Nossa Voz) e a Colônia de Férias “Kinderland” administrada pela Associação Feminina Israelita Brasileira (AFIB), tinham caráter nacional. Entre 1946 e 1951, a juventude editava a revista “O REFLEXO”, sob a direção de Luiz Israel Febrot. No Uruguai, devido às características locais, havia grande concentração em Montevidéu, onde todas as atividades ficaram concentradas num verdadeiro palácio da cultura, em homenagem ao grande escritor, filósofo e pedagogo, “Chaim Zytlowski”. Na Argentina, só na grande Buenos Aires, havia dezenas de entidades que conjugavam centros culturais e escolas, entre as quais se destacam os grandes complexos “Chaim Zytlowski” e a “I.L. Peretz”, na Villa Lynch (um grande centro têxtil, onde havia muitos operários judeus). Existia o Lar Cultural “Mêndele”, em homenagem ao fundador da literatura em língua iídiche, o Centro Cultural “David Bergelson”, e o “Peretz Markish” em homenagem aos grandes escritores soviéticos que se expressavam nesta língua, o Centro Cultural “Sarmiento”, o Centro Cultural “Janusz Korczak” em homenagem ao grande pedagogo que cuidou dos orfanatos do Gueto de Varsóvia, morrendo com as crianças em Treblinka, o Centro Cultural “Emanuel Ringelblum”, o Centro Cultural “Peretz Hirszbejn”, o Centro Cultural “Ramos Mejía”, o Centro Cultural “I. L. Peretz” de Lanuz e o Clube Esportivo e Recreativo “Scholem Aleichem”, entre outros. Havia organizações culturais filiadas ao ICUF em Rosário, Córdova, Mendoza. Estavam organizados nacionalmente, a 386 O ICUF como uma rede de intelectuais Federação Argentina Israelita de Mulheres, A Federação Juvenil Judaica Argentina, a Colônia de Férias “Zumerland”20. Um comentário especial merecem o Iídich Folks-Teater (IFT), ou o Teatro Popular Iídiche de Buenos Aires e os grupos teatrais de São Paulo: unindo o ensinamento de I. L. Peretz, “O teatro é escola para adultos”, e o de Romain Rolland, “ O teatro deve compartilhar o pão do povo, de suas inquietude, de suas esperanças e de suas lutas”, ambos os grupos fizeram ...”do trabalho teatral uma prática deliberada não só de arte, como de educação e política, sem renunciar contudo, nos vários momentos de sua trajetória e de suas preferências ideológico-estilísticas, à busca da artisticidade, senão da forma, na linguagem dramático cênica”21. O IFT começou sua carreira no início dos anos 30, apresentando Di Néguer (Os Negros) de Gershon Aibinder, Koiln (Carvão) de Galéchnikov e Schrai Khine (Ruge China) de Tretiakov, de caráter engajado e de esquerda. Nos anos seguintes apresentou dezenas de peças de autores judeus como Peretz, Scholem Aleichem, Goldfaden, David Bergelson, Berger, Hinkelman, Zuckmayer, Kulbak, Lêivik bem como autores consagrados como Maksim Gorki, Arthur Miller, John Steinbeck, Tchekov, Zola, Bertold Brecht, Eugene O´Neill, Leonid Leonov e também William Shakespeare. Em São Paulo, embora a atividade fosse muito mais modesta, Jacob Rotbaum, diretor do Teatro Estatal Judaico da Polônia, esteve por diversas vezes na cidade, dirigindo o Grupo de Arte Dramática que encenou clássicos da dramaturgia iídiche como o Dibuk de S. Anski, Sender Blank de Scholem Aleichem ou Os Sonhos de Goldfaden, bem como clássicos da dramaturgia universal como Raízes de William Faulkner. O que há de comum nos dois teatros é a crítica à ordem vigente e o compromisso com a transformação estrutural da sociedade. Se o IFT adquiriu um espaço particular no âmbito teatral judio-argentino, ambos os grupos tiveram um papel importante no “teatro independente” das respectivas cidades. Vários atores que adquiriram renome no Brasil iniciaram suas atividades teatrais nos círculos dramáticos do ICIB e foram responsáveis por posturas democráticas e progressistas na classe teatral brasileira. Escritores e intelectuais importantes, militantes da cultura iídiche como Aron Kurtz (presidente do ICUF nos EUA e genro de Scholem Aleichem), os poetas H. Lêivik e Shmerke Kaczerginski, bem como da cultura universal, como Nicolás Guillén, Pablo Neruda, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, o cantor Paul Robson, a atriz principal do Teatro Estatal Judeu da Polônia e intérprete principal do filme, A Pequena Loja da Rua Principal, Ida Kaminska, Mario Schenberg, intelectual e eminente físico teórico, entre muitos outros proferiram conferências ou participaram de atividades artísticas nas entidades filiadas ao ICUF. Marcos Ana, poeta libertado das masmorras franquistas nos anos 60 também foi ouvido nesses espaços. Foram homenageados 20 Entrevista realizada com Fidel Lerner, julho de 2000. 21 Ginsburg, J., Aventuras de uma Língua Errante, Ed. Perspectiva, São Paulo, 1996. 