Lógica Formal Elementar Desidério Murcho Universidade Federal de Ouro Preto 11/02/2015 1 Prefácio Nestas páginas são apresentados alguns aspectos elementares da lógica formal. O objectivo é familiarizar o estudante com aquele mínimo da lógica formal que lhe permitirá fazer duas coisas: compreender as discussões, subtilezas e alternativas lógicas contemporâneas, por um lado, e, por outro, aplicar a lógica à discussão de argumentos filosóficos. Os destinatários deste texto são alunos e professores do ensino secundário português, assim como no ensino médio brasileiro, mas também alunos universitários dos primeiros anos da graduação. Os conteúdos abrangidos neste texto são os seguintes: 1. O conceito de proposição e argumento; validade e cogência argumentativa. 2. Introdução à lógica formal: o conceito de forma lógica. Lógica proposicional clássica elementar: tabelas de verdade. Conceitos lógicos fundamentais: verdade e falsidade lógica, consistência e inconsistência, equivalência, negação. 3. Dedução natural proposicional clássica. 4. A linguagem da lógica quantificada clássica; descrições definidas. Dedução natural quantificada com identidade. 5. O método das árvores lógicas aplicado à lógica proposicional e quantificada clássica. 6. Lógica modal e mundos possíveis. Reiteração de operadores modais. Os sistemas K, T, B, S4 e S5. Lógica modal quantificada. Árvores lógicas modais. 7. Lógica silogística: o básico. Como se vê, trata-se de um texto bastante abrangente, em poucas páginas. Isto é possível porque se evitou a discussão de todas as subtilezas; os conteúdos são apresentados de maneira dogmática. É preciso saber, contudo, que não há praticamente qualquer aspecto da lógica clássica que não possa ser posto em causa ou que não tenha sido posto em causa, dando muitas vezes origens a teorias lógicas alternativas (como as lógicas intuicionistas, livres, paraconsistentes e outras). Apesar de grande parte dos capítulos posteriores pressuporem os conhecimentos adquiridos nos conhecimentos anteriores, é possível fazer alguns recortes no texto, para não o estudar na sua totalidade. Assim, pode-se saltar directamente do capítulo 1 para o 7 se tudo o que uma pessoa quer é uma compreensão superficial da lógica silogística. Podese leccionar ou estudar apenas os capítulos 1, 2 e 5, juntamente com o início do 4, se uma pessoa quiser excluir as derivações, incluindo apenas as árvores lógicas. Quem já domina os aspectos elementares da lógica clássica mas desconhece a lógica modal, pode estudar apenas os capítulos 5 e 6 (ou apenas o 6, se já conhece as árvores lógicas). Uma última nota: no caso da lógica silogística, não se inclui variadíssimos conteúdos que é costume leccionar, mas que é completamente irrelevante quer para compreender es- 11/02/2015 2 ta lógica quer para aplicá-la na avaliação de argumentos. Isto inclui o conceito de figuras do silogismo e também dos modos. Não é possível aprender lógica sem fazer exercícios constantes; a lógica não é apenas um saber-que, é também um saber-fazer. Por isso, encontra-se ao longo do texto vários exercícios. Espero que este texto seja útil para estudantes e professores. Todas as correcções, sugestões e comentários são bem-vindas. Porque é de prever que haverá mais de uma versão deste documento, encontramos em rodapé a data a que corresponde a versão que temos em mãos. Desidério Murcho Ouro Preto, 11 de Fevereiro de 2015 11/02/2015 3 1. Introdução 1. Argumento O objecto de estudo da lógica é a qualidade dos argumentos: queremos distinguir os bons dos maus, e queremos saber de uma maneira sistemática por que razão uns são bons e outros maus. Aos argumentos bons iremos chamar “cogentes”. Argumentar é dar razões a favor de uma ideia: é chegar a uma conclusão partindo de uma ou várias premissas. Eis um exemplo: Os animais não têm direitos porque não têm deveres. Neste caso, a conclusão é que os animais não têm direitos; a premissa é que não têm deveres. O papel principal da lógica é dizer-nos se do facto de os animais não terem deveres se conclui adequadamente que não têm direitos. Se sim, porquê? Se não, por que não? As premissas e conclusões dos argumentos são proposições. Porém, o que é uma proposição? 2. Proposição Considere-se as seguintes frases: Eça é o autor de Os Maias. O autor de Os Maias é Eça. Eça is the author of The Maias. Estamos perante três frases e não uma só; contudo, todas exprimem o mesmo. É a essa mesma coisa que todas exprimem que se chama “proposição”; uma proposição é o conteúdo, verdadeiro ou falso, que algumas frases exprimem. Nem todas as frases exprimem conteúdos verdadeiros ou falsos: as ordens, por exemplo, assim como as perguntas e as exclamações, não exprimem qualquer conteúdo verdadeiro ou falso. Nenhuma frase é uma proposição; mas algumas frases exprimem proposições porque exprimem conteúdos verdadeiros ou falsos. Algumas frases são particularmente enganadoras porque têm a forma gramatical de afirmações e, por isso, parece que exprimem proposições, mas não exprimem. É o caso de “as ideias verdes incolores dormem furiosamente”: esta frase tem a mesma estrutura gramatical de “as mulheres portuguesas inteligentes cantam alegremente”, e por isso parece exprimir uma proposição. Contudo, não exprime qualquer proposição. Quando uma frase parece exprimir uma proposição mas não exprime qualquer conteúdo verdadeiro ou falso, é absurda. 11/02/2015 4 O conceito de proposição clarifica a ambiguidade e a sinonímia. Uma frase como “Já não há velas” é ambígua, pois tanto exprime a proposição de que já não há velas de iluminação, como a proposição de que já não há velas de navio. Por outro lado, duas frases são sinónimas quando exprimem a mesma proposição, como é o caso de “Há carros vermelhos” e “Há carros encarnados”. 3. Explicitação de argumentos Nem todos os textos são sobretudo argumentativos; muitos textos são sobretudo informativos, poéticos ou confessionais. Por outro lado, mesmo num texto sobretudo argumentativo, nem tudo são argumentos: há também explicações, descrições e esclarecimentos, entre outras coisas. Isto significa que precisamos de saber encontrar argumentos nos textos (e também quando as pessoas falam). Uma maneira de ver se um texto ou discurso tem argumentos é procurar indicadores de premissa. Os indicadores de premissa são expressões que indicam que a proposição expressa de seguida é uma premissa. A proposição expressa anteriormente por vezes é a conclusão, mas nem sempre. Uma vez que as premissas só ocorrem nos argumentos, encontrar premissas ajuda a encontrar argumentos nos textos. No exemplo anterior, “Os animais não têm direitos porque não têm deveres”, a palavra “porque” indica que a proposição expressa de seguida é uma premissa, e é por isso que estamos perante um argumento. Eis outros indicadores de premissa: “pois…”, “dado que…”, “visto que…”, “devido a…”, “a razão é que…”, “admitindo que…”, “sabendo-se que…”, “supondo que…”, “já que…”. Depois de encontrar premissas num texto, sabemos que estamos perante argumentos. Resta-nos agora encontrar as conclusões que se visa sustentar com essas premissas. Por vezes, não usamos indicadores de conclusão, como acontece no exemplo anterior; outras vezes, usamos indicadores de conclusão, como “logo…”, “portanto…”, “consequentemente…”, “por isso…”, “por conseguinte…”, “implica que…”, “daí que…”, “segue-se que…”, “infere-se que…”, “conclui-se que…”, “como tal…”. Estes indicadores significam que a proposição seguinte é uma conclusão; as proposições anteriores são muitas vezes as premissas, mas nem sempre. Agora que conhecemos alguns dos indicadores de premissa e de conclusão, vemos que há várias maneiras de exprimir o argumento do exemplo anterior: Os animais não têm direitos uma vez que não têm deveres. Os animais não têm direitos dado que não têm deveres. Dado que os animais não têm deveres, não têm direitos. Os animais não têm deveres. Consequentemente, não têm direitos. Os animais não têm deveres. Logo, não têm direitos. 11/02/2015 5 Por uma questão de clareza, iremos juntar as premissas dos argumentos antes da conclusão; e iremos usar apenas a palavra “logo” como indicador de conclusão. Isto dá origem à forma canónica de exprimir argumentos em lógica: Os animais não têm deveres. Logo, não têm direitos. Uma vez explicitado o argumento, vemos que falta algo que faça a ligação entre a premissa e a conclusão. Se perguntarmos a quem argumentou desse modo por que razão do facto de os animais não terem deveres se conclui adequadamente que não têm direitos, a pessoa provavelmente dirá que isso é porque quem não tem deveres não tem direitos. O que isto significa, então, é que para o argumento ficar completo é preciso acrescentar uma premissa: Quem não tem deveres não tem direitos. Os animais não têm deveres. Logo, não têm direitos. Quando um argumento tem premissas ocultas, temos de explicitá-las. Em alguns casos, os argumentos ocultam a própria conclusão; por exemplo, afirmar “Se Aristóteles nunca visitou a África, nunca visitou o Egipto”, em alguns contextos, sugere o seguinte argumento: Se Aristóteles nunca visitou a África, nunca visitou o Egipto. Ora, ele nunca visitou de facto a África. Logo, nunca visitou o Egipto. Nem sempre é fácil ver qual é a premissa oculta que é razoável acrescentar a um argumento. Uma pessoa que defenda que a cocaína deve ser proibida porque faz mal à saúde poderá não aceitar a premissa de que tudo o que faz mal à saúde deve ser proibido; nesse caso, fica por explicar como se conclui adequadamente que a cocaína deve ser proibida do facto de fazer mal à saúde. Assim, explicitar argumentos envolve duas tarefas. Primeiro, temos de localizar, nos textos, as premissas e conclusões, dispondo-as então na forma canónica. Segundo, temos de acrescentar quaisquer premissas, ou até conclusões, que tenham ficado ocultas. Fazer este trabalho é o primeiro passo para podermos examinar argumentos, para ver se são cogentes. Por exemplo, no argumento que conclui que os animais não têm direitos, vê-se imediatamente, ao explicitá-lo, que se baseia na ideia falsa de que quem não tem deveres não tem direitos. Esta ideia é falsa porque os bebés — e também as pessoas em coma ou com doenças profundas — não têm quaisquer deveres, mas têm direitos. Explicitar o argumento permite ver que se baseia numa premissa obviamente falsa. 11/02/2015 6 4. A importância da lógica Nos textos, e no discurso oral, nem sempre encontramos argumentos formulados de uma maneira tão explícita quanto seria desejável. Porém, isso ocorre por vezes, como no seguinte excerto de Anselmo de Aosta (1033–1109): “Se aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existisse apenas no entendimento, este mesmo ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado seria algo mais grandioso do que o qual algo pode ser pensado. Mas isto é obviamente impossível. Logo, não há qualquer dúvida de que aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no entendimento como na realidade”. (Anselmo, Proslogion 2) A conclusão é obviamente a proposição expressa depois de “logo”: trata-se da proposição de que aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existe tanto no entendimento como na realidade. As premissas são as proposições expressas pelas duas frases anteriores a “logo”. Reconstruindo o argumento de um modo explícito e eliminando o que não desempenha qualquer papel argumentativo, obtemos o seguinte: Se aquilo mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado não existisse, este mesmo ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado seria algo mais grandioso do que o qual algo pode ser pensado. É falso que o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado seja algo mais grandioso do que o qual algo possa ser pensado. Logo, o ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado existe. O ser mais grandioso do que o qual nada pode ser pensado é, do ponto de vista de Anselmo, Deus. Este é o famoso argumento de Anselmo a favor da existência de Deus, a que séculos depois Immanuel Kant (1724–1804) chamou “argumento ontológico”. Será este argumento cogente? Sem saber lógica, não é possível responder adequadamente a esta pergunta. Eis agora um argumento, atribuído a Epicuro, cuja estrutura é bastante menos óbvia: “Quer Deus impedir o mal mas não pode? Então é impotente. Pode mas não quer? Então é malévolo. Quer e pode? De onde vem então o mal?” (Hume 1779: Parte X) Não encontramos aqui qualquer indicador de premissa, nem de conclusão. Além disso, em vez de uma conclusão óbvia, encontramos quatro perguntas. Contudo, o contexto em que surgem estas perguntas torna razoável pensar que estamos perante um argumento contra a existência de Deus (trata-se do conhecido problema do mal). Partindo desta hipótese, eis uma tentativa de explicitar o argumento: 11/02/2015 7 Se Deus existe e não pode impedir o mal, é impotente. Se Deus existe e não quer impedir o mal, é malévolo. Mas Deus não é impotente nem malévolo. Logo, se Deus existe, pode e quer impedir o mal. Se Deus existe, pode e quer impedir o mal. Se Deus pode e quer impedir o mal, o mal não existe. Ora, o mal existe. Logo, Deus não existe. Nesta interpretação, trata-se de dois argumentos interligados: a primeira premissa do segundo é a conclusão do primeiro. Esta não é a única interpretação razoável do argumento que Epicuro tem em mente; mas é uma primeira aproximação razoável. Quando os filósofos não apresentam explicitamente os seus argumentos, parte do nosso trabalho é procurar a melhor maneira de os explicitar. Estes dois exemplos ilustram a importância de saber lógica para fazer filosofia. Primeiro, porque sem saber lógica dificilmente se consegue explicitar adequadamente os argumentos presentes nos textos. Apesar de a explicitação do pensamento de Anselmo ser relativamente fácil, no caso de Epicuro está longe de o ser. Segundo, porque só sabendo lógica é possível discutir apropriadamente os argumentos extraídos dos textos: serão cogentes? Porquê? Em terceiro e último lugar, note-se que os dois argumentos anteriores têm conclusões opostas: Anselmo conclui que Deus existe, Epicuro que não existe. Presumindo que duas conclusões contraditórias não podem ser ambas verdadeiras, contraímos a dívida intelectual de explicar qual dos dois argumentos não é cogente. Este é um aspecto em que o compromisso com a honestidade intelectual, e até emocional, faz uma grande diferença. Sem esse compromisso, o conflito de conclusões é encarado como uma licença para escolher a que nos agrada só porque nos agrada. Porém, quem aceita o compromisso de uma vida intelectualmente honesta, considera que a sua resposta ao conflito de conclusões tem de se apoiar em argumentos cogentes. Exercícios 1. Explique o que é um argumento e dê exemplos esclarecedores. 2. Explique o que é uma proposição e dê exemplos esclarecedores. 3. O que é uma frase absurda? 4. Exprima os argumentos seguintes na forma canónica: a) Dado que a morte é o fim de tudo, a vida não tem sentido. b) É porque Deus não existe que o livre-arbítrio é possível. c) Os cépticos não podem ter razão porque, se tiverem razão, ninguém tem razão. d) A filosofia é uma disciplina especulativa. Por conseguinte, é preciso saber especular para saber fazer filosofia. e) Não há argumentos sem premissas, e por isso só os textos com premissas têm argumentos. 11/02/2015 8 5. Validade Para que um argumento seja cogente tem de ter três características: ser válido, ter premissas verdadeiras e ter premissas mais plausíveis do que a conclusão. Vejamos o que isto significa. A primeira coisa a dizer sobre o conceito lógico de validade é que não devemos confundi-lo com outros conceitos comuns associados à mesma palavra. Comummente, dizer que uma ideia é válida, por exemplo, é dizer que tem valor, é de aplaudir, é interessante ou tem aplicação. Outras vezes, dizemos que uma teoria científica é válida, querendo dizer que é verdadeira, mas de algum modo sentimos que é menos ingénuo ou mais chique dizer que é válida. Finalmente, usa-se esse termo para falar das teorias científicas porque sabemos que estas têm supostamente a característica de ser empiricamente validadas, o que faz pensar erradamente que em vez de serem verdadeiras são válidas. Em lógica, o conceito de validade não tem qualquer relação relevante com os usos do termo ilustrados no parágrafo anterior. Para compreender a validade, considere-se o seguinte argumento: Alguns africanos são romancistas. Logo, alguns romancistas são africanos. Como é evidente, é impossível que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. E é isso que acontece quando um argumento é dedutivamente válido:1 é impossível que todas as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Repare-se que a premissa deste argumento pode, certamente, ser falsa: basta que nenhum africano seja romancista. E a conclusão também pode ser falsa: basta que nenhum romancista seja africano. O que não pode acontecer é que o argumento tenha as duas coisas conjuntamente: premissa verdadeira e conclusão falsa. Esta é a conexão que existe entre as premissas e a conclusão de qualquer argumento dedutivamente válido. Isto significa que não basta que um argumento tenha premissas e conclusão verdadeiras para que seja válido; por exemplo, o seguinte argumento é inválido, apesar de só ter premissas verdadeiras e conclusão verdadeira: Quem mora em Paris, mora em França. Ora, Eça morou em França. Logo, morou em Paris. 1 A validade não-dedutiva não será estudada neste texto. Uma das diferenças mais importantes entre a validade dedutiva e a não-dedutiva é que, no segundo caso, quando um argumento é válido, isso significa apenas que é improvável, mas não impossível, que as suas premissas sejam verdadeiras e a sua conclusão falsa. 11/02/2015 9 Tanto as premissas como a conclusão deste argumento são verdadeiras; contudo, o argumento não é válido. Porquê? Porque apesar de a conclusão ser realmente verdadeira, poderia ter sido falsa, mesmo na circunstância em que todas as premissas são verdadeiras. Por exemplo, imaginemos que Paris é uma cidade francesa, como de facto é, mas que Eça nunca morou em Paris, tendo antes morado em Aix-en-Provence. Nesta circunstância, a primeira premissa é verdadeira, assim como a segunda; mas a conclusão é falsa. É por isso que o argumento não é dedutivamente válido: porque apesar de só ter premissas verdadeiras e de ter conclusão também verdadeira, o argumento poderia ter todas as premissas verdadeiras e conclusão falsa. Quando um argumento é dedutivamente válido, não há circunstância alguma, real ou imaginária, na qual as suas premissas sejam todas verdadeiras e a sua conclusão seja falsa. Erramos ao determinar a validade de argumentos porque as nossas capacidades imaginativas são muitíssimo limitadas: parece-nos impossível que todas as premissas de um argumento sejam verdadeiras e a conclusão falsa, mas na verdade há uma circunstância, ou mais de uma, na qual isso acontece. A lógica ajuda-nos a ultrapassar as nossas limitações imaginativas; ajuda-nos a imaginar circunstâncias que de outro modo não vemos. 6. Argumento sólido Haverá argumentos dedutivos válidos com conclusão falsa? Sim. Pensar que não há tal coisa trai uma incompreensão do conceito de validade. Quando um argumento é dedutivamente válido, duas coisas não podem ocorrer em conjunção: todas as premissas serem verdadeiras e conclusão ser falsa. Contudo, há argumentos dedutivamente válidos com premissas falsas; e também os há com conclusões falsas. Compare-se com a afirmação de que Eça não pode estar em Paris e em Lisboa. Uma leitura adequada desta afirmação é compatível com a ideia de que Eça pode estar em Paris, podendo também estar em Lisboa; só não pode estar simultaneamente em Paris e Lisboa. O mesmo acontece no caso da validade dedutiva: a validade dedutiva só exclui argumentos dedutivamente válidos que tenham todas as premissas verdadeiras juntamente com conclusão falsa, mas não exclui argumentos dedutivamente válidos com premissas falsas, nem exclui argumentos dedutivamente válidos com conclusões falsas. Eis um argumento dedutivamente válido com premissa e conclusão falsa: Alguns filósofos são marcianos. Logo, alguns marcianos são filósofos. O facto de haver argumentos dedutivamente válidos com conclusão falsa mostra que não basta que os argumentos sejam válidos para que sejam cogentes; é preciso, além disso, que todas as suas premissas sejam verdadeiras. Só quando todas as premissas de um argumento dedutivamente válido são verdadeiras fica excluída a possibilidade de a conclusão ser falsa. Chama-se “sólido” aos argumentos válidos que só têm premissas verdadeiras. 11/02/2015 10 Uma vez que há argumentos válidos exclusivamente constituídos por proposições falsas, e argumentos inválidos exclusivamente constituídos por proposições verdadeiras, a validade é muito diferente da verdade. Efectivamente, a validade diz respeito à relação entre as premissas e a conclusão de um argumento; em contraste, a verdade diz respeito às próprias premissas e conclusões, e não à relação que têm entre si. Assim, os argumentos são válidos ou inválidos, mas não são verdadeiros nem falsos; e as proposições são verdadeiras ou falsas, mas não são válidas nem inválidas. 7. Argumentos em cadeia Para que num argumento dedutivamente válido se exclua a falsidade da conclusão, todas as premissas têm de ser verdadeiras. Mas como sabemos se as premissas são verdadeiras? Em muitos casos, a verdade das premissas não é óbvia; nesse caso, temos de usar outros argumentos para mostrar que o são. Vejamos um exemplo: “Se Mike Love está na praia, não está no cinema; dado que está realmente na praia, conclui-se que não está no cinema.” Na sua forma canónica, o argumento é o seguinte: Se Mike Love está na praia, não está no cinema. Ora, ele está na praia. Logo, não está no cinema. Como sabemos que a primeira premissa é verdadeira? Talvez porque argumentamos assim: “O cinema não fica na praia; logo, se Mike Love está na praia, não está no cinema”. Este argumento secundário sustenta a primeira premissa do argumento principal; o que neste segundo é uma premissa é no primeiro a conclusão. Já a segunda premissa talvez se sustente no seguinte argumento: “Mike Love foi visto na praia; logo, está na praia”. Um texto argumentativo tem muitas vezes esta estrutura, consistindo num ou mais argumentos principais, cujas premissas são sustentadas por argumentos secundários. Vejamos um exemplo: SÓCRATES — Com quem conversas agora? Comigo, sem dúvida? ALCIBÍADES — Sim. SÓC. — E eu contigo? ALC. — Sim. SÓC. — Quem fala, portanto, é Sócrates? ALC. — Certamente. SÓC. — E quem ouve é Alcibíades? ALC. — Sim. SÓC. — E Sócrates usa palavras ao falar? ALC. — Claro. SÓC. — E tu dirás que falar e usar palavras é a mesma coisa? ALC. — Claro. 11/02/2015 11 SÓC. — Mas quem usa e o que ele usa são coisas diferentes, não? ALC. — Que queres dizer? SÓC. — Por exemplo, não é verdade que um sapateiro usa diversas ferramentas? ALC. — Sim. SÓC. — E quem faz os cortes e usa as ferramentas é muito diferente daquilo que ele usa ao fazer os cortes, não? ALC. — Claro. SÓC. — E, do mesmo modo, o que o harpista usa ao tocar harpa será diferente do próprio harpista? ALC. — Sim. SÓC. — Pois bem! Era isto que eu perguntava há pouco: se quem usa e o que ele usa são sempre, na tua opinião, duas coisas diferentes. ALC. — São coisas diferentes. SÓC. — Que dizer então do sapateiro? Ele faz cortes só com as ferramentas, ou também com as mãos? ALC. — Também com as mãos. SÓC. — Portanto, ele usa também as mãos? ALC. — Sim. SÓC. — E ele usa também os olhos, ao fazer sapatos? ALC. — Sim. SÓC. — E já admitimos que quem usa e o que ele usa são coisas diferentes? ALC. — Sim. SÓC. — Então o sapateiro e o harpista são diferentes das mãos e olhos que eles usam no seu trabalho? ALC. — Evidentemente. SÓC. — E o homem usa também todo o seu corpo? ALC. — Sem dúvida. SÓC. — E nós dissemos que quem usa e o que ele usa são coisas diferentes? ALC. — Sim. SÓC. — Então o homem é diferente do seu próprio corpo? ALC. — Parece que sim. Platão, Alcibíades I, 129b-129e Platão apresenta neste excerto argumentos a favor de uma ideia central: a ideia de que o homem (passe a linguagem sexista) é diferente do seu próprio corpo — talvez porque é, fundamentalmente, uma alma. Esta ideia é a conclusão principal do texto e é a primeira coisa que temos de saber reconhecer. Uma vez identificada a conclusão central desta passagem, torna-se mais fácil encontrar os argumentos que a sustentam. Sócrates dá-nos vários exemplos em que quem usa e o que é usado são diferentes, sendo esta a chave para compreender o argumento. Assim, o argumento principal do texto é apenas este: 11/02/2015 12 Quem usa uma coisa é diferente do que é usado. O homem usa o seu próprio corpo. Logo, o homem é diferente do seu corpo. Como acontece com qualquer argumento, as duas primeiras perguntas relevantes dizem respeito à sua validade e à verdade ou plausibilidade das suas premissas. No que respeita à validade, a lógica que iremos aprender será suficiente para a demonstrar e esse é o seu papel principal: determinar se um argumento é dedutivamente válido. Se um argumento não for válido, é irrelevante discutir se as premissas são verdadeiras porque num argumento inválido as premissas, ainda que sejam verdadeiras, são compatíveis com a falsidade da conclusão. Uma das vantagens da lógica é evitar discussões escusadas: se alguém defender uma ideia usando um argumento inválido, não precisamos de discutir as premissas precisamente porque a falsidade da conclusão é compatível com a verdade das premissas. Quanto à verdade ou plausibilidade das premissas, é o próprio Sócrates que faz a sua defesa, usando dois argumentos complementares. O primeiro é este: Os sapateiros são diferentes das ferramentas que usam. Os harpistas também. Logo, quem usa uma coisa é diferente do que é usado. Este argumento indutivo tem como conclusão a primeira premissa do argumento principal. O segundo argumento secundário visa sustentar a segunda premissa do argumento principal e é este: O sapateiro usa as mãos e os olhos para fazer sapatos. Logo, o homem usa o seu próprio corpo. Este é um exemplo do género de argumentação em cadeia que encontramos nos textos filosóficos. A lógica ajuda-nos a encontrá-los e a determinar a sua cogência. 8. Circularidade Não basta que um argumento seja sólido para que seja cogente; o seguinte argumento, por exemplo, é sólido, mas não é cogente: Platão era grego. Logo, era grego. É impossível que a premissa deste argumento seja verdadeira e a sua conclusão falsa, conjuntamente; logo, o argumento é dedutivamente válido. Além disso, a premissa é verdadeira; logo, é um argumento sólido. Porém, é evidente que o argumento não é cogente. Porquê? Porque é circular: a conclusão é igual à premissa. Na verdade, é um argumento tão 11/02/2015 13 palerma que quase ninguém se atreveria a usá-lo. Contudo, os argumentos circulares são muito comuns, mas nem sempre a circularidade é assim tão óbvia; vejamos um exemplo: Os direitos estão associados a deveres. Logo, não há direitos sem deveres. A conclusão é uma mera variação gramatical da premissa; na verdade, trata-se da mesma proposição. Vejamos outro exemplo: As sociedades igualitárias são injustas. Logo, não há sociedades igualitárias justas. Neste caso, ainda que seja defensável que a conclusão não é uma mera variação gramatical da premissa, esta não é de modo algum mais plausível do que a conclusão. E isso é o que acontece sempre que temos argumentos circulares: há sempre uma ou mais premissas que não são mais plausíveis do que a conclusão. Esta é, pois, a terceira condição para que um argumento seja cogente: além de ser sólido, todas as premissas têm de ser mais plausíveis do que a conclusão. Vejamos um exemplo: Se só tivesse direitos quem tem deveres, os bebés não teriam direitos. Mas os bebés têm direitos. Logo, é falso que só tem direitos quem tem deveres. As premissas deste argumento são mais plausíveis do que a conclusão. Mesmo quem nega a conclusão aceita as premissas; e isto é o que tem de acontecer para que um argumento sólido seja cogente. Assim, uma das exigências da argumentação cogente é partir das premissas que o nosso interlocutor considera plausíveis, e mostrar que delas se conclui validamente a conclusão que ele rejeita mas nós defendemos. E isto não é fácil de fazer. Um argumento é falacioso quando parece cogente mas não é. Ou seja, quando é inválido mas parece válido; ou quando tem pelo menos uma premissa falsa que parece verdadeira; ou quando parece que todas as premissas são mais plausíveis do que a conclusão, mas não são. Exercícios 1. Haverá argumentos dedutivamente válidos com conclusão falsa? Porquê? 