SOCIEDADE GOIANA DE PSICODRAMA Silvamir Alves A PSICOLOGIA SOCIAL DE J. L. MORENO Goiânia 2008 RESUMO Neste estudo, investigam-se as interfaces entre a sociometria, concebida por Jacob Levy Moreno, e a psicologia social norte-americana, no período de 1910 a 1940, tendo como base o materialismo histórico-dialético na abordagem sócio-histórica de Vigotski, de perspectiva. Por esse método, a ciência é compreendida como um conhecimento que resulta da ação social do homem, de forma que ele é, ao mesmo tempo, produto e produtor da história. Foram considerados a psicologia social nos Estados Unidos do período de 1910 a 1940, a construção do psicodrama e da sociometria e as categorias pragmatismo (ação e experiência), ciência, relação indivíduo–sociedade e grupo presentes na obra Quem sobreviverá?, escrita por Moreno, de forma a identificar a influência da psicologia social na sociometria, definida por Moreno como a ciência da medida do relacionamento humano. O objetivo da sociometria é avaliar as escolhas e percepções sociais e seu principal instrumento é o teste sociométrico, cujos resultados permitem traçar o gráfico das relações grupais, chamado sociograma. A fim de compreender a influência de determinada vertente da psicologia social norte–americana, na década de 1930, no pensamento sociométrico de Moreno, foi analisada a obra Quem sobreviverá? Confirmou-se a existência de áreas de contato entre a sociometria e a psicologia social de orientação positivista, cuja perspectiva acrítica ratifica a ciência como uma forma de conhecimento a-histórica, ideológica e meramente colaboradora na manutenção da sociedade tal como é. Conclui-se, no entanto, que o conhecimento acumulado da sociometria possibilita aproximá-la de uma psicologia social crítica, desde que ela rompa com a visão ideológica de grupo natural e passe a analisá-lo como conseqüência da determinação sócio-histórica. Palavras-chave: Psicologia pragmatismo; positivismo. social; sociometria; psicologia sócio-histórica; ABSTRACT THE SOCIAL PSYCHOLOGY OF J. L. MORENO This study investigates the interfaces between sociometry, conceived by Jacob Levy Moreno, and the American social psychology, from 1910 to 1940, based on Vigotski’s social-historical approach with a dialectic perspective. Through this method, science is understood as a type of knowledge resulting from man’s social action, so that he is, at the same time, product and producer of history. This research takes into consideration, the social psychology in the United Sates social in the period from 1910 to 1940, the construction of psychodrama and Sociometry, as well as the categories pragmatism (action and experience), science, individual–society and group relationships found in the book Who shall survive?, written by Moreno, to identify to social psychology influence on sociometry, defined by Moreno as the science that measures human relations. The goal of sociometry is to assess social choices and perceptions and its main tool is the socio-metric test, which provides results that allow plotting a graphic of group relations, named sociogram. In order to understand the influence a determined branch of the American social psychology, in the 1930’s, had on Moreno’s sociometric thought, the book Who shall survive? was analyzed in study. It was possible to confirm the existence of between sociometry and social psychology with a positivist approach, which has a non-critical perspective that corroborates science as a form of non-historical and ideological knowledge, seen as a mere collaborator in the maintenance of society as it is. However, it could be concluded that the accumulated knowledge by sociometry makes it closer to a critical social psychology, provided that it breaks up with the ideological vision of the natural group and starts analyzing it as a consequence of social-historic determination. Key words: Social psychology; sociometry; social-historical psychology; pragmatism; positivism. 4 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................................ 5 CENÁRIO DO DESENVOLVIMENTO DA PSICOLOGIA SOCIAL DE (1910 A 1940)............................................................................................................................... 14 Psicologia social nos Estados Unidos nas décadas de 1910 a 1940 ........................... 