387 Dina Lida Kinoshita em seus natalícios ou em datas fúnebres, Scholem Aleichem, I. L. Peretz, Moishe Olguin, M. Gebirtig, Avrum Raisin, bem como W. Shakespeare, Rubén Dario, Euclides da Cunha, Albert Einstein, Julio Cortázar, Machado de Assis, Rafael Alberti, entre outros. Durante muitos anos, as entidades judaicas filiadas ao ICUF, eram as únicas que comemoravam o Levante do Gueto de Varsóvia, enquanto os sionistas silenciavam alegando que não havia nada a comemorar, já que os judeus dos guetos foram para os crematórios como carneiros. Neste evento bem como em uma série de comemorações e manifestações que ocorriam nestas entidades, sempre se enfatizava a universalidade do feito, sua relação com o presente sem ater-se somente à questão judaica. A título de ilustração, transcrevemos alguns trechos de convocatórias: ...”Em homenagem aos heróis e mártires que tombaram na luta para a extinção do nazismo da face da terra; dos heróis que lutaram nos campos de batalha do Leste e Oeste, do gueto de Varsóvia e dos campos de Pistóia.”22... (1965) “... Os remanescentes neonazistas, apoiando-se nos setores retrógrados e em governos antidemocráticos em diversos países do mundo, pensam em reeditar as suas frustradas aventuras de anos atrás; julgam poder destruir as mais caras conquistas democráticas e anseiam perseguir as minorias raciais que participam da vida das diversas sociedades...” “... mas nós judeus, participantes da luta do povo brasileiro pela democracia, estamos a todo o tempo vigilantes e empreendemos todos os nossos esforços no sentido de impedir o avanço de forças obscurantistas neste momento, em que mais importante torna-se demonstrar que mais amplas forças lutam contra a sobrevivência do nazismo, unindo-nos mais uma vez, aos setores democráticos ...”23 (1967, pós golpe de 64 no Brasil) “O acima citado, sintetiza o espírito de luta dos combatentes nos Guetos em todos os lugares sob o domínio nazi e que culminou com o LEVANTE DO GUETO DE VARSÓVIA,... ...Não podemos ficar indiferentes ao renascimento do neo-nazismo na Alemanha Ocidental e em outros países. É inquietante a existência e a atuação legal do NPD ( Partido Nacional Democrata) de caráter nitidamente nazista... Hoje, quando comemoramos o XXV Aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, que tão tragicamente nos lembra a II Guerra Mundial, sentimo-nos inquietos com os conflitos que surgem e se desenvolvem no mundo. Inquieta e nos revolta a tragédia do Vietnã, onde diariamente milhares de preciosas vidas de 22 A título de esclarecimento, a Força Expedicionária Brasileira lutou em Pistóia. 23 Esta convocatória tem uma linguagem muito semelhante à Resolução política do VI Congresso do PCB, realizado naquele ano, em que a palavra de ordem era construir uma ampla frente democrática para derrotar a ditadura, em contraposição a outras forças de esquerda que propugnavam a luta armada para derrubar o regime. 388 O ICUF como uma rede de intelectuais homens, mulheres e crianças são impiedosamente ceifadas e que poderá culminar com o emprego de armas atômicas, e como conseqüência, provocar uma III Guerra Mundial, com o perigo de aniquilamento de grande parte da humanidade. Portanto, é nosso dever unirmo-nos a todos os povos amantes da Paz, para clamar contra o derramamento de sangue humano... ...A Israel cabe criar condições de vida e segurança para o País e aos seus cidadãos, como também achar soluções pacíficas para os problemas de fronteiras ou outros, com seus vizinhos Árabes. No interesse do Estado de Israel e do povo judeu espalhado pelo mundo, no interesse, felicidade e bem estar de toda a humanidade, é necessário que juntos, todos os povos, empreguem os meios e esforços para que a paz e a liberdade sejam preservadas.” (1968) Em todas as entidades vinculadas ao ICUF, a questão da paz é recorrente ao longo de todas as décadas, com ênfase especial na obtenção de uma paz negociada e justa no Oriente Médio, que contemple todos os povos da região. Não por acaso, Pinie Katz foi membro ativo do Conselho Argentino em Defesa da Paz, do mesmo modo que Diament o foi no Uruguai e o Prof. Mário Schenberg, Alberto Castiel e a autora deste artigo o foram ou ainda são no Brasil. Todos os citados foram membros, em diversos momentos, ou são do Comitê Executivo do Conselho Mundial da Paz. As associações femininas se espelhavam na tradição de Clara Zetkin e Rosa Luxemburg, das mulheres combatentes de todos os tempos pela liberdade e os direitos humanos, desde as operárias de Manhattan em greve pela redução da jornada de trabalho, até Las Madres de la Plazo de Mayo, passando pelas combatentes Niuta Teitelboim do Gueto de Varsóvia e Vita Kempner do Gueto de Vilna. Devido à legislação educacional argentina e uruguaia, onde o