2. Haverá argumentos dedutivamente inválidos com conclusão verdadeira? Porquê? 3. Haverá argumentos sólidos com conclusão falsa? Porquê? 4. Haverá argumentos verdadeiros? Porquê? 5. Haverá proposições válidas? Porquê? 11/02/2015 14 6. Identifique e explique as três condições necessárias para que um argumento seja cogente. 7. O que é a circularidade argumentativa? 11/02/2015 15 2. Lógica formal 1. Forma lógica Considere-se o seguinte argumento: Se Deus existisse, não haveria injustiças. Mas há injustiças. Logo, Deus não existe. É evidente que este argumento tem algo em comum com o seguinte: Se Kant fosse italiano, não seria alemão. Mas ele era alemão. Logo, não era italiano. O que ambos têm em comum, contudo, não é certamente o tema: um deles é sobre Deus e o outro sobre Kant. O que há de comum nos dois argumentos é uma estrutura, que se torna mais nítida deste modo: Se p, então não-q. q. Logo, não-p. É a esta estrutura que se chama “forma lógica” e o que ela tem de especial é isto: qualquer argumento que tenha esta forma lógica é dedutivamente válido. O que fazemos em lógica formal é estudar os argumentos cuja validade ou invalidade se estabelece recorrendo exclusivamente à forma lógica. 2. Cinco operadores A lógica proposicional clássica tem por objecto de estudo os argumentos cuja validade ou invalidade depende exclusivamente de cinco operadores proposicionais: 11/02/2015 16 Designação Exemplo Forma lógica Negação O mal não é ilusório. Não-p ¬p Conjunção A epistemologia e a metafísica são disciplinas filosóficas. peq p⋀q Disjunção A arte é expressão ou clarificação de emoções. p ou q p⋁q Condicional Se a morte é o fim, então a vida é absurda. Se p, então q p→q Bicondicional Os animais têm direitos se e só se sentem dor. p se e só se q p⇄q Aos símbolos lógicos usados para cada um dos cinco operadores chamamos “constantes lógicas”. Às letras “p”, “q”, “r”, etc., chamamos “variáveis proposicionais”. Elas simbolizam qualquer proposição que não contenha qualquer um destes operadores. Assim, “p” tanto simboliza a proposição expressa pela frase “Sócrates era grego”, como a expressa pela frase “Paris é a capital da França”. Mas não simboliza a proposição expressa pela frase “Adriano não foi um imperador romano particularmente sábio”, que é simbolizada por “¬p”. Chamamos “conjunta” a cada uma das proposições de uma conjunção, e disjuntas a cada uma das proposições de uma disjunção. Numa condicional “p → q”, “p” é a antecedente e “q” a consequente. À bicondicional chama-se também “equivalência”. Chamamos “valor de verdade” à verdade e à falsidade de uma dada proposição. Assim, o valor de verdade da proposição expressa pela frase “A Terra está imóvel” é falso, mas o valor de verdade de “O Sol é maior do que a Terra” é verdadeiro. A função destes operadores é transformar, ou manter inalterado, o valor de verdade das proposições a que se aplicam. A negação, por exemplo, transforma qualquer proposição verdadeira numa proposição falsa, e qualquer proposição falsa numa proposição verdadeira. Ou seja, se “p” era verdadeira, “¬p” é falsa; e se “p” era falsa, “¬p” é verdadeira. É isto mesmo que representamos na seguinte tabela de verdade, usando “V” e “F” para representar os valores de verdade: p ¬p V F F V Neste caso, porque a negação é unária (aplica-se a uma só proposição), temos apenas duas circunstâncias (“p” é verdadeira, ou “p” é falsa). No caso dos outros quatro operadores temos quatro circunstâncias porque são binários (aplicam-se a pares de proposições): 11/02/2015 17 pq p⋀q p⋁q p→q p⇄q VV V V V V VF F V F F FV F V V F FF F F V V Estas tabelas de verdade especificam as condições de verdade dos operadores, ou seja, os valores de verdade que cada forma proposicional tem em cada circunstância logicamente possível: • “p ⋀ q” só é verdadeira caso “p” e “q” sejam V. • “p ⋁ q” só é falsa caso “p” e “q” sejam F. • “p → q” só é falsa caso “p” seja V e “q” F. • “p ⇄ q” só é verdadeira quando “p” e “q” têm o mesmo valor de verdade. Isto significa que basta saber que “p” é verdadeira para concluir validamente que “p ⋁ q” é verdadeira, mesmo que não saibamos qual é o valor de verdade de “q”. E basta saber que “p” é falsa para concluir validamente que “p ⋀ q” é falsa, mesmo que não saibamos qual é o valor de verdade de “q”. Basta também saber que “p” é falsa, ou que “q” é verdadeira, para saber que “p → q” é verdadeira. Contudo, para saber o valor de verdade de “p ⇄ q” temos de conhecer o valor de verdade de “p” e de “q”. Uma proposição elementar não contém qualquer um destes cinco operadores; uma proposição composta, todavia, contém um ou mais operadores. Quando uma proposição composta tem mais de um operador, só um deles pode ser o principal. Por exemplo, na forma proposicional “p ⋀ (q ⋁ r)”, a conjunção tem âmbito longo sobre a disjunção, ou seja: o operador principal é a conjunção. Em contraste, na forma proposicional “(p ⋀ q) ⋁ r”, é a disjunção que tem âmbito longo sobre a conjunção, ou seja: é a disjunção que é o operador principal. Para indicar o âmbito usamos parêntesis, como na aritmética: 5 + (2 – 1) é uma soma, mas (5 + 2) – 1 é uma subtracção. Quando temos de usar mais de um par de parêntesis encaixados, usamos parêntesis diferentes porque fica visualmente mais fácil ver o âmbito dos diferentes parêntesis: “[(p → q) ⋀ p] → q”. Esta forma proposicional é uma condicional cuja antecedente é uma conjunção, que tem uma condicional como uma das suas conjuntas. Quando preenchemos uma tabela de verdade, temos de começar pelos operadores de menor âmbito (a cinzento): 11/02/2015 18 pq (p → q) ⋀ (q ⋁ p) VV V V V VF F F V FV V V V FF V F F Neste caso, preenchemos primeiro os valores da condicional e da disjunção, preenchendo depois os valores da conjunção. Assim, debaixo de “p → q” preenchemos os valores de verdade que resultam das condições de verdade da condicional: esta só é falsa caso a antecedente seja verdadeira e a consequente falsa. Debaixo de “q ⋁ p” fazemos o mesmo, mas relativamente à disjunção. Resta-nos agora preencher os valores de verdade do operador principal, a conjunção. Estes dependem das condições de verdade da conjunção, aplicadas aos resultados obtidos anteriormente. Assim, na primeira fila temos “V” porque a conjunção é verdadeira quando ambas as proposições componentes são verdadeiras, sendo na segunda fila “F” precisamente porque uma das proposições componentes é falsa. E assim por diante. As condições de verdade da forma proposicional “(p → q) ⋀ (q ⋁ p)” resultam assim das condições de verdade das formas proposicionais “p → q” e “q ⋁ p” e das condições de verdade da conjunção. Sempre que temos mais de um operador, temos de saber qual é o de maior âmbito. Em alguns casos, isso é óbvio: “se existe mal no mundo, Deus não existe”, “p → ¬q”, é obviamente diferente de “não é verdadeiro que se existe mal no mundo, Deus não existe”, “¬(p → q)”. Noutros, contudo, a língua portuguesa é ambígua: “a arte não é expressão de emoções ou sentimentos” quererá dizer que não é verdadeiro que a arte seja expressão de emoções ou expressão de sentimentos, “¬(p ⋁ q)”, ou quererá dizer que a arte não é expressão de emoções ou não é expressão de sentimentos, “¬p ⋁ ¬q”? Estas e outras ambiguidades nunca existem na lógica; neste caso, toda a representação de formas proposicionais tem de ter no máximo um operador proposicional principal, claramente identificado. Por exemplo, “p → q ⋀ r” é uma fórmula mal formada precisamente porque não especifica, usando parêntesis, qual dos dois é o operador principal. Exercícios 1. Explique o que é a forma lógica, dando exemplo esclarecedores. 2. Quais são as condições de verdade da negação, conjunção, disjunção, condicional e bicondicional? 3. Qual é o valor de verdade das seguintes conjunções? Justifique as suas respostas. a) Leibniz e Descartes eram franceses. b) Deus existe e nenhum número é divisível por dois. c) Há trezentos anos havia menos pessoas e mais doenças mortais. 4. Qual é o valor de verdade das seguintes disjunções? Justifique a sua resposta. a) Marx escreveu O Capital ou o Manifesto do Partido Comunista. b) Séneca era alemão ou egípcio. 11/02/2015 19 c) Os cépticos mais radicais estão enganados ou o conhecimento não é possível. 5. Imagine que é verdadeiro que Deus existe, mas falso que a vida tenha sentido. Sob essa hipótese, qual é o valor de verdade das seguintes condicionais? a) Se Deus não existe, a vida não tem sentido. b) Se a vida tem sentido, Deus existe. d) Se Deus existe, a vida tem sentido. 6. Qual é valor de verdade das seguintes condicionais? Justifique as suas respostas. a) Se a água é H2O, o Egipto é um país africano. b) Se Marx não escreveu O Capital, a igualdade social é irrelevante. c) Se Platão nunca viveu em Atenas, a água não é H2O. 7. Imagine que é verdadeiro que Deus existe, mas falso que a vida tenha sentido. Sob essa hipótese, qual é o valor de verdade das seguintes bicondicionais? a) Deus não existe se e só se a vida não tem sentido. b) A vida tem sentido se e só se Deus existe. c) Deus existe se e só se a vida não tem sentido. 8. Qual é valor de verdade das seguintes bicondicionais? Justifique as suas respostas. a) A água é H2O se e só se o Egipto é um país africano. b) Marx não escreveu O Capital se e só se Platão não escreveu a República. c) Platão nunca viveu em Atenas se e só se a água não é H2O. 9. Um operador proposicional binário é comutativo quando a ordem das proposições componentes não altera o valor de verdade da proposição composta. Recorrendo a tabelas de verdade, determine quais dos operadores binários são comutativos e quais não o são. Justifique a sua resposta. 10. A conjunção é associativa porque “(p ⋀ q) ⋀ r” tem o mesmo valor de verdade do que “p ⋀ (q ⋀ r)”. Recorrendo a tabelas de verdade, determine quais são os operadores propo- sicionais binários associativos. 11. Indique qual é o operador principal das formas proposicionais seguintes: a) ¬(p ⋀ q) b) ¬p ⋀ q c) ¬p ⇄ ¬q d) ¬(p ⇄ ¬q) e) p ⇄ (¬q ⋀ p) f) p ∧ ¬(q ⋀ p) g) ¬[p ∧ ¬(q ⋀ p)] 12. Formalize as proposições expressas a seguir, discutindo as ambiguidades de âmbito que encontrar: a) Sartre não era parisiense se e só se Paris era uma cidade alemã. b) Não é verdade que Sartre não era parisiense se e só se Paris era uma cidade alemã. c) Não há felicidade nem justiça. d) Não é verdade que há ou felicidade ou justiça. e) Não há felicidade ou justiça. 11/02/2015 20 3. Tabelas de validade Uma tabela de validade é uma sequência de tabelas de verdade que permite verificar a validade ou invalidade das formas argumentativas. Por exemplo, considere-se o seguinte argumento: Se tudo estiver determinado, o livre-arbítrio é uma ilusão. Ora, tudo está determinado. Logo, o livre-arbítrio é uma ilusão. Para exibir a sua forma lógica, começamos por especificar o que representam as nossas variáveis proposicionais: p: Tudo está determinado. q: O livre-arbítrio é uma ilusão. A esta especificação iremos chamar “interpretação”. Numa interpretação, atribuímos variáveis proposicionais a cada uma das proposições elementares que ocorrem no argumento original. Note-se que às variáveis proposicionais temos de atribuir proposições; é um erro atribuir-lhes partes de frases, como “se tudo estiver determinado”, ou até frases completas que não exprimam proposições, como “haverá divindades?”. Especificada da interpretação, representamos então a forma lógica do argumento: p→q p ∴q Como se vê, o símbolo “∴” é o indicador de conclusão. Para ver se esta forma argumentativa é válida ou não, fazemos uma tabela de verdade para cada uma das premissas e outra para a conclusão, em sequência: pq p→q p q VV V V V VF F V F FV V F V FF V F F Tudo o que precisamos agora de fazer é ver se há alguma circunstância em que as duas premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Ora, só na primeira circunstância as duas premissas são verdadeiras. Uma vez que nessa circunstância também a conclusão é verdadeira, a forma argumentativa é válida. Isto contrasta com o que vemos quando os argumentos são inválidos, como o seguinte: 11/02/2015 21 Se tudo estiver determinado, o livre-arbítrio é uma ilusão. Ora, o livre-arbítrio é uma ilusão. Logo, tudo está determinado. Usando a mesma interpretação, a sua forma lógica é a seguinte: p→q q ∴p Fazendo agora uma tabela de validade, obtemos o seguinte: pq p→q q p VV V V V VF F F V FV V V F FF V F F Agora vemos que a forma argumentativa é inválida porque há uma circunstância — a terceira — na qual as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. É irrelevante que haja também uma circunstância — a primeira — na qual tanto as premissas como a conclusão sejam verdadeiras; é irrelevante porque para que um argumento seja válido não pode haver qualquer circunstância em que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. É um erro dizer que a forma argumentativa acima é válida na primeira circunstância e inválida na terceira, pois a validade não ocorre circunstância a circunstância; a validade é o que ocorre quando não há qualquer circunstância na qual as premissas sejam verdadeiras e conclusão falsa. As tabelas de validade com três variáveis proposicionais têm oito filas em vez de quatro; e se tiverem quatro variáveis, terão dezasseis filas: a cada nova variável acrescentada, duplica o número de filas. Como se vê, isto torna as tabelas de validade desajeitadas como método para avaliar formas argumentativas com muitas variáveis. No capítulos seguintes, veremos dois métodos diferentes que não sofrem desta dificuldade. Quando fazemos uma tabela apenas com quatro filas, é fácil não nos enganarmos, pois é só uma questão de colocar VV, VF, FV e FF. Porém, como garantir que não nos enganamos ao fazer tabelas com oito ou dezasseis filas? Eis uma maneira. Olhemos com atenção para a combinatória que já conhecemos: VV VF FV FF 11/02/2015 22 Vemos aqui um padrão simples: na primeira coluna, lendo na direcção descendente, encontramos dois V e depois dois F, e na segunda coluna limitamo-nos a alternar o V com o F. Para aumentar esta combinatória para o dobro, limitamo-nos a acrescentar uma coluna à esquerda com quatro V seguidos de quatro F; na segunda coluna mantemos o padrão de valores de verdade que alternam dois a dois, e na terceira coluna valores de verdade que alternam um a um: VVV VVF VFV VFF FVV FVF FFV FFF Se tivéssemos de acrescentar mais uma coluna, seria só repetir o processo: oito V seguidos de oito F, na segunda coluna os valores iriam alternar quatro a quatro, na terceira dois a dois, e na última um a um. Vejamos então um exemplo de uma forma argumentativa válida com três variáveis proposicionais: p⋁q p→r q→r ∴r A sua tabela de validade é a seguinte: p q r p⋁q p→r q→r r VVV V V V V VVF V F F F VFV V V V V VFF V F V F FVV V V V V FVF V V F F FFV F V V V FFF F V V F 11/02/2015 23 Como se vê, só há três circunstâncias nas quais todas as premissas são verdadeiras: a primeira, a terceira e a quinta. Uma vez que em todas elas também a conclusão é verdadeira, a forma argumentativa é válida. Por fim, note-se que as tabelas de validade tornam óbvio, de uma maneira muito directa, que a ordem das premissas de um argumento é irrelevante no que respeita à sua validade. 4. Variáveis de fórmula Considere-se o seguinte argumento: Se o amor e a arte integram a vida boa, a frivolidade e a superficialidade são os nossos inimigos. Se são estes os nossos inimigos, devemos resistir-lhes corajosamente. Uma vez que o amor e a arte realmente integram a vida boa, conclui-se que devemos resistir corajosamente à frivolidade e à superficialidade. Expresso na sua forma canónica, o argumento é o seguinte: Se o amor e a arte integram a vida boa, a frivolidade e a superficialidade são os nossos inimigos. Se a frivolidade e a superficialidade são os nossos inimigos, devemos resistir-lhes corajosamente. O amor e a arte integram a vida boa. Logo, devemos resistir corajosamente à frivolidade e à superficialidade. Especificando a interpretação, obtemos o seguinte: p: O amor integra a vida boa. q: A arte integra a vida boa. r: A frivolidade é nossa inimiga. s: A superficialidade é nossa inimiga. t: Devemos resistir corajosamente à frivolidade. u: Devemos resistir corajosamente à superficialidade. A forma lógica do argumento é então a seguinte: (p ⋀ q) → (r ⋀ s) (r ⋀ s) → (t ⋀ u) p⋀q ∴t⋀u Determinar a validade ou invalidade desta forma argumentativa usando uma tabela de validade, seria entediante: a tabela teria 128 filas. Contudo, se olharmos com mais atenção, 11/02/2015 24 vemos emergir um padrão: “p ⋀ q” surge repetido na antecedente da primeira premissa e na terceira premissa; “r ⋀ s” é a consequente da primeira premissa, mas também a antecedente da segunda; e a conclusão é a repetição da consequente da segunda premissa. Captamos este padrão usando variáveis de fórmula: A→B B→C A ∴C As letras “A”, “B”, “C”, etc., são variáveis de fórmula. Uma variável de fórmula está no lugar de qualquer proposição, seja ela elementar ou não, contrastando com uma variável proposicional, que está exclusivamente no lugar de proposições elementares. Neste caso, “A” está em lugar de “p ⋀ q”, “B” em lugar de “r ⋀ s”, e “C” em lugar de “t ⋀ u”. Fazendo uma tabela de validade com estas variáveis de fórmula, obtemos o seguinte: ABC A→B B→C A C VVV V V V V VVF V F V F VFV F V V V VFF F V V F FVV V V F V FVF V F F F FFV V V F V FFF V V F F Uma vez que não há qualquer circunstância na qual as premissas sejam todas verdadeiras e a conclusão falsa, a forma argumentativa, expressa com variáveis de fórmula, é válida. Quando uma forma argumentativa é válida, qualquer argumento com essa forma, por mais complexo que seja, será válido. É por isso que precisamos de variáveis de fórmula para exprimir adequadamente as formas argumentativas válidas, como as seguintes: Modus ponens A→B A ∴B Modus tollens A→B ¬B ∴ ¬A 11/02/2015 25 Dilema A⋁B A→C B→C ∴C Silogismo disjuntivo A⋁B ¬A ∴B Silogismo hipotético A→B B→C ∴A→C Todas estas formas são válidas. O que isto significa é que qualquer argumento que tenha uma destas formas é válido. Em contraste, as formas seguintes são inválidas — e falaciosas, porque são parecidas a formas válidas. Quando uma forma é inválida, isso significa que há argumentos inválidos com essa forma: Falácia da afirmação da consequente A→B B ∴A Falácia da negação da antecedente A→B ¬A ∴ ¬B Fazendo tabelas de validade, é fácil verificar a validade e a invalidade destas formas argumentativas. Exercícios 1. Determine a validade ou invalidade das seguintes formas argumentativas recorrendo a tabelas de validade: a) p ⋀ q, ¬p ∴ q b) p ⋁ q, ¬p ∴ q c) p → q ∴ p ⇄ q d) p ⇄ q ∴ p → q 11/02/2015 26 e) p → q ∴ q ⋀ p f) p→q∴q→p g) p → q, q → p ∴ ¬p ⋁ q 2. Recorrendo a tabelas de validade, determine a validade ou invalidade formal dos seguintes argumentos: a) O livre-arbítrio é possível ou a nossa vida é uma ilusão. O livre-arbítrio é impossível. Logo, a nossa vida é uma ilusão. b) Deus existe. Logo, a felicidade eterna é possível. c) Se Sócrates tem razão, a vida por examinar não vale a pena ser vivida. Logo, a vida por examinar não vale a pena ser vivida. d) Aristóteles era grego. Aristóteles não era grego. Logo, Deus existe. e) A justiça é possível se, e só se, Platão tiver razão. Platão não tem razão. Logo, a justiça não é possível. 3. Identifique a forma lógica dos seguintes argumentos, indicando se é válida ou inválida: a) Se Sartre tiver razão, temos livre-arbítrio. Mas não temos livre-arbítrio. Logo, Sartre não tem razão. b) Se temos livre-arbítrio, Sartre tinha razão. Ora, Sartre tinha razão. Logo, temos livre-arbítrio. c) Se os animais não-humanos sentem dor, são dignos de protecção moral. Mas os animais não-humanos não sentem dor. Logo, não são dignos de protecção moral. d) Se Deus existe, a vida tem sentido. Ora, Deus existe. Logo, a vida tem sentido. e) Os cépticos têm razão ou não. Se têm razão, sabe-se algo. Se não têm razão, sabe-se algo. Logo, em qualquer caso, sabe-se algo. f) Se Rawls tiver razão, o igualitarismo resulta do cálculo egoísta. Se o igualitarismo resultar do cálculo egoísta, é imoral. Logo, se Rawls tiver razão, o igualitarismo é imoral. g) Ou Nozick tem razão, ou Rawls. Mas Nozick não tem razão. Logo, Rawls tem razão. 5. Negação e equivalência Considere-se a proposição expressa a seguir: Se a imitação fosse a essência da arte, a pintura abstracta seria uma aberração. É comum pensar que a sua negação é a seguinte: Se a imitação não fosse a essência da arte, a pintura abstracta não seria uma aberração. Mas isto é um erro. A negação correcta de qualquer proposição é outra proposição que tem o valor de verdade oposto da primeira, em qualquer circunstância logicamente possível. Ora, ao fazer duas tabelas de verdade, uma para a forma proposicional “p → q” e outra para “¬p → ¬q”, vemos que isso não acontece: 11/02/2015 27 pq p→q ¬p → ¬q VV V F V F VF F F V V FV V V F F FF V V V V Se estas duas formas proposicionais fossem a negação uma da outra, teriam valores de verdade opostos em todas as circunstâncias; mas isso não acontece: na primeira circunstância, assim como na última, têm ambas o mesmo valor de verdade. Logo, estas formas proposicionais não são a negação uma da outra. O erro resulta em parte da ideia falsa de que negar uma condicional é afirmar outra condicional; na verdade, negar uma condicional, é afirmar uma conjunção. Quando se nega mal uma proposição o que acontece é uma confusão entre a sua negação total e a parcial. Uma negação parcial de uma condicional, por exemplo, limita-se a negar a antecedente (“¬A → B”), a consequente (“A → ¬B”) ou ambas (“¬A → ¬B”), mas sem negar a própria condicional. E o mesmo acontece quando se nega parcialmente uma disjunção: “¬A ⋁ ¬B” não é a negação total de “A ⋁ B” porque não nega a própria disjunção, limitando-se a negar cada uma das suas disjuntas. As negações correctas das quatro formas proposicionais da lógica clássica são as seguintes: ¬(A → B): A ⋀ ¬B ¬(A ⋀ B): ¬A ⋁ ¬B ¬(A ⋁ B): ¬A ⋀ ¬B ¬(A ⇄ B): (A ⋀ ¬B) ⋁ (¬A ⋀ B) Chama-se “leis de De Morgan” às negações da conjunção e da disjunção. Quaisquer formas proposicionais “A” e “B” são equivalentes quando têm o mesmo valor de verdade em todas as circunstâncias logicamente possíveis. Isto significa que os pares de formas proposicionais anteriores são equivalentes, ou seja, “¬(A → B)” é equivalente a “A ⋀ ¬B”, etc. Dada uma qualquer forma proposicional, como “A → B” ou “A ⋁ B”, há sempre várias outras formas proposicionais que lhe são equivalentes. Algumas equivalências, contudo, são particularmente importantes, como as seguintes: A ⇄ ¬¬A (A ⋀ B) ⇄ ¬(A → ¬B) (A ⋁ B) ⇄ (¬A → B) (A → B) ⇄ (¬A ⋁ B) (A → B) ⇄ (¬B → ¬A) (A ⇄ B) ⇄ (A → B) ⋀ (B → A) 11/02/2015 28 Estas equivalências mostram que sempre que afirmamos uma conjunção, disjunção, condicional ou bicondicional, há sempre outra maneira logicamente equivalente de falar. Por sua vez, isto significa que, dada uma forma argumentativa válida, há sempre outra forma argumentativa equivalente, no sentido em que podemos transformar uma forma argumentativa na outra usando premissas e conclusões equivalentes. Vejamos, por exemplo, o modus ponens: A→B A ∴B A única diferença entre esta forma argumentativa e a seguinte é a primeira premissa: ¬A ⋁ B A ∴B Uma vez que a primeira premissa desta nova forma argumentativa é equivalente à primeira premissa do modus ponens, as duas formas argumentativas são equivalentes, no sentido em que têm premissas e conclusão equivalentes. Fazendo sequências de tabelas de verdade, é fácil ver quando duas ou mais formas proposicionais são equivalentes, ou se negam entre si. 6. Contradição e inconsistência A negação e a equivalência são relações lógicas entre proposições. Um par de proposições nega-se mutuamente, como vimos, quando têm valores de verdade opostos em todas as circunstâncias logicamente possíveis; neste caso, diz-se que essas proposições são contraditórias. Por sua vez, duas proposições são equivalentes quando têm os mesmos valores de verdade em todas as circunstâncias logicamente possíveis. Quando duas proposições têm os mesmos valores de verdade em todas as circunstâncias logicamente possíveis, dizemos que têm as mesmas condições de verdade. Uma relação mais fraca do que a contradição é a inconsistência. Quando duas proposições são inconsistentes, não há qualquer circunstância na qual sejam ambas verdadeiras; mas poderá haver, ou não, circunstâncias nas quais sejam ambas falsas. Daqui conclui-se validamente que se duas proposições são contraditórias, são também inconsistentes; mas há proposições inconsistentes que não são contraditórias. Por exemplo, quaisquer pares de proposições que tenham as formas “p ⋀ q” e “¬p ⋀ ¬q” são inconsistentes, mas não são contraditórias, como podemos ver nas seguintes tabelas de verdade: 11/02/2015 29 pq p⋀q VV V F F F VF F F F V FV F V F F FF F V V V ¬p ⋀ ¬q Quando duas proposições são consistentes, isso significa apenas que não são inconsistentes; ou seja, há pelo menos uma circunstância logicamente possível na qual são ambas verdadeiras. Exercícios 1. Negue correctamente as proposições expressas a seguir: a) Paris e Madrid são cidades chinesas. b) Nem Kant nem Orwell acreditavam nas divindades gregas. c) Um argumento é válido se e só se for formalmente válido. d) Se Boécio defendia os universais, não há razão para ser nominalista. e) Foi Ursula LeGuin ou Gabriel García Márquez quem escreveu O Elogio da Loucura. 2. Explique por que razão todas as proposições contraditórias são inconsistentes. 3. Explique por que razão nem todas as proposições inconsistentes são contraditórias. 7. Implicação e verdade lógica O conceito de implicação já foi usado, informal e inexplicitamente, quando apresentámos o conceito de validade dedutiva: a relação existente entre a premissa ou premissas de um argumento válido e a sua conclusão é a implicação. Assim, “A” implica “B” quando não há qualquer circunstância na qual “A” seja verdadeira e “B” falsa. Por exemplo, “p” implica “p ⋁ q”, como podemos ver nas seguintes tabelas de verdade: pq p p⋁q VV V V VF V V FV F V FF F F Quando “A” implica “B” isso significa que “A → B” é verdadeira em todas as circunstâncias logicamente possíveis. É o que ocorre com “p → (p ⋁ q)”, como se vê: 11/02/2015 30 pq p → (p ⋁ q) VV V V VF V V FV V V FF V F Eis algumas implicações óbvias: A → (A ⋁ B) A → (B ⋁ A) A → (B → A) A → (A ⋀ A) (A ⋀ B) → A (A ⋀ B) → B (A ⋀ B) → (A ⋁ B) (A ⋀ B) → (B ⋁ A) (A ⋀ B) → (B ⋀ A) (A ⇄ B) → (A → B) (A ⇄ B) → (B → A) Uma verdade lógica é uma proposição verdadeira em todas as circunstâncias logicamente possíveis, como as implicações anteriores. Também as equivalências da secção 5 são verdades lógicas. A negação de uma verdade lógica é, evidentemente, uma falsidade lógica: uma proposição falsa em todas as circunstâncias logicamente possíveis. Uma proposição é uma contingência lógica quando é verdadeira em algumas circunstâncias e falsa noutras, ou seja, quando não é uma verdade lógica nem uma falsidade lógica. Vejamos três tabelas de verdade, com exemplos de uma verdade lógica, uma falsidade lógica e uma contingência lógica: A A→A ¬(A → A) ¬A V V F F F V F V Quando um argumento é válido, a sua expressão proposicional é uma verdade lógica. A expressão proposicional de um argumento resulta de se construir uma condicional cuja antecedente é a conjunção de todas as premissas, sendo a consequente a conclusão do argumento original. Assim, a expressão proposicional do modus ponens, por exemplo, é “[(A → B) ⋀ A] → B”. Apesar de todo o argumento válido ter uma expressão proposicional, é um erro confundir argumentos com proposições. Afinal, qualquer ovo pode ser transformado em omeleta, mas é um erro confundir uma coisa com a outra. Os argumentos são válidos ou inválidos, 11/02/2015 31 mas não são verdadeiros nem falsos; as proposições são verdadeiras ou falsas, mas não são válidas nem inválidas. Devido a uma infelicidade terminológica, muitos matemáticos chamam “válidas” às verdades lógicas, o que contribui para uma confusão conceptual indesejável. Qualquer argumento cuja conclusão seja uma verdade lógica é válido; e qualquer argumento cujas premissas sejam inconsistentes é também válido. A estas validades chamamos “vácuas”. O mesmo acontece com as suas expressões proposicionais: qualquer condicional cuja consequente seja uma verdade lógica é também uma verdade lógica; e qualquer condicional cuja antecedente seja inconsistente é uma verdade lógica. É fácil verificar a existência de validades vácuas, e de verdades lógicas vácuas, usando tabelas de verdade; mas basta alguma reflexão para o verificar. Por exemplo, se um argumento for inválido, há pelo menos uma circunstância na qual as premissas são todas verdadeiras e a conclusão falsa; ora, se a conclusão for uma verdade lógica, não há qualquer circunstância dessas, pelo que tal argumento não é inválido; e o mesmo acontece caso as suas premissas sejam inconsistentes. Exercícios 1. Explique por que razão qualquer argumento que tenha premissas inconsistentes é dedutivamente válido. 