15 Os principais autores da psicologia social norte-americana de 1910 a 1940 que influenciaram J. L. Moreno ........................................................................................ 20 Pragmatismo como expressão da sociedade norte-americana.................................... 25 A CONSTRUÇÃO DO PSICODRAMA E DA SOCIOMETRIA................................. 32 Vida e obra de J. L. Moreno ....................................................................................... 32 Psicodrama: a linguagem da ação dramática.............................................................. 43 O que vem a ser sociometria?..................................................................................... 48 CATEGORIAS DA PSICOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIDAS POR J. L. MORENO EM QUEM SOBREVIVERÁ?....................................................................... 66 Ciência: positivismo e pragmatismo .......................................................................... 66 Relação indivíduo–sociedade: uma visão microssociológica..................................... 74 Grupo: concepção natural e atomista.......................................................................... 78 Átomo social: a origem do grupo ........................................................................... 79 Classificação sociométrica dos grupos .................................................................. 83 Liderança................................................................................................................ 87 Psicoterapia de grupo ............................................................................................ 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 92 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 96 INTRODUÇÃO O foco deste trabalho é a investigação das interfaces da obra Quem sobreviverá? de Jacob Levy Moreno, produzida na década de 1930, nos Estados Unidos com a psicologia social. O que motivou este estudo foi a intenção de que ele possa constituir um esforço de aprofundamento, teorização e compreensão da sociometria – objeto de análise da referida obra –, com vistas a clarear seus conceitos e perspectivas e, sobretudo, demarcar a intersecção entre a ciência da medida do relacionamento humano (Moreno, 1992) e a psicologia social americana, na primeira metade do século XX. Em Quem sobreviverá?, J. L. Moreno relata pesquisas empíricas com grupos. O sistema teórico decorrente dessas experiências foi por ele denominado sociometria, e seu principal instrumento é o teste sociométrico, cujos dados resultam no sociograma (gráfico das relações grupais). O livro demonstra a atuação do método sociométrico nas relações intra e intergrupais. Relata as experiências que Moreno realizou com a sociometria em escolas públicas e privadas, na prisão de Sing Sing e na instituição para moças delinqüentes na cidade de Hudson, nos Estados Unidos. Ele planejava as suas intervenções, mas o que o guiava era a espontaneidade-criatividade, a ação e a experiência. A teoria moreniana apresenta afinidade com o pragmatismo, na medida em que os conceitos sociométricos, resultantes da aplicação do teste sociométrico, entre outros métodos, baseiam-se nas categorias da ação, da experiência, das conseqüências práticas e da funcionalidade dos grupos. A sociometria não constituía um método terapêutico. Contudo, foi um instrumento para identificar a estrutura dos grupos e para penetrar nela, a fim de nortear ações práticas e terapêuticas destinadas a reorganizar um grupo. 6 A propósito dessa intenção terapêutica de Moreno, Naffah Neto (1997, p. 145) escreveu: Às técnicas sociométricas, são acrescidas técnicas sociodinâmicas como a de desempenho de papéis (roleplaying). A partir daí começa-se a operar a reorganização da instituição: com base nos sociogramas e nos outros testes, novos agrupamentos passam a substituir os antigos, as “patologias” das relações passam a ser reveladas e “tratadas” em sessões de role-playing, de psicodrama e sociodrama, enquanto o teste de espontaneidade e o teatro espontâneo passam a funcionar no sentido de confrontar as detentas com futuras situações que poderão encontrar quando saírem da instituição, em liberdade total ou provisória. Como conseqüência de tudo isso, aumentam a produtividade