ensino público era obrigatório e universal, as escolas do ICUF funcionavam como escolas complementares. Isso tinha uma vantagem, na medida que as crianças desde o começo mantinham contato com um universo mais amplo. De modo diverso, no Brasil foi possível criar escolas (as Escolas Israelita Brasileira “Scholem Aleichem” de São Paulo e do Rio de Janeiro) onde todo o ensino era integrado. As duas escolas foram as primeiras escolas de pedagogia moderna, durante muitos anos consideradas como escolas avançadas, servindo de modelo às escolas de aplicação e experimentais implantadas na rede de ensino público mais tarde. Do ponto de vista da educação judaica, o enfoque era laico, sendo a única escola judaica que ensinava no pós guerra a língua iídiche e não o hebraico. Enquanto os sionistas consideravam o iídiche como a língua dos judeus dos guetos que foram aos crematórios como carneiros, os “icufistas” afirmavam que em memória aos combatentes e heróis da resistência dos guetos e dos destacamentos de partizans, em memória a toda uma cultura progressista criada em íidiche e destruída durante o Holocausto, e com a esperança de um renascimento sócio-cultural das comunidades judaicas nas Demo- 389 Dina Lida Kinoshita cracias Populares, decidiram manter o iídiche e não ensinar o hebraico. Mas mais importante talvez seja o sentimento transmitido aos alunos que pode ser aferido pela afirmação de um ex-aluno ao recordar o Lerer Gordon (Professor Gordon): “O Lerer Gordon nos fazia sentir lutadores invencíveis pelas causas da humanidade”24. As colônias de férias funcionavam como um prolongamento das escolas em época de férias. Além das atividades recreativas, havia uma vasta programação cultural e um aprofundamento da noção de vida coletiva em detrimento do individualismo. O primeiro jornal progressista fundado por Pinie Katz, foi o Di Presse, em Buenos Aires, em 1919. No entanto, com o passar do tempo o jornal acabou sendo controlado por setores de direita. Os continuadores progressistas, mais tarde organizados em torno do ICUF argentino, jamais voltaram a ter um jornal, embora publicassem a Revista Bimestral do ICUF, boletins e o Kinderwelt (Mundo da Criança), especial para as crianças e jovens. Em seguida, por volta dos anos 30, surge no Uruguai, o Unzer Fraint (Nosso Companheiro). Em 1946 aparece no Brasil o jornal Unzer Shtime. Cabe aqui mencionar, para que fique registrado para a posteridade, que durante seus dezoito anos de existência foi dirigido por Hersch Schechter, que não assinava sequer um artigo e cujo nome não constava do expediente por razões de segurança uma vez que o mesmo já havia sido deportado do Brasil duas vezes. Era, no entanto, público e notório que ele era a cabeça e a alma do mesmo, escrevendo os editoriais e praticamente todas as matérias de política internacional. A grande tônica do jornal se referia às questões da paz e quanto à questão judaica, sempre enfatizava, diferentemente dos jornais sionistas, propostas plurais de experiências das comunidades judaicas, e também demonstrava grande esperança na reconstrução de uma vida sócio-cultural judaica nas Repúblicas Populares e na URSS pós holocausto. A redação do jornal foi invadida e empastelada logo após o golpe militar perpetrado em 1º de abril de 1964 quando o jornal deixou de ser editado – é difícil prever como esta proposta evoluíria, se houvesse continuidade. Além disso, havia um esforço muito grande, no sentido de encorajar os setores progressistas da comunidade judaica, a se integrarem ao povo brasileiro e às suas lutas mais gerais. O jornal jamais teve uma linha isolacionista. Apesar da década de 70 ter sido a época de ouro dos jornais alternativos no Brasil, que se colocavam claramente contra o regime ditatorial, como o Pasquim, sucedido pelo Opinião e pelo Movimento, não havia condições de relançar o Unzer Shtime, porque quase ninguém mais lia em íidiche e a Casa do Povo vivia permanentemente vigiada, alguns de seus ativistas e diretores estavam presos no Doi-Codi25, não permitindo grandes atividades. Quanto à orientação, o Unzer Fraint segue a mesma tônica e também não resistiu ao regime ditatorial uruguaio dos anos 70. 24 Dr. Felipe Cherep, boletim Comentários, ICUF, Argentina, sem data. 25 Departamento de Ordem Interna, departamento especial formado pelo Serviço Nacional de Informações, Exército e Polícia Militar, encarregado da repressão e tortura de presos políticos nos anos 70. 