2. Recorrendo a tabelas de verdade, determine se as formas proposicionais seguintes são verdades lógicas, falsidades lógicas ou contingências lógicas: a) (p ⇄ q) → p b) (p → q) → q c) (p ⋀ ¬p) → q d) p → (q ⋁ ¬q) e) (p ⋀ q) → (q ⋁ r) f) (p ⋁ r) → p 3. Prove que o número de formas argumentativas dedutivamente válidas captáveis na lógica proposicional clássica é infinito. 4. Basta que a condicional “p → q” seja verdadeira para que a forma argumentativa, “p ∴ q”, seja válida? Porquê? 8. Lógica e filosofia Considere-se o seguinte texto de Kant: “Temos o dever de tentar promover o bem supremo (que tem portanto de ser possível). Assim, a existência de uma causa de toda a natureza, distinta da natureza, que contenha o fundamento desta conexão, a saber, a correspondência exacta da felicidade com a moralidade, é também postulada. Contudo, esta causa suprema há-de conter o fundamento da correspondência da natureza não apenas com uma lei da vontade de seres racionais, mas também com a representação desta lei, na medida em que fizerem dela o fundamento supremo 11/02/2015 32 e determinante da vontade, e consequentemente não apenas com a forma da sua moral mas também com a sua moralidade enquanto seu fundamento determinante, isto é, com a sua disposição moral. Logo, o bem supremo do mundo só é possível na medida em que se pressuponha uma causa suprema da natureza que tenha uma causalidade em harmonia com a disposição moral. Ora, um ser capaz de acções de acordo com a representação de leis é uma inteligência (um ser racional), e a causalidade de tal ser de acordo com esta representação de leis é a sua vontade. Logo, a causa suprema da natureza, na medida em que tem de ser pressuposta para o bem supremo, é um ser que é a causa da natureza pelo entendimento e vontade (logo, o seu autor), isto é, Deus. Consequentemente, o postulado da possibilidade do bem supremo derivado (o melhor mundo) é igualmente o postulado da realidade de um bem supremo original, nomeadamente da existência de Deus. Ora, era para nós um dever promover o bem supremo; logo, há em nós não apenas a justificação mas também a necessidade, como uma carência conectada ao dever, de pressupor a possibilidade deste bem supremo que, dado que só é possível sob a condição de existir Deus, conecta o pressuposto da existência de Deus inseparavelmente com o dever; isto é, é moralmente necessário pressupor a existência de Deus”. (Kant 1788: 5:125-126) Não é fácil extrair deste texto um argumento de contornos suficientemente definidos para que possamos discuti-lo adequadamente. Contudo, se nem sequer o tentarmos, nada teremos de relevante para discutir. Assim, a primeira atitude a ter perante um texto destes é tentar encontrar nele um argumento suficientemente definido para permitir a sua discussão rigorosa. Se o pensamento do autor não for exactamente o que conseguimos extrair do seu texto, tanto pior para o autor: é suficiente que seja um argumento interessante para nós, que valha a pena discutir. E, claro, diferentes leitores talvez extraiam diferentes argumentos de um dado texto complexo e inexplícito; mas alguma interpretação temos de fazer. Eis uma interpretação: Temos o dever de promover o bem supremo. Se o bem supremo não fosse possível, não teríamos o dever de o promover. Se Deus não existisse, o bem supremo não seria possível. Logo, Deus existe. Talvez este argumento não corresponda exactamente ao que Kant tinha em mente; mas é filosoficamente interessante e por isso merece discussão. Ora, ao discutir um argumento temos sempre dois aspectos centrais: a validade do argumento e a verdade das premissas. Contudo, se o argumento não for válido, é irrelevante discutir a verdade das premissas, que é muitas vezes bastante mais difícil do que a discussão da validade; isto porque se o argumento não for válido, a negação da conclusão é compatível com a aceitação das premissas. Assim, a primeira preocupação da discussão filosófica é a validade do argumento; sem esta, a discussão da verdade ou plausibilidade das premissas é disparatada. Acontece que o pa- 11/02/2015 33 pel principal da lógica é precisamente esse: dar-nos instrumentos de rigor que permitam determinar a validade ou invalidade dos argumentos. Comecemos então por especificar a nossa interpretação: p: Temos o dever de promover o bem supremo. q: O bem supremo é possível. r: Deus existe. Dada esta interpretação, a explicitação da sua forma lógica é a seguinte: p ¬q → ¬p ¬r → ¬q ∴r A seguinte tabela de validade mostra que estamos perante uma forma argumentativa válida: p q r p ¬q → ¬p ¬r → ¬q r VVV V V V V VVF V V F F VFV V F V V VFF V F V F FVV F V V V FVF F V F F FFV F V V V FFF F V V F Quem tem uma formação adequada em lógica nem precisa fazer a tabela de validade para ver que o argumento é válido: a validade é óbvia. Contudo, considere-se o seguinte argumento: Temos o dever de promover o bem supremo. Se não tivéssemos o dever de o promover, o bem supremo não existiria. Se este não existisse, Deus também não existiria. Logo, Deus existe. Quem não sabe lógica talvez não veja grande diferença entre este argumento e o anterior; contudo, a diferença é abissal: este último é inválido, o que significa que é irrelevante discutir as premissas, pois a verdade destas é compatível com a falsidade da conclusão. A forma lógica do argumento é a seguinte: 11/02/2015 34 p ¬p → ¬q ¬q → ¬r ∴ r Eis a tabela que mostra a sua invalidade: p q r p ¬p → ¬q ¬q → ¬r r VVV V V V V VVF V V V F VFV V V F V VFF V V V F FVV F F V V FVF F F V F FFV F V F V FFF F V V F Como se vê, apesar da semelhança superficial com o primeiro argumento, o segundo é muitíssimo diferente pois tem uma forma lógica inválida, ao contrário do primeiro. Explicitar a forma lógica de proposições e argumentos é muito mais do que um mero exercício de lógica: é uma condição fundamental para saber se a tese filosófica é plausível ou se o argumento é cogente. A aplicação da lógica à linguagem comum é a parte mais importante da lógica, sendo um instrumento capital para melhorar a cogência dos nossos argumentos e para avaliar mais rigorosamente os argumentos dos filósofos. Todavia, essa aplicação não é em si uma actividade susceptível de ser sistematizada pela própria lógica; tudo o que podemos fazer é usar o nosso conhecimento da lógica, o nosso conhecimento da linguagem comum e o contexto das proposições ou argumentos, para tomar decisões judiciosas quanto à forma lógica. Uma vez explicitada a forma lógica de um argumento ou de uma proposição, temos instrumentos lógicos de completo rigor para nos dizer se o argumento é formalmente válido ou não, se a proposição é uma verdade lógica ou se é consistente com outra proposição; a explicitação da forma lógica em si, contudo, está em muitos casos aberta a dúvidas, sobretudo em textos mais complexos, sendo difícil ver qual será realmente a proposição ou o argumento que torna o pensamento do autor mais interessante filosoficamente. Este é um dos casos em que há uma grande diferença entre uma abordagem sobretudo filosófica dos textos dos filósofos e uma abordagem exclusivamente histórica. Neste último caso, queremos saber principalmente qual era o pensamento do autor, sendo irrelevante se esse pensamento é mais plausível ou menos. No primeiro caso, interessa-nos apenas descobrir ideias interessantes filosoficamente, sejam ou não as que o autor realmente tinha em mente: ao explicitar a forma lógica de um argumento, estamos muito mais 11/02/2015 35 preocupados em encontrar um argumento interessante filosoficamente, do que em saber se esse era realmente o argumento que o autor tinha em mente. E, claro, quando há mais de uma forma lógica interessante, interessa-nos discuti-las todas, sem que nos aflija a questão de saber qual delas tinha o autor em mente: essa é uma questão histórica, importante certamente, mas não é uma questão filosófica. Apesar de a explicitação da forma lógica não ser uma tarefa mecânica, ao contrário da construção de uma tabela de verdade, há três princípios orientadores que nos ajudam a fazer um trabalho melhor. Primeiro, a lógica proposicional clássica só devolve resultados relevantes quando as proposições e argumentos a examinar não dependem de outros elementos lógicos além dos cinco operadores apresentados. Quando a validade ou invalidade de um argumento depende da quantificação, da predicação, do uso de nomes próprios, dos advérbios “necessariamente” ou “possivelmente”, ou de outros factores, não é adequadamente captada na lógica proposicional clássica. Para captar esses aspectos, precisamos da lógica quantificada, assim como da lógica modal. Segundo, a lógica clássica, seja apenas a proposicional ou não, não tem recursos para lidar com a indexicalidade. Esta é uma das razões pelas quais é importante distinguir as frases das proposições. Considere-se a frase proferida por Epicteto em 134 a.C.: “Apetece-me agora uma salada de tomate”. Esta mesma frase, proferida por David Hume em 1775, exprime uma proposição muitíssimo diferente. A primeira exprime a proposição de que apetece a Epicteto uma salada de tomate no ano 134 d.C., a segunda de que apetece a David Hume uma salada de tomate em 1775. Assim, ao formalizar argumentos e proposições, temos de eliminar adequadamente os indexicais (termos como “eu”, “ontem”, etc.), incluindo a indexicalidade oculta, e referências temporais para nós óbvias: é verdadeiro que Sócrates viveu, mas é falso que ele esteja agora vivo. Apesar disso, em contextos menos rigorosos, não encontraremos dificuldades se considerarmos que “Hume é escocês” exprime a proposição de que Hume é escocês, apesar de, a rigor, a proposição verdadeira expressa é a de que Hume foi escocês enquanto esteve vivo: entre 1711 e 1776. Terceiro, a língua portuguesa inclui várias maneiras diferentes de exprimir os mesmos operadores. Vejamos apenas o caso da conjunção e da disjunção. A conjunção exprime-se não apenas com a palavra “e”, mas também com “mas”, “tanto… como” e “quer… quer”, entre outras. Como é evidente, estas palavras não têm todas exactamente o mesmo significado, apesar de todas serem usadas para exprimir a conjunção. O significado de “mas”, por exemplo, não é exactamente o mesmo do que o significado de “e”; por exemplo, “Eça era português, mas diligente” sugere que os portugueses em geral não primam pela diligência. Além disso, em alguns contextos, a palavra “e” está associada a um aspecto temporal: “Berkeley deu uma palestra e morreu” é razoável, mas “Berkeley morreu e deu uma palestra” sugere que ele deu a palestra morto — o que parece ocorrer com alguns palestrantes, mas não literalmente. Na lógica clássica, contudo, não damos atenção a todos os aspectos do significado da conjunção; só atendemos ao aspecto da conjunção responsável por mudar ou manter o valor de verdade de “p ⋀ q” com base 11/02/2015 36 nos valores de verdade de “p” e de “q”. E o mesmo acontece com os outros quatro operadores. Quando à disjunção, a palavra “ou” exprime dois operadores diferentes, em diferentes contextos: a disjunção inclusiva, que usamos na lógica proposicional, e a disjunção exclusiva. Por exemplo, “Leibniz era matemático ou filósofo” é uma disjunção inclusiva, pois não queremos excluir a possibilidade de ele ser simultaneamente matemático e filósofo; mas em disjunções como “A Maria Eduarda está em Lisboa ou Sintra” o que queremos muitas vezes fazer é exprimir a ideia de que ela não pode estar nos dois lugares ao mesmo tempo. Este último caso é uma disjunção exclusiva. “A ou B”, usado para exprimir uma disjunção exclusiva, é equivalente a “A ⇄ ¬B”. Em suma, não podemos aplicar adequadamente a lógica à língua portuguesa sem a compreender primeiro correctamente; mas não saberemos aplicá-la adequadamente à língua portuguesa se nos limitarmos a estudar os seus aspectos formais. Temos de ir fazendo as duas coisas concomitantemente. 11/02/2015 37 3. Dedução natural A dedução natural é um sistema de derivações. Num sistema de derivações, demonstramos que uma dada forma argumentativa é válida mostrando passo a passo que resulta exclusivamente da aplicação correcta de formas argumentativas que já sabemos que são válidas. É como o que acontece na aritmética elementar: desde que saibamos somar os números entre 0 e 9, saberemos fazer qualquer soma, desde que dominemos o procedimento que aprendemos na escola primária. Por exemplo, para saber o resultado de somar 478 com 928 não precisamos de mais do que saber quanto é 8 mais 8, 7 mais 2 e 4 mais 9. Do mesmo modo, com um sistema de derivações, só precisamos de um número limitado de formas argumentativas válidas. Partindo delas, podemos demonstrar a validade dedutiva de qualquer forma argumentativa. Nem todos os sistemas de derivação são sistemas de dedução natural. Um sistema de dedução natural caracteriza-se por ter um certo tipo de regras de partida: regras que introduzem e regras que eliminam os cinco operadores já apresentados. Daí que na lógica proposicional tenhamos dez regras de partida, a que chamaremos “regras primitivas”, e com base nas quais demonstramos a validade de outro conjunto de regras, as regras derivadas. 1. Eliminação e introdução da conjunção A regra da eliminação da conjunção (E⋀) é a seguinte forma argumentativa válida: A⋀B ∴A Porque a conjunção é comutativa (“A ⋀ B” é o mesmo que “B ⋀ A”), iremos também aceitar como conclusão a forma proposicional “B”. A regra da introdução da conjunção (I⋀) é a seguinte forma argumentativa válida: A B ∴A⋀B Também devido à comutatividade da conjunção, aceitaremos igualmente como conclusão a forma proposicional “B ⋀ A”. Num sistema de derivações, usamos o símbolo “⊢”, a que chamamos “martelo”, como neste exemplo: “p ⋀ q, r ⊢ q ⋀ r”. Neste caso, temos duas formas proposicionais à esquerda do martelo, separadas por vírgulas; à direita temos sempre uma só forma proposicional. O martelo quer dizer que a forma proposicional da direita se deriva das formas da es11/02/2015 38 querda, usando as nossas regras. Ou seja, podemos fazer uma derivação para demonstrar a validade da seguinte forma argumentativa: p⋀q r ∴q⋀r Demonstrar por derivação que esta forma argumentativa é válida é partir das premissas e, usando apenas as nossas regras de dedução natural, manipulá-las de maneira a chegar à conclusão: 1. p⋀q Premissa 2. r Premissa 1 3. q 1 E⋀ 1, 2 4. q⋀r 2, 3 I⋀ Examinemos a nossa derivação. Os primeiros dois passos são apenas as premissas, e nada de especial há a dizer. O objectivo é aplicar-lhes as regras de maneira a conseguir chegar à conclusão desejada. O que fizemos no passo 3 foi precisamente concluir “q” com base na premissa 1; invocamos como justificação a regra da E⋀, dizendo que a aplicámos ao passo 1. No passo 4 concluímos “q ⋀ r” com base nos passos 2 e 3, usando a regra da I⋀. Dado que esta era precisamente a conclusão desejada, a derivação chegou ao fim. As derivações têm, pois, quatro colunas. A segunda é apenas a coluna da numeração. A terceira é a coluna da argumentação, onde escrevemos as nossas conclusões. Na quarta coluna justificamos a nossa argumentação: temos de indicar se é uma premissa, ou se resulta da aplicação de uma regra a um ou mais passos. A primeira coluna diz-nos de que premissas depende cada passo. Os primeiros dois passos não dependem de premissas algumas porque são, eles mesmos, premissas. Já o passo 3 depende da premissa 1 porque resulta da aplicação da E⋀ à premissa 1. E o passo 4 depende das premissas 1 e 2 porque resulta da aplicação da I⋀ a dois passos: à própria premissa 2, e ao passo 3 que, por sua vez, depende da premissa 1. O papel da coluna das dependências ficará mais claro quando aprendermos a usar premissas temporárias, a que chamaremos “suposições”. Como se vê, uma derivação é uma sequência de formas argumentativas que, a pouco e pouco, nos conduzem à conclusão principal. Esta conclusão principal será a última linha da derivação, e esta só poderá depender das premissas iniciais da nossa argumentação, ou seja, das formas proposicionais que originalmente estavam à esquerda do martelo, para que a derivação esteja correcta. Vejamos agora um uso errado da regra da E⋀: 1 11/02/2015 1. (p ⋀ q) → r Premissa 2. p→r 1 E⋀ 39 O passo 2 é uma aplicação errada da regra da E⋀ porque a aplica à antecedente de uma condicional. As regras primitivas só podem ser aplicadas a formas proposicionais completas e não às suas partes. A regra da E⋀ só pode ser aplicada a conjunções da forma geral “A ⋀ B”, e não a outras formas proposicionais que contenham conjunções, como é o caso acima: “(p ⋀ q) → r” não é uma conjunção, mas antes uma condicional cuja antecedente é uma conjunção. 2. Introdução da disjunção A regra da introdução da disjunção, I⋁, é banal: A ∴ A ⋁ B Devido à comutatividade — da disjunção, desta vez — podemos também informalmente concluir “B ⋁ A”. “B” pode ser qualquer proposição: o argumento permanece válido porque “A” será a premissa e uma das disjuntas da conclusão, garantindo assim a impossibilidade de ter premissa verdadeira e conclusão falsa. Vejamos um caso da aplicação da I⋁: p ⋀ q ⊢ [(p ⋁ r) ⋀ q] ⋁ (s → r) 1. p⋀q Premissa 1 2. p 1 E⋀ 1 3. p⋁r 2 I⋁ 1 4. q 1 E⋀ 1 5. (p ⋁ r) ⋀ q 3, 4 I⋀ 1 6. [(p ⋁ r) ⋀ q] ⋁ (s → r) 5 I⋁ No passo 2 aplicámos a E⋀ para obter “p” do passo 1; como o passo 1 era ele mesmo uma premissa, indicamos na coluna das dependências que o passo 2 depende da premissa 1. Partindo deste resultado, obtemos “p ⋁ r” no passo 3, usando a I⋁; ficamos agora a depender à mesma da premissa 1, porque aplicámos a I⋁ a uma forma proposicional que dela dependia. No passo 4 aplicámos de novo a E⋀ para obter “q” do passo 1, que podemos agora juntar, no passo 5, à forma proposicional do passo 3, usando a I⋀. Finalmente, no passo 6 obtemos o que desejávamos aplicando a I⋁ ao passo 5. Note-se que a I⋁ permite adicionar qualquer forma proposicional: no nosso caso, adicionámos “s → r” porque era isso que queríamos, mas poderíamos ter adicionado qualquer outra forma proposicional. Se olharmos para uma derivação já feita, é relativamente fácil examiná-la com cuidado e explicar todos os seus passos. Contudo, fazer uma derivação nem sempre é fácil porque não se trata de uma aplicação cega das nossas regras, mas antes de uma aplicação 11/02/2015 40 judiciosa, guiada pelo objectivo de chegar à conclusão da forma argumentativa original. Sem uma aplicação judiciosa das regras, tendo em mente a forma proposicional a que desejamos chegar, é possível prolongar uma derivação por vários passos inúteis, sem que se consiga derivar o que se pretende. Assim, tal como no xadrez, fazer derivações envolve o domínio das regras, mas o domínio das regras não é suficiente: é também necessário um pensamento estratégico que nos permita encontrar um caminho que nos conduza das premissas à conclusão, usando exclusivamente as regras disponíveis. É precisamente este aspecto das derivações que as tornam especialmente valiosas como modelo do pensamento rigoroso, pois este consiste, afinal, em encontrar um caminho criativo que nos conduza, por uma cadeia de argumentos válidos, à conclusão pretendida: a imaginação desempenha aqui um papel muitíssimo importante. Olhemos de novo para o que derivámos: p ⋀ q ⊢ [(p ⋁ r) ⋀ q] ⋁ (s → r) Para se conseguir fazer a derivação, temos de olhar para a premissa e perguntar como podemos manipulá-la de modo a chegar à conclusão. É fácil ver que a E⋀ permite obter “p”; ora, a I⋁ permite obter imediatamente “p ⋁ r”. Se juntarmos agora a esta forma proposicional o “q” que obtemos também facilmente da premissa por meio da E⋀, obtemos “(p ⋁ r) ⋀ q”. Isto é tudo o que realmente importa, pois a partir do momento em que temos uma das disjuntas da conclusão a outra obtém-se trivialmente com a I⋁. É algo como esta estratégia que nos permite fazer derivações. O que irá acontecer é que, em casos menos óbvios, ensaiamos no papel várias estratégias, vários caminhos que se revelam improdutivos, até descobrirmos um caminho que dê bons frutos. Exercícios 1. Indique a quais das formas proposicionais seguintes não se pode aplicar a regra da E⋀. Justifique. a) p ⋀ (q ⋀ r) b) p ⋁ (q ⋀ r) c) (p ⋁ q) ⋀ r d) p → (q ⋀ r) 2. Derive: a) p ⊢ p ⋁ (q ⋀ r) b) p ⋀ q ⊢ (q ⋀ r) ⋁ (q ⋀ p) c) p, q ⋁ r ⊢ [p ⋀ (q ⋁ r)] ⋀ p d) p ⋀ (q ⋀ r) ⊢ r ⋁ s 11/02/2015 41 3. Eliminação da disjunção Como é evidente, é inválido concluir “A” de “A ⋁ B”, e essa não é a regra da eliminação da disjunção, E⋁. Ao invés, a E⋁ é uma versão de uma forma argumentativa banal que já conhecemos, o dilema. Eis um exemplo da forma argumentativa em causa: Sagan nasceu no Canadá ou nos EUA. Suponha-se que nasceu no Canadá; nesse caso, conclui-se que nasceu no continente norteamericano. Suponha-se agora, ao invés, que ele nasceu nos EUA; também nesse caso se conclui que nasceu no continente norte-americano. Logo, em qualquer dos casos, nasceu no continente norte-americano. Eis a configuração da regra da E⋁: A⋁B A∴C B∴C ∴C Isto significa que a eliminação da disjunção é uma argumentação em cadeia, incluindo duas formas argumentativas no seu seio. Vejamos um exemplo da aplicação da regra da E⋁: (p ⋀ r) ⋁ (q ⋀ r), s ⊢ r ⋀ s 1. (p ⋀ r) ⋁ (q ⋀ r) Premissa 2. s Premissa 3. p⋀r Suposição 4. r 3 E⋀ 5. q⋀r Suposição 5 6. r 5 E⋀ 1 7. r 1, 3∴4, 5∴6 E⋁ 1, 2 8. r⋀s 2, 7 I⋀ 3 Os primeiros dois passos são apenas as premissas; o passo 3 é uma premissa temporária, a que chamamos “suposição”. Ora, podemos supor seja o que for numa derivação. A questão é que se a nossa conclusão final depender de tal suposição, esta terá de ser incluída como uma das premissas; mas, se o fizermos, já não demonstrámos o que queríamos, pois demonstrámo-lo com mais uma premissa. Assim, uma suposição é uma premissa temporária, no sentido em que dependemos dela durante um certo número de passos, mas acabaremos por deixar de depender dela. Isto significa que as suposições servem para fazer subderivações, que são argumentos parciais ou subderivações no seio da derivação principal. Temos, pois, de ter uma maneira de eliminar a dependência das suposições, antes de che11/02/2015 42 garmos à última linha da derivação. Uma das três regras que nos permitem eliminar a dependência de suposições é precisamente a E⋁. Assim, os passos 3 e 5 são as suposições que correspondem a afirmar cada uma das disjuntas da premissa 1, separadamente, para mostrar que de ambas concluímos validamente o mesmo resultado. Ora, o que conseguimos fazer tanto no passo 4 como no 6 é precisamente mostrar que das duas suposições baseadas no passo 1 se conclui validamente “r”. Visto que o mesmo resultado se obtém de cada uma das proposições que compõem a disjunção, eliminamos a própria disjunção no passo 7, ficando apenas com “r”, que é precisamente o de que de ambas as disjuntas se conclui validamente. E agora vem a magia da eliminação da dependência das suposições: uma vez que “r” foi obtida com base na disjunção do passo 1 e nas suposições dos passos 3 e 5, o nosso resultado depende exclusivamente das premissas de que depender o passo 1, ou do próprio passo 1, caso seja uma premissa (como acontece neste caso). O passo 7 dependeria também de quaisquer premissas de que dependessem os passos 6 e 4, mas nunca das suposições 3 e 5; só que, neste caso, 6 depende apenas da suposição 5, e 4 depende apenas da suposição 3, e é por isso que o nosso passo 7 depende apenas de 1. Ao justificar o uso da E⋁ indicamos primeiro a disjunção (passo 1, no nosso caso) com base na qual fazemos as duas suposições próprias da regra; depois, indicamos o passo onde supomos a primeira parte da disjunção e o passo onde chegámos ao resultado parcial que desejávamos: no nosso caso, 3∴4. Os três pontos indicam que 4 se conclui de 3, e que estamos, pois, perante uma subderivação. Fazemos então o mesmo para a outra suposição: 5∴6, no nosso caso. Assim, chegámos ao passo 7 dependendo exclusivamente da premissa 1; se fizermos agora uma tabela de validade, vemos que a forma argumentativa que tem o passo 1 como premissa e o passo 7 como conclusão é válida. E é assim que funciona sempre a regra da eliminação da disjunção. A regra tem alguns detalhes curiosos, mas não é particularmente subtil nem difícil. Apenas temos de compreender bem o que estamos fazendo. Finalmente, o passo 8 limita-se a usar I⋀ para juntar “r” com “s” e assim obter a conclusão desejada. Formulemos então a regra com cuidado: Dada uma forma proposicional “A ⋁ B”, concluímos validamente “C”, desde que consigamos concluir validamente “C” supondo “A”, por um lado, e supondo “B”, por outro. O “C” final depende apenas da disjunção ou das premissas de que a disjunção depender, e depende de todas as premissas de que depender cada “C” parcial, excepto das suposições “A” e “B”. Exercícios de derivação 1. p ⋁ q ⊢ q ⋁ p 2. (p ⋀ q) ⋁ (q ⋀ r) ⊢ q 3. (p ⋀ q) ⋁ (q ⋀ r) ⊢ q ⋁ s 4. p ⋁ (q ⋀ p) ⊢ p ⋁ r 11/02/2015 43 5. (p ⋁ q) ⋀ p ⊢ p ⋁ (q ⋀ p) 4. Eliminação da condicional O modus ponens é uma das formas argumentativas fundamentais, no sentido em que está presente em várias teorias lógicas e diferentes sistemas de derivação. Também no caso da dedução natural clássica está presente: é a eliminação da condicional: E→. A sua formulação, que já conhecemos, é a seguinte: A→B A ∴B A conclusão depende das mesmas premissas de que dependerem as duas formas proposicionais a que se aplica a regra. Eis um exemplo da sua aplicação: p → (p → q), p ⊢ q 1. p → (p → q) Premissa 2. p Premissa 1, 2 3. p→q 1, 2 E→ 1, 2 4. q 2, 3 E→ Vejamos outra aplicação da regra E→, juntamente com uma aplicação da E⋁: p ⋁ q, p → r, q → r ⊢ r 1. p⋁q Premissa 2. p→r Premissa 3. q→r Premissa 4. p Suposição 5. r 2, 4 E→ 6. q Suposição 3, 6 7. r 3, 6 E→ 1, 2, 3 8. r 1, 4∴5, 6∴7 E⋁ 2, 4 Uma vez mais, temos duas suposições, desta vez no passo 4 e no passo 6. Ambas permitem derivar “r”. A conclusão geral é então “r”, que depende apenas das premissas de que depender a disjunção original, do passo 1, e de todas as premissas de que depender o passo 5, excepto da suposição do passo 4, e de todas as premissas de que depender o passo 7, excepto da suposição do passo 6. 