nas relações e a capacidade de abertura e entendimento entre as detentas; as fugas diminuem, tornam-se raras, pois a vida em Hudson adquire aos poucos um caráter mais humano. Com a sociometria, Moreno elaborou uma microssociologia, que possibilita analisar a estrutura e o funcionamento dos pequenos grupos. Isso resultou em uma abordagem psicossocial que utiliza técnicas de ação para propiciar a interação terapêutica. Moreno (1994a) manifesta a convicção de que “a evolução de grupos sociais abre o caminho para a classificação de indivíduos de acordo com seu desenvolvimento dentro deles, o que, por sua vez, possibilita a construção destes grupos” (p. 85-86). Nessa afirmação, ele deixa claro sua percepção da interdependência dos fenômenos individuais e grupais. Porém, Moreno mostra uma visão cindida desses fenômenos. Ao construir a sociometria, Moreno cria uma abordagem pluralista, na qual avalia os aspectos qualitativos e quantitativos da interação entre os participantes do grupo. Em certa medida, o significado básico de sua proposta já se revela na composição da palavra sociometria: sócio (social) e metria (medida). Essa mensuração é feita por meio do teste sociométrico, que mede a organização dos grupos, de modo a evidenciar sua estrutura, com o objetivo de chegar à sua dinâmica. Os resultados do teste permitem construir um gráfico, denominado sociograma, que demonstra as configurações existentes no grupo: pares, triângulos, círculos, correntes, estrelas e elementos isolados. Essas configurações variam de acordo com o critério sociométrico (objetivo para o qual se escolhe) que for adotado. Elas constituem apenas uma representação esquemática de uma dinâmica, que se completa quando é traduzida para o nível da interação, 7 demonstrando as atrações e rejeições de uma pessoa. Essas configurações funcionam como uma unidade, que corresponde à noção moreniana de “átomo social”. Para Moreno (1994a), a menor unidade social não é o indivíduo, mas o “átomo social”, que envolve uma pessoa e suas relações significativas (de atração ou de rejeição). Ou seja, a pessoa é compreendida na interação com as outras pessoas com as quais ela está-se relacionando emocionalmente no momento. Portanto, deslocou a unidade de pesquisa do indivíduo para o seu meio social. A propósito dessa mudança de perspectiva que Moreno fez, Naffah Neto (1997, p. 171-172) escreveu: Graças a ela [mudança] tornou-se possível conceber as neuroses e as doenças mentais não mais como “doenças” no sentido biofisiológico do termo e não mais como fenômenos intrapsíquicos (como certas linhas psicanalíticas as vêem); foi o conceito de átomo social de Moreno, por mais imperfeito que possa ser, que favoreceu às psicopatologias saírem de sua toca individualista e solipsista para reencontrarem, na estrutura inconsciente das relações sociais, seu motivo. Nesse sentido, não seria absurdo dizer que Moreno foi o precursor da antipsiquiatria. Moreno percebeu o sofrimento humano como manifestação de conflitos de caráter eminentemente interacional. Assim, se os distúrbios mentais eram provenientes das relações grupais, poderiam ser “curados” com a interação do indivíduo em grupos. Portanto, em vez de uma psicoterapia individual, ele tratava as pessoas em grupo. Essa forma particular de compreender e tratar as doenças sociais contava com o auxílio de outros métodos, como o psicodrama e o sociodrama. O estudo dos fenômenos grupais, realizado por Moreno, marcou o início da pesquisa sistemática da atração interpessoal. Além disso, contribuiu para a compreensão da dinâmica de grupo e dos grupos, mediante a reconstrução dos aspectos estruturais e das relações afetivas dentro de um grupo. É com base nesse reconhecimento que Vala e Monteiro (1997), entre outros, afirmaram que se deve a Moreno a introdução da técnica de avaliação das escolhas e percepções sociais. Moreno fez essas constatações por meio de pesquisa empírica, realizada na comunidade de Hudson. A análise dessa experiência possibilitou-lhe identificar e caracterizar nos grupos os seguintes fenômenos: átomos sociais, expansividade afetiva, processos de comunicação (redes sociométricas, correntes psicológicas e afetivas), atribuição de papéis, liderança, coesão de grupo, reorganização grupal, resolução de 8 conflitos etc. Esses fenômenos revelados no estudo sociométrico