390 O ICUF como uma rede de intelectuais Assim, esta frente, paralelamente à atividade política, realizava um trabalho nas áreas de educação e cultura. Ao analisar as organizações criadas pelo ICUF na Argentina, Uruguai e Brasil, vem à lembrança o texto de T. Grol a respeito do Bund na Polônia: “Paralelamente à atividade política e sindical, o BUND realizava um trabalho ramificado e multicolorido nas áreas de educação e cultura. Quem de nossa geração não se lembra da maravilhosa rede de escolas populares judaicas, bibliotecas, associações culturais, clubes esportivos, sanatórios infantis, jornais, boletins e revistas na Polônia do pré II Guerra Mundial, organizadas pelo BUND?”26 Se o movimento não adquiriu a mesma pujança é preciso guardar as devidas proporções quanto ao tamanho das respectivas comunidades e ao tempo de enraizamento nos vários lugares. Como vemos, a organização nos diversos países é muito semelhante e houve uma grande colaboração, intercâmbio e solidariedade entre os diversos grupos. Esta colaboração não se dava somente no plano sócio-cultural mas também na solidariedade a perseguidos políticos. Pode-se citar como exemplo, os casos de Hersch Schechter que em sua segunda deportação, ocorrida no fim dos anos 30, e até sua volta após a democratização de 1945, e em seu exílio entre 1964-68 esteve no Uruguai trabalhando no jornal Unzer Fraint (Nosso Companheiro), ou no caso de Alter Kowalski e de Davi Feldman que se fixaram definitivamente no país vizinho e realizaram um trabalho de enlace político-partidário entre as comunidades dos três países vizinhos da região. Srul Fajbus Roclaw também passou vários anos no Uruguai, enquanto Josef Lipski esteve no Uruguai e Argentina. O casal Samuel Iser e Leike Kogan após uma tentativa frustrada de fixar-se no Brasil para onde chegaram poucos dias após o Levante de 1935, acabaram se fixando na Argentina. Ele foi um dos eminentes poetas do ICUF e presidente da seção argentina por longos anos, mais conhecido com o pseudônimo Tzalel Blitz, e ela uma educadora que formou gerações na Escola “I. L. Peretz”. Vários dos seus alunos são militantes da esquerda argentina, e alguns da direção central do PC argentino como Víctor Kot. Por sua estabilidade democrática, que só é rompida na década de 70, o Uruguai sempre funcionou como centro de solidariedade a refugiados políticos. Por sua proximidade, o intercâmbio sócio cultural mais intenso, se dava em dois eixos que mantinham intercâmbio de delegações amiúde: o constituído por Buenos Aires e Montevidéu, e do mesmo modo entre São Paulo e Rio de Janeiro. Isto não quer dizer que não houvesse contato entre todos estes centros, através de uma correspondência constante, mas o intercâmbio de delegações era mais raro. Aqui é preciso levar em conta a imensidão do Brasil com as entidades espalhadas por boa parte do território. Devido a sucessivos golpes e à destruição da AMIA na Argentina e a um longo período de regime autoritário a partir de 64 no Brasil, não foi possível consultar arquivos completos, mas documentações esparsas, complementadas por 26 Grol, T., Gueshtaltn un perzenlekhkeitn in der iidicher un velt gueshikhte, Paris, 1976. 391 Dina Lida Kinoshita entrevistas orais de pessoas idosas, cuja memória começa a falhar. A partir dos dados foi possível estabelecer a ocorrência de um congresso regional do ICUF na Argentina nos anos 50, outro, no Uruguai, em 1967, e um terceiro nos anos 90 no Rio de Janeiro, aos quais compareceram delegados de todos os países. Homens como José Sendacz, Moisés Niskier, M. Glazman, Lejb Ajzenberg, Jacques Gruman, do Brasil, Pinie Katz, Gregorio Lerner, Marc Turkow, Benie Sak, Tzalel Blitz e S. Kaminski, da Argentina, Mario Chiz Dubinsky, do Uruguai, se deslocavam de um centro para outro, somando esforços em prol da cultura, da paz, da liberdade e da justiça social entre os homens. Os artistas também se deslocavam e se apresentavam nas entidades co-irmãs. O intercâmbio de jovens, que contava com toda a solidariedade das famílias que os recebiam, também era freqüente. Por outra parte, estes homens e mulheres, mantinham contato com os setores da esquerda de Israel, EUA, França, bem como com a comunidade judaica da República Popular da Polônia e da URSS, e assinavam as respectivas publicações: Der Veg (O Caminho), Morgn Fraihait (Amanhã, a Liberdade), Naie Presse (Nova Imprensa) Folks Shtime (Voz Popular), e a partir de 1961, quando reaparece na URSS, durante o período do degelo, a imprensa iídiche, o Sovietish Heimland (Pátria Soviética). À medida que o custo do transporte aéreo foi ficando mais acessível, os contatos com todos estes centros tornaram-se mais amiúdes. Por outra parte, a simpatia da comunidade judaica pela esquerda no imediato pós-guerra, teve reflexos de algum modo no número e destaque intelectual de quadros de origem judaica da geração de 45, na direção do PCB. Pode-se citar Salomão Malina, Jacob Gorender, Mário Schenberg, Marcos Chaimovitch, Isaac