11/02/2015 44 Uma derivação, para estar correcta, precisa não apenas de resultar exclusivamente do uso correcto das regras disponíveis, passo a passo, mas também de chegar ao resultado pretendido sem depender de quaisquer suposições. A rigor, o último passo de uma derivação tem também de depender de todas as premissas da derivação, mas esta exigência é irrelevante porque é trivial fazer um dado passo depender de uma premissa qualquer — o que não é trivial é conseguir derivar o que desejamos sem depender de suposições que não fazem parte do conjunto inicial de premissas. Veja-se a seguinte derivação: p → q, p ⋀ r, s ⊢ q 1. p→q Premissa 2. p⋀r Premissa 3. s Premissa 2 4. p 2 E⋀ 1, 2 5. q 1, 4 E→ Como se vê, a terceira premissa é inerte: não foi usada para chegar à conclusão. Por isso, a rigor, não derivámos a forma argumentativa “p → q, p ⋀ r, s ⊢ q” mas antes a forma “p → q, p ⋀ r ⊢ q”. Todavia, com uma simples aplicação da I⋀ e da E⋀ obrigamos a conclusão da nossa derivação a depender da premissa do passo 3: 1, 2, 3 6. q⋀s 3, 5 I⋀ 1, 2, 3 2. q 6 E⋀ Por esta razão, iremos apenas exigir a obtenção da forma proposicional à direita do martelo, sem depender de quaisquer suposições, e aplicando correctamente as regras disponíveis. Exercícios de derivação 1. (p ⋁ r) → q, p ⊢ q 2. p → (q ⋁ r), p ⊢ r ⋁ q 3. p ⋀ q, (q ⋁ r) → s ⊢ s 4. p, (p ⋁ q) → r, (r ⋀ p) → s ⊢ s 5. p → (p → r), p ⊢ r 5. Introdução da condicional A introdução da condicional, I→, é a segunda das três regras de dedução natural que permitem eliminar a dependência de suposições. A regra baseia-se na relação já mencionada entre argumentos e condicionais: quando uma forma argumentativa como “A ∴ B” é válida, a condicional “A → B” é, além de verdadeira, uma verdade lógica. Se “A” foi introduzida como suposição, a partir da qual conseguimos derivar “B”, a condicional “A → B” é uma ver11/02/2015 45 dade lógica — e, como tal, não depende da suposição “A”. A configuração da regra é a seguinte: A∴B ∴A→B Eis uma aplicação da regra para demonstrar a transitividade da condicional, tradicionalmente conhecida como “silogismo hipotético”: p → q, q → r ⊢ p → r 1. p→q Premissa 2. q→r Premissa 3. p Suposição 1, 3 4. q 1, 3 E→ 1, 2, 3 5. r 2, 4 E→ 1, 2 6. p→r 3∴5 I→ Usar a regra da I→ é uma questão de escolher uma forma proposicional com a finalidade de dela extrair um resultado que depois nos interessa estabelecer como condicional. É o que acontece neste caso: supomos “p” estrategicamente porque vemos que isso nos permitirá obter “q”, por modus ponens (E→) — o que, por sua vez, e uma vez mais por modus ponens, nos permite obter “r”. Uma vez chegados ao resultado pretendido, usamos a I→ para estabelecer a condicional que desejávamos, eliminando a dependência da suposição. A regra da I→ é especialmente cómoda quando a conclusão a que desejamos chegar é uma condicional, como acontece acima. Nestes casos, supor a antecedente da condicional com a finalidade de usar a I→ é, muito frequentemente, uma boa estratégia argumentativa. Vejamos mais um exemplo da aplicação da I→, agora para demonstrar uma das propriedades da condicional, a troca de antecedentes: p → (q → r) ⊢ q → (p → r) 11/02/2015 1. p → (q → r) Premissa 2. q Suposição 3. p Suposição 1, 3 4. q→r 1, 3 E→ 1, 2, 3 5. r 2, 4 E→ 1, 2 6. p→r 3∴5 I→ 1 7. q → (p → r) 2∴6 I→ 46 Como se vê, usámos duas suposições porque essa é uma maneira simples de obter o resultado. Uma vez que a própria conclusão tem duas condicionais encadeadas, começamos por supor a antecedente da primeira condicional da conclusão, e depois a da segunda. Ao usar a regra I→, indicamos o passo da suposição inicial e o passo final da subderivação, usando uma vez mais os três pontos para o assinalar. O passo em que usamos a regra depende de todas as premissas ou suposições de que depender o passo final da subderivação (6, no nosso caso), excepto da própria suposição que está na sua origem (3, no nosso caso). Vejamos mais um exemplo do uso de I→, desta vez para demonstrar a distributividade da condicional: p → (q → r) ⊢ (p → q) → (p → r) 1. p → (q → r) Premissa 2. p→q Suposição 3. p Suposição 1, 3 4. q→r 1, 3 E→ 2, 3 5. q 2, 3 E→ 1, 2, 3 6. r 4, 5 E→ 1, 2 7. p→r 3∴6 I→ 1 8. (p → q) → (p → r) 2∴7 I→ Exercícios de derivação 1. ¬q → r, r → ¬p ⊢ ¬q → ¬p 2. r, q → p ⊢ q → (p ⋀ r) 3. p ⋁ q, p → r, q → r ⊢ s → r 4. p → (q ⋁ r), q → s, r → s ⊢ p → s 5. p → q ⊢ (q → r) → (p → r) 6. p → (q ⋁ r), q → s ⊢ (r → s) → (p → s) 6. A coluna das dependências Podemos agora compreender melhor o papel crucial que desempenha a coluna 1, na qual registamos diligentemente as premissas ou suposições de que depende cada linha das nossas derivações. Esse registo resulta da regra aplicada, que especifica sempre quais são as premissas ou suposições de que depende a conclusão alcançada. Neste aspecto, há dois tipos de regras: as que envolvem suposições, como a I→ e a E⋁, e as que não as envolvem. Quando uma regra não inclui suposições, a conclusão depende de todas as premissas ou suposições de que depender as premissas; mas quando uma regra inclui suposições, como é o caso da I→ e da E⋁ (além da I¬, que ainda não estudámos), a conclusão não depende da suposição introduzida para usar a regra. 11/02/2015 47 Vejamos o que acontece quando tentamos derivar uma invalidade: p → (q → r) ⊬ (p → q) → r 1. p → (q → r) Premissa 2. p→q Suposição 3. p Suposição 2, 3 4. q 2, 3 E→ 1, 3 5. q→r 1, 3 E→ 1, 2, 3 6. r 4, 5 E→ 1, 2 7. p→r 3∴6 I→ 1, 3 8. (p → q) → r 2∴6 I→ Esta derivação não demonstra a validade da forma argumentativa inválida que parece demonstrar porque o passo 8 depende da suposição 3, o que significa que, na realidade, derivámos a forma argumentativa seguinte: p → (q → r), p ⊢ (p → q) → r E, como seria de esperar, esta forma argumentativa é válida, como podemos ver fazendo uma tabela de validade. Agora compreendemos melhor a importância da primeira coluna; sem ela, seríamos talvez tentados a pensar que esta derivação concluía “(p → q) → r” com base exclusivamente em “p → (q → r)”, quando na verdade o faz com base em “p → (q → r)” e “p”. Este é um exemplo de como as nossas regras constituem uma ajuda inestimável: não precisamos sequer de usar as nossas intuições sobre o modo correcto de usar mais de uma suposição, pois as regras de introdução e eliminação de operadores estão de tal modo coordenadas com o uso de suposições, e a explicitação das dependências, que nos põem a salvo de quaisquer intuições erradas que possamos ter. Outro exemplo dramático do poder da primeira coluna é visível examinando a derivação seguinte: p⋀q⊢r→p 1 1 1. p⋀q Premissa 2. p 1 E⋀ 3. r Suposição 4. r→p 3∴2 I→ Talvez sejamos tentados a pensar que esta derivação está errada, pois não só a suposição do passo 3 é introduzida depois do resultado do passo 2, como esse resultado não deriva da suposição. Contudo, a derivação está correcta, pois tudo o que conta para o uso da re- 11/02/2015 48 gra da I→ é haver uma suposição, cuja dependência é eliminada ao usar a regra, e haver outro passo qualquer da derivação que usamos como consequente da condicional cuja antecedente é a própria suposição. A razão é que, como vimos, introduzir dependências é algo que pode sempre ser feito validamente; o que nem sempre pode ser feito validamente é eliminar dependências. Ao passo 3 da derivação anterior poderíamos acrescentar dois outros passos, para fazer o resultado desejado depender da suposição; o resultado seria a seguinte derivação: 1. p⋀q Premissa 2. p 1 E⋀ 3. r Suposição 1, 3 4. p⋀r 2, 3 I⋀ 1, 3 5. p 4 E⋀ 1 6. r→p 3∴5 I→ 1 Esta derivação está correcta, mas não é necessário introduzir estes passos adicionais porque as regras do nosso sistema, coordenadas com o modo como funciona a coluna do registo das dependências, tornam impossível uma derivação errada. Desde que apliquemos correctamente as regras e desde que usemos correctamente a coluna das dependências, não temos de nos preocupar com outros pormenores. Em particular, apesar de ser intuitivo pensar que para usar a regra da I→ num dado passo é preciso que esse passo dependa da suposição introduzida, isso não é necessário porque introduzir dependências é sempre trivial. 7. Introdução e eliminação da bicondicional Como é evidente, a regra da I⇄ usa-se sempre que temos duas condicionais, uma em cada direcção: A→B B→A ∴A⇄B A conclusão depende das premissas de que dependerem as duas condicionais. A regra da E⇄ é também óbvia: A⇄B ∴ (A → B) ⋀ (B → A) A conclusão depende das premissas de que depender a bicondicional. Eis um exemplo da aplicação da I⇄: 11/02/2015 49 p⋀q⊢p⇄q 1. p⋀q Premissa 2. p Suposição 1 3. q 1 E⋀ 1 4. p→q 2∴3 I→ 5. q Suposição 1 6. p 1 E⋀ 1 7. q→p 5∴6 I→ 1 8. p⇄q 4, 7 I⇄ A nossa estratégia foi tratar a conclusão desejada como uma conjunção de condicionais: “p → q” e “q → p”. Deste modo, aplicámos a regra I→ pensando primeiro numa das condicionais e depois na outra. No último passo limitámo-nos a introduzir a bicondicional porque derivámos as duas condicionais de que precisávamos. Exercícios de derivação 1. p ⊢ q → p 2. (p ⋀ r) ⋁ (q → r) ⊢ q → r 3. p ⇄ q, q ⇄ r ⊢ p ⇄ r 4. (p ⇄ q) ⋀ p ⊢ p ⋁ q 5. p ⇄ (q ⋀ p) ⊢ p → q 8. Verdades lógicas Até agora derivámos apenas formas argumentativas. Como fazer no caso de verdades lógicas? Em contraste com “p ⋀ q ⊢ q ⋀ p”, que indica que a forma proposicional à direita do martelo se deriva da forma à esquerda, “⊢ (p ⋀ q) → (q ⋀ p)” indica que a forma à direita do martelo se deriva de nenhuma forma. No primeiro caso, representa-se uma forma argumentativa válida, como a do seguinte argumento: Platão e Aristóteles eram gregos. Logo, Aristóteles e Platão eram gregos. No segundo, representa-se uma forma proposicional logicamente verdadeira, como a da seguinte verdade lógica: Se Platão e Aristóteles eram gregos, Aristóteles e Platão eram gregos. Vejamos então como se deriva uma verdade lógica elementar, a expressão proposicional do modus ponens: ⊢ [(p → q) ⋀ p] → q 11/02/2015 50 1. (p → q) ⋀ p Suposição 1 2. p 1 E⋀ 1 3. p→q 1 E⋀ 1 4. q 2, 3 E→ 5. [(p → q) ⋀ p] → q 1∴4 I→ Como se vê, a maneira como a regra da I→ funciona permite, neste caso, obter uma forma proposicional que não depende de quaisquer premissas nem de suposições. Isto porque quando aplicamos esta regra, o passo em que a aplicamos fica a depender de todas as premissas ou suposições de que depende o passo 4, excepto da própria suposição 1. Como neste caso o passo 4 dependia apenas de 1, o passo 5 não depende de qualquer premissa ou suposição: derivámos uma forma proposicional logicamente verdadeira. Como já sabemos, qualquer forma argumentativa válida pode ser transformada numa forma proposicional logicamente verdadeira. A forma argumentativa válida “A ⊢ A ⋁ B”, por exemplo, tem como expressão proposicional a forma logicamente verdadeira “⊢ A → (A ⋁ B)”. Deixamos como exercício a transformação de todas as formas argumentativas dos exercícios de derivação anteriores em formas proposicionais, demonstrando-se de seguida por derivação que se trata de formas proposicionais logicamente verdadeiras. 9. Eliminação e introdução da negação Resta-nos apresentar as regras da E¬ e da I¬, a primeira das quais é banal: ¬¬A ∴A Chama-se-lhe “negação dupla”, e não é particularmente surpreendente. Quanto à I¬, é a maneira de, na dedução natural, argumentar por reductio ad absurdum (redução ao absurdo), uma forma de argumentação já conhecida na Grécia da antiguidade. Em lógica formal, a reductio visa encontrar uma contradição formal, sempre com a forma lógica “B ⋀ ¬B” ou “¬B ⋀ B”, partindo de uma suposição. A ideia central é que se da suposição “A” derivarmos uma contradição formal, então “A” era falsa, pelo que “¬A” é verdadeira: A∴(B ⋀ ¬B) ∴ ¬A Quando argumentamos por reductio, acrescentamos ao conjunto das premissas a negação da forma proposicional que queremos concluir, com a finalidade de encontrar uma contradição. Quando a encontrarmos, usamos a I¬ para negar essa suposição, e eliminamos a dependência da suposição. Vejamos como derivamos por reductio o conhecido modus tollens: 11/02/2015 51 p → q, ¬q ⊢ ¬p 1. p→q Premissa 2. ¬q Premissa 3. p Suposição 1, 3 4. q 1, 3 E→ 1, 2, 3 5. q ⋀ ¬q 2, 4 I⋀ 1, 2 6. ¬p 3∴5 I¬ Como se vê, a suposição limita-se a ser a contraditória da conclusão; não é preciso que seja “¬¬p”, que obviamente se transforma em “p” usando a E¬. Na coluna das dependências, indicamos apenas 1 e 2 porque ao usar a I¬ ficamos na dependência de todas as premissas ou suposições de que depender o passo a que se aplica a regra, excepto a suposição introduzida para usar a regra (passo 3, no nosso caso). Argumentar por reductio é supor a contraditória do que queremos concluir, chegar validamente a uma contradição, e negar então essa suposição. Mas em certos contextos lógicos podemos usar a I¬ de outras maneiras; tudo o que se exige é que usemos uma suposição que iremos eliminar com a regra, depois de encontrada uma contradição. É irrelevante se a negação da suposição é a conclusão da nossa derivação ou não, como se vê no seguinte exemplo: p → q, ¬q, ¬p → r ⊢ r 1. p→q Premissa 2. ¬q Premissa 3. ¬p → r Premissa 4. p Suposição 1, 4 5. q 1, 4 E→ 1, 2, 4 6. q ⋀ ¬q 2, 5 I⋀ 1, 2 7. ¬p 4∴6 I¬ 1, 2, 3 8. r 3, 7 E→ 10. Regras primitivas e derivadas Apresentamos agora a lista completa das dez regras primitivas de dedução natural proposicional clássica. Note-se que as regras primitivas só podem aplicar-se a formas proposicionais completas, e não a partes de formas. Assim, a regra da E⋀, por exemplo, não pode aplicar-se à forma “p → (q ⋀ r)”, pois trata-se de uma condicional, mas pode aplicar-se à forma “(p → q) ⋀ r”. Salvo indicação em contrário, a conclusão depende das mesmas premissas a que aplicamos as regras. 11/02/2015 52 I⋀ A B ∴A⋀B E⋀ A⋀B ∴A I⋁ A ∴A⋁B E⋁ A⋁B A∴C B∴C ∴C A conclusão depende de todas as premissas de que depende “A ⋁ B”, e de todas as premissas de que depender cada uma das “C” parciais, mas não depende da suposição “A” nem da “B”. I→ A∴B ∴A→B A conclusão depende de todas as premissas de que depende “B”, mas não depende da suposição “A”. E→ (modus ponens) A→B A ∴B I⇄ A→B B→A ∴A⇄B E⇄ A⇄B ∴ (A → B) ⋀ (B → A) 11/02/2015 53 I¬ (reductio) A∴(B ⋀ ¬B) ∴ ¬A A conclusão depende de todas as premissas de que depender a contradição, mas não depende da suposição “A”. E¬ ¬¬A ∴A Este é, pois, o ponto de partida de um sistema de dedução natural, no sentido em que são aqueles elementos mínimos com os quais podemos demonstrar qualquer validade ou verdade lógica proposicional clássica. Contudo, quando entendemos a lógica de um ponto de vista instrumental, para argumentar melhor e para examinar com rigor a argumentação dos filósofos, o que nos interessa é ter um cardápio de formas argumentativas comuns, sejam ou não regras primitivas. Mesmo no que respeita à resolução de exercícios de derivação, o que nos interessa, deste ponto de vista, é desenvolver uma intimidade com formas argumentativas comuns, sejam ou não primitivas. As leis de De Morgan, por exemplo, não são primitivas na dedução natural mas são fundamentais na argumentação comum, e também para fazer derivações. Todas as regras derivadas são deriváveis usando apenas as regras primitivas; é por isso que são regras derivadas. Algumas regras derivadas obtêm-se muito facilmente usando apenas as primitivas, como é o caso do modus tollens; outras, contudo, só se obtêm de maneiras extraordinariamente imaginativas. Não há qualquer número fixo de regras derivadas pois trata-se apenas de formas argumentativas válidas, e estas são em número infinito. As regras derivadas apresentadas são apenas padrões argumentativos válidos comuns: Modus tollens A→B ¬B ∴ ¬A Silogismo disjuntivo A⋁B ¬A ∴B Silogismo hipotético A→B B→C 11/02/2015 54 ∴A→C Dilema construtivo A⋁B A→C B→D ∴C⋁D Exportação (A ⋀ B) → C ∴ A → (B → C) Importação A → (B → C) ∴ (A ⋀ B) → C As regras derivadas funcionam exactamente como as primitivas: só podem aplicar-se a formas proposicionais completas, e não a partes de formas. Eis uma ilustração do uso de regras derivadas: ¬(¬p ⋀ q), r, r → ¬p ⊢ ¬q 1. ¬(¬p ⋀ q) Premissa 2. r Premissa 3. r → ¬p Premissa 2, 3 4. ¬p 2, 3 E→ 1 5. p ⋁ ¬q 1 De Morgan 1, 2, 3 6. ¬q 4, 5 Silogismo disjuntivo As regras derivadas de inserção, apresentadas a seguir, podem ser aplicadas a partes de formas proposicionais, e não apenas a formas completas. Assim, as leis de De Morgan, por exemplo, tanto podem aplicar-se a “¬(p ⋁ q)”, para obter “¬p ⋀ ¬q”, como a “¬(p ⋁ q) → r”, para obter “(¬p ⋀ ¬q) → r”. Daí o uso do trigrama, “≡”: Negação dupla A ≡ ¬¬A Leis de De Morgan ¬(A ⋁ B) ≡ ¬A ⋀ ¬B ¬(A ⋀ B) ≡ ¬A ⋁ ¬B Negação da condicional 11/02/2015 55 ¬(A → B) ≡ A ⋀ ¬B Negação da bicondicional ¬(A ⇄ B) ≡ (¬A ⋀ B) ⋁ (A ⋀ ¬B) Definição de bicondicional A ⇄ B ≡ (A ⋀ B) ⋁ (¬A ⋀ ¬B) A ⇄ B ≡ ¬A ⇄ ¬B Definição de condicional A → B ≡ ¬A ⋁ B Definição de disjunção A ⋁ B ≡ ¬A → B Contraposição A → B ≡ ¬B → ¬A Comutatividade A⋁B≡B⋁A A⋀B≡B⋀A Distributividade A ⋁ (B ⋀ C) ≡ (A ⋁ B) ⋀ (A ⋁ C) A ⋀ (B ⋁ C) ≡ (A ⋀ B) ⋁ (A ⋀ C) Associatividade A ⋁ (B ⋁ C) ≡ (A ⋁ B) ⋁ C A ⋀ (B ⋀ C) ≡ (A ⋀ B) ⋀ C Idempotência A≡A⋀A A≡A⋁A Eis um exemplo do uso das regras derivadas de inserção: ¬(p ⋁ q) → r, ¬p ⋀ ¬q ⊢ r 1 11/02/2015 1. ¬(p ⋁ q) → r Premissa 2. ¬p ⋀ ¬q Premissa 3. (¬p ⋀ ¬q) → r 1 De Morgan 56 1, 2 4. r 2, 3 E→ 11. Estratégias comuns As suposições só podem ser eliminadas com três regras: E⋁, I¬ e I→. Portanto, sempre que introduzimos uma suposição, temos de ter em vista o uso posterior de uma destas regras, para podermos eliminar a dependência dessa suposição. É uma boa estratégia utilizar a regra I¬ quando a conclusão que se pretende demonstrar tem como principal operador a negação: “¬A”. Introduzindo como suposição “A”, ou seja, a conclusão sem a negação, podemos tentar obter uma contradição para então usar a regra I¬. Mesmo que a conclusão tenha a forma “A”, supor “¬A” com vista ao uso da I¬ é muitas vezes uma estratégia argumentativa adequada. Quando a conclusão que se pretende demonstrar é uma condicional, é muitas vezes uma boa ideia introduzir a antecedente da condicional como suposição, com o objectivo de derivar a consequente. Depois elimina-se a suposição utilizando a regra da I→ e obtém-se a conclusão desejada. Quando a conclusão que se pretende demonstrar pode facilmente transformar-se numa condicional com regras derivadas, podemos fazer à mesma uma derivação condicional. Por exemplo, se a conclusão tiver a forma “A ⋁ B”, podemos supor “¬A” para derivar “B”, e ao chegarmos a “¬A → B” usamos a regra derivada para transformar esta forma proposicional em “A ⋁ B”. Quando a conclusão que se pretende demonstrar é uma bicondicional, “A ⇄ B”, podemos apresentar como suposição primeiro “A”, e derivar “B”, e depois supor “B” para derivar “A”; finalmente, juntamos as duas condicionais com a regra da I⇄. Caso tenhamos “A ⋁ B” como premissa e “A” como conclusão, podemos mesmo assim supor “A” para usar a regra da E⋁, que permitirá eliminar a suposição. Mas, é claro, supor a conclusão do que queremos derivar é falacioso, a menos que possamos, como neste caso, eliminar a dependência dessa suposição. Exercícios 1. Derive todas as regras derivadas usando as regras primitivas e outras derivadas que não a que está derivando. 2. Derive: a) ¬p ⋁ q, ¬p → ¬q ⊢ p ⇄ q b) p → ¬q, ¬p → ¬q ⊢ ¬(q ⋀ r) c) (p ⋁ q) → [(r ⋁ s) → (¬t ⋀ u)], (¬t ⋁ ¬o) → v ⊢ p → (r → v) d) p → q, r → q ⊢ (p ⋁ r) → q e) p ⋁ (¬r ⋀ q), r → ¬p ⊢ ¬r f) p ⇄ q ⊢ ¬q ⋁ p g) p ⋁ q, r, (p ⋀ r) → s ⊢ s ⋁ q h) p, (q ⋀ p) → r, q ⋁ t ⊢ r ⋁ t i) j) 11/02/2015 p → ¬q, q ⋁ (¬p ⋀ t) ⊢ ¬p p → t, q → t ⊢ (q ⋁ p) → t 57 k) q ⇄ t ⊢ ¬t ∨ q l) (p ⋀ q) ⋁ (p ⋀ ¬r), ¬r → ¬p ⊢ q m) q → r, p ⊢ (p → q) → r n) (p ⋁ r) ⇄ q ⊢ ¬q ⋁ (¬p → r) o) p → r, q → s ⊢ (p ⋀ q) → (r ⋀ s) p) p ⋁ q, r → ¬p ⊢ ¬q → ¬r q) q → ¬s, q ⋁ p ⊢ s → p r) ¬r → p, ¬(p ⋁ q) ⊢ r ⋁ q s) ¬(¬p ⋁ ¬q), q → (s → p) ⊢ s → p t) p ⋁ q, p ⇄ r, q → r ⊢ r u) p → (q → r) ⊢ (p ⋀ q) → r v) (p → q) ⋀ (p → ¬q) ⊢ ¬p w) p → q, r ⇄ q ⊢ ¬r → ¬p x) p ⋁ q, p ⇄ r, q → r ⊢ r y) ¬(¬p ⋀ ¬q), p → s, ¬s → ¬q ⊢ s 12. Lógica e filosofia Voltemos à interpretação apresentada no capítulo 1 da argumentação de Epicuro: Se Deus existe e não pode impedir o mal, é impotente. Se Deus existe e não quer impedir o mal, é malévolo. Mas Deus não é impotente nem malévolo. Logo, se Deus existe, pode e quer impedir o mal. Se Deus existe, pode e quer impedir o mal. Se Deus pode e quer impedir o mal, o mal não existe. Ora, o mal existe. Logo, Deus não existe. Como se vê, trata-se de dois argumentos em cadeia: a primeira premissa do segundo é a conclusão do primeiro. Será que os argumentos são válidos? Para o saber, temos de começar por explicitar a sua forma lógica: p: Deus existe. q: Deus pode impedir o mal. r: Deus é impotente. s: Deus quer impedir o mal. t: Deus é malévolo. u: O mal existe. (p ⋀ ¬q) → r (p ⋀ ¬s) → t 11/02/2015 58 ¬r ⋀ ¬t ∴ p → (q ⋀ s) p → (q ⋀ s) (q ⋀ s) → ¬u u ∴ ¬p Agora podemos demonstrar por derivação a validade da primeira forma argumentativa: 1. (p ⋀ ¬q) → r Premissa 2. (p ⋀ ¬s) → t Premissa 3. ¬r ⋀ ¬t Premissa 4. p Suposição 3 5. ¬r 3 E⋀ 1, 3 6. ¬(p ⋀ ¬q) 1, 5 modus tollens 3 7. ¬t 3 E⋀ 2, 3 8. ¬(p ⋀ ¬s) 2, 7 modus tollens 1, 3 9. ¬p ⋁ q 6 De Morgan 1, 3 10. p→q 9 Definição de condicional 1, 3, 4 11. q 4, 10 E→ 2, 3 12. ¬p ⋁ s 8 De Morgan 2, 3 13. p→s 12 Definição de condicional 2, 3, 4 14. s 4, 13 E→ 1, 2, 3, 4 15. q⋀s 11, 14 I⋀ 1, 2, 3 16. p → (q ⋀ s) 4∴15 I→ Quanto à segunda forma argumentativa, eis a derivação que demonstra a sua validade: 1. p → (q ⋀ s) Premissa 2. (q ⋀ s) → ¬u Premissa 3. u Premissa 2, 3 4. ¬(q ⋀ s) 2, 3 modus tollens 1, 2, 3 5. ¬p 1, 4 modus tollens Agora sabemos que a argumentação atribuída a Epicuro vale a pena ser discutida. Sem uma formação lógica adequada não é possível interpretar adequadamente as perguntas retóricas de Epicuro de modo a atribuir-lhe uma argumentação promissora, nem é possível saber se a argumentação é válida. Porém, como é evidente, não argumentamos comummente usando derivações; mas o que usamos é realmente algo próximo disso, pois usamos argumentos encadeados. A 11/02/2015 59 diferença é que nas derivações a argumentação encadeada é feita muito cuidadosamente, um argumento de cada vez, cuidadosamente explicitado e justificado. Neste sentido, as derivações constituem um modelo esclarecedor da argumentação rigorosa, e não é incomum encontrar argumentos filosóficos que dele se aproximam, explicitando cuidadosamente cada passo. Um exemplo, entre muitos, encontra-se em Dickie (1997: 218), um livro de introdução à estética: 1. A unidade numa obra é sempre boa até certo ponto. Princípio 2. As cores desta pintura são harmoniosas e a sua composição Por observação espacial de planos e volumes está solidamente organizada. 3. Esta pintura tem unidade. De 2 ou por observação 4. Esta pintura é boa até certo ponto. De 1 e 3 O objectivo de explicitar a argumentação deste modo é facilitar a detecção de erros, argumentos injustificados ou pressupostos suspeitos. 11/02/2015 60 4. Lógica quantificada Considere-se o seguinte argumento: Alguns filósofos são gregos. Logo, alguns gregos são filósofos. É evidente que o argumento é válido; e é evidente que qualquer argumento com a sua estrutura será válido: Alguns F são G. Logo, alguns G são F. Por isso, trata-se de uma validade formal. Contudo, quando captamos a sua forma na lógica proposicional, obtemos uma forma inválida: p ∴q Isto acontece porque a validade do argumento não depende exclusivamente dos operadores proposicionais estudados: depende também dos predicados, “ser filósofo” e “ser grego”, e da quantificação, ou seja, do termo “alguns”. Um argumento com a mesma forma lógica do anterior mas com “todos” em vez de “alguns” já é obviamente inválido: Todos os canalizadores são seres humanos. Logo, todos os seres humanos são canalizadores. Assim, temos de alargar a nossa lógica, para que possamos sistematizar, explicar e avaliar argumentos como estes. É isso que faremos agora. 1. Nomes e predicados Na lógica proposicional clássica captamos a forma lógica de “Kafka era perspicaz” e “Epicteto era perspicaz” simplesmente como “p” e “q”. Porque nesta lógica só se presta atenção aos cinco operadores estudados, o que há de comum às duas proposições anteriores não é captável. Na lógica quantificada, pelo contrário, damos atenção a dois outros elementos cruciais da argumentação dedutiva: predicados e nomes, por um lado, e quantificadores, por outro. Como é evidente, o que há de comum às duas proposições anteriores é o predicado (“é perspicaz”), diferindo apenas os nomes (“Kafka”, “Epicteto”). Se usarmos a letra “F” para representar predicados e as letras “a” e “b” para representar nomes, as formas lógicas 11/02/2015 61 das duas proposições anteriores são adequadamente representadas por “aF” e “bF”. Agora temos uma maneira muito simples de ver o que há de comum nas duas formas lógicas (a forma predicativa “F”), e o que há de diferente (as formas nominais “a” e “b”). Por deferência para com a tradição lógica, mas por nenhuma razão realmente boa, não iremos escrever “aF” mas antes “Fa”: colocamos primeiro a forma predicativa e só depois a forma nominal, como se disséssemos “Perspicaz era Kafka” em vez de “Kafka era perspicaz”. Assim, iremos usar as letras “a”, “b”, “c”, etc., para representar quaisquer nomes próprios, como “Kafka”, “Paris” e “Lua”. E usaremos as letras “F”, “G”, “H”, etc., para representar quaisquer predicados, como “é perspicaz”, “é bonita” e “é um satélite”. Consequentemente, para compreender adequadamente a forma lógica de qualquer proposição expressa em língua portuguesa, precisamos de ter uma boa compreensão da sua estrutura predicativa. Por exemplo, a palavra “lua” é um predicado, mas a palavra “Lua” é um nome próprio; infelizmente, porém, nem sempre os autores escrevem com lucidez gramatical. Todavia, a diferença entre “A Lua é bonita” e “Europa é uma lua de Júpiter” é abissal: no primeiro caso, tenhamos ou não o rigor de usar maiúscula, trata-se do nome de uma das luas do sistema solar: a do planeta Terra. Acontece apenas que o nome próprio desta lua é “Lua”. Do mesmo modo, Fernando Pessoa chamava-se “Pessoa”, mas esta palavra é também usada como predicado, quando dizemos que Deus é uma pessoa divina, ou que Kit Fine é uma pessoa humana. Na frase “Europa é uma lua”, “é uma lua” é o predicado atribuído ao nome “Europa”; porém, na frase “A Lua é bonita”, “Lua” é o nome ao qual se atribui o predicado “é bonita”. Os predicados da língua portuguesa, como “é bonito” ou “é uma lua”, exprimem propriedades; os nomes próprios, como “Eça” e “Lua”, referem particulares. Um particular é algo que tem propriedades e não pode ser propriedade de coisa alguma: Eça, por exemplo, tem a propriedade de ser português, além de escritor, mas nada pode ter a propriedade de ser Eça. É importante distinguir cuidadosamente os nomes próprios dos particulares que os nomes próprios referem. Os nomes são entidades linguísticas, mas os particulares nem sempre são entidades linguísticas. Por exemplo, Marguerite Yourcenar não era uma entidade linguística, mas antes uma pessoa; em contraste, o nome “Marguerite Yourcenar” é uma entidade linguística, e não uma pessoa. A subtileza aqui é que também as entidades linguísticas são particulares, ou pelo menos as suas inscrições, como é o caso da inscrição do nome “Marguerite Yourcenar”. Do mesmo modo, é importante distinguir entre os predicados e as propriedades que os predicados exprimem. Os predicados são entidades linguísticas, mas as propriedades não são entidades linguísticas. Por exemplo, a propriedade de ser romancista não é uma entidade linguística, mas antes uma característica ou atributo de alguns particulares; em contraste, o predicado “é romancista” é uma entidade linguística, e não uma propriedade. Nem todos os predicados são unários; alguns são binários, outros, ternários. Por exemplo, o predicado “é escritor” é unário porque se aplica exactamente a um nome de ca11/02/2015 62 da vez, ainda que se aplique separadamente a vários, como “Victor Hugo”, “Gabriel García Márquez” e “Lev Tolstói”. Isto contrasta com os predicados binários, como “é irmão de”, que exige dois nomes ao mesmo tempo, ou um nome usado duas vezes: “O Carlos da Maia é irmão de Maria Eduarda”, por exemplo, exprime uma proposição, mas “O Carlos da Maia é irmão” não exprime uma proposição porque falta saber de quem é ele irmão. Um exemplo de um predicado ternário é “estar entre”: “O Chile fica entre o Pacífico e a Argentina”, cuja forma lógica é representada como “Fabc”, representando “a” “Chile”, “b” “Pacífico”, “c” “Argentina” e “F” o predicado “estar entre”. Os predicados binários, ternários, etc., exprimem propriedades relacionais, a que por vezes se chama apenas “relações”. Uma vez que nem todos os predicados são unários, precisamos de uma maneira de indicar a sua aridade (ou seja, se são unários, binários ou ternários, etc.); fazemo-lo com as letras “x”, “y”, “z”, etc. Assim, a forma predicativa “Fx” é unária, “Fxy” é binária. Temos assim uma maneira simples de representar a forma lógica de proposições como a de que o Carlos ama a Maria. Começamos por especificar uma interpretação: a: Carlos b: Maria Fxy: x ama y A forma lógica da proposição original é “Fab”. Dada a nossa interpretação, “Fba” é a forma lógica de uma proposição diferente: a de que a Maria ama o Carlos. Exercícios 1. Represente a forma lógica das proposições expressas a seguir, especificando a sua interpretação: a) Sócrates era grego. b) Sócrates era filósofo. c) Platão era grego. d) Sócrates é casado com Xantipa. e) Xantipa é casada com Sócrates. f) Sócrates é casado com Sócrates. g) Coimbra fica entre o Porto e Lisboa. h) O Porto fica entre Coimbra e Lisboa. i) Coimbra fica entre Lisboa e o Porto. 