de grupos, constituíram categorias que, segundo Monteiro (2001), subsidiaram o desenvolvimento dos campos da psicologia social e da administração de empresas. Segundo Naffah Neto (1997), Moreno fica circunscrito à descrição, ao imediato do objeto estudado. Por isso, não revela suas mediações, a sua essência, o seu momento histórico; assim, naturaliza o objeto. Essa escolha pela vertente de ciência descritiva faz que ele se comprometa com a funcionalidade, com a manutenção da sociedade capitalista, pois a relação interpessoal muda, mas persiste a estrutura de exploração de uma classe sobre a outra. Por volta de 1930, período intermediário entre as duas Grandes Guerras Mundiais, o pragmatismo norte-americano requisitou a psicologia para aplicá-la à educação e ao trabalho. Esse fator influenciou decisivamente o desenvolvimento da psicologia social positivista naquele país. Conhecer o funcionamento do pequeno grupo mostrou-se uma necessidade, pois o indivíduo que precisa ser controlado e adaptado ao trabalho integra um grupo. Por isso, o estudo empírico focalizando o pequeno grupo e as relações interpessoais passam a ser objeto básico dessa psicologia social, desenvolvida nos Estados Unidos (ABRANTES, SILVA, MARTINS, 2005). Nessa década, vários cientistas, psicólogos e psicólogos sociais emigraram da Europa para os Estados Unidos, entre outros motivos, por causa da ascenção de Hitler ao poder na Alemanha. Eles encontraram, naquele país, uma forte tendência pragmática e cederam a ela. Essa contingência histórica contribuiu para o crescimento da psicologia social positivista. E os Estados Unidos consolidaram-se como o lugar da produção dessa ciência, pois reuniu as condições ideais para o seu desenvolvimento, como o fortalecimento da economia, da política e da cultura. A psicologia social positivista encontrou, naquele contexto dos Estados Unidos, um campo fértil para desenvolver-se. A guerra propiciou condições para focalizar-se no atendimento grupal e relacional. Com a demanda de clientes foram estimulados os estudos sobre grupo e preconceito, porém, numa perspectiva individualista, ou seja, mediante explicações do fenômeno por meio do comportamento individual. Com esse formato, a psicologia social, naquele momento, constituiu um fenômeno tipicamente norte-americano, tendo a Universidade de Chicago como referência, pois patrocinou estudos de temas, como: as atitudes sociais, de Thomas; o behaviorismo social, de Mead; a mensuração de valores sociais, de Thurstone; o interacionismo simbólico, de Blumer e as formas dramatúrgicas de psicologia social, de Goffman (FARR, 2004). 9 Culturalmente, pode-se dizer que a sociedade americana é do tipo homo metrum, fator que também favoreceu a constituição de um solo fértil para o desenvolvimento da sociometria de Moreno. Por isso, o movimento sociométrico é considerado genuinamente norte-americano, ainda que alguns aspectos da sociometria tenham sido trabalhados por Moreno na Europa (MARINEAU, 1992). Moreno (1992-1994) utiliza-se da técnica experimental, dos métodos quantitativos, mas sem se esquecer do socius, do qualitativo. Sua preocupação sempre foi superar da dicotomia existente entre os aspectos qualitativo e quantitativo. Mas não conseguiu. Por isso, adotou um pensamento híbrido, que o aproximou da metodologia qualitativa. Porém, está evidente a influência da metodologia convencional de tradição positivista, nas análises das categorias ciência, indivíduo–sociedade e grupo. Vigotski (2004) criticou a atitude eclética, ao afirmar que ela carece de uma avaliação crítica das escolas de pensamento e aceita todos os conceitos. Entretanto, no caso de Moreno (1992), essa atitude mostra que ele pretendia conferir à sociometria o status de ciência conforme o modelo positivista, porém tentando manter o vínculo com teorias não positivistas. Sua filiação ao positivismo foi reconhecida quando ele defendeu que havia encontrado, por meio do sociograma de grupos, um modo de estruturar a terapia de grupo em base científica. Porém, limita-se à vertente descritiva, funcional, com regras, a-histórica. A trajetória de Moreno comporta uma divisão em quatro fases: 1ª o momento que pode ser denominado religioso e filosófico, tendo como tema predominante as filosofias da existência; 2ª o momento denominado teatral e terapêutico, cujo tema predominante