Scheinvar, Maurício Grabois, Noé Gertel e Moisés Vinhas entre outros. Num determinado momento, o setor judaico do PCB em São Paulo foi a base mais importante e Eliza Kaufman Abramovich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a vereadora mais votada e a bancada de comunistas majoritária na Câmara dos Vereadores da cidade. Já em 1945, na eleição para a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foi eleita uma bancada expressiva de deputados comunistas, entre eles, Mário Schenberg. É difícil fazer comparações com eleições anteriores uma vez que de 1930 a 1945 só houve uma eleição direta para a Assembléia Nacional Constituinte de 1934, quando poucos judeus no Brasil puderam votar, por sua condição de estrangeiros ou porque muitos chegaram após esta data. Entretanto, enquanto na Argentina, os quadros do ICUF jamais conseguiram eleger-se, devido à Lei Eleitoral vigente, em que os candidatos fazem parte de listas partidárias e não há o voto proporcional, mas o de maioria contra minoria, no Uruguai quadros originários da militância “icufista“ como Leon Lev foram eleitos deputados por diversas vezes. O posterior encolhimento da esquerda judaica, certamente reflete as crises do Oriente Médio e das comunidades do Leste Europeu no quadro da Guerra Fria. O primeiro momento de crise dá-se no início dos anos cinqüenta devido a uma série de fatores. Os mais importantes se referem ao fato do Estado de Israel, no contexto 392 O ICUF como uma rede de intelectuais da Guerra Fria, ter optado pelo mundo ocidental; ao relatório de Khrushev denunciando no XX Congresso do PCUS os crimes stalinistas, entre eles o assassinato dos médicos e escritores judeus soviéticos; e o processo de Slanski e Arthur London na Checoslováquia27. A frente forjada nos anos da guerra e no imediato pós guerra sofreu uma fratura. Retiraram-se das organizações do ICUF, primeiro os sionistas de esquerda e mais tarde outros grupos socialistas. Os sionistas de esquerda, em nível mundial, se alienam das políticas locais e passam a privilegiar uma política de fortalecimento e consolidação do Estado de Israel que pretendiam democrático e socialista. Esta política se expressa na prática por um apoio financeiro, cultural e uma emigração expressiva para o Estado de Israel, entre 1948 e 1965, principalmente de jovens que se dirigem para Bror Khail, Guivat Oz e Gash, conhecidos como os kibutzim de brasileiros e os kibutzim de latino-americanos como o Amir. Contudo, para entender as mudanças, não se pode deixar de fazer uma reflexão a respeito da política brasileira no que diz respeito ao antisemitismo. Durante o Estado Novo, o governo brasileiro foi muito influenciado pelo integralismo, com grandes simpatias pelo Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e praticou uma política cujo conteúdo tem fortes matizes antisemitas. Nesta conjuntura, um grupo de imigrantes que se sente marginal, acaba ingressando num partido de propostas internacionalistas que também é marginal, clandestino e ilegal como o PCB, embora houvesse um número reduzido de anarquistas e trotskistas, dos quais o mais eminente foi o Prof. Maurício Tragtenberg. Do mesmo modo na Argentina ocorre um sentimento antisemita bastante forte. Nos anos 30 e 40, a maioria do povo judeu, talvez tenha optado pela esquerda, em nível mundial, por falta de opção, raciocínio desenvolvido por Hobsbawm28. Enquanto na Argentina este sentimento antisemita perdura sob novas formas até o presente, todos os governos brasileiros pós Segunda Guerra Mundial, quer democráticos ou autoritários não tiveram matizes antisemitas como política oficial de Estado. Outro fator que deve ser levado em conta, são as “políticas de substituição de importações” implantadas na Argentina, Brasil e Uruguai que propiciam às novas gerações de judeus nascidos na região uma ascensão social e cultural. Estas comunidades deixam de sentir-se marginais, e nos momentos de democratização tem maior leque partidário para escolha. Após os golpes militares ocorridos no Brasil e Argentina nos anos 60 ocorreu um esvaziamento do movimento popular em ambos os países de um modo geral. Apesar disso, as associações filiadas ao “ICUF” ainda exerceram uma influência expressiva na comunidade até 1967. Muitos dos que não se deixaram abater, mesmo em momentos críticos para os judeus comunistas tais como fim dos anos 40 e começo da 27 Slanski era Secretário Geral do Partido Comunista Checo e Chefe de Governo e Arthur London membro da executiva do Partido. No Começo da década de 50, foram acusados de “cosmopolitismo”, mesma acusação feita aos escritores judeus soviéticos assassinados. Slanski foi liquidado e London sofrera longos anos de prisão. 