2. Considere a seguinte interpretação: a: Kerrick; b: Armun; Fx: x é gentil; Gxy: x admira y. Usando esta interpretação, exprima proposições com as seguintes formas lógicas: a) Fa b) Fb c) Gab d) Gba e) Gaa 11/02/2015 63 2. Operadores Vimos até agora como se estrutura a linguagem de predicados da nossa lógica, sem a presença dos operadores clássicos. Contudo, é óbvio como podemos acrescentá-los: a forma lógica de “Eça não era japonês” representa-se obviamente como “¬Fa”, e a de “O Carlos e a Maria eram portugueses” como “Fa ⋀ Fb”. E assim sucessivamente, para todos os operadores: “Fa → Fb”, “Fa ⇄ Gb”, “Fa ⋁ Gb”. Temos, pois, um modo simples de representar a forma lógica de proposições como a expressa pela frase “Se Sócrates e Platão eram gregos, Platão não era inglês”: (Fa ⋀ Fb) → ¬Gb Ou proposições como a expressa pela frase “Aristófanes escreveu As Nuvens, mas não conhecia Sócrates”: Fab ⋀ ¬Gac Contudo, “¬a”, “a ⋁ b”, “a → b”, etc., não exprimem formas predicativas nem proposicionais: representam “não Platão”, “Kant ou Hegel” e “se Aristóteles, então Wittgenstein” — expressões que não são predicados nem exprimem qualquer proposição. Outra maneira de usar operadores proposicionais na lógica quantificada é exemplificada pela forma proposicional “p → Fa”. Uma proposição com esta forma lógica é a expressa pela frase seguinte: “Se a vida faz sentido, Osíris é misericordioso”. Neste caso, “p” representa uma forma proposicional insusceptível de ser adequadamente representada com formas nominais e predicativas. Porquê? Porque não é óbvio que na proposição expressa pela frase “A vida faz sentido” se trate de atribuir uma propriedade a um particular, que seria, estranhamente, a vida; esta não parece um particular, pelo menos no mesmo sentido em que Osíris ou a Grécia são particulares. Sempre que a forma lógica de uma proposição for insusceptível de ser adequadamente representada com formas nominais e predicativas, limitamo-nos a usar os recursos da lógica proposicional. Exercícios 1. Represente a forma lógica das proposições expressas a seguir, especificando a sua interpretação: a) Se Sócrates era grego, também Platão o era. b) Sócrates não era grego se e só se Platão também não o era. c) Sócrates e Platão eram gregos. d) Sócrates era casado com Xantipa, mas Platão não. e) Sócrates era casado com Xantipa se e só se Xantipa era casada com Sócrates. f) Sócrates era casado com Xantipa ou consigo mesmo. g) Sócrates não era cobarde. 2. Considere a seguinte interpretação: a: Kerrick; b: Armun; Fx: x é gentil; Gxy: x admira y. Usando esta interpretação, exprima proposições com as seguintes formas lógicas: 11/02/2015 64 a) Fa → Gab b) Fb ⋀ ¬Gaa c) Gab ⋁ ¬Fb d) Gba ⇄ ¬Gab e) ¬Gaa ⋀ Fb 3. Quantificação Um quantificador é um termo da língua que indica quantas coisas existem ou têm uma dada propriedade. Por exemplo: A maioria dos alemães são simpáticos. Quase nenhum português é trabalhador. Poucos artistas são lúcidos. Estas frases incluem os quantificadores “a maioria”, “quase nenhum” e “poucos”. Todavia, em lógica clássica só incluímos dois quantificadores: “todos” e “algum”. Assim, nenhuma das três proposições anteriormente expressas tem uma forma lógica que possamos representar adequadamente na lógica clássica. Contudo, teremos recursos para representar adequadamente a forma lógica de proposições como as expressas a seguir: Alguns alemães são simpáticos. Nenhum português é trabalhador. Os artistas são lúcidos. Tudo é água. Não há divindades. Algumas pessoas são mais sábias do que outras. Os quantificadores portugueses “todo”, “tudo”, “qualquer” e equivalentes serão representados como “∀”; “∃” representará os quantificadores “algum”, “algo”, “existe”, “pelo menos um” e equivalentes. Para podermos representar a forma lógica da proposição de que tudo é feito de matéria, por exemplo, precisamos de uma maneira de ligar o predicado ao quantificador; isso é feito por meio de variáveis, que são as letras “x”, “y”, “z”, etc. Considere-se a frase seguinte: Kierkegaard é feito de matéria. Se apagarmos o nome, deixamos de ter uma frase e ficamos com um predicado: … é feito de matéria. Este predicado será transformado de novo numa frase voltando a inserir um nome, ou um quantificador: 11/02/2015 65 Eça é feito de matéria. Tudo é feito de matéria. Algo é feito de matéria. O mesmo acontece na nossa lógica: partindo da forma proposicional “Fa”, chegamos à forma predicativa “Fx” retirando “a”. “Fx” será de novo transformado numa forma proposicional reintroduzindo “a” (ou outra forma nominal, como “b”, “c”, etc.), ou introduzindo um quantificador: “∀x Fx” ou “∃x Fx”. Assim, a maneira que temos de ligar o quantificador ao predicado é transformando o que antes era uma variável livre, “x”, numa forma nominal ou numa variável ligada. Uma variável está ligada quando ocorre no âmbito de um quantificador que tenha a mesma variável: em “∀x Fx” ocorre uma variável ligada, “x”. Uma variável é livre quando não está ligada, como acontece a “y” em “∀x Fyx”. O âmbito de um quantificador é toda a expressão à sua direita até à ocorrência de um operador binário. Vejamos o seguinte exemplo: ∀x ¬Fx → Gx Neste exemplo, “Gx” está fora do âmbito do quantificador “∀x”, mas “¬Fx” está no seu âmbito. Quando pelo menos uma variável ocorre livre, não estamos perante uma forma proposicional, mas antes uma forma predicativa, como neste caso. Ou seja, em vez de se representar a forma lógica de uma proposição, representa-se a forma lógica de um predicado. Temos já, pois, uma maneira muito simples de representar a forma lógica de uma proposição como a de que tudo é azul ou algo é verde: ∀x Fx ⋁ ∃x Gx Neste caso, podemos usar a mesma variável, “x”, nos dois lados da disjunção porque não interferem entre si. Contudo, se usarmos os dois quantificadores à cabeça da expressão, precisaremos de usar variáveis diferentes, porque nenhuma variável pode estar ligada a mais de um quantificador: ∀x ∃y (Fx ⋁ Gy) Precisamos dos parêntesis para ligar “y” ao quantificador universal. Os parcos recursos que temos permitem-nos já distinguir os seguintes casos, representando “Fxy” o predicado “x admira y” e “a” o nome “Moore”: Moore admira alguém: ∃x Fax. Alguém admira Moore: ∃x Fxa. Moore admira toda a gente: ∀x Fax. Toda a gente admira Moore: ∀x Fxa. Alguém admira alguém: ∃x ∃y Fxy. Toda a gente admira toda a gente: ∀x ∀y Fxy. 11/02/2015 66 Alguém admira toda a gente: ∃x ∀y Fxy. Toda a gente admira alguém: ∀x ∃y Fxy. Moore admira-se a si próprio: Faa. Toda a gente se admira a si mesma: ∀x Fxx. Alguém se admira a si mesmo: ∃x Fxx. Para que as formas proposicionais acima representem adequadamente a forma lógica das proposições em causa, teremos de restringir o domínio de quantificação a pessoas. O domínio de quantificação é o conjunto de particulares acerca dos quais afirmamos que algum, todos ou nenhum tem uma dada propriedade. Tanto podemos especificar o domínio de quantificação, para economizar a escrita, como acima, como podemos quantificar sobre todos os particulares, escrevendo nesse caso um pouco mais. A forma lógica da proposição de que Moore admira alguém, caso o nosso domínio de quantificação seja tudo e não apenas as pessoas, é representada como se segue: ∃x (Gx ⋀ Fax) Ou seja, existe pelo menos uma coisa que tem duas propriedades: é uma pessoa e Moore admira-a. Se quisermos agora representar a forma lógica da proposição de que toda a gente admira Moore, temos de escrever o seguinte: ∀x (Gx → Fxa) Ou seja, dada uma coisa qualquer, se essa coisa for uma pessoa, admira Moore. Assim, representamos a forma lógica de “alguns F são G” (e variantes, como “há F que são G”) como uma conjunção existencialmente quantificada: “∃x (Fx ⋀ Gx)”. E representamos a forma lógica de “todos os F são G” (e variantes, como “os F são G”) como uma condicional universalmente quantificada: “∀x (Fx → Gx)”. Os quantificadores clássicos são interdefiníveis. Quando dois conceitos são interdefiníveis, isso significa que podemos prescindir de um deles, ficando apenas com o outro. É o que acontece com os quantificadores: ∀x Fx ≡ ¬∃x ¬Fx ∃x Fx ≡ ¬∀x ¬Fx Apesar da interdefinibilidade dos quantificadores, iremos usar ambos porque é mais intuitivo. As equivalências seguintes especificam a relação óbvia dos quantificadores com a negação: ¬∀x Fx ≡ ∃x ¬Fx ¬∃x Fx ≡ ∀x ¬Fx 11/02/2015 67 Ou seja, negar a máxima de Tales de Mileto de que tudo é água é afirmar que há algo que não é água; e negar a existência de divindades egípcias é afirmar que, de tudo o que há, nada é uma divindade egípcia. As equivalências seguintes são também elucidativas: ¬∀x (Fx → Gx) ≡ ∃x (Fx ⋀ ¬Gx) ¬∃x (Fx ⋀ Gx) ≡ ∀x (Fx → ¬Gx) Ou seja, negar que todos os filósofos são norte-americanos, é afirmar que há filósofos que não são norte-americanos; e negar que haja marcianos inteligentes é afirmar que dada uma coisa qualquer, se essa coisa for marciana, não é inteligente. Exercícios 1. Exprima negação de “∀x Fx” sem usar o quantificador universal. 2. Exprima a negação de “∃x Fx” sem usar o quantificador existencial. 3. Represente a forma lógica das proposições a seguir expressas, depois de especificar a sua interpretação: a) Nada é divino. b) Algo é divino. c) Algo não é divino. d) Nem tudo é divino. e) Tudo é divino. f) Alguém ama Buda. g) Buda ama alguém. h) Alguém ama alguém. i) Alguém se ama a si mesmo. j) Toda a gente ama alguém. k) Alguém ama toda a gente. l) Todos os mamíferos são velozes. m) Nenhum mamífero é veloz. n) Alguns mamíferos são velozes. o) Alguns mamíferos não são velozes. p) Epicuro é filósofo e grego. q) Se Epicuro é filósofo, não é grego. r) Não é verdadeiro que se Epicuro é filósofo, não é grego. s) Epicuro é filósofo ou grego. t) Se há filósofos, Epicuro é um deles. u) Se Epicuro não é grego, não há gregos. v) Se todos os filósofos são gregos, Epicuro é grego. w) Alguns filósofos não são gregos e Epicuro é um deles. 4. Considere a seguinte interpretação: a: Isidoro de Sevilha; Fxy: x fala com y. Usando esta interpretação, exprima proposições com as seguintes formas lógicas: a) ∀x Fax b) ∀x Fxa c) ∃x Fxa 11/02/2015 68 d) ∃x Fax e) ∃x Fxx f) ∃x ∃y Fxy g) ∀x ∀y Fxy h) ∀x Fxx 4. Quantificação sem quantificadores Considere-se um domínio de quantificação muitíssimo limitado, com dois particulares apenas, Platão e George Orwell. Como é evidente, afirmar, com respeito a este domínio, que tudo são filósofos é exactamente o mesmo do que afirmar que Platão e Orwell são filósofos; e afirmar que há pelo menos um inglês é exactamente o mesmo do que afirmar que ou Platão é inglês ou é Orwell que o é. O que isto significa é que os dois quantificadores clássicos são afinal abreviaturas de operadores proposicionais: “∀x Fx” abrevia “Fa ⋀ Fb ⋀ Fc ⋀ …” e assim por diante até esgotarmos todos os particulares do domínio, ou sem parar, caso o domínio seja infinito. “∃x Fx” abrevia “Fa ⋁ Fb ⋁ Fc ⋁ …” e assim por diante até esgotarmos todos os particulares do domínio, ou sem parar, caso o domínio seja infinito. Assim, temos as seguintes equivalências, mantendo o nosso domínio de dois particulares apenas: ∀x (Fx → Gx) ≡ (Fa → Ga) ⋀ (Fb → Gb) ∃x (Fx ⋀ Gx) ≡ (Fa ⋀ Ga) ⋁ (Fb ⋀ Gb) Ou seja, afirmar que todos os seres humanos são mortais, no nosso domínio, é afirmar que se Platão for um ser humano, será mortal, e que se Orwell também o for, será também mortal. E afirmar que alguns filósofos são gregos é afirmar que ou Platão é filósofo e grego, ou Orwell tem essas duas propriedades. Este aspecto da quantificação ajuda a compreender por que razão as formas lógicas 1 e 2 são diferentes: 1) ∀x Fx → p 2) ∀x (Fx → p) É tentador pensar que 1 é equivalente a 2 precisamente porque o parêntesis não parece mudar o âmbito do quantificador. Contudo, se pensarmos uma vez mais num domínio com apenas dois particulares, vemos que 1 e 2 abreviam formas proposicionais que não são equivalentes: 3) (Fa ⋀ Fb) → p 4) (Fa → p) ⋀ (Fb → p) 11/02/2015 69 5. Identidade A identidade é apenas um predicado binário; mas o seu papel lógico é de tal modo importante que recebe um símbolo especial, “=”, que já conhecemos da matemática. Poderíamos usar uma letra, “Ixy”, para a identidade, mas não é isso que se faz comummente em lógica. Contudo, é importante ter em mente que a identidade é apenas uma relação ou propriedade relacional. Todavia, tem a característica de só gerar verdades quando relaciona um particular com ele mesmo: é verdadeiro que António Gedeão é Rómulo de Carvalho precisamente porque se trata de dois nomes da mesma pessoa. Em contraste, a propriedade relacional de ter a mesma idade também gera verdades quando relaciona particulares diferentes, além de gerar verdades quando relaciona um particular com ele mesmo. Devido a este aspecto algo radical da identidade, especifica-se por vezes que temos em mente este conceito dizendo que se trata da identidade numérica, o que contrasta com a qualitativa. Quando existe identidade numérica entre António Gedeão e Rómulo de Carvalho, estamos perante um particular apenas, e não dois. Em contraste, quando temos dois lápis exactamente iguais, são dois e não um só, pelo que se trata de mera identidade qualitativa: partilham quase todas as propriedades, mas não se trata de um particular apenas. Daqui em diante, o termo “identidade” quer sempre dizer “identidade numérica”. A identidade, como qualquer outra propriedade relacional binária, precisa do seguinte para que represente uma forma proposicional: 1. Duas formas nominais, ou uma só que ocorra duas vezes: a = b (Cícero é Túlio) a = a (Epicteto é Epicteto) 2. Uma forma nominal e uma variável ligada: ∀x x = a (Tudo é Osíris) 3. Uma variável ligada repetida: ∀x x = x (Tudo é idêntico a si próprio) 4. Duas variáveis ligadas: ∃x ∀y x = y (Há algo que é idêntico a tudo) Se tivermos apenas uma forma nominal uma única vez, ou uma só variável ligada uma única vez, não representamos uma forma proposicional, mas antes uma forma predicativa, como nos seguintes casos: x = a (ser Cícero) x = x (ser auto-idêntico) ∀y x = y (ser idêntico a tudo) Há uma só maneira de interpretar adequadamente a forma proposicional “¬a = b”: como a negação da identidade “a = b”, e não como a negação apenas de “a”, que depois se afirma 11/02/2015 70 ser idêntica a “b”. Por esta razão, não escrevemos “¬(a = b)”: os parêntesis são aqui redundantes. Em alternativa, a “¬a = b” podemos escrever “a ≠ b”. A identidade é usada em lógica clássica para exprimir a existência, e este é um dos aspectos surpreendentes desta lógica. “Descartes existe” parece ter a mesma forma lógica de “Descartes pensa”: “Fa”. Aparentemente, trata-se, nos dois casos, de atribuir a um particular uma propriedade: a existência, no primeiro caso, e o pensamento, no segundo. Contudo, a existência é tratada na lógica clássica de um modo especial, tal como também a identidade é tratada de um modo especial. No caso da identidade, trata-se apenas de uma especificidade do nosso sistema de notação; nada nos impediria, como vimos, de usar “Ixy”, por exemplo, para a identidade. No caso da existência, contudo, não é só uma especificidade do nosso sistema de notação: trata-se, ao invés, de ter uma certa concepção filosófica da existência. Afirmar que Descartes pensa é apenas usar um nome para dizer que o particular em causa tem essa propriedade; a forma lógica da proposição em causa é representada como “Fa”. Todavia, afirmar que Descartes existe não é entendido, na lógica clássica, da mesma maneira: não se trata de usar um nome para dizer que o particular em causa tem essa propriedade; a forma lógica da proposição não é “Fa”. Ao invés, entendemos na lógica clássica que afirmar que Descartes existe é dizer que algo é Descartes; a forma lógica da proposição é “∃x x = a”. Do ponto de vista da lógica clássica, nunca se atribui a existência a um particular excepto recorrendo à quantificação e à identidade. Isto significa que a existência é redutível a estes dois conceitos. A ideia é elegante; afinal, o conceito de quantificação já pressupõe o conceito de existência, pois não podemos dizer quantos particulares têm uma dada propriedade sem dizer que eles existem e têm tal propriedade; e para dizer que nada tem uma dada propriedade, a quantificação terá de ser usada. Todavia, é pelo menos surpreendente que a proposição de que Descartes existe envolva, contra todas as aparências, os conceitos de quantificação e de identidade. 6. Descrições definidas Uma descrição definida é algo como “O filósofo que bebeu a cicuta” ou “A primeira mulher que foi à Lua”. Estas expressões caracterizam-se por ter um papel semelhante ao dos nomes: servem para introduzir o sujeito de uma frase. Assim, tanto podemos dizer “Sócrates era sábio” como “O filósofo que bebeu a cicuta era sábio”: no primeiro caso usamos “Sócrates” e no segundo “O filósofo que bebeu a cicuta”, mas em ambos os casos atribui-se a propriedade de ser sábio a um particular. Porém, se considerarmos que os nomes e as descrições definidas têm a mesma forma lógica, ficamos com uma perplexidade. Considere-se a proposição de que o actual rei de França é calvo. Será verdadeira ou falsa? Uma vez que não há rei de França, talvez seja razoável afirmar que é falsa. Todavia, “o actual rei de França não é calvo”, também parece falsa, precisamente porque não há rei de França. Se a forma lógica das descrições definidas for como a dos nomes, não se vê como poderão as duas proposições ser falsas, pois 11/02/2015 71 nesse caso as suas formas lógicas seriam representadas como “Fa” e “¬Fa” — o que obrigaria a aceitar que se uma das proposições for verdadeira, a outra é falsa, e vice-versa. Uma maneira de resolver esta dificuldade é aceitar que as descrições definidas servem para atribuir uma propriedade a um particular, tal como os nomes, mas que o fazem de um modo muito diferente: ao contrário destes, as descrições definidas têm uma estrutura lógica interna. O nome “Luís”, por exemplo, não tem estrutura lógica interna, e é por isso que “a” representa a sua forma lógica. Devido à maneira como as formas lógicas são entendidas na lógica clássica, isso significa que nesta lógica só há uma maneira de negar que Luís seja calvo: “¬Fa”. Em contraste, as descrições definidas podem ser entendidas como expressões quantificadas disfarçadas. Deste ponto de vista, “O actual rei de França” quer na realidade dizer que existe um actual rei de França, e que só existe um. Por isso, “O actual rei de França é calvo” é entendida, deste ponto de vista, como uma conjunção de três afirmações: 1. Existe um rei actual de França, e 2. Existe apenas um, e 3. Essa pessoa é calva. Assim, a forma lógica de “O actual rei de França é calvo” é, deste ponto de vista, a seguinte: ∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y = x) ⋀ Gx] A forma lógica é a de uma afirmação geral, como “alguns homens são ricos”, encabeçada por um quantificador existencial. Este quantificador tem como âmbito três formas proposicionais unidas pela conjunção (prescindimos de parêntesis para indicar o âmbito das conjunções porque estas são associativas e porque a leitura fica assim mais fácil). A primeira é apenas “Fx”, que representa o predicado “ser rei de França actualmente”. A segunda é a única que inclui uma subtileza: o modo como em lógica dizemos que há uma só coisa. Iremos explicar esta parte, a que se chama cláusula da unicidade, dentro de instantes. A terceira limita-se a atribuir a forma predicativa “Gx”, que representa o predicado “ser calvo”, ao mesmo particular de que estamos falando desde o início. Quanto à cláusula da identidade, note-se que, como já sabemos, na lógica clássica temos apenas dois quantificadores. Contudo, juntamente com a identidade, podemos exprimir quantificadores numéricos, o mais simples dos quais é o quantificador “existe exactamente um”, cuja forma lógica é representada como “∃!x”. Fazemo-lo dizendo que existe algo que é F, “∃x Fx”, e, dada qualquer coisa, se essa coisa for também F, então é o nosso particular inicial e não outro: “∀y (Fy → y = x)”. Temos assim um modo de exprimir um quantificador numérico, usando apenas a identidade e o quantificador existencial clássico. Voltando agora à nossa descrição definida, já se vê como podemos defender sem contradição que “O actual rei de França é calvo” e “O actual rei de França não é calvo” são 11/02/2015 72 ambas falsas. Ambas são falsas porque a forma lógica da segunda não é a negação completa da primeira, mas antes a negação da atribuição da calvície ao actual rei de França: ∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y = x) ⋀ ¬Gx] Uma vez que o actual rei de França não existe, porque a França é uma república e não uma monarquia, a afirmação existencial é falsa, quer afirmemos que ele é calvo, quer afirmemos que não é calvo, tal como é igualmente falso que alguns marcianos são filósofos e que alguns marcianos não são filósofos: porque não há marcianos. Esta maneira de entender as descrições definidas permite representar a forma lógica de proposições como a seguinte: O actual presidente dos EUA é Obama: ∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y = x) ⋀ x = a] Aqui, trata-se de afirmar a identidade entre aquele particular único que é presidente actualmente dos EUA e Obama. Temos agora também recursos para representar a forma lógica de descrições definidas como a seguinte: O filósofo que bebeu a cicuta é o moscardo de Atenas: ∃x ∃y [Fx ⋀ ∀w (Fw → w = x) ⋀ Gy ⋀ ∀w (Gw → w = y) ⋀ x = y] Representando “Fx” o predicado “ser filósofo que bebe cicuta” e “Gx” o predicado “ser moscardo de Atenas”, temos uma primeira descrição definida que, como anteriormente, afirma existir um e um só filósofo que bebeu a cicuta, e uma segunda descrição definida que afirma existir um e um só moscardo de Atenas. Tudo o que há então a fazer é identificar o primeiro particular com o segundo, afirmando que se trata de um só. O quantificador “∃y” está à cabeça da forma proposicional só para evitar o uso de parêntesis para indicar o âmbito. Caso queiramos colocá-lo no início da segunda descrição definida, teremos de escrever o seguinte: ∃x [Fx ⋀ ∀w (Fw → w = x) ⋀ ∃y [Gy ⋀ ∀w (Gw → w = y) ⋀ x = y]] Ao representar a forma lógica de descrições definidas, é habitual desconsiderar a forma lógica dos predicados envolvidos, como é o caso de “ser rei de França actualmente”, “ser filósofo que bebe cicuta” ou “ser presidente dos EUA”. Se formos mais rigorosos, vemos que as formas lógicas aqui envolvidas são mais complexas. No primeiro caso, a forma lógica do predicado é algo como “Fxy”: x é rei de y; no segundo, “Fx ∧ Gxy”: x é filósofo e x bebeu y”; e no terceiro, “Fxy: x é presidente de y”. 11/02/2015 73 Exercícios 1. Elimine os seguintes quantificadores, escrevendo formas proposicionais equivalentes num domínio com apenas três objectos, a, b e c: a) ∀x Fx b) ∃x Fx c) ∀x (Fx → Gx) d) ∃x (Fx ⋀ Gx) e) ∀x (Fx ⋀ Gx) f) ∃x (Fx → Gx) g) ∀x ¬Fx h) ¬∀x Fx i) ∃x ¬Fx j) ¬∃x Fx 2. Explique por que razão “p = p” não faz sentido, mas “a = a” faz sentido. 3. Especificando a sua interpretação, represente as formas lógicas das proposições expressas a seguir: a) Se algo é divino, é Avicena. b) Se Avicena é divino, algo é divino. c) Avicena não existe. d) Avicena não é divino. e) Se tudo é divino, Avicena não existe. 4. Considere a seguinte interpretação: a: Quine; Fx: x é nominalista. Usando esta interpretação, exprima proposições com as seguintes formas lógicas: a) ∀x Fx → Fa b) ∃x (Fx ⋀ x = a) c) ¬∃x x = a d) ∃x ¬x = a e) Fa ⋁ ¬∀x x = x f) Fa → ∃x x = a 5. Represente a forma lógica das proposições expressas a seguir, especificando a sua interpretação: a) O autor das Meditações não era holandês, mas antes francês. b) Hegel foi o autor da Fenomenologia do Espírito. c) O filósofo que deitou fora a escada depois de subir por ela era austríaco. 7. Regras para a identidade Às regras que já temos na dedução natural proposicional, temos apenas de acrescentar seis regras primitivas: quatro para a introdução e eliminação dos dois quantificadores, e duas para a introdução e eliminação da identidade. Começaremos por estas últimas. A regra da introdução da identidade, I=, é apenas um caso particular da ideia de que a qualquer momento podemos introduzir numa derivação uma verdade lógica, sem depender de quaisquer premissas ou suposições. No caso da identidade, podemos inserir “a = a” em qualquer ponto, invocando apenas a regra da I=. 11/02/2015 74 Quanto à regra da eliminação da identidade, E=, trata-se da lei de Leibniz, que é a ideia sensata de que se a e b forem o mesmo particular, e se o primeiro tiver uma dada propriedade, conclui-se validamente que o segundo também a terá: a=b Fa ∴ Fb Eis um caso simples da sua aplicação: Fa ⋀ Gb, a = b ⊢ Fb 1. Fa ⋀ Gb Premissa 2. a=b Premissa 1 3. Fa 1 E⋀ 1 4. Fb 2, 3 E= Como se vê, o resultado da aplicação da E= fica a depender exactamente das mesmas premissas ou suposições de que dependerem os dois passos a que a aplicamos. 8. Regras para o quantificador universal A eliminação do quantificador universal, E∀, traduz a ideia aparentemente razoável de que se deduz validamente que Tales é feito de água da premissa de que tudo é feito de água: ∀x Fx ∴ Fa Eis um exemplo da sua aplicação: ∀x Fx, Fa → Gb ⊢ Gb 1. ∀x Fx Premissa 2. Fa → Gb Premissa 1 3. Fa 1 E∀ 1 4. Gb 2, 3 E→ Neste caso, eliminámos no passo 3 o quantificador universal usando a forma nominal “a”, que já ocorria na derivação. Porém, é igualmente correcto eliminar o quantificador universal usando uma forma nominal nova; se nesta derivação não o fizemos, foi porque isso não permitiria obter o resultado desejado. A única restrição propriamente dita à aplicação da regra da E∀ é esta: temos de substituir todas as ocorrências das variáveis ligadas pelo quantificador eliminado pela forma 11/02/2015 75 nominal. Sem esta restrição, conseguiríamos concluir falaciosamente que Frege tem a mesma altura de toda a gente (“∀x Fax”) da premissa de que toda a gente tem a mesma altura do que ela mesma (“∀x Fxx”). Contudo, apesar de o seguinte aspecto não ser uma restrição à regra da E∀, mas antes um aspecto geral do modo como funcionam as regras de dedução natural, é preciso sublinhá-lo para não se cair em falácias. Considere-se as seguintes formas proposicionais: ∀x Fx → p ∀x (Fx → p) Como vimos na secção 4, apesar de ser tentador pensar que estas formas proposicionais são equivalentes, não o são. Em particular, a primeira é uma condicional cuja antecedente está universalmente quantificada, mas a segunda é uma forma universalmente quantificada. Precisamente devido a essa diferença, é correcto aplicar a E→ à primeira, mas não à segunda; e é correcto aplicar a E∀ à segunda, mas não à primeira. Quanto à introdução do quantificador universal, I∀, não poderá, evidentemente, ser tão simples e directa quanto a sua eliminação. Isto porque é evidentemente inválido concluir que tudo é cinzento do facto de a Lua ser cinzenta: Fa ∴ ∀x Fx A I∀ está coordenada, no nosso sistema de derivações, com a eliminação temporária do mesmo quantificador. A ideia é que no nosso sistema de derivações temos de dar conta de formas argumentativas obviamente válidas como a seguinte: ∀x (Fx → Gx) ∀x Fx ∴ ∀x Gx Como se vê, trata-se apenas de uma versão universalmente quantificada do modus ponens. A dificuldade é que não temos maneira de manipular a condicional da primeira premissa no nosso sistema de regras, pois encontra-se no âmbito de um quantificador universal. A solução é eliminar temporariamente os quantificadores universais usando formas nominais arbitrárias, aplicar o modus ponens (E→), e voltar então a introduzir o quantificador: ∀x (Fx → Gx), ∀x Fx ⊢ ∀x Gx 11/02/2015 1. ∀x (Fx → Gx) Premissa 2. ∀x Fx Premissa 1 3. Fn → Gn 1 E∀ 2 4. Fn 2 E∀ 1, 2 5. Gn 3, 4 E→ 76 1, 2 6. ∀x Gx 5 I∀ Nesta derivação surge pela primeira vez a letra “n”. As letras “n”, “m”, “o”, etc., serão usadas para representar nomes arbitrários. Os nomes arbitrários são nomes estipulados por nós que referem qualquer particular. Usamos formas nominais arbitrárias nas derivações quando eliminamos temporariamente um quantificador universal que temos em vista voltar a introduzir; por isso, eliminamos o quantificador universal não com “a”, por exemplo, mas antes com “n”. Neste caso, usámos a I∀ da maneira mais óbvia: para reintroduzir um quantificador universal que nós mesmos eliminámos temporariamente. Contudo, a regra da I∀ tem de ser aplicável também a casos como o seguinte: ∀x (Fx → Gx), ∀x (Gx → Hx) ⊢ ∀x (Fx → Hx) 1. ∀x (Fx → Gx) Premissa 2. ∀x (Gx → Hx) Premissa 1 3. Fn → Gn 1 E∀ 2 4. Gn → Hn 2 E∀ 5. Fn Suposição 1, 5 6. Gn 3, 5 E→ 1, 2, 5 7. Hn 4, 6 E→ 1, 2 8. Fn → Hn 5-7 I→ 1, 2 9. ∀x (Fx → Hx) 8 I∀ Neste caso, introduzimos uma suposição, no passo 5. Contudo, quando usámos a I∀, no passo 9, fizemo-lo à forma proposicional do passo 8, que não depende já da suposição. Esta é a restrição ao uso da I∀: não podemos aplicá-la a uma forma proposicional que seja uma premissa ou que dependa de uma premissa na qual ocorra a forma nominal que iremos eliminar (“n”, no nosso caso). Note-se que as suposições são premissas, o que significa que esta restrição nos impede de aplicar a I∀ ao passo 7, por exemplo, porque “Hn” depende da suposição do passo 5, que contém “n”. Vejamos outro exemplo da aplicação da I∀: ∀x (Fx → Gx) ⊢ ∀x ¬(Fx ⋀ ¬Gx) 11/02/2015 1. ∀x (Fx → Gx) Premissa 2. Fn ⋀ ¬Gn Suposição 1 3. Fn → Gn 1 E∀ 2 4. Fn 2 E⋀ 1, 2 5. Gn 3, 4 E→ 2 6. ¬Gn 2, E⋀ 1, 2 7. Gn ⋀ ¬Gn 5, 6 I⋀ 77 1 8. ¬(Fn ⋀ ¬Gn) 2∴7 I¬ 1 9. ∀x ¬(Fx ⋀ ¬Gx) 8 I∀ Uma vez mais, não poderíamos ter aplicado a I∀, para eliminar “n”, a nenhum dos passos que dependem da suposição do passo 2 porque esta premissa inclui “n”. A segunda restrição da I∀ é esta: temos de substituir todas as formas nominais, e não apenas algumas. Ou seja, se tivermos uma forma proposicional como “Fn → Gn”, não podemos inserir “∀x Fx → Gn” nem “∀x (Fx → Gn)”; é preciso eliminar todos os “n”, inserindo “∀x (Fx → Gx)”. A razão de ser desta restrição é que sem ela poderíamos inferir que existe um particular idêntico a tudo (“∃y ∀x y = x”) da premissa pacífica de que tudo é idêntico a si próprio (“∀x x = x”). Assim, a regra da I∀ tem duas restrições: 1. Não podemos aplicá-la a “Fn” se “Fn” for uma premissa ou depender de uma premissa que inclua “n”. 