foi o teatro; 3ª o momento denominado sociológico e grupal, cujo tema predominante foi o social e as dinâmicas dos grupos – é a fase sociométrica – já com Moreno vivendo nos Estados Unidos; 4ª o momento da organização e consolidação da teoria moreniana – é o retorno ao teatro terapêutico e o tema predominante foi a articulação e estruturação de suas idéias como método de psicoterapia (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988). A obra de Jacob Levy Moreno focalizada neste estudo – Quem sobreviverá? – representa a terceira fase teórica do autor. Ela é propícia para se verificar a interdependência entre a sociometria e um determinado tipo de psicologia social, pois 10 apresenta as idéias de Moreno acerca do social e dos grupos, nos Estados Unidos, e comprova a preocupação dele em fazer um determinado tipo de ciência. Nessa obra, Moreno apresentou a sua teoria da microssociologia e sua eficácia na análise da estrutura e da dinâmica dos pequenos grupos. Demonstrou, por meio de pesquisa experimental, que os conceitos sociométricos básicos são indispensáveis para a compreensão dos grupos. Mas, estranhamente, essas contribuições não aparecem nas obras de psicologia social e, quando aparecem, é sem muito destaque, como na obra de psicologia social de Vala e Monteiro (1997), em que Moreno é citado em quatro páginas. Às vezes, é possível reconhecer suas idéias em obras de psicologia social, entretanto os autores não o citam. Da mesma forma, a sociometria é uma teoria pouco estudada e divulgada no próprio meio psicodramático. Essa realidade provocou uma pergunta: qual é a psicologia social que emerge da obra de J. L. Moreno? Esta pesquisa procurou identificar, analisar e compreender os pressupostos da psicologia social presente em Quem sobreviverá?, que Jacob Levy Moreno escreveu na década de 1930, nos Estados Unidos. Para responder essa indagação, procura-se explicitar criticamente os pressupostos da sociometria e identificar a qual método de psicologia social essa teoria está afiliada. Assim, este estudo pretende ser um passo no sentido de compreender a teoria sociométrica de J. L. Moreno e sua determinação sócio-histórica, bem como de oferecer subsídios a pesquisadores e profissionais da psicologia social e do psicodrama (teoria moreniana). Além disso, constituiu uma oportunidade de aprofundar experiências intelectuais, indispensáveis ao conhecimento necessário no trato dos problemas teóricos e práticos que vitalizam e desafiam o cotidiano do psicólogo social e dos psicodramatistas. Método de estudo Nas ciências humanas, entendidas aqui como todas as disciplinas que têm por objeto de investigação alguma das diversas atividades humanas, o objeto é histórico e humano tanto quanto o pesquisador. Logo, o sujeito conhece o objeto e o objeto conhece o sujeito e ambos interagem e desempenham um papel ativo na produção do novo conhecimento. 11 O caminho escolhido para compreender a interface entre a teoria moreniana (sociometria) e a psicologia social da década de 1930, nos Estados Unidos, foi a análise de Quem sobreviverá?, obra em que Jacob Levy Moreno expressa seu pensamento acerca dos grupos humanos por meio da sociometria. A influência que teve a psicologia social norte-americana sobre Moreno e as contribuições deste a essa disciplina foram analisadas com base no materialismo histórico-dialético de perspectiva sócio-histórica de Lev S. Vigotski (2004). Uma leitura nessa perspectiva considera que a linguagem contém os registros sociais, produzidos historicamente (significados), e também os registros pessoais (sentidos). Assim, a abordagem sócio-histórica auxilia na identificação e no estabelecimento dos nexos entre as múltiplas determinações das quais resulta que a psicologia social e a sociometria sejam, ao mesmo tempo, produtos e produtoras, vistas historicamente e numa dada realidade social. Portanto, a análise da obra Quem sobreviverá? desenvolvida aqui, tem uma perspectiva crítica, fundamentada na visão sócio-histórica de Vigotski. Adotar essa perspectiva crítica não significa uma recusa à sociometria de Moreno, mas sim um esforço para compreendê-la e para enfrentar questões que permanecem sem resposta a respeito de sua gênese e suas possibilidades. Vigotski (2003, p. 80) reconhece como o elemento-chave do seu método “a abordagem dialética”. Para