28 Hobsbawm, E., Trabalhadores, Ed. Paz e Terra, Petrópolis. 393 Dina Lida Kinoshita década de 50, quando do assassinato dos médicos e dos escritores judeus na URSS, tiveram uma atitude diferente em 1967. Quando o Estado de Israel decidiu ocupar a Cisjordânia, Gaza, Sinai e o Golan, e foi veementemente condenado pela URSS e por grande parte dos países da comunidade internacional, poucos dos judeus comunistas mantiveram sua serenidade, o emocional falou mais alto, e a maioria apoiou Israel posteriormente. Foram pouquíssimos os que condenaram a ocupação desde o início, previram as dificuldades que os israelenses teriam se não desocupassem logo a região e continuaram apoiando a URSS e o Leste Europeu, por seu papel na descolonização da África e Ásia, por se contrapor à política agressiva do imperialismo americano e por entender que era justo criar um Estado Palestino, do mesmo modo que havia sido justo criar o Estado de Israel. Muito poucos tiveram uma visão profundamente internacionalista, tendo clareza de que embora os interesses do Estado Soviético e os do Movimento Comunista Internacional, nem sempre caminhassem juntos, mas disciplinadamente jamais criticaram a URSS, para não dar munição ao inimigo imperialista. Neste período, no contexto da lógica binária da Guerra Fria, Israel tornou-se o principal aliado estratégico dos EUA no Oriente Médio enquanto a URSS e todo o bloco do “socialismo real” rompeu relações com o Estado de Israel e apoiou decididamente a OLP e alguns países árabes. A situação política e sócio-cultural das comunidades judaicas do Leste Europeu se deteriorou culminando com um verdadeiro êxodo de velhos quadros comunistas na Polônia, todos cassados e aposentados compulsoriamente. Enquanto isto, os regimes militares latino americanos, do mesmo modo que o Estado de Israel, também se alinharam com os americanos. Embora houvesse manifestações neonazistas nos EUA, os judeus passaram a ver os norte americanos como seus grandes aliados e amigos, deslocando o voto para posições mais à direita. Entretanto, perante parte da juventude de esquerda sionista que ingressou nas universidades nos anos sessenta, o modelo de um Estado de Israel democrático e socialista sofrera forte abalo com a ocupação dos territórios de Gaza, Cisjordânia, Sinai e Golan. Muitos abandonaram a militância sionista e abraçaram uma militância socialista no Brasil. Entretanto não engrossaram as fileiras dos PC’s. Estes grupos ingressaram preferencialmente em grupos trotskistas ou nas dissidências armadas. Muitos pagaram com a própria vida por esta opção como Chael Schreier, Gelson Reicher, Iara Iavelberg, Ana Rosa Kucinski, no Brasil. Na Colônia de Férias Zumerland, recentemente foi descerrada uma placa em homenagens às dezenas de jovens assassinados nos anos 70 e 80, que passaram férias pelo menos uma vez na vida neste espaço. Ao entrevistar militantes destes grupamentos, alguns declararam tê-lo feito porque achavam os PC’s muito moderados; outros declararam que Israel ainda estava nos seus horizontes apesar do abalo, e não poderiam ingressar em partidos profundamente vinculados à URSS e às Democracias Populares que haviam cortado relações com o Estado de Israel, apoiando irrestritamente os países árabes e a OLP. Enquanto a Argentina se desindustrializa no último período autoritário, no início 394 O ICUF como uma rede de intelectuais da década de 70, sob o governo do general Garrastazu Médici, ocorreu uma inflexão no Brasil. O país teve uma acelerada acumulação capitalista no período, passando a ser um exportador de manufaturados. Dentro da perspectiva do “Brasil, Grande Potência”, no I Plano Nacional de Desenvolvimento elaborado em 1970, a questão energética necessária para o desenvolvimento dos grandes projetos mínero-metalúrgicos, petro e cloro-químicos foi considerada prioritária. Como corolário o Estado brasileiro decide implementar também o projeto de desenvolvimento da tecnologia nuclear, para satisfação daqueles que desde os anos 40 defendiam essa alternativa energética. Este programa criou contenciosos com os EUA que não viam com bons olhos tal projeto. Por ocasião da assinatura do acordo Brasil-Alemanha ocidental em 1975, as relações com os americanos tornaram-se bastante tensas e os aliados, vencedores da II Guerra Mundial, chegaram a desconfiar dos próprios propósitos alemães na ocasião. O afastamento do Brasil dos EUA levou à política do “pragmatismo responsável” caracterizada pelo reconhecimento imediato, junto com Cuba, da República Popular de Angola proclamada pelo MPLA e por uma abertura para o mundo árabe, que acabou culminando com a assinatura de uma moção na ONU, denunciando o “caráter racista do sionismo”. Pouco