2. Temos de substituir todas as ocorrências da forma nominal em causa. Exercícios de derivação 1. a = b → Ga, a = b ⊢ Gb 2. a = b, b = c, Fa ⊢ Fc 3. Fa, ¬Fb ⊢ ¬a = b 4. ∀x (Fx → Gx), ¬Ga ⊢ ¬Fa 5. ∀x (Fx → Gx) ⊢ ∀x (¬Gx → ¬Fx) 6. ∀x ¬(Fx → Gx) ⊢ ¬Ga 7. ∀x Fx, ∀x Gx ⊢ ∀x (Fx ⋀ Gx) 8. ∀x (Fx ⋀ Gx) ⊢ ∀x Fx ⋀ ∀x Gx 9. ∀x x = a, Fb ⊢ Fa 9. Regras para o quantificador existencial A introdução do quantificador existencial, I∃, baseia-se na ideia de que se deduz validamente que há pelo menos um nominalista da premissa de que Guilherme de Ockham é nominalista: Fa ∴ ∃x Fx Eis um exemplo da aplicação da regra: Fa, a = b, Fb → Gb ⊢ ∃x Gx 11/02/2015 1. Fa Premissa 2. a=b Premissa 78 3. Fb → Gb Premissa 1, 2 4. Fb 1, 2 E= 1, 2, 3 5. Gb 3, 4 E→ 1, 2, 3 6. ∃x Gx 5 I∃ A I∃ é muito simples e não tem qualquer restrição: tanto podemos substituir todas as formas nominais, concluindo “∃x Fxx” de “Faa”, por exemplo, como podemos substituir apenas algumas delas, concluindo “∃x Fxa” de “Faa”. Quanto à regra da E∃, é menos simples do que a I∃. Isto porque, como é óbvio, é inválido concluir que Plantinga é ateu da premissa de que há ateus: ∃x Fx ∴ Fa Assim, a regra da E∃ consistirá em eliminar o quantificador, fazendo uma suposição. No caso da forma proposicional “∃x Fx”, por exemplo, supomos “Fn”. Com base nesta suposição chegamos a um dado resultado, “C”, que não contenha “n” nem dependa de qualquer suposição ou premissa que contenha “n”, excepto da própria suposição “Fn”. Podemos agora reafirmar “C”, sem depender da suposição, mas dependendo da forma proposicional original, “∃x Fx”.2 Eis um exemplo da sua aplicação: ∃x (Fx ∧ Gx), ∀x (Fx → Hx) ⊢ ∃x Hx 1. ∃x (Fx ⋀ Gx) Premissa 2. ∀x (Fx → Hx) Premissa 3. Fn ⋀ Gn Suposição 3 4. Fn 3 E⋀ 2 5. Fn → Hn 2 E∀ 2, 3 6. Hn 4, 5 E→ 2, 3 7. ∃x Hx 6 I∃ 1, 2 8. ∃x Hx 1, 3∴7 E∃ No passo 3 introduzimos uma suposição com vista ao uso da E∃, eliminando o quantificador existencial da forma proposicional do passo 1 e inserindo “n” no lugar de “x”. Desta suposição conseguimos deduzir validamente o passo 7, que não contém qualquer “n” nem depende de qualquer premissa ou suposição que contenha “n”, excepto da própria suposição do 2 A forma argumentativa aqui em jogo é uma aplicação da regra da E⋁, o que se torna patente se pensarmos que “∃x Fx” é equivalente a uma disjunção como “Fa ⋁ Fb”, se o nosso domínio de quantificação tiver apenas dois particulares. 11/02/2015 79 passo 3. Então, concluímos a argumentação no passo 8, com base no passo 1 e na subderivação que parte da suposição do passo 3 e termina no 7. Claro que é algo enganador chamar “eliminação do quantificador existencial” a esta regra, uma vez que, na maior parte das suas aplicações, voltamos a introduzir o quantificador no final da subderivação. Todavia, nem sempre isso acontece: ∀x x = a, ∃x Fx ⊢ Fa 1. ∀x x = a Premissa 2. ∃x Fx Premissa 3. Fn Suposição 1 4. n=a 1 E∀ 1, 3 5. Fa 3, 4 E= 1, 2 6. Fa 2, 3∴5 E∃ As restrições à aplicação da E∃ são as seguintes: 1. A suposição introduzida por nós tem de substituir todas as variáveis ligadas pelo quantificador existencial, e não apenas algumas; 2. Temos de usar formas nominais arbitrárias, como “n”, e não formas nominais específicas, como “a”; 3. A forma proposicional final, à qual aplicaremos a E∃, não pode conter qualquer forma nominal, como “n”, que dependa da suposição introduzida, nem pode depender de quaisquer premissas ou suposições que contenham “n”, excepto da suposição introduzida para usar esta mesma instância da regra. Exercícios de derivação 1. ∀x Fx ⊢ ∃x Fx 2. ∃x Fx → a = b, Fa ⊢ Fb 3. ∃x (Fx → Gx) ⊢ ∃x (¬Gx → ¬Fx) 4. Fa, a = b, Fb → Ga ⊢ ∃x Gx 5. ∀x Fx ⊢ ¬∃x ¬Fx 10. Regras primitivas e derivadas Temos assim de acrescentar seis regras primitivas às dez regras de dedução natural que já conhecemos. Tal como acontece no caso das regras primitivas proposicionais, também aqui se trata de configurações gerais. A regra da E∀, por exemplo, tanto se aplica a “∀x Fx” como a “∀x (Fx → Gx)”, e tanto permite concluir “Fa” como “Fn”. Assim, precisamos uma vez mais de usar variáveis de fórmula, para que sejamos capazes de formular as regras em toda a sua generalidade. Iremos usar “t” e “u” como formas nominais gerais, que representam igualmente formas nominais arbitrárias, como “n”, e formas nominais específicas, como “a”. Iremos usar “v” exclusivamente para formas nominais arbitrárias, como “n”. E iremos usar 11/02/2015 80 “Ax” para qualquer forma predicativa, por mais complexa que seja: tanto “Fx” como “Fx → Gx”, por exemplo, são representadas por “Ax”. Finalmente, “C” representa qualquer forma proposicional. I= ∴t=t E= At t=u ∴ Au I∀ Av ∴ ∀x Ax “Av” não pode ser uma premissa, nem depender de qualquer premissa que contenha “v”; “x” tem de substituir todas as ocorrências de “v”. E∀ ∀x Ax ∴ At “t” tem de substituir todas as ocorrências de “x”. I∃ At ∴ ∃x Ax E∃ ∃x Ax Av ∴ C ∴C “Av” tem de resultar da substituição de todos os “x” de “∃x Ax”, “C” não pode conter “v” nem depender de qualquer premissa ou suposição que contenha “v”, excepto de “Av”. Tal como no caso da lógica proposicional, temos também um conjunto de regras derivadas, que neste caso são todas regras de inserção: Definição de universal ∀x Ax ≡ ¬∃x ¬Ax 11/02/2015 81 Definição de existencial ∃x Ax ≡ ¬∀x ¬Ax Negação do universal ¬∀x Ax ≡ ∃x ¬Ax Negação do existencial ¬∃x Ax ≡ ∀x ¬Ax 11. Lógica e filosofia Voltemos à interpretação já nossa conhecida do argumento de Platão: Quem usa uma coisa é diferente do que é usado. O homem usa o seu próprio corpo. Logo, o homem é diferente do seu corpo. Para explicitar a forma lógica deste argumento, temos de começar por compreender que a primeira premissa quer dizer que todas as pessoas que usam uma coisa são diferentes do que usam. Agora temos de compreender, contudo, o que é isso de ser diferente de algo. Ora, uma pessoa é diferente de outra, por exemplo, quando não há entre elas a relação de identidade. Assim, a primeira premissa afirma que não há identidade entre duas coisas: as coisas usadas e as pessoas que usam essas coisas. Esta é a chave para compreender a forma lógica da primeira premissa: ∀x ∀y [(Gx ⋀ Fxy) → ¬x = y] A ideia é que dadas quaisquer duas coisas, se a primeira for um homem e usar a segunda, não há entre ambas a relação de identidade. A forma lógica da segunda premissa é agora mais fácil de explicitar. Trata-se da afirmação de que dada uma coisa qualquer, se ela for um homem, então essa coisa usa o seu corpo: ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → Fxy] Ou seja: dadas quaisquer duas coisas, se a primeira for um ser humano e a segunda um corpo de um ser humano, então a primeira usa a segunda. A forma lógica da conclusão é agora óbvia: ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → ¬x = y] Eis então a demonstração, por derivação, da validade desta forma argumentativa: 11/02/2015 82 ∀x ∀y [(Gx ⋀ Fxy) → ¬x = y], ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → Fxy] ⊢ ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → ¬x = y] 1. ∀x ∀y [(Gx ⋀ Fxy) → ¬x = y] Premissa 2. ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → Fxy] Premissa 1 3. ∀y [(Gn ⋀ Fny) → ¬n = y] 1 E∀ 1 4. (Gn ⋀ Fnm) → ¬n = m 3 E∀ 2 5. ∀y [(Gn ⋀ Hyn) → Fny] 2 E∀ 2 6. (Gn ⋀ Hmn) → Fnm 5 E∀ 7. Gn ⋀ Hmn Suposição 2, 7 8. Fnm 6, 7 E→ 7 9. Gn 7 E⋀ 2, 7 10. Gn ⋀ Fnm 8, 9 I⋀ 1, 2, 7 11. ¬n = m 4, 10 E→ 1, 2 12. (Gn ⋀ Hmn) → ¬n = m 7∴11 I→ 1, 2 13. ∀y [(Gn ⋀ Hyn) → ¬n = y] 12 I∀ 1, 2 14. ∀x ∀y [(Gx ⋀ Hyx) → ¬x = y] 13 I∀ Só agora, que sabemos que o argumento é válido, é relevante discutir as premissas; pois se não fosse válido, poderíamos aceitar as premissas e rejeitar a conclusão sem contradição. Este é um dos papéis que a lógica tem na filosofia. Exercícios de derivação 1. ∀x (Fx → Gx), ∃x Fx ⊢ ∃x (Fx ⋀ Gx) 2. ∀x (Fx → ¬Gx), ∃x Fx ⊢ ∃x (Fx ⋀ ¬Gx) 3. ¬∀x (Fx → Gx) ⊢ ∃x (Fx ⋀ ¬Gx) 4. ¬∀x (Fx → ¬Gx) ⊢ ∃x (Fx ⋀ Gx) 5. ¬∃x (Fx ⋀ Gx) ⊢ ∀x (Fx → ¬Gx) 6. ¬∃x (Fx ⋀ ¬Gx) ⊢ ∀x (Fx → Gx) 7. ∀x (Fx → Gx), Fa ⊢ ∃x Gx 8. ∀x (Fx ⋁ Gx), Fa → Ha, Ga → Ha ⊢ ∃x Hx 11/02/2015 83 5. Árvores lógicas As árvores lógicas permitem demonstrar não apenas a validade de formas argumentativas, como também as derivações o permitem, mas também a sua invalidade. Além disso, são muitíssimo simples. Vejamos como aplicá-las à lógica clássica, cujos elementos mais simples já conhecemos. 1. Apresentação do método As árvores lógicas representam diagramaticamente disjunções e conjunções — e é por isso que dão origem a coisas que parecem árvores invertidas, com ramos e um tronco principal. Por exemplo, a forma proposicional “p → q” é equivalente a “¬p ⋁ q”, mas esta última será representada diagramaticamente, fazendo dois ramos: p→q ¬p q Este é o modo como simplificamos a forma proposicional original, colocando cada uma das formas simplificadas num ramo diferente. Um ramo é um percurso, ascendente ou descendente, que nunca inverta a direcção: se começamos na direcção ascendente, temos de continuar na mesma direcção; se começarmos na direcção descendente, também de continuar nessa direcção. Assim, neste caso temos dois ramos ascendentes: o da esquerda, que começa em “¬p” e termina na condicional; e o da direita, que começa em “q” e termina também na mesma condicional. Esta condicional está, pois, num tronco que é comum aos dois ramos. Há duas maneiras de simplificar formas proposicionais no método das árvores lógicas: em ramo e em lista. A forma proposicional “p → q” é simplificada em ramo, como vimos; já a forma proposicional “p ⋀ q” é simplificada em lista e não em ramo: p⋀q p q A conjunção é simplificada em lista porque, como é evidente, para que seja verdadeira, é preciso que ambas as formas proposicionais constituintes sejam verdadeiras. Como se vê, as árvores funcionam sempre por simplificação de formas proposicionais. Isto significa que temos de saber muito claramente quando uma dada forma proposicional é simples, e quando o não é. Uma forma proposicional é simples quando não tem 11/02/2015 84 quaisquer quantificadores nem operadores proposicionais clássicos. Assim, as formas proposicionais seguintes são simples: p Fa a=b As formas proposicionais seguintes não são simples: p⋀q ∃x Fx Vejamos então como se demonstra a validade de uma forma argumentativa, usando o método das árvores. Considere-se o modus ponens: p→q p ∴q Para demonstrar a sua validade, começamos por juntar a negação da conclusão às premissas: p→q p ¬q Fazemo-lo porque o método das árvores lógicas procede sempre por reductio: demonstramos que uma dada forma argumentativa é válida mostrando que a conjunção das premissas com a negação da conclusão dá origem a um conjunto inconsistente de formas proposicionais. Para ver o que isto quer dizer, completemos a nossa árvore: p→q p ¬q ¬p q O que fizemos foi simplificar a única forma lógica que podíamos simplificar: a primeira premissa. Se examinarmos agora a árvore obtida, vemos que a segunda premissa, “p”, é inconsistente com a última forma proposicional do ramo da esquerda, “¬p”. Do mesmo modo, a negação da conclusão, “¬q”, é inconsistente com a última forma proposicional do ramo da direita, “q”. Uma forma proposicional “A” é inconsistente exclusivamente com “¬A”, e vice-versa. Isto significa que os seguintes pares de formas proposicionais são inconsistentes: 11/02/2015 85 p, ¬p p → q, ¬(p → q) p ⋀ q, ¬(p ⋀ q) Mas os seguintes pares de formas proposicionais não são inconsistentes: p → q, ¬p → q p → q, ¬p → ¬q p ⋀ q, ¬p ⋀ ¬q Quando num ramo encontramos uma inconsistência, sublinhamos a última forma proposicional e dizemos que o ramo em causa fechou. Quando todos os ramos fecham, como no exemplo anterior, a forma argumentativa original era válida. Quando pelo menos um dos ramos não fecha, como no exemplo seguinte, a forma argumentativa original é inválida: p → q, q ∴ p p→q q ¬p ¬p q Neste caso, nenhum ramo fecha; mas bastaria que um ramo não fechasse para demonstrar que a forma argumentativa original era inválida. 2. Regras para operadores Dada a natureza das árvores lógicas, precisamos de regras de simplificação para todas as formas proposicionais que não sejam simples nem negações de formas proposicionais simples. Como é evidente, só há oito tipos de formas proposicionais dessas: conjunções, disjunções, condicionais, bicondicionais e respectivas negações. Isto significa que teremos apenas oito regras para a lógica proposicional clássica: A⋀B A B ¬(A ⋀ B) ¬A ¬B A⋁B 11/02/2015 86 A B ¬(A ⋁ B) A B A→B ¬A B ¬(A → B) A ¬B A⇄B A ¬A B ¬B ¬(A ⇄ B) A ¬A ¬B B Nenhuma das regras é surpreendente. A negação da conjunção é uma aplicação de De Morgan, assim como a negação da disjunção. A negação da condicional já é nossa conhecida. Quanto à regra de simplificação da negação da bicondicional, tal como formulada, permite fazer árvores menores, mas talvez seja menos imediatamente óbvia do que a seguinte: ¬(A ⇄ B) ¬(A → B) ¬(B → A) Todavia, como é evidente, se formulássemos a regra deste modo, o resultado da sua aplicação exigiria sempre a aplicação da regra de simplificação da negação da condicional. Ora, o resultado da aplicação desta regra seria exactamente igual ao resultado que temos já directamente na formulação da nossa regra original. Em qualquer caso, a regra original é semanticamente transparente, pois quando uma bicondicional “A ⇄ B” é falsa isso significa que ou “A” verdadeira e “B” falsa, ou “A” é falsa e “B” verdadeira. 11/02/2015 87 Com estas oito regras podemos demonstrar a validade ou invalidade de qualquer forma argumentativa cuja validade ou invalidade dependa exclusivamente dos cinco operadores proposicionais clássicos. A título de exemplo, eis a demonstração da validade da transitividade da condicional: p → q, q → r ∴ p → r p→q q→r ¬(p → r) p ¬r ¬p q ¬q r A forma argumentativa original é válida porque todos os ramos da sua árvore lógica fecham. Depois de simplificar uma forma proposicional, não podemos voltar a simplificá-la; mas quando simplificamos uma forma proposicional temos de colocar o resultado da simplificação em todos os ramos abertos que estiverem na sua dependência, como se vê na demonstração seguinte do dilema: p ⋁ q, p → r, q → r ∴ r p⋁q p→r q→r ¬r p ¬p q r ¬p ¬q r r Como se vê, ao simplificar “p → r”, tivemos de repetir as formas resultantes nos dois ramos abertos: sob “p” e sob “q”. Sempre que simplificamos uma forma proposicional de um dado passo temos de inserir as formas resultantes em todos os ramos que estiverem abertos abaixo desse passo e que dele dependam; mas não podemos inserir as formas resultantes em ramos abertos que não estejam abaixo desse passo, ou que não dependam dele. Note-se, além disso, que uma dada forma proposicional “A” só fecha com “¬A” quando ambas estão no mesmo ramo. Assim, na árvore anterior, a forma proposicional “¬p” 11/02/2015 88 que se encontra imediatamente abaixo de “q” não fecha com a forma “p” que se encontra imediatamente abaixo de “¬r”, apesar de serem inconsistentes. A árvore anterior ilustra também a possibilidade de fazer árvores diferentes, em função da ordem seguida ao simplificar as formas proposicionais. No exemplo anterior simplificámos as formas sem qualquer estratégia de optimização; o preço a pagar foi uma árvore mais complexa do que seria necessário. Se começarmos por simplificar as duas condicionais, deixando para último a simplificação da primeira premissa, obtemos uma árvore menos complexa: p⋁q p→r q→r ¬r ¬p ¬q p r r q Assim, para que as nossas árvores sejam tão simples quanto possível, é uma boa estratégia começar por aplicar as regras que não obrigam a abrir ramos novos, como é o caso da simplificação de “¬(A ⋁ B)”, de “A ⋀ B” e de “¬(A → B)”. Em segundo lugar, ao simplificar formas proposicionais que obrigam a abrir ramos novos, como “A ⋁ B” e “A → B”, devemos começar pelos casos em que um dos ramos fecha desde logo, como aconteceu na árvore anterior com a simplificação da forma proposicional “p → r”. Finalmente, note-se, uma vez mais, que para fechar um ramo não temos de simplificar todas as formas proposicionais: qualquer inconsistência basta. Tanto fechamos um ramo com a inconsistência “p” e “¬p”, como o fechamos com a inconsistência “p → (q ⋁ r)” e “¬[p → (q ⋁ r)]”. Só continuamos a simplificar formas proposicionais enquanto não conseguirmos fechar o ramo em causa. 3. Contramodelos Quando uma forma argumentativa é inválida, isso significa que há pelo menos uma circunstância logicamente possível na qual as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa. A cada uma dessas circunstâncias chama-se “contramodelo”. As árvores lógicas não se limitam a demonstrar a invalidade das formas argumentativas inválidas; especificam também os seus contramodelos. Para determinar os contramodelos de uma dada forma argumentativa, basta examinar a árvore resultante, seguindo todos os ramos abertos. Cada forma proposicional sim- 11/02/2015 89 ples ou negação de forma proposicional simples que encontrarmos irá constituir o contramodelo. Assim, por exemplo, examinemos a árvore que demonstra a invalidade da falácia da inversão da condicional: p→q∴q→p p→q ¬(q → p) q ¬p ¬p q Como se vê, nenhum dos ramos fecha, o que demonstra a invalidade da forma argumentativa original. Examinando agora cada um dos ramos que ficaram abertos, começando pelo da esquerda, encontramos as seguintes formas proposicionais simples e negações de formas proposicionais simples: “¬p”, “q”. Fazendo o mesmo com o ramo direito encontramos as mesmas duas formas proposicionais simples e negações de formas proposicionais simples. Isto significa que há um só contramodelo: {¬p, q}. Ou seja, há uma só circunstância logicamente possível na qual as premissas da forma argumentativa são verdadeiras e a conclusão falsa: a circunstância em que “p” é falsa e “q” verdadeira. Isto é confirmado fazendo uma tabela de validade: pq p→q q→p VV V V VF F V FV V F FF V V Vejamos outro exemplo: (p ⋀ q) → r, ¬r ∴ ¬p ⋀ ¬q (p ⋀ q) → r ¬r ¬(¬p ⋀ ¬q) ¬(p ⋀ q) ¬p p 11/02/2015 r ¬q q p q 90 Examinando agora os dois ramos que ficaram abertos, encontramos, no primeiro, as seguintes formas proposicionais simples, ou negações de formas proposicionais simples: “q”, “¬p” e “¬r”. No segundo ramo que ficou aberto encontramos as seguintes: “p”, “¬q” e “¬r”. Este são, pois, os contramodelos da forma argumentativa sob exame: {q, ¬p, ¬r} {p, ¬q, ¬r} Isto significa que há duas circunstâncias nas quais as premissas são verdadeiras e a conclusão falsa: quando “q” é verdadeira, e “p” e “r” são ambas falsas; e quando “p” é verdadeira e “q” e “r” são ambas falsas. Uma tabela de validade, que deixamos como exercício, irá confirmar este resultado. Exercícios Usando o método das árvores lógicas, determine a validade ou invalidade das formas argumentativas seguintes; no caso das invalidades, especifique o contramodelo. 1. p ⋁ q ∴ q ⋁ p 2. (p ⋀ q) ⋁ (q ⋀ r) ∴ q 3. (p ⋀ q) ⋁ (q ⋀ r) ∴ q ⋁ s 4. p ⋁ (q ⋀ p) ∴ p ⋁ r 5. (p ⋁ q) ⋀ p ∴ p ⋁ (q ⋀ p) 6. (p ⋁ r) → q, p ∴ q 7. p → (q ⋁ r), p ∴ r ⋁ q 8. p ⋀ q, (q ⋁ r) → s ∴ s 9. p, (p ⋁ q) → r, (r ⋀ p) → s ∴ s 10. p → (p → r), p ∴ r 11. ¬q → r, r → ¬p ∴ ¬q → ¬p 12. r, q → p ∴ q → (p ⋀ r) 13. p ⋁ q, p → r, q → r ∴ s → r 14. p → (q ⋁ r), q → s, r → s ∴ p → s 15. p → q ∴ (q → r) → (p → r) 16. p → (q ⋁ r), q → s ∴ (r → s) → (p → s) 17. p ∴ q → p 18. (p ⋀ r) ⋁ (q → r) ∴ q → r 19. p ⇄ q, q ⇄ r ∴ p ⇄ r 20. (p ⇄ q) ⋀ p ∴ p ⋁ q 21. p ⇄ (q ⋀ p) ∴ p → q 22. p → ¬q, ¬p → ¬q ∴ ¬(q ⋀ r) 23. ¬p ⋁ q, ¬p → ¬q ∴ p ⇄ q 24. (p ⋁ q) → [(r ⋁ s) → (¬t ⋀ u)], (¬t ⋁ ¬o) → v ∴ p → (r → v) 25. p → q, r → q ∴ (p ⋁ r) → q 26. p ⋁ (¬ r ⋀ q), r → ¬ p ∴ ¬ r 27. p ⇄ q ∴ ¬ q ⋁ p 11/02/2015 91 28. p ⋁ q, r, (p ⋀ r) → s ∴ s ⋁ q 29. p, (q ⋀ p) → r, q ⋁ t ∴ r ⋁ t 30. p → ¬ q, q ⋁ (¬ p ⋀ t) ∴ ¬ p 31. p → t, q → t ∴ (q ⋁ p) → t 32. q ⇄ t ∴ ¬t ⋁ q 33. (p ⋀ q) ⋁ (p ⋀ ¬r), ¬r → ¬p ∴ q 34. q → r, p ∴ (p → q) → r 35. (p ⋁ r) ⇄ q ∴ ¬q ⋁ (¬p → r) 36. p → r, q → s ∴ (p ⋀ q) → (r ⋀ s) 37. p ⋁ q, r → ¬p ∴ ¬q → ¬r 38. q → ¬s, q ⋁ p ∴ s → p 39. ¬r → p, ¬(p ⋁ q) ∴ r ⋁ q 40. ¬(¬p ⋁ ¬q), q → (s → p) ∴ s → p 41. p ⋁ q, p ⇄ r, q → r ∴ r 42. p → (q → r) ∴ (p ⋀ q) → r 43. (p → q) ⋀ (p → ¬q) ∴ ¬p 44. p → q, r ⇄ q ∴ ¬r → ¬p 45. p ⋁ q, p ⇄ r, q → r ∴ r 46. ¬(¬p ⋀ ¬q), p → s, ¬s → ¬q ∴ s 47. p ∴ p ⋁ (q ⋀ r) 48. p ⋀ q ∴ (q ⋀ r) ⋁ (q ⋀ p) 49. p, q ⋁ r ∴ [p ⋀ (q ⋁ r)] ⋀ p 50. p ⋀ (q ⋀ r) ∴ r ⋁ s 51. p ⋀ q, ¬p ∴ q 52. p ⋀ q, ¬p ∴ q 53. p → q ∴ p ⇄ q 54. p ⇄ q ∴ p → q 55. p → q ∴ q ⋀ p 56. p → q ∴ q → p 57. p → q, q → p ∴ ¬p ⋁ q 4. Verdades lógicas Recordemos os conceitos de verdade lógica, falsidade lógica e contingência lógica. Uma verdade lógica é qualquer proposição que seja verdadeira em todas as circunstâncias logicamente possíveis; é o caso de qualquer proposição que tenha a forma lógica “A → A”, como a expressa pela frase “se a vida tem sentido, tem sentido”. Uma falsidade lógica, por sua vez, é a negação de uma verdade lógica: uma proposição falsa em qualquer circunstância logicamente possível. É o caso de qualquer proposição que tenha a forma lógica “A ⋀ ¬A”, como a expressa pela frase “a vida tem e não tem sentido”. Uma contingência lógica é uma proposição verdadeira em algumas circunstâncias logicamente possíveis e falsa noutras, como a expressa pela frase “se a vida tem sentido, há livre-arbítrio”, cuja forma lógica é “A → B”. 11/02/2015 92 Além de demonstrar a validade ou invalidade de qualquer forma inferencial, o método das árvores permite também demonstrar que uma dada forma proposicional é uma verdade lógica, uma falsidade lógica ou uma contingência lógica. Para isso, limitamo-nos a negar a forma proposicional em causa; se fecharmos todos os ramos, demonstramos que é uma verdade lógica; caso contrário, demonstramos que não é uma verdade lógica. Neste último caso, resta saber se, além de não ser uma verdade lógica, é uma falsidade lógica — ou se será antes uma contingência lógica. Para o determinar, testamos a forma proposicional em si, sem a negarmos; se fecharmos todos os ramos, demonstramos que é uma falsidade lógica; caso contrário, que não é uma falsidade lógica. Vejamos um exemplo: a expressão proposicional do modus ponens, “[(p → q) ⋀ p] → q”, é, evidentemente, uma verdade lógica. Para o demonstrar, negamo-la e fazemos a árvore: ¬[[(p → q) ⋀ p] → q] (p → q) ⋀ p ¬q p→q p ¬p q A forma proposicional original é uma verdade lógica porque todos os ramos da árvore fecham. Consideremos agora uma forma proposicional que não é uma verdade lógica: [(p → q) ⋀ q] → p ¬[[(p → q) ⋀ q] → p] (p → q) ⋀ q ¬p p→q q ¬p q Demonstrámos que a forma proposicional original não é uma verdade lógica, pois não fechámos todos os ramos da árvore da sua negação. Resta agora saber se será uma falsidade lógica. Para isso, fazemos a árvore partindo da forma proposicional em si, e não da sua negação: [(p → q) ⋀ q] → p ¬[(p → q) ⋀ q] 11/02/2015 p 93 ¬(p → q) ¬q p ¬q Uma vez que não fechámos todos os ramos, a forma proposicional sob exame não é uma falsidade lógica. Donde se conclui que é uma contingência lógica, pois já tínhamos demonstrado que não é uma verdade lógica. Também no caso das contingências lógicas as árvores determinam o contramodelo: o conjunto de circunstâncias nas quais a proposição é falsa. No caso das falsidades lógicas o contramodelo inclui, como é óbvio, todas as circunstâncias. Exercícios Recorrendo a árvores lógicas, determine se as formas proposicionais seguintes são verdades lógicas, falsidades lógicas ou contingências lógicas: 1. (p ⇄ q) → p 2. (p → q) → q 3. (p ⋀ ¬p) → q 4. p → (q ⋁ ¬q) 5. (p ⋀ q) → (q ⋁ r) 6. (p ⋁ r) → p 5. Lógica quantificada Para alargar o método das árvores à lógica quantificada precisamos apenas de acrescentar regras de simplificação para as formas proposicionais quantificadas; as formas com predicações não-quantificadas, como “Fa”, são simples, e as que não forem simples é apenas porque têm operadores proposicionais, como “Fa → Gb”, pelo que serão simplificadas usando as regras de que já dispomos. Começando pela negação de quantificadores, a simplificação óbvia de “¬∀x Fx” é apenas “∃x ¬Fx” e a simplificação de “¬∃x Fx” é “∀x ¬Fx”. A simplificação de uma forma proposicional universalmente quantificada, como “∀x Fx”, é “Fa”. Esta regra aplica-se sem quaisquer restrições, precisamente porque se trata do quantificador universal. Contudo, o quantificador existencial exige restrições, como é evidente. Isto porque do facto de existir gregos, por exemplo, não se conclui validamente que Kant era grego. O que faremos é simplificar “∃x Fx” como “Fa”, tal como no caso da simplificação do quantificador universal, mas exigir que “a” seja uma forma nominal nova, que não ocorra no ramo em questão. A ideia é estipular um nome novo, para nomear precisamente uma das coisas que tem a propriedade em causa. Em conclusão, simplificamos uma forma proposicional dominada por um quantificador existencial exactamente como o fazemos no caso do universal, com a diferença que 11/02/2015 94 temos de usar uma forma nominal nova. Vejamos um exemplo, para demonstrar a validade da seguinte forma argumentativa: ∀x (Fx → Gx), ∃x Fx ∴ ∃x Gx ∀x (Fx → Gx) ∃x Fx ¬∃x Gx ∀x ¬Gx Fa ¬Ga Fa → Ga ¬Fa Ga Há outra diferença entre a simplificação do quantificador universal e a simplificação do quantificador existencial. É que, no primeiro caso, nada nos impede de voltar a simplificar “∀x Fx” inserindo “Fb”, por exemplo, depois de já a termos simplificado com “Fa”; mas não podemos fazer o mesmo no caso do quantificador existencial. Dado que o nosso objectivo é fechar os ramos, queremos usar as mesmas formas nominais sempre que possível, para que “Fa”, por exemplo, possa fechar com “¬Fa”. Ora, se começarmos por simplificar as formas proposicionais dominadas pelo quantificador existencial, tornamos as árvores, em geral, mais simples, pois ao simplificar formas proposicionais dominadas pelo quantificador universal, podemos reutilizar as primeiras. Para ver outro exemplo, considere-se o seguinte argumento: Todas as coisas têm uma causa. Logo, há uma causa de todas as coisas. A premissa diz-nos que se tomarmos uma coisa qualquer, encontramos sempre outra que é causa da primeira. Em contraste, a conclusão afirma que há uma coisa específica que é a causa de qualquer outra coisa que encontremos. Esta diferença é captada como se segue: ∀x ∃y Fyx ∴ ∃y ∀x Fyx Como se vê, na premissa afirma-se que dada uma coisa qualquer há algo que é causa dessa primeira. A conclusão inverte os quantificadores, afirmando-se que há algo que causa todas as coisas. A esta forma argumentativa chama-se falácia da inversão dos quantificadores. Eis a demonstração de que é uma forma argumentativa inválida: ∀x ∃y Fyx ¬∃y ∀x Fyx 11/02/2015 95 ∀y ∃x ¬Fyx ∃y Fya Fba ∃x ¬Fbx ¬Fbc Como se vê, a forma argumentativa é inválida porque o único ramo da árvore não fecha. E isto acontece porque ao simplificar o segundo quantificador existencial, não podemos usar a forma nominal “a”, porque já foi usada. 