ele, o conhecimento é um processo histórico que acompanha as leis da dialética, compreendendo, além de um método, uma teoria que permite pensar um objeto. Para ele “a dialética abarca a natureza, o pensamento, a história: é a ciência em geral, universal ao máximo” (VIGOTSKI, 2004, p. 393). Sousa (2001, p. 49) ressaltou o esforço de Vigotski para “superar os reducionismos teóricos da psicologia da época, baseados em dicotomias como objetividade–subjetividade, homem–sociedade e significado–materialidade.” Pelo método vigotskiano, o ser humano é compreendido como uma unidade, isto é, como um ser biológico, social e participante do processo histórico. Portanto, para conhecê-lo é necessário alcançar sua forma singular de produzir significados e sentidos em suas experiências. O processo de construção do conhecimento, baseado em Vigotski (2001a), é a tomada de um posicionamento que compreende o homem como ser histórico e social. Isso equivale a dizer que ele se constitui em suas relações específicas, sendo representante, ao mesmo tempo, da história universal da humanidade e de sua história 12 particular. Além disso, significa compreender que a linguagem humana representa uma síntese dinâmica do desenvolvimento histórico do homem e que, por meio dela, se pode ter acesso a aspectos humanos fundamentais, tais como a personalidade, a autoconsciência e a visão de mundo. A metodologia vigotskiana possibilita a busca dos desejos, das necessidades motivadoras de interesses, que, para serem compreendidos, devem ser contextualizados e historicizados. Vigotski (2001a, p.159) ensina que “o pensamento propriamente dito é gerado pela motivação, isto é, por nossos desejos e necessidades, nossos interesses e emoções. Por trás de cada pensamento há uma tendência afetivo-volitiva”. A validade da análise de um documento escrito é confirmada na medida em que se o compreende dentro de um contexto social mais amplo, constituído por contextos mais específicos que ajudam a explicar as diferenças de sentido. Procedimentos metodológicos A pesquisa bibliográfica foi o procedimento escolhido para a realização do presente estudo. É próprio dessa modalidade de pesquisa realizar-se a partir de um material já construído, em especial, de livros e artigos científicos. No entanto, embora seja uma pesquisa desenvolvida a partir de referências teóricas conhecidas, não se trata, conforme esclarecem Lakatos e Marconi (1990, p. 179), de “mera repetição do que já foi dito ou escrito sobre certo assunto, mas [do] exame de um tema sob novo enfoque ou abordagem, chegando a conclusões inovadoras”. A pesquisa abrange a bibliografia já tornada pública sobre a psicologia social norte-americana da década de 1930 e a teoria sociométrica de J. L. Moreno. Esta foi publicada, pela primeira vez, em 1934, nos Estados Unidos e só foi traduzida para o português no início dos anos 90, sob o título Quem sobreviverá?. Organizada em três volumes, a edição brasileira teve o primeiro volume publicado em 1992 e os seguintes, em 1994. Várias são as vantagens de uma pesquisa bibliográfica. Entre elas, ressalta o fato de que as bibliografias constituem fonte rica e estável de dados, além de essa modalidade de pesquisa ser indispensável em estudos históricos e teóricos. Para Gil (2002, p. 45), “a principal vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela 13 que poderia pesquisar diretamente”. Em suma, uma pesquisa baseada em um documento escrito pode não trazer respostas definitivas sobre um problema, porém tem a possibilidade de proporcionar uma visão mais ampla ou profunda dele, além de suscitar novas questões que poderão ser verificadas por outros meios. Estrutura da monografia O presente estudo foi organizado em três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Cenário do desenvolvimento da psicologia social nas décadas de 1910 a 1940”, reconstitui o contexto da psicologia social norte-americana a partir de uma sucinta revisão dos autores significativos dessa ciência, naquele período, na forma de uma breve síntese de suas respectivas pesquisas. Concluindo o capítulo, é analisada a influência do pragmatismo na sociedade norte-americana e na psicologia social desenvolvida naquele país. No segundo capítulo, intitulado “Construção do psicodrama e da sociometria,” apresenta-se a vida e a obra de Jacob Levy Moreno e a