a pouco, o “establishment“ da comunidade judaica foi então se afastando do regime militar brasileiro. Por outro lado, a direita passa a governar o Estado de Israel, e apesar dos acordos de Camp David com o Egito (1981), houve uma escalada de atrocidades nos territórios ocupados que culminam com o bombardeio dos acampamentos de Sabra e Chatila em 1982. Várias lideranças que anteriormente fizeram parte do arco da esquerda, passaram a se dar conta que o apoio irrestrito a Israel foi um erro. Mas em Israel também surgem vozes influentes discordantes. O Movimento Paz Agora adquiriu força e grande visibilidade, acabando, anos depois, por levar à queda o governo de direita israelense de Shamir. Entretanto a política de Brezhnev com relação aos chamados «dissidentes», muitos deles judeus, e com relação à comunidade judaica soviética como um todo, dificultou a aproximação entre comunistas e os outros grupos que reivindicavam a paz no Oriente Médio. Levando em consideração que o comportamento político da comunidade judaica era balizado em grande medida pela guerra fria e seus desdobramentos no Oriente Médio, é importante lembrar que M. Gorbachev, enquanto secretário-geral, tenha declarado anos mais tarde, que a política soviética para o Oriente Médio foi excessivamente unilateral. Embora os protestos contra o bombardeio de Sabra e Chatila tenham chocado setores muito mais amplos e expressivos da comunidade judaica, os únicos espaços disponíveis para abrigá-los foram as entidades filiadas ao ICUF, bastante esvaziadas. Para que se tenha uma idéia do significado deste esvaziamento, tomamos como exemplo a Casa do Povo em São Paulo: nos anos de seu apogeu, possuía mais de 6000 sócios familiares, e em 1982 estes se resumiam a pouco mais de 150. Em se 395 Dina Lida Kinoshita levando em conta o crescimento demográfico, estes números são ainda mais impressionantes. Mas este processo de retomada de consciência não implica um reflorescimento das entidades vinculadas ao ICUF, nem uma simpatia renovada pelo PC’s ou pela esquerda. No plano mais geral, é notório que a «transição democrática» na América Latina ocorre num momento em que o declínio do «socialismo real» já é evidente para muitos. No que concerne a comunidade judaica, é o momento de desaparecimento da geração de imigrantes, de mudanças do perfil sócio-econômico, responsáveis pelo deslocamento das atividades sócio-culturais para regiões urbanas distintas das originais. O mais importante e o menos discutido, talvez se refira ao fato da cultura não isolacionista da esquerda judaica e o encorajamento de integração às lutas dos povos da região trazer em si o germe da destruição de uma cultura trazida da Europa oriental que por sua vez não foi substituída por vínculos mais significativos com setores progressistas israelenses. Essa ruptura se dá por duas razões: por um lado os israelenses menosprezam a cultura do judeu do Leste Europeu, chegando em alguns momentos à proibição da língua iídiche e de todas as suas manifestações culturais e por outro, no clima exacerbado da Guerra Fria, os judeus comunistas ignoram que o Estado de Israel é um fato concreto, com sua pluralidade cultural e política e simplesmente o condenam por completo. Para se ter uma idéia das mudanças que ocorrem no seio da esquerda judaica, é interessante citar José Sendacz, que só teve militância junto ao Clube Cultura e Progresso (entidade precursora da Casa do Povo), e posteriormente no Folks Hois e na Escola Scholem Aleichem apesar de ser membro do PCB e amigo pessoal de Pedro Pomar, dirigente nacional na época. Em sua casa ocorriam reuniões às quais o próprio Prestes comparecia. Ao examinar os jornais da época, descobre-se que José Sendacz era um grande poeta e admirador da língua e cultura iídiche progressista, um grande educador, um admirador da experiência de recriar uma comunidade judaica na Polônia, mas não há uma palavra sobre suas atividades partidárias. Ao ler seus inúmeros escritos, encontramos dois que atestam estas mudanças de forma paradigmática. O primeiro é um relatório de viagem a convite do governo da República Popular da Polônia no décimo aniversário deste poder instituído, em 1954. É um relatório cheio de esperanças quanto à construção da nova sociedade num país destroçado por duas décadas de governos fascistas e pela guerra onde se dá muita importância às possibilidades positivas de reconstrução de uma vida sócio-cultural judaica. O segundo, é sua última conferência proferida em 1977, que se inicia com a advertência contida num poema de I. L. Peretz, “Ai do vigia, que adormece em seu posto” em que afirma, “Nós adormecemos, quando mais devíamos estar despertos, quando devíamos estar vigilantes, preocupados; nós calamos, negamos a própria realidade [...] na URSS. [..] Para nós progressistas é duplamente doloroso, porque não somente nos calamos, como também estamos nos sentindo co-responsáveis e culpados. Por que ficamos calados quando outros denunciavam a chacina? Por que 396 O ICUF como uma rede de intelectuais não acreditamos? Nós não podíamos, não queríamos acreditar ser verdade, ser possível isso acontecer num país ao qual ligávamos todas nossas esperanças, todos nossos anseios, todos nossos sonhos.