6. Identidade No que respeita à identidade, temos apenas uma regra: a aplicação da lei de Leibniz. Sempre que temos uma identidade, como “a = b”, podemos inserir “b” em qualquer forma proposicional onde “a” ocorra, e vice-versa. Eis uma aplicação simples desta regra: ∀x (Fx → Gx), Fa, a = b ∴ Gb ∀x (Fx → Gx) Fa a=b ¬Gb Fa → Ga ¬Fa Ga Gb A forma proposicional “Gb” foi introduzida com base em “Ga” e na identidade “a = b”, que se situam ambas no mesmo ramo. É deste modo que usamos a lei de Leibniz nas nossas árvores; caso a identidade não estivesse no mesmo ramo de “Ga”, não poderíamos aplicar a lei de Leibniz. Note-se que, tendo “a = b”, tanto podemos inserir “Fb” com base em “Fa”, como podemos inserir “b = c” com base em “a = c”. Em qualquer forma proposicional onde ocorra “a”, e que esteja no ramo da identidade, podemos inserir “b”; e vice-versa: em qualquer forma onde ocorra “b”, e que esteja no ramo da identidade, podemos inserir “a”. Além disso, a falsidade lógica “¬a = a” (seja com “a” seja com qualquer outra forma nominal) irá fechar qualquer ramo onde ocorra. É o que acontece para demonstrar que a seguinte forma proposicional é uma verdade lógica: ∀x x = x ¬∀x x = x ∃x ¬x =x 11/02/2015 96 ¬a = a 7. Regras para quantificação e identidade Usamos “t” e “u” como formas nominais. E usamos “Ax” para qualquer forma predicativa, por mais complexa que seja: tanto “Fx” como “Fx → Gx”, por exemplo, são representadas por “Ax”. O traço vertical indica que é a linha seguinte que é introduzida na árvore, simplificando as formas proposicionais das linhas anteriores. ¬∀x Ax | ∃x ¬Ax ¬∃x Ax | ∀x ¬Ax ∀x Ax | At É necessário substituir todas as ocorrências de “x” por “t”. A regra pode ser reaplicada à mesma forma proposicional. ∃x Ax | At “t” tem de ser uma forma nominal nova. Ft t=u | Fu A regra pode ser reaplicada. Exercícios Recorrendo a árvores lógicas, determine a validade ou invalidade das seguintes formas argumentativas: 1. ∀x (Fx → Gx), ¬Ga ∴ ¬Fa 2. ∀x (Fx → Gx) ∴ ∀x (¬Gx → ¬Fx) 3. ∀x ¬(Fx → Gx) ∴ ¬Ga 4. ∀x Fx, ∀x Gx ∴ ∀x (Fx ⋀ Gx) 11/02/2015 97 5. ∀x (Fx ⋀ Gx) ∴ ∀x Fx ⋀ ∀x Gx 6. ∀x Fx ∴ ∃x Fx 7. ∃x Fx → a = b, Fa ∴ Fb 8. ∃x (Fx → Gx) ∴ ∃x (¬Gx → ¬Fx) 9. ∀x (Fx → Gx), ∃x Fx ∴ ∃x (Fx ⋀ Gx) 10. ∀x (Fx → ¬Gx), ∃x Fx ∴ ∃x (Fx ⋀ ¬Gx) 11. ¬∀x (Fx → Gx) ∴ ∃x (Fx ⋀ ¬Gx) 12. ¬∀x (Fx → ¬Gx) ∴ ∃x (Fx ⋀ Gx) 13. ¬∃x (Fx ⋀ Gx) ∴ ∀x (Fx → ¬Gx) 14. ¬∃x (Fx ⋀ ¬Gx) ∴ ∀x (Fx → Gx) 15. ∀x (Fx → Gx), Fa ∴ ∃x Gx 16. a = b → Ga, a = b ∴ Gb 17. a = b, b = c, Fa ∴ Fc 18. Fa, ¬Fb ∴ ¬a = b 19. ∀x x = a, Fb ∴ Fa 20. Fa, a = b, Fb → Ga ∴ ∃x Gx 11/02/2015 98 6. Lógica modal Considere-se os seguintes argumentos: A água não poderia ser feita de carbono. Logo, a água não é feita de carbono. Poderia haver doze planetas no sistema solar. Logo, há doze planetas no sistema solar. O primeiro argumento é aparentemente válido, mas o segundo é obviamente inválido. A palavra “poderia” exprime o conceito de possibilidade: no primeiro caso, para dizer que não é possível que a água seja feita de carbono; no segundo, para dizer que é possível que o sistema solar tenha doze planetas. O nosso objectivo, na lógica modal, é sistematizar, explicar e avaliar argumentos cuja validade ou invalidade dependa dos conceitos de necessidade e possibilidade. Diz-se que estes são conceitos modais porque dizem respeito a modos da verdade: uma proposição é verdadeira, ou falsa, no modo da possibilidade ou no modo da necessidade. 1. Necessidade e possibilidade A possibilidade e a necessidade exprimem-se em português quer como advérbios quer como operadores proposicionais: Não há necessariamente oito planetas. Não é necessário que haja oito planetas. Iremos considerar que estas expressões são equivalentes, e trataremos a expressão das duas modalidades sempre como operadores proposicionais. Assim, o operador de necessidade será representado por “¨” e o de possibilidade por “¸”. “¨A” será a representação da forma lógica de proposições como a expressa por “necessariamente, 8 é um número par”, “é necessário que 8 seja um número par”, etc.; “¸A” representará a forma lógica de proposições como a expressa por “possivelmente, existem dez planetas”, “é possível que existam dez planetas”, etc. Os operadores “¨” e “¸” são como o operador de negação que já conhecemos: são unários, aplicando-se exclusivamente a proposições completas. Isto significa que em qualquer lugar onde possamos colocar o operador clássico de negação, poderemos colocar também o operador de necessidade, ou o de possibilidade. Assim, temos as seguintes formas proposicionais: 11/02/2015 99 ¨p ¸p ¸p → ¨q ¨(p ⋁ q) → (¨p ⋁ ¸q) Do mesmo modo que podemos reiterar o operador de negação, escrevendo “¬¬¬¬p”, podemos também reiterar os operadores modais, misturando-os ou não: ¸¸p ¨¨¨p ¨¸¸¨p Contudo, há uma diferença importante no que respeita à reiteração de operadores. A reiteração do operador de negação é trivial, pois qualquer que seja o número ímpar ininterrupto de operadores de negação, é o mesmo do que ter um só; e qualquer que seja o número par ininterrupto de operadores de negação, é o mesmo do que não ter qualquer operador. Já no que respeita à reiteração de operadores modais, as coisas são bastante diferentes, como veremos. A contingência (“ł”) é definida em termos de possibilidade e negação: łA ≡ ¸A ⋀ ¸¬A Ou seja, afirmar que o número de planetas é contingentemente oito é afirmar que o número de planetas pode ser oito e pode também não ser oito. Devido a esta equivalência, não iremos usar o operador de contingência. O mesmo acontece no caso da impossibilidade: é apenas a negação da possibilidade, “¬¸A”, pelo que não usamos qualquer operador de impossibilidade. A necessidade e a possibilidade são interdefiníveis, como acontece com os quantificadores universal e existencial: ¨A ≡ ¬¸¬A ¸A ≡ ¬¨¬A Ou seja: a proposição expressa por “é necessário que os deuses sejam clementes” é equivalente à expressa por “não é possível que os deuses não sejam clementes”. E o mesmo acontece com as proposições expressas por “é possível que Schopenhauer se engane” e “não é necessário que Schopenhauer não se engane”. Já se vê que também a relação dos operadores modais com a negação é igual à relação que os quantificadores têm com a negação: ¬¨A ≡ ¸¬A ¬¸A ≡ ¨¬A 11/02/2015 100 Ou seja, negar a necessidade de o sistema solar ter oito planetas é afirmar a possibilidade de não ter oito planetas; e negar a possibilidade de oito ser um número ímpar é afirmar que, necessariamente, o número oito não é ímpar. Estas equivalências têm uma parecença suspeita com os quantificadores da lógica clássica. Na verdade, é mais do que uma mera parecença: usando o conceito de mundo possível, tanto a possibilidade como a necessidade são exprimíveis com quantificadores: ¨A ≡ “A” é verdadeira em todos os mundos possíveis. ¸A ≡ “A” é verdadeira em pelo menos um mundo possível. Contudo, o que são mundos possíveis? Os mundos possíveis são as circunstâncias que tínhamos em mente ao dizer que num argumento válido não há qualquer circunstância na qual as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. O que queríamos dizer é que não há qualquer mundo possível na qual as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Assim, desde o capítulo 1 que usamos o conceito de mundo possível, que no capítulo 2 se tornou mais preciso, nomeadamente quando apresentámos as tabelas de validade, como a do modus ponens: AB A→B A B VV V V V VF F V F FV V F V FF V F F Cada fila de uma tabela de validade é uma circunstância logicamente possível, ou mundo possível.1 Estas circunstâncias ou mundos possíveis são modos como as coisas podem ser. No caso do modus ponens, o que a tabela de validade mostra é que não há qualquer modo como as coisas podem ser no qual as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. De entre os modos como as coisas podem ser, há um que é o modo como as coisas efectivamente são. Por exemplo, num dos modos como as coisas podem ser, Sócrates nasceu no Egipto; contudo, este não é o modo como as coisas efectivamente são. No modo como as coisas efectivamente são, Sócrates nasceu em Atenas. Ao modo como as coisas efectivamente são chamamos “mundo efectivo”;2 este é um dos mundos possíveis. 1 A rigor, trata-se de conjuntos de mundos possíveis. 2 Em inglês, “actual world” — mas “actually” em inglês não quer dizer “actualmente” no sentido de “hoje em dia”, como em português, mas apenas “de facto” ou “efectivamente”. 11/02/2015 101 Exercícios 1. Especificando primeiro a sua interpretação, represente a forma lógica das proposições expressas de seguida: a) Se fosse necessária a existência de Deus, não seria possível a existência do mal. b) É possível que Hume esteja enganado, mas não é necessário. c) Os matemáticos não são necessariamente bípedes, mas são necessariamente racionais. d) Não só é necessário que Deus exista, como é necessário que seja necessário. 2. Modelos e mundos possíveis Vejamos o seguinte modelo: m0 m1 m2 p q ¬p q p ¬q Os mundos possíveis serão numerados, começando com m0, que representa o mundo efectivo. m1 e m2 são outros mundos possíveis. Na coluna de cada mundo possível, indicamos as formas proposicionais verdadeiras nesse mundo, indicando apenas formas simples ou negações de formas simples. Neste modelo, “p” é verdadeira ou falsa? A resposta é que isso depende do mundo possível: é verdadeira em m0 e m2, mas falsa em m1. A verdade e a falsidade são, pois, relativas a mundos possíveis. Em m0, “¬p” é falsa, assim como “p ⋀ ¬q”. Mas “p → q” é verdadeira, assim como “r ⋁ p”. Em m2, contudo, “p → q” é falsa, pois tem antecedente verdadeira e consequente falsa. Quando uma pessoa pergunta em cidade nasceu Rómulo de Carvalho, não respondemos perguntando “Em que mundo possível?”. Ao invés, pressupomos que a pergunta é equivalente a “em que cidade nasceu Rómulo de Carvalho efectivamente?”; ou seja, pressupomos que a pergunta é acerca do modo como as coisas efectivamente são, ou seja, pressupomos que é acerca do mundo efectivo. Assim, sempre que dissermos que “p” é verdadeira num dado modelo, sem especificar o mundo possível, queremos dizer que é verdadeira em m0. É isto que significa dizer que m0 representa o mundo efectivo. Tal como a verdade é relativa aos mundos possíveis, também os mundos possíveis o são; os mundos possíveis são relativos aos próprios mundos possíveis. m1 é possível relativamente a m0, e vice-versa (o que é indicado pelas setas); m2 é possível relativamente a m1, mas não vice-versa; e m2 não é possível relativamente a m0, nem vice-versa. Consideremos agora a forma proposicional “¨p”. É verdadeira ou falsa, neste modelo? A resposta, como anteriormente, é que isso depende do mundo possível: é falsa em m0, mas verdadeira em m1. Como anteriormente, iremos pressupor que quando dizemos que “¨p” é falsa num modelo, queremos dizer que nesse modelo é falsa em m0. É falsa em m0 11/02/2015 102 porque “p” não é verdadeira em todos os m que são possíveis relativamente a m0; nomeadamente, é falsa em m1. Porém, essa mesma forma proposicional, “¨p”, é verdadeira em m1: porque “p” é verdadeira em todos os m que são possíveis relativamente a m1; é verdadeira em m0 e m2, os únicos m que são possíveis relativamente a m1. Como se vê, m1 tem a desgraça de não ser possível relativamente a si próprio; por isso, apesar de “¬p” ser verdadeira em m1, “¨p” também o é. Como se vê, a necessidade e a possibilidade dependem da relação de possibilidade entre mundos possíveis. “¨A”, tal como “¸A”, não é verdadeira nem falsa, sem mais: é verdadeira ou falsa num dado m. “¨A” só será verdadeira em m0 se “A” for verdadeira em todos os m que forem possíveis relativamente a m0. E “¸A” só será verdadeira em m0 se “A” for verdadeira em pelo menos um m que seja possível relativamente a m0. Por definição, m1 é possível relativamente a m0 quando todas as proposições verdadeiras em m1 são possíveis em m0.3 Assim, uma forma proposicional como “A” é verdadeira ou falsa num m dependendo apenas do modo como as coisas são nesse m; mas uma forma proposicional como “¨A” ou “¸A” é verdadeira ou falsa num m dependendo do modo como as coisas são nos m que forem possíveis relativamente a ele. Podemos agora especificar mais rigorosamente a maneira como a quantificação sobre mundos possíveis exprime as condições de verdade dos operadores modais: “¨A” é verdadeira em m quando “A” é verdadeira em todos os mundos que são possíveis relativamente a m. “¸A” é verdadeira em m quando “A” é verdadeira em pelo menos um mundo que seja possível relativamente a m. Exercícios Usando o modelo dado, indique o valor de verdade (em m0) das seguintes formas proposicionais: 1. p ⇄ q 2. (p ⇄ ¬q) ⋀ r 3. ¨p ⇄ q 4. ¨(p → ¸p) 5. ¸q ⋀ ¸¬q 3 À possibilidade relativa chama-se também “acessibilidade”: dizer que m1 é possível relativamente a m0 é então dizer que m1 é acessível a m0. Além disso, informalmente diz-se que m0 “vê” m 1. 11/02/2015 103 3. Operadores reiterados Voltemos ao nosso modelo anterior: m0 m1 m2 p q ¬p q p ¬q Para avaliar o valor de verdade de uma forma proposicional com operadores reiterados, como “¨¨A”, tudo o que temos de fazer é repetir o processo de exame do modelo que já conhecemos; temos apenas de ser metódicos e cuidadosos. Vejamos primeiro o caso de “¨¨q”, em m0. Começamos por olhar para o primeiro operador modal, a contar da esquerda: “¨”. Ora, já sabemos o que tem de ocorrer no modelo para que uma forma proposicional como “¨A” seja verdadeira em m0: “A” tem de ser verdadeira em todos os m que sejam possíveis relativamente a m0. Aplicando isto ao nosso caso particular, significa que para “¨¨q” ser verdadeira em m0, “¨q” tem de ser verdadeira em todos os m que sejam possíveis relativamente a m0. Ora, só m1 é possível relativamente a m0. Assim, temos de perguntar apenas se em m1 a forma proposicional “¨q” é verdadeira. Ora, para esta forma ser verdadeira em m1, é necessário que “q” seja verdadeira em todos os m que sejam possíveis relativamente a m1. Acontece que m2 é possível relativamente a m1, mas em m2 “q” é falsa. Logo, “¨q” é falsa em m1. Mas como esta forma proposicional tinha de ser verdadeira em m1 para que “¨¨q” fosse verdadeira em m0, conclui-se validamente que “¨¨q” é falsa em m0. Vejamos outro exemplo: será “¸¨p” verdadeira em m0? Para que esta forma proposicional seja verdadeira em m0, “¨p” tem de ser verdadeira em pelo menos um m que seja possível relativamente a m0, ou seja, tem de ser verdadeira em m1. Para que “¨p” seja verdadeira em m1, “p” tem de ser verdadeira em todos os m que sejam possíveis relativamente a m1, ou seja, tem de ser verdadeira em m0 e m2. Uma vez que é isso mesmo que acontece, conclui-se validamente que “¸¨p” é verdadeira em m0. Repare-se que apesar de “¸¨p” ser verdadeira em m0, “¸p” é falsa em m0, assim como “¨p”. E apesar de “¨q” ser verdadeira em m0, “¨¨q” é falsa em m0. Isto significa que a reiteração de operadores modais tem consequências drásticas quanto ao valor de verdade das proposições em questão, consequências que dependem da relação de possibilidade entre mundos. Exercícios Usando o modelo dado, indique o valor de verdade (em m0) das seguintes formas proposicionais: 1. ¨(p ⇄ q) 2. ¸¨(p ⇄ ¬q) 11/02/2015 104 3. ¨¸p ⇄ ¸¨p 4. ¨¨(¸p → ¸¸p) 5. ¸¨(¸q ⋀ ¸¬q) 4. Lógica das relações Quando m1 é possível relativamente a m0, há entre m0 e m1 uma relação: a relação de possibilidade. Ora, as relações têm propriedades lógicas — três das quais nos interessam na nossa lógica modal: a reflexividade, a simetria e a transitividade. Uma relação é reflexiva quando todo o particular tem essa relação consigo mesmo: ∀x Rxx É o que não acontece no caso do fascínio, pois nem toda a gente está fascinada consigo mesma, como acontecia com Narciso. Já a relação de identidade é reflexiva, pois todas as coisas são idênticas a si mesmas: ∀x x = x. Quanto à simetria, uma relação é simétrica quando, dados quaisquer dois particulares, se o primeiro tiver essa relação com o segundo, este também a tem com o primeiro: ∀x ∀y (Rxy → Ryx) É o que não acontece na relação de admiração, pois por vezes uma pessoa admira alguém que não a admira a ela. Mas quando uma pessoa é irmã de outra, esta é irmã dela. Finalmente, uma relação é transitiva quando, dados quaisquer três particulares, se o primeiro tiver essa relação com o segundo, e este a tiver com um terceiro, então o primeiro tem essa relação com o terceiro: ∀x ∀y ∀w [(Rxy ∧ Ryw) → Rxw] É o que não acontece, por exemplo, no caso da amizade: uma pessoa pode ser amiga de outra, e esta de uma terceira, sem que a primeira seja amiga da terceira. Já a relação de ser mais velho é transitiva: se uma pessoa é mais velha do que outra e esta mais velha do que uma terceira, então a primeira é mais velha do que a terceira. Quando uma relação é simultaneamente reflexiva, simétrica e transitiva, diz-se que é uma relação de equivalência. 5. Cinco sistemas de lógica Voltemos ao nosso modelo anterior: 11/02/2015 105 m0 m1 m2 p q ¬p q p ¬q Como é evidente, a relação de possibilidade entre m não é, neste modelo, reflexiva. Isto porque nenhum m é possível relativamente a si próprio. Além disso, também não é simétrica, pois apesar de m1 ser possível relativamente a m0 e vice-versa, m2 é possível relativamente a m1, mas m1 não é possível relativamente a m2. E também não é transitiva, pois apesar de m1 ser possível relativamente a m0 e de m2 ser possível relativamente a m1, m2 não é possível relativamente a m0. Iremos estudar cinco sistemas de lógica modal: K, T, B, S4 e S5. As diferenças entre os sistemas dependem das diferenças da relação de possibilidade entre mundos. Comecemos pelo sistema K. Em K, a relação de possibilidade entre mundos não é reflexiva, nem simétrica nem transitiva. Neste sistema, as seguintes formas proposicionais não são verdades lógicas: p → ¸p ¨q → q Isto significa que em K há modelos nos quais estas formas proposicionais são falsas.4 Eis um desses modelos: m0 m1 p ¬q ¬p q Neste modelo, “p” é verdadeira em m0, mas “¸p” é falsa em m0 — porque apesar de “p” ser verdadeira em m0, m0 não é possível relativamente a si próprio. Quanto a “¨q”, é verdadeira em m0 neste modelo, mas “q” é falsa em m0. Uma vez mais, isto acontece porque m0 não é possível relativamente a si próprio. K é um sistema muito fraco; todavia, é suficientemente forte para que nele o modus ponens necessitado seja válido: ¨(p → q) ¨p ∴ ¨q 4 Não significa, contudo, que estas formas proposicionais sejam falsas em todos os modelos 11/02/2015 106 de K. Isto significa que a expressão proposicional do modus ponens necessitado é uma verdade lógica de K: [¨(p → q) ⋀ ¨p] → ¨q Ou seja, esta forma proposicional é verdadeira em qualquer modelo, mesmo que não seja reflexivo. O mesmo acontece com qualquer verdade lógica da lógica clássica: é verdadeira em qualquer modelo, mesmo que não seja reflexivo. E se “A” for uma verdade lógica da lógica clássica, “¨A” é uma verdade lógica de K. T é um sistema de lógica modal mais forte do que K: contém todas as verdades lógicas deste último, mas acrescenta verdades lógicas que exigem a reflexividade: p → ¸p ¨p → p Estas formas proposicionais são verdadeiras em todos os modelos nos quais a relação de possibilidade entre mundos seja reflexiva. Vejamos um desses modelos: m0 m1 p ¬p Vemos que é um modelo de T porque todos os mundos são possíveis relativamente a si próprios: temos setas de m0 para m0, e de m1 para m1. Contudo, neste modelo, as seguintes formas proposicionais são falsas: p → ¨¸p ¸¨¬p → ¬p Estas formas proposicionais são verdades lógicas de B, o nosso terceiro sistema de lógica modal. Neste sistema, todos os modelos são reflexivos e simétricos, como o seguinte: m0 m1 p ¬p Neste modelo, as formas proposicionais anteriores são verdadeiras; e continuam verdadeiras em todos os modelos que sejam reflexivos e simétricos. Considere-se agora o seguinte modelo: 11/02/2015 m0 m1 m2 p p ¬p 107 As formas proposicionais seguintes são falsas, neste modelo: ¨p → ¨¨p ¸¸¬p → ¸¬p Estas são verdades lógicas apenas em modelos reflexivos e transitivos, que são modelos de S4. Ao introduzir a transitividade no modelo anterior, as formas proposicionais anteriores tornam-se verdadeiras: m0 m1 m2 p p ¬p Este é um modelo de S4 porque é transitivo e reflexivo, mas não é simétrico. Nos modelos de S4, as seguintes formas proposicionais não são verdades lógicas: ¸p → ¨¸p ¸¨¬p → ¨¬p Estas são verdades de S5, o sistema de lógica modal que exige reflexividade, simetria e transitividade. Se introduzirmos a simetria no modelo anterior, ficamos com um modelo de S5, e em qualquer modelo reflexivo, simétrico e transitivo as formas proposicionais anteriores serão verdadeiras. Em S5, sempre que uma proposição é possível num mundo qualquer, é possível em todos. Estes são, pois, os nossos cinco sistemas de lógica modal: S5: Reflexivo, transitivo e simétrico. ¸A → ¨¸A S4: Reflexivo e transitivo. ¨A → ¨¨A B: Reflexivo e simétrico. A → ¨¸A T: Reflexivo. ¨A → A K: Não é reflexivo, nem simétrico, nem transitivo. Exercícios Demonstre discursivamente que as formas proposicionais “¸p → ¨¸p” e “¸¨¬p → ¨p” são verdadeiras no seguinte modelo: m0 m1 m2 p p ¬p 6. Árvores lógicas Vejamos uma árvore modal que demonstra a validade do modus ponens necessitado: 11/02/2015 108 ¨(p → q), ¨p ∴ ¨q ¨(p → q) ¨p ¬¨q O que fizemos até agora foi supor que as premissas e a negação da conclusão são verdadeiras no mundo efectivo; daí que não tenhamos qualquer indicação de mundo possível. Precisamos agora de uma maneira de simplificar as formas proposicionais. Para que uma forma proposicional seja simples, tem de não ter quaisquer operadores modais, além de ser simples no sentido clássico do termo. A simplificação de “¬¨q” é óbvia: “¸¬q”. Mas como simplificar esta última forma proposicional? Quando avaliamos esta forma proposicional em m0, “¸A” significa que há pelo menos um m possível relativamente a m0 no qual “A” é verdadeira. Qual é esse m? Não sabemos. Talvez seja o próprio m0; ou talvez seja outro qualquer. Tudo o que sabemos é que há um m possível relativamente a m0 no qual “A” é verdadeira pois, se não houvesse, “¸A” não seria verdadeira em m0. O que fazemos então é falar de um m possível relativamente a m0 no qual “A” é verdadeira, dando-lhe uma designação nova. Iremos chamar-lhe “m1”. Assim, continuando a nossa árvore, temos o seguinte: ¨(p → q) ¨p ¬¨q ¸¬q m0-m1 m1: ¬q “m0-m1” significa que m1 é possível relativamente ao mundo efectivo, m0. A ideia é que sabemos que há algum m possível relativamente a m0 no qual “¬q” é verdadeira, e por isso introduzimos “m0-m1” e “m1: ¬q”. Precisamos agora de simplificar as primeiras duas formas proposicionais. Como simplificar, contudo, formas proposicionais como “¨A”? Bem, se esta forma proposicional for verdadeira em m0, “A” será verdadeira em todos os m possíveis relativamente a m0. Em particular, “A” será verdadeira em m1, que já sabemos que é possível relativamente a m0. Por isso, podemos já simplificar as duas primeiras formas lógicas: ¨(p → q) ¨p ¬¨q ¸¬q m0-m1 m1: ¬q m 1: p → q 11/02/2015 109 m 1: p Se olharmos agora com atenção, vemos que temos a árvore clássica do modus ponens, mas em m1. Usando as regras de simplificação que já conhecemos, completamos a árvore e fechamos todos os ramos: ¨(p → q) ¨p ¬¨q ¸¬q m0-m1 m1: ¬q m 1: p → q m 1: p m1: ¬p m 1: q Todos os ramos fecham porque encontramos inconsistências em todos. “m1: ¬p” fecha com “m1: p”, mas não fecharia caso uma das formas proposicionais estivesse noutro m. Para que “A” seja inconsistente com “¬A” é preciso que ambas as formas proposicionais sejam verdadeiras no mesmo m, além de estarem no mesmo ramo. Está demonstrada a validade do modus ponens necessitado. Porque nunca usámos a reflexividade, nem a simetria nem a transitividade, demonstrámos que é uma forma argumentativa válida em K. Vejamos outra forma argumentativa, também válida em K: ¨p → p, p → ¸p ∴ ¨p → ¸p ¨p → p p → ¸p ¬(¨p → ¸p) ¨p ¬¸p ¨¬p ¬¨p p ¬p ¸p m0-m1 m 1: p m1: ¬p 11/02/2015 110 Como se vê, alguns ramos fecham ainda antes de entrarmos na parte modal da árvore. Isto inclui formas proposicionais modalizadas: “¨p” é inconsistente com “¬¨p” porque é apenas um caso particular de “A” e “¬A”. Quando chegámos à parte modal da árvore, começámos por simplificar “¸p” porque ao fazê-lo temos de inserir um m novo; depois, ao simplificar “¨¬p” temos já uma relação de possibilidade entre m. Em K não há maneira de simplificar uma forma proposicional como “¨A”, caso não tenhamos já dada a relação entre m0 e algum m (o próprio m0 ou outro m qualquer). Eis um terceiro exemplo de uma validade de K, a distribuição da necessidade sobre a conjunção: ¨(p ⋀ q) ∴ ¨p ⋀ ¨q ¨(p ⋀ q) ¬(¨p ⋀ ¨q) ¬¨p ¬¨q ¸¬p ¸¬q m0-m1 m0-m1 m1: ¬p m1: ¬q m 1: p ⋀ q m 1: p ⋀ q m 1: p m 1: p m 1: q Note-se que podemos escrever “m0-m1” no ramo da direita ao simplificar “¸¬q” apesar de já termos usado “m0-m1” no ramo da esquerda. Isto é permitido porque os ramos são independentes. No ramo da direita não poderíamos escrever “m0-m1” se nesse ramo já tivéssemos alguma forma proposicional em m1. Vejamos agora uma forma argumentativa inválida: ¨(p → q), p ∴ ¨q ¨(p → q) p ¬¨q ¸¬q m0-m1 m1: ¬q m 1: p → q m1: ¬p m 1: q Como acontece na lógica clássica, também aqui as árvores que ficam abertas especificam os contramodelos, ou seja, as circunstâncias nas quais as premissas da forma argumentativa são verdadeiras e a conclusão falsa. Neste caso, temos um só contramodelo: {m1: ¬p, 11/02/2015 111 m1: ¬q, m0-m1, p}. Com esta informação, podemos especificar o modelo no qual as premissas desta forma argumentativa são verdadeiras e a conclusão falsa: m0 m1 p ¬p ¬q As premissas da forma argumentativa são “¨(p → q)” e “p”. Esta última é verdadeira em m0, no modelo. Quanto à primeira premissa, será verdadeira em m0 se em todos os m possíveis relativamente a m0 a condicional “p → q” for verdadeira. Ora, temos um único m possível relativamente a m0, que é m1. Em m1, a condicional é verdadeira porque a sua antecedente é falsa. Logo, a premissa “¨(p → q)” é verdadeira. Ora, a conclusão da nossa forma argumentativa é “¨q”. Esta forma proposicional será verdadeira em m0 se “q” for verdadeira em todos os m possíveis relativamente a m0. Há um só m possível relativamente a m0, que é m1. Mas em m1 “q” é falsa. Logo, a conclusão “¨q” é falsa. Logo, a forma argumentativa é inválida. Também a seguinte forma argumentativa é inválida: ¨(p → q), ¸p ∴ ¨q ¨(p → q) ¸p ¬¨q ¸¬q m0-m1 m1: ¬q m0-m2 m 2: p m 1: p → q m1: ¬p m 1: q m 2: p → q m2: ¬p m 2: q Ao simplificar a segunda premissa, “¸p”, temos de usar um m novo, m2, porque m1 já foi usado no mesmo ramo. A razão é que sabemos que “p” é verdadeira em algum m possível relativamente a m0, mas não sabemos se é verdadeira em m1. Na tentativa gorada de fechar a árvore, simplificámos duas vezes a forma proposicional “¨(p →q)”, uma vez em m1 e outra em m2. Tal como acontece com os quantificadores universais, e pela mesma razão, podemos repetir simplificações de formas proposicionais dominadas pelo operador de necessidade; mas não podemos fazer o mesmo no caso da possibilidade. 11/02/2015 112 O contramodelo à validade desta forma argumentativa está também especificado na árvore: {m2: q, m1: ¬p, m2: p, m0-m2, m1: ¬q, m0-m1}. 0 1 2 ¬p ¬q p q Deixamos como exercício a demonstração discursiva de que as premissas da forma argumentativa são verdadeiras neste modelo, e a conclusão falsa. Vejamos agora uma versão particularmente cândida do argumento da batalha naval, discutido por Aristóteles. O argumento é o seguinte: Necessariamente, amanhã ocorrerá uma batalha naval ou não. Logo, ou é necessário que amanhã ocorra uma batalha naval, ou é necessário que não ocorra. A ideia deste argumento é partir da necessidade de “Amanhã ocorrerá uma batalha naval ou não”. A proposição aqui expressa é uma verdade lógica com a forma “A ⋁ ¬A”; uma vez que qualquer verdade lógica é uma verdade necessária, estamos autorizados e declarar que tal proposição é necessária. Mas então parece seguir-se que, ocorra o que ocorrer, não poderia ter ocorrido outra coisa — o que parece provar demasiado facilmente o fatalismo. A forma do argumento e a demonstração da sua invalidade é como se segue: ¨(p ⋁ ¬p) ∴ ¨p ⋁ ¨¬p ¨(p ⋁ ¬p) ¬(¨p ⋁ ¨¬p) ¬¨p ¬¨¬p ¸¬p ¸p m0-m1 m1: ¬p m0-m2 m 2: p m1: p ⋁ ¬p m 1: p m1: ¬p m2: p ⋁ ¬p m 2: p 11/02/2015 m2: ¬p 113 Como seria de esperar, o argumento tem uma forma argumentativa inválida: a necessidade não distribui sobre a disjunção. Da necessidade de “A ⋁ B” não se conclui validamente “¨A ⋁ ¨B”. A possibilidade, contudo, distribui sobre a conjunção e a disjunção; vejamos apenas este último caso: ¸(p ⋁ q) ∴ ¸p ⋁ ¸q ¸(p ⋁ q) ¬(¸p ⋁ ¸q) ¬¸p ¬¸q ¨¬p ¨¬q m0-m1 m 1: p ⋁ q m1: ¬p m1: ¬q m 1: p m 1: q Exercícios de árvores 1. q ∴ ¬¨¬p → ¸p 2. ¨q ∴ ¨(p → p) 3. ¨¬(p → p) ∴ ¨q 4. ¨(p → q), ¸(q ⇄ r) ∴ ¸(p → r) 5. ¸(p → q), ¸(q ⇄ r) ∴ ¸(p → r) 6. ¸(p ⋀ q) ∴ ¸p 7. (¸p ⇄ ¨q) → (p ⋁ ¬q) 8. ¨[¬(p ⋀ q) ⇄ (¬p ⋁ ¬q)] 9. ¸[¨(p → q) ⇄ ¨(¬p ⋁ q)] 10. ¸p → ¨¸p ∴ p → ¸p 7. Regras de extensão Considere-se a seguinte forma inferencial banal, mas que já sabemos ser inválida em K, e vejamos como podemos demonstrar que é válida em T: ¨p ∴ p ¨p ¬p m0-m0 p 11/02/2015 114 Demonstrámos a sua validade, mas tivemos de introduzir a reflexividade: “m0-m0”. Quando isto acontece, é porque a forma inferencial em causa é válida em T. E não é válida em K, porque em K nada mais podemos fazer a partir da segunda linha da árvore: não sabemos se “p” é verdadeira em m0, apesar de sabermos que “¨p” o é, porque não sabemos se m0 é possível relativamente a si próprio. Algo semelhante acontece ao demonstrar a validade em B da seguinte forma argumentativa: ¸¨p ∴ p ¸¨p ¬p m0-m1 m1: ¨p m1-m0 p Para fechar a árvore, tivemos de usar a simetria, introduzindo “m1-m0” com base em “m0-m1”. Porque m0 é possível relativamente a m1, a forma proposicional “¨p” pode ser simplificada em m0. E é isso que permite fechar a árvore. Porque tivemos de usar a simetria, demonstrámos a validade daquela forma argumentativa em B. Quanto a S4, vejamos o seguinte exemplo: ¨p ∴ ¨¨p ¨p ¬¨¨p ¸¸¬p m0-m1 m1: ¸¬p m1-m2 m2: ¬p m0-m2 m 2: p Note-se que para simplificar “m1: ¸¬p” escrevemos “m1-m2” e depois “m2: ¬p”. Isto porque quando uma forma proposicional como “¸A” está m1, temos de introduzir um m que seja possível relativamente a m1, e não relativamente a m0; e, claro, se “¸A” estiver em m2, temos de escrever “m2-m3”, escrevendo depois “A” em m3. Sem a transitividade não teríamos conseguido demonstrar a validade desta forma inferencial. Usámos a transitividade porque introduzimos “m0-m2” com base em “m0-m1” e “m1m2”. Assim, demonstrámos que a forma argumentativa é válida em S4 porque usámos a transitividade, sem a qual não conseguiríamos fechar todos os ramos. 11/02/2015 115 Para demonstrar uma validade de S5, como já sabemos, teremos de usar a transitividade e a simetria: ¸p ∴ ¨¸p ¸p ¬¨¸p ¸¨¬p m0-m1 m 1: p m0-m2 m2: ¨¬p m2-m0 m2-m1 m1: ¬p Tivemos de introduzir “m2-m0” com base em “m0-m2”, por simetria, para depois introduzir “m2-m1” com base em “m2-m0” e “m0-m1”, por transitividade. Como era de esperar, só conseguimos demonstrar a validade desta forma inferencial em S5, usando a simetria e a transitividade. 8. Regras de simplificação Estamos agora em condições de formular as quatro regras de simplificação do nosso sistema de árvores lógicas modais proposicionais, que acrescentámos às regras clássicas que já tínhamos. Usamos “mi”, “mj”, etc., como nomes arbitrários de mundos possíveis. O traço vertical indica que é a linha seguinte que é introduzida na árvore, simplificando as formas proposicionais anteriores. mi: ¬¨A | mi: ¸¬A mi: ¬¸A | mi: ¨¬A mi: ¨A mi-mj | m j: A A regra pode ser reaplicada. 11/02/2015 116 mi: ¸A | mi-mj m j: A “mj” tem de ser novo no ramo. As regras seguintes introduzem as condições de validade de T, B e S4: T: Reflexividade | mi-mi B: Simetria mi-mj | mj-mi S4: Transitividade mi-mj mj-mk | mi-mk Não precisamos de uma regra para S5, pois este sistema resulta apenas da introdução, na mesma árvore, da simetria e da transitividade. Exercícios de árvores 1. ¸p → ¸¸p 2. ¨p → ¸¨p 3. ¨p → ¸¸p 4. p → ¨¸¨¸p 5. ¨¬(p → p) ∴ ¨¸q 6. p → ¸(q → q) 7. ¨p → p, p → ¸p ∴ ¨p → ¸p 8. ¸p → ¨¸p ∴ p → ¸p 9. ¨¸¸p ⇄ ¸¸¨p 10. ¨¨¨p ⇄ ¨p 11. ¸¸¸p ⇄ p 11/02/2015 117 9. Lógica modal quantificada Não precisamos de qualquer regra adicional para alargar o nosso sistema de árvores de modo a incluir a lógica modal quantificada. Vejamos, por exemplo, a demonstração do modus ponens necessitado e universalmente quantificado: ¨∀x (Fx → Gx), ¨∀x Fx ∴ ¨∀x Gx ¨∀x (Fx → Gx) ¨∀x Fx ¬¨∀x Gx ¸∃x ¬Gx m0-m1 m1: ∃x ¬Gx m1: ¬Ga m1: ∀x (Fx → Gx) m1: ∀x Fx Nenhuma surpresa encontrámos até agora: começámos por transformar “¬¨∀x Gx” em “¸∃x ¬Gx” — saltando assim a passagem por “¸¬∀x Gx”, que acabaria por dar o mesmo resultado, depois de se simplificar esta última forma proposicional. A partir do momento em que obtivemos uma forma proposicional dominada pelo operador de possibilidade, seguimos o procedimento habitual. Depois, simplificámos as duas premissas, ficando com “∀x (Fx → Gx)” e “∀x Fx”, ambas em m1. Se olharmos agora com atenção, vemos que temos em m1 tudo o que precisamos para fechar todos os ramos da árvore, como se fosse clássica: m1: Fa → Ga m1: Fa m1: ¬Fa m1: Ga Vejamos outro exemplo: ¨[(∀x Fx ⋀ ∀x Gx) → ∀x (Fx ⋀ Gx)] ¬¨[(∀x Fx ⋀ ∀x Gx) → ∀x (Fx ⋀ Gx)] ¸¬[(∀x Fx ⋀ ∀x Gx) → ∀x (Fx ⋀ Gx)] m0-m1 m1: ¬[(∀x Fx ⋀ ∀x Gx) → ∀x (Fx ⋀ Gx)] m1: ∀x Fx ⋀ ∀x Gx m1: ¬∀x (Fx ⋀ Gx) m1: ∃x ¬(Fx ⋀ Gx) m1: ¬(Fa ⋀ Ga) 11/02/2015 118 m1: ∀x Fx m1: ∀x Gx m1: ¬Fa m1: ¬Ga m1: Fa m1: Fa m1: Ga Como se vê, a partir do momento em que simplificamos a forma proposicional em m1, toda a árvore é clássica. 10. Modalidades quantificadas Na lógica modal quantificada, sem identidade, e quando os operadores modais não estão sob o âmbito de quantificadores, nada encontramos que não tenhamos encontrado já na lógica proposicional. Isto porque, como é óbvio, as regras que aplicávamos a “¨A” e a “¸A” aplicam-se agora da mesma maneira, apesar de “A” incluir quantificadores. Porém, como ficam as nossas árvores quando os operadores modais surgem no âmbito dos quantificadores? Vejamos um desses exemplos: ∃x ¸Fx → ¸∃x Fx ¬(∃x ¸Fx → ¸∃x Fx) ∃x ¸Fx ¬¸∃x Fx ¨∀x ¬Fx ¸Fa m0-m1 m1: Fa m1: ∀x ¬Fx m1: ¬Fa Como se vê, na antecedente da condicional o operador de possibilidade está no âmbito do quantificador existencial. Por isso, ao simplificar “∃x ¸Fx”, inserimos uma forma nominal sob o âmbito do operador de possibilidade: “¸Fa”. O nosso sistema permite-nos esta inserção, e é desejável que o faça pois a condicional que acabámos de demonstrar é uma verdade lógica. Na verdade, se exprimirmos a condicional anterior disjuntivamente, sem quantificadores, num domínio com um dado número de particulares, vemos que é uma verdade lógica banal; vejamos um exemplo com apenas dois particulares: (¸Fa ⋁ ¸Fb) → ¸(Fa ⋁ Fb) ¬[(¸Fa ⋁ ¸Fb) → ¸(Fa ⋁ Fb)] ¸Fa ⋁ ¸Fb ¬¸(Fa ⋁ Fb) 11/02/2015 119 ¨¬(Fa ⋁ Fb) ¸Fa ¸Fb m0-m1 m0-m1 m1: Fa m1: Fb m1: ¬(Fa ⋁ Fb) m1: ¬(Fa ⋁ Fb) m1: ¬Fa m1: ¬Fa m1: ¬Fb Na verdade, como vimos aquando da breve discussão de uma versão cândida do argumento da batalha naval, a condicional na direcção inversa é também uma verdade lógica, ou seja, a possibilidade distribui sobre a disjunção (ao contrário da necessidade, que só distribui sobre a conjunção): ¸(Fa ⋁ Fb) → (¸Fa ⋁ ¸Fb) ¬[¸(Fa ⋁ Fb) → (¸Fa ⋁ ¸Fb)] ¸(Fa ⋁ Fb) ¬(¸Fa ⋁ ¸Fb) ¬¸Fa ¬¸Fb ¨¬Fa ¨¬Fb m0-m1 m1: Fa ⋁ Fb m1: Fa m1: Fb m1: ¬Fa m1: ¬Fb Como seria de esperar, a árvore fecha. Por isso, a condicional equivalente, com quantificação existencial, é também uma verdade lógica no nosso sistema de árvores: ¸∃x Fx → ∃x ¸Fx ¬(¸∃x Fx → ∃x ¸Fx) ¸∃x Fx ¬∃x ¸Fx ∀x ¨¬Fx m0-m1 m1: ∃x Fx m1: Fa ¨¬Fa m1: ¬Fa 11/02/2015 120 Esta condicional é uma das chamadas fórmulas de Barcan. Uma razão para pensar que é uma verdade lógica, tal como a condicional na direcção inversa, é que num domínio com qualquer número de particulares, as expressões disjuntivas do quantificador existencial dão origem a verdades lógicas, como vimos no caso de apenas dois particulares. A outra das fórmulas de Barcan resulta por contraposição da condicional anterior: ∀x ¨Fx → ¨∀x Fx ¬[∀x ¨Fx → ¨∀x Fx] ∀x ¨Fx ¬¨∀x Fx ¸∃x ¬Fx m0-m1 m1: ∃x ¬Fx m1: ¬Fa ¨Fa m1: Fa Também esta fórmula de Barcan é uma verdade lógica no nosso sistema,5 uma vez que a condicional conjuntiva equivalente, sem quantificação universal e com um dado número de particulares, é uma verdade lógica; vejamos um exemplo com dois particulares: (¨Fa ⋀ ¨Fb) → ¨(Fa ⋀ Fb) ¬[(¨Fa ⋀ ¨Fb) → ¨(Fa ⋀ Fb)] ¨Fa ⋀ ¨Fb ¬¨(Fa ⋀ Fb) ¨Fa ¨Fb ¸¬(Fa ⋀ Fb) m0-m1 m1: ¬(Fa ⋀ Fb) m1: Fa m1: Fb m1: ¬Fa m1: ¬Fb Assim, no nosso sistema de árvores modais, temos as seguintes equivalências: ¸∃x Fx ≡ ∃x ¸Fx ¨∀x Fx ≡ ∀x ¨Fx 5 A condicional na direcção inversa, “¨∀x Fx → ∀x ¨Fx”, é uma verdade lógica banal, cuja demonstração deixamos como exercício. 11/02/2015 121 As formas proposicionais à esquerda do trigrama são modalidades de dicto, no sentido em que exprimem modos de proposições (dicta, em latim). Já nas formas à direita, os operadores modais exprimem modos das coisas (res, em latim) e não das proposições. A distinção torna-se mais óbvia se tivermos em mente a expressão sem quantificadores das equivalências anteriores, num domínio com um número fixo de objectos (dois, por exemplo): ¸(Fa ⋁ Fb) ≡ ¸Fa ⋁ ¸Fb ¨(Fa ⋀ Fb) ≡ ¨Fa ⋀ ¨Fb Neste caso, é óbvio que as formas proposicionais da esquerda dizem respeito a modos da disjunção e da conjunção, contrastando com as formas proposicionais da direita, que exprimem modos dos particulares a e b, e não da disjunção nem da conjunção. Exercícios de árvores 1. ¨∀x (Fx → Gx), Fa ∴ ¨Ga 2. ∀x (Fx → ¨Gx), Fa ∴ ¨Ga 3. (¸∃x Fx → ∃x ¸Fx) ⇄ (∀x ¨¬Fx → ¨∀x ¬Fx) 4. ¬¸Fa, ∀x Fx ∴ Gb 5. ¸Gb ∴ ¨(Fa ⋁ ¬Fa) 6. ¨(¸∃x → ∃x ¸Fx) 7. ¨(∀x ¨Fx → ¨∀x Fx) 11. Modalidade e identidade A introdução da identidade no nosso sistema de árvores modais não obriga também a acrescentar qualquer regra. A lei de Leibniz, que já usámos nas árvores clássicas, será usada também aqui. Vejamos um exemplo: ¨Fa, ¨a = b ∴ ¨Fb ¨Fa ¨a = b ¬¨Fb ¸¬Fb m0-m1 m1: ¬Fb m1: Fa m 1: a = b m1: Fb Como se vê, limitámo-nos a usar a lei de Leibniz para escrever “m1: Fb” com base na identidade “m1: a = b” e na predicação “m1: Fa”. Na verdade, abaixo da linha em que escrevemos “m0-m1” a árvore é como se fosse clássica. 11/02/2015 122 Note-se, todavia, que tivemos de simplificar “¨a = b” antes de podermos usar a identidade; no nosso sistema, não podemos usar uma identidade, para aplicar a lei de Leibniz, que esteja sob o âmbito de quaisquer operadores (incluindo modais) ou quantificadores. Desde que tenhamos uma identidade genuína como “a = b”, que não seja antecedida por qualquer operador, modal ou não, nem por qualquer quantificador, podemos usá-la para substituir “a” por “b” em qualquer forma proposicional “A” que esteja no mesmo ramo da identidade e que obedeça a pelo menos uma das seguintes condições: “A” é verdadeira no mesmo mundo possível em que a identidade o é; ou a “A” é verdadeira num mundo que é possível relativamente ao mundo em que a identidade o é. Vejamos um exemplo: a = b, ¨Fa ∴ ¨Fb a=b ¨Fa ¬¨Fb ¨Fb A última linha resulta de se aplicar a lei de Leibniz a “¨Fa”, com base em “a = b”. Esta aplicação da lei de Leibniz é legítima porque as duas formas proposicionais são verdadeiras no mesmo mundo possível, além de estarem no mesmo ramo. Vejamos agora um caso em que as duas formas proposicionais não estão no mesmo mundo possível: ¸a = b, ¨¸Fa ∴ ¨¸Fb ¸a = b ¨¸Fa ¬¨¸Fb m0-m1 m 1: a = b m1-m0 ¨¸Fb Para podermos usar a identidade possibilitada, “¸a = b”, tivemos de a simplificar, mas ao fazê-lo ficámos com a identidade “a = b” em m1. Porque queremos aplicá-la a “¨¸Fa”, que está em m0, temos de introduzir a simetria, “m1-m0”, com base em “m0-m1”, para que “¨¸Fa” seja possível relativamente a m1, o mundo possível em que a identidade é verdadeira. Vejamos mais um exemplo: ¸a = b, Fa ∴ ¸Fb ¸a = b Fa ¬¸Fb m0-m1 11/02/2015 123 m 1: a = b ¨¬Fb m0-m0 ¬Fb m1-m0 ¬Fa Uma vez mais, ficámos com a identidade em m1; mas para podermos colocar “Fa” e “¬Fb” no mesmo mundo possível, tivemos de usar a reflexividade, “m0-m0”, para simplificar “¨¬Fb”. Agora que temos “¬Fb” em m0, temos de introduzir a simetria, “m1-m0”, para que “¬Fb” seja possível relativamente à identidade verdadeira em m1. O nosso sistema de árvores modais permite demonstrar a necessidade da identidade, um resultado da lógica cujo significado filosófico foi inicialmente explorado por Kripke: a = b → ¨a = b a=b ¬¨a = b ¬¨a = a ¸¬a = a m0-m1 m1: ¬a = a 12. Regras de simplificação Usamos “t” e “u” como formas nominais. E usamos “Ax” para qualquer forma predicativa. O traço vertical indica que é a linha seguinte que é introduzida na árvore, simplificando as formas proposicionais anteriores. Usamos “⟐” para representar “¨A” ou “¸A”. E usamos “αt” para representar qualquer forma proposicional que inclua a forma nominal “t”. mi: ∀x ⟐Ax | mi: ⟐At É necessário substituir todas as ocorrências de “x” por “t”. A regra pode ser reaplicada à mesma forma proposicional. mi: ∃x ⟐Ax | mi: ⟐At “t” tem de ser uma forma nominal nova. m i: t = u mj: αt 11/02/2015 124 | mj: αu Ou mi e mj são o mesmo mundo possível, ou mj é possível relativamente a mi. A regra pode ser reaplicada. Exercícios 1. ¸∃x x = a → ∃x ¸x = a 2. ¨∃x x = a 3. ¨∀x x = x 4. ¨(∀x Fx → ∃x Fx) 5. a = b, Fa ∴ ¨Fb 6. a = b, Fa ∴ ¸Fb 7. ¨(a = b → ¨a = b) 8. ¬¸(a = b ⋀ ¸¬a = b) 9. ¨a = a → (a = b → ¨a = b) 10. ¨∀x Fx → ¸∃x Fx 13. Âmbito É muito comum afirmar que se um argumento for dedutivamente válido e tiver premissas verdadeiras, a sua conclusão será necessariamente verdadeira. Eis um exemplo recente: “Para um lógico, dizer que um argumento é válido é, pois, dizer exactamente isto: se as premissas forem verdadeiras, a conclusão tem também de ser verdadeira”. (Shenefelt & White 2013: 3) Contudo, basta um exemplo para ver que algo está errado nesta afirmação: Se Euclides era grego, não era egípcio. Ora, ele era grego. Logo, não era egípcio. Este argumento é dedutivamente válido (é um modus ponens) e as suas premissas são verdadeiras, mas a conclusão não é necessariamente verdadeira: é apenas contingentemente verdadeira, pois ele poderia ter sido egípcio. Chama-se “deslize das modalidades” ao erro aqui cometido na compreensão do conceito de validade. O erro consiste em confundir as seguintes duas condicionais: p → ¨q ¨(p → q) A primeira capta a forma lógica da proposição de que se um argumento dedutivamente válido tiver premissas verdadeiras, a sua conclusão será necessariamente verdadeira. Esta 11/02/2015 125 proposição é falsa porque as conclusões de muitos argumentos dedutivamente válidos com premissas verdadeiras não são necessariamente verdadeiras. A segunda capta a proposição verdadeira de que, necessariamente, se as premissas de um argumento dedutivamente válido forem verdadeiras, a sua conclusão será verdadeira. Ter atenção ao âmbito dos operadores modais é, pois, da máxima importância: sem isso, é a compreensão do próprio conceito de validade dedutiva que fica comprometida. Vejamos outro exemplo. Talvez seja razoável defender que os ciclistas são necessariamente bípedes, para poderem pedalar, mas que não são necessariamente racionais, contrastando assim com os matemáticos, que são necessariamente racionais, não sendo necessariamente bípedes. Todavia, como entender a proposição de que os ciclistas são necessariamente bípedes? Qual é o âmbito adequado do operador de necessidade? A proposição, sem o operador modal, tem a seguinte forma lógica, dada uma interpretação óbvia: ∀x (Fx → Gx) Esta é a forma lógica de “Os ciclistas são bípedes”. Se inserirmos o operador de necessidade onde ele parece ocorrer na língua portuguesa, obtemos o seguinte: ∀x (Fx → ¨Gx) Contudo, esta forma lógica não capta adequadamente o que se tem em mente quando se afirma que os ciclistas são necessariamente bípedes. Pois certamente não queremos realmente dizer que, dada uma pessoa qualquer, se ela for ciclista, ela não poderia não ser bípede (no sentido fraco de ter duas pernas). Certamente que uma pessoa que é efectivamente ciclista poderia não ter sido ciclista, pois poderia ter nascido sem pernas, por exemplo, caso em que não seria também bípede. Assim, para captar adequadamente a nossa proposição inicial, o âmbito do operador de necessidade tem de ser longo: ¨∀x (Fx → Gx) Ou seja, necessariamente, todos os ciclistas são bípedes. Esta interpretação é mais razoável porque é compatível com a ideia de que uma pessoa que é efectivamente ciclista e bípede poderia não ter sido bípede nem ciclista. Uma vez mais, é da máxima importância dar atenção ao âmbito dos operadores modais. Considere-se agora a ideia de que o presidente dos EUA não poderia ter sido japonês. Neste caso, temos uma descrição definida; usando uma interpretação óbvia, a forma lógica em causa, sem o operador de modalidade, é a seguinte: ∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y = x) ⋀ ¬Gx] Exprime-se aqui a forma lógica da proposição verdadeira de que o presidente dos EUA não é japonês. Contudo, se pensarmos que o âmbito do operador modal é curto, como a língua 11/02/2015 126 portuguesa parece sugerir, obtemos uma forma lógica que não capta a ideia que temos em mente: ∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y =x) ⋀ ¬¸Gx] Esta é a forma lógica da proposição de que o presidente dos EUA não poderia ter sido japonês; mas isto é falso, pois Obama, por exemplo, poderia ter nascido no Japão e ser japonês — apenas não seria, nesse caso, presidente dos EUA. Assim, o que se pretende originalmente dizer é captado na seguinte forma lógica: ¬¸∃x [Fx ⋀ ∀y (Fy → y =x) ⋀ Gx] Ou seja, queremos dizer que não é possível que o presidente dos EUA seja japonês, num sentido que é compatível com a ideia de que o presidente dos EUA poderia ser japonês. Acontece apenas que, em português, estas duas afirmações não se distinguem adequadamente, parecendo meras variações gramaticais da mesma ideia. A lógica modal ajuda-nos a ver que há uma diferença da máxima importância no âmbito do operador de possibilidade. 11/02/2015 127 7. Lógica silogística A lógica silogística é uma parte da lógica aristotélica que sistematiza a validade de formas argumentativas como a seguinte: Todos os seres humanos são mamíferos. Todos os mamíferos são animais. Logo, todos os seres humanos são animais. É aos argumentos que têm este tipo de forma lógica que se chama silogismo. 1. Quatro formas proposicionais Nos silogismos só há quatro formas proposicionais: Tipo A, universal afirmativa: Todo o S é P. Tipo E, universal negativa: Nenhum S é P. Tipo I, particular afirmativa: Algum S é P. Tipo O, particular negativa: Algum S não é P. Porque todas estas formas proposicionais são adequadamente captáveis na lógica clássica quantificada, a lógica silogística é um pequeno fragmento daquela. Na lógica silogística, usamos “S”, “P” e “M” para representar termos gerais, como “seres humanos” ou “répteis”. Assim, “todo o ser humano é grego” exprime uma proposição de tipo A, ao contrário de “Sócrates é mortal” ou “A vida é sagrada”, que não exprimem proposições silogísticas. O quadrado de oposição representa relações lógicas óbvias entre estas quatro formas proposicionais: Todo o S é P A E I O Algum S é P 11/02/2015 Nenhum S é P Algum S não é P 128 Os pares A-O e E-I são formas proposicionais contraditórias, ou seja, negam-se mutuamente. Isto significa que têm sempre valores de verdade opostos. O mesmo não acontece aos pares A-E e I-O: estas são contrárias e não contraditórias, porque se negam apenas parcialmente. Por exemplo, “alguns seres humanos são homens” e “alguns seres humanos são mulheres” são ambas verdadeiras, e “algumas divindades egípcias são benevolentes” e “algumas divindades egípcias não são benevolentes” são ambas falsas (se não existirem divindades egípcias). Entre A e I, assim como entre E e O, existe uma relação de subalternidade, caso excluamos classes vazias (como a classe das divindades egípcias, se estas não existirem). “Subalternidade” é a designação tradicional do conceito de implicação, que é a relação existente entre as premissas e a conclusão de um argumento dedutivamente válido. Excluindo classes vazias, as proposições de tipo A implicam as proposições de tipo I, assim como as de tipo E implicam as de tipo O: ou seja, é impossível que A seja verdadeira e I falsa, acontecendo o mesmo entre E e O. Caso não se exclua classes vazias, esta relação de subalternidade não existe, pois “Todas as divindades egípcias são benevolentes” é verdadeira mas “algumas divindades egípcias são benevolentes” é falsa (pressupondo sempre que não existem divindades egípcias). Como sabemos já pela lógica clássica, qualquer condicional “A → B” é verdadeira quando a sua antecedente é falsa; ora, isto significa que qualquer condicional universalmente quantificada, como “∀x (Fx → Gx)”, é igualmente verdadeira quando não há qualquer F. Caso se exclua classes vazias, as relações lógicas entre os pares A-E e I-O são ligeiramente diferentes. Nesse caso, as proposições da forma A e E podem ser ambas falsas (como “todos os seres humanos são gregos” e “nenhum ser humano é grego”), mas não podem ser ambas verdadeiras; e as proposições da forma I e O podem ser ambas verdadeiras (como “Alguns seres humanos são gregos” e “alguns seres humanos não são gregos”), mas não podem ser ambas falsas. 2. O conceito de silogismo Considere-se as seguintes proposições silogísticas: Alguns gregos são filósofos. Alguns filósofos são gregos. Na primeira, o termo sujeito é “gregos”, que é o termo predicado na segunda; nesta, o termo sujeito é “filósofos”, que é o termo predicado na primeira. Considere-se agora a seguinte forma silogística: Todo o M é P. Todo o S é M. Logo, todo o S é P. 11/02/2015 129 Chama-se “termo menor” ao termo sujeito da conclusão, e “termo maior” ao termo predicado da conclusão; o termo médio é o que ocorre repetido nas premissas. À premissa que contém o termo menor chama-se “premissa menor”, e à outra “premissa maior”. A ordem das premissas é irrelevante; contudo, na codificação tradicional dos silogismos, coloca-se sempre a premissa maior em primeiro lugar. Para que um argumento seja um silogismo, tem de obedecer a seis restrições: 1. Tem de ter duas premissas e uma conclusão. 2. Tanto as premissas como a conclusão têm de ser proposições de tipo A, E, I ou O. 3. Tem de ter apenas três termos. 4. O termo médio tem de ocorrer nas duas premissas e só nelas. 5. O termo maior só pode ocorrer na conclusão e numa das premissas. 6. O termo menor só pode ocorrer na conclusão e numa das premissas. Dadas estas restrições, os seguintes argumentos válidos não são silogismos: Se só tivesse direitos quem tem deveres, os bebés não teriam direitos. Mas os bebés têm direitos. Logo, é falso que só tem direitos quem tem deveres. Todas as divindades astecas são puro espírito. Mas nada é puro espírito. Logo, não há divindades astecas. 3. Validade silogística O conceito de distribuição de termos é usado para formular duas das cinco exigências a que um silogismo tem de obedecer para ser válido. Numa proposição de tipo A, o termo sujeito está distribuído no sentido em que se faz uma asserção acerca de todos os S; já numa proposição de tipo I nenhum termo está distribuído porque não se faz qualquer asserção acerca de todos os S nem acerca de todos os P. Os termos distribuídos em cada uma das quatro formas proposicionais da silogística são os seguintes: Termo sujeito A E I O Nenhum 11/02/2015 Ambos Termo predicado 130 Com o conceito de distribuição de termos, formulamos então as seguintes cinco exigências a que qualquer silogismo tem de obedecer para que seja válido: 1. O termo médio tem de estar distribuído pelo menos uma vez. 2. Se um termo estiver distribuído na conclusão, tem de estar distribuído também na premissa. 3. Pelo menos uma premissa tem de ser afirmativa. 4. Se uma das premissas for negativa, a conclusão tem de ser negativa. 5. Se as duas premissas forem universais, a conclusão tem de ser universal. Assim, a seguinte forma proposicional viola a exigência 1: Todo P é M. Algum S é M. Logo, algum S é P. Neste caso, o termo médio, “M”, não está distribuído na primeira premissa nem na segunda. Não o está na primeira porque esta é de tipo A, e nestas formas proposicionais só o termo sujeito está distribuído; e não o está na segunda porque esta é de tipo I, e nestas formas proposicionais nenhum termo está distribuído. Uma maneira de mudar a forma silogística anterior para não violar a exigência 1 é a seguinte: Todo P é M. Algum S não é M. Logo, algum S é P. Ao introduzir a negação na segunda premissa, deixámos de violar a exigência 1, porque agora o termo “M” ficou distribuído uma vez. A exigência 2 também não é violada, dado que nenhum termo está distribuído na conclusão; nem a 3, pois a primeira premissa é afirmativa. Contudo, violamos agora a exigência 4, pois a segunda premissa é negativa, mas a conclusão é afirmativa. Mudemos então a conclusão, para não violar esta exigência: Todo P é M. Algum S não é M. Logo, algum S não é P. Agora já não violamos a exigência 4, porque a conclusão é negativa, mas temos de dar atenção à exigência 2: se um termo estiver distribuído na conclusão, tem de estar distribuído na premissa. O termo “P” anteriormente não estava distribuído na conclusão porque esta era de tipo I; contudo, a conclusão ficou agora de tipo O, o que significa que o termo predicado está agora distribuído. Mas “P” está também distribuído na primeira premissa, pelo que não violamos a exigência 2. E também não violamos a exigência 5, pois não temos du11/02/2015 131 as premissas universais. Quando uma forma silogística obedece às cinco exigências, é válida; por isso, encontrámos uma forma silogística válida, o que podemos demonstrar facilmente recorrendo a uma árvore lógica: ∀x (Px → Mx), ∃x (Sx ⋀ ¬Mx) ∴ ∃x (Sx ⋀ ¬Px) ∀x (Px → Mx) ∃x (Sx ⋀ ¬Mx) ¬∃x (Sx ⋀ ¬Px) ∀x ¬(Sx ⋀ ¬Px) Sa ⋀ ¬Ma Sa ¬Ma Pa → Ma ¬Pa Ma ¬(Sa ⋀ ¬Pa) ¬Sa Pa Exercícios Determine a validade ou invalidade dos seguintes silogismos: 1. Alguns seres humanos são portugueses. Todos os filósofos são seres humanos. Logo, todos os filósofos são portugueses. 2. Alguns seres humanos são portugueses. Todos os seres humanos são mortais. Logo, todos os mortais são portugueses. 3. Nenhuns caracóis são seres humanos. Alguns seres humanos não são mulheres. Logo, todas as mulheres são caracóis. 4. Todos os seres humanos são animais de sangue quente. Alguns seres humanos não são livros. Logo, todos os livros são animais de sangue quente. 5. Todos os seres humanos são animais de sangue quente. Alguns seres humanos não são livros. Logo, nenhuns livros são animais de sangue quente. 6. Todos os seres perfeitos são belos. Nenhuns seres belos são seres humanos. Logo, nenhuns seres humanos são perfeitos. 7. Todos os lisboetas são cidadãos de Lisboa. Todos os lisboetas são portugueses. Logo, todos os portugueses são cidadãos de Lisboa. 8. Alguns portugueses não são franceses. Nenhum português é parisiense. Logo, alguns parisienses não são franceses. 9. Alguns portugueses são algarvios. Alguns lisboetas são portugueses. Logo, alguns lisboetas são algarvios. 10. Todos os seres humanos são mortais. Todos os filósofos são seres humanos. Logo, nenhum filósofo é mortal. 11/02/2015 132 11. Todas as coisas feias são desagradáveis. Algumas obras de arte não são feias. Logo, todas as obras de arte são desagradáveis. 11/02/2015 133