[...] com seus livros aprendíamos a amar os homens, ansiar por justiça, lutar pelo bem estar da humanidade. [...]Minha fé nas idéias básicas do socialismo, no humanismo, não foi afetada. Minha fé em que não há salvação nacional separadamente da justiça social, continua com a mesma força de sempre. Não vim declarar MEA CULPA como alguns exigiram de mim. Não me sinto um pecador arrependido, como outros gostariam de interpretar. É claro que nem tudo o que eu disse ou escrevi publicamente diria hoje novamente, porém tenho a consciência tranqüila quanto à minha atividade passada. Eu fui sincero quanto a tudo o que disse ou escrevi. Não fui eu quem pecou. Pecaram contra mim. Pecaram contra o povo judeu, ao qual garantiram igualdade, proteção contra o anti-semitismo, possibilidades plenas para desenvolver sua vida nacional e cultural. Pecaram contra o socialismo, o qual foi deturpado e profanado.”29... Ora, este discurso proferido em 1977, repercute na intervenção de Mikhail Gorbachev, publicada no Pravda em novembro de 1989, em que afirma: ...“Ao considerarmos as grandiosas mudanças progressistas verificadas em nosso país e no mundo nos últimos 72 anos, em resultado da Revolução de Outubro, não podemos deixar de explicar por que surgiram na nova sociedade violações à legalidade socialista, restrições aos direitos democráticos dos cidadãos e outros fenômenos negativos.”...30 Outra figura emblemática é a de Salomão Malina. Embora nunca tenha militado no setor judaico, sempre assumiu sua condição de judeu. Com uma longa folha de serviços, que culmina com sua eleição como presidente do PCB em 1986, num período de grandes mudanças no Brasil e no mundo, Malina foi um dos principais dirigentes responsáveis pela profunda renovação e mudança empreendida pelo partido, que desemboca no Partido Popular Socialista (PPS). Em sua apresentação das teses para o IX Congresso, Malina afirma: “A combinação dinâmica dos problemas existentes tanto no capitalismo quanto no socialismo tem gerado o que podemos chamar de “crise de civilização”. Por isso mesmo, a coexistência pacífica só pode ser exercida através de uma política de cooperação, consenso, união de esforços [... ] está colocada a necessidade de sua renovação do ponto de vista político, teórico e organizativo. Há que repensar[...] mantendo sua visão internacionalista e alargando a sua busca para aprender com todas as experiências de luta do movimento operário no âmbito internacional e com todas as lutas democráticas da sociedade moderna”31. 29 Arquivo pessoal da viúva de José Sendacz. 30 Gorbatchov, M., O Novo Socialismo, Ed. Novos Rumos, Brasília, 1990. 31 Malina, S., Voz da Unidade, Nº 492, pág 2, São Paulo, 10/05/90. 397 Dina Lida Kinoshita Anos de autoritarismo na América Latina e governos de direita em Israel, são fatores que fortalecem os setores democráticos das comunidades judaicas. O esgotamento do modelo do socialismo real e o fim da Guerra Fria caracterizada pelo enfrentamento dos blocos político-militares, pela corrida armamentista e o equilíbrio fundado na ameaça do terror nuclear são fatores determinantes na dinâmica estratégica no Oriente Médio e do papel exercido pelo Estado de Israel de aliado preferencial dos EUA. Os setores da esquerda mais ortodoxa que não atentaram para a crise de civilização que estava se prenunciando, e continuaram a sonhar com o 32 “Birobidjan” acabaram se marginalizando completamente e ficarão na história mas temo que sejam fontes de pensamentos retrógrados e conservadores no futuro. Por outro lado, os setores mais realistas e construtivos vem buscando um novo humanismo, engajando-se nas lutas ambientais, pela cidadania e pela paz e novos meios de superar o sistema capitalista injusto e excludente pela via da democracia e da liberdade. Essa posição implica um aprofundamento dessas questões – a democracia e a liberdade – em condições sociais e políticas novas. É uma posição que pode abarcar as variadas vias contemporâneas de expressão desse humanismo que se redefine, permitindo identificar e criar formas de luta adequadas às também novas formas de fascismo e autoritarismo que afloram hoje. 32 Região Autônoma Judaica na URSS. 398