criação do psicodrama, e faz-se o detalhamento do que vem a ser sociometria e a pesquisa empírica sociométrica de uma comunidade. No terceiro capítulo, cujo título é “As categorias da psicologia social presentes na obra Quem sobreviverá?”, analisam-se as categorias ciência, relação indivíduo– sociedade e grupo, para identificar a que vertente de ciência Moreno filiou-se e as conseqüências dessa opção em sua forma de fazer psicologia social, em sua visão de homem e de mundo. CENÁRIO DO DESENVOLVIMENTO DA PSICOLOGIA SOCIAL DE (1910 A 1940) Compreender o contexto sócio-histórico em que se desenvolveu a produção científica de J. L. Moreno, na década de 1930, implica estudar o cenário norteamericano das décadas de 1910 a 1940. Toda obra tem uma história, e todo autor tem um processo de produção do conhecimento e maturação de suas idéias. O ser é histórico na medida em que é social. Assim, “compreender a história e, sobretudo, as idéias produzidas historicamente pelos homens exigem a busca de compreensão das relações sociais que permeiam, determinam e são determinadas por suas ações” (ANTUNES, 1998, p. 365). Se a história da humanidade só é compreendida na medida em que se compreendem as ações realizadas pelos seres humanos, compreender esse momento histórico – as primeiras décadas do século XX – é essencial para que seja entendida a ciência sociométrica que J. L. Moreno desenvolveu. O cerne dessa visão sócio-histórica revela-se na conhecida asserção de Marx e Engels (1980, p. 26): “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Esse enfoque capta a realidade como ela se produz e não como ela se revela, pois todo fenômeno social é histórico e não pode ser compreendido senão em sua historicidade. Outra concepção bastante difundida, de natureza humana, tem servido como instrumento para ocultar as determinações sociais do humano, cumprindo, pois, um papel ideológico. Descrever a realidade tal como ela é (natural) significa manter o status quo, manter tudo como está. Então, tanto mais se mostra a realidade como ela aparece (natural), quanto mais se reproduz essa realidade falsa. Isso é ideológico, pois é uma forma ilusória de se representar o real, que está oculto na aparência. Enfim, para compreender a obra de J. L. Moreno, é preciso contextualizá-la, buscar sua relação com a cultura, que é mediada por outros homens, os quais, por sua vez, têm como mediadora a linguagem. 15 Psicologia social nos Estados Unidos nas décadas de 1910 a 1940 A contextualização histórica é necessária para que se compreenda a psicologia social. A partir da perspectiva sócio–histórica, os psicólogos sociais não estão isolados temporal e espacialmente e não são neutros e nem estão acima das idéias e práticas que são desenvolvidas na sociedade em que vivem. O interesse sobre o pensamento social é tão antigo quanto à história. As considerações feitas pelos filósofos a respeito desse assunto são muito importantes, mas o estudo sistemático da psicologia social só se iniciou no transcurso do século XX e o seu desenvolvimento teve o ápice após a segunda guerra mundial. Sendo assim, os pioneiros dessa ciência devem ser pesquisados no final do século XIX e início do século XX (KRUGER, 1986). Augusto Comte é considerado um precursor da psicologia social. Dele surge, em 1830, o termo psicologia social e achava que a ciência poderia dar resposta ao paradoxo: como o ser humano pode, ao mesmo tempo, moldar e ser moldado pela sociedade? Essa ciência tinha de ser positiva, baseada nas ciências naturais e não na metafísica. Esse pensamento de Comte está contextualizado por uma sociedade burguesa que estava se consolidando (MUNNÉ, 1982). Comte e Marx sofreram influência do projeto de Saint-Simon. Mas, segundo Munné (1996), a ciência social pós–saint–simoniana desenvolveu-se em duas linhas divergentes, uma liderada por Comte e outra por Marx. O autor expõe da seguinte forma as diferenças entre as duas vertentes de pensamento: Confrontada com a linha comteana, a de Marx está centrada não na ordem e sim no conflito, não na harmonia supressora da luta e sim na luta pela harmonia, não na reprodução social e sim na mudança, não na adaptação do homem e sim na sua transformação para um novo homem. Tudo isso conduz a uma psicologia social que substitui a abstração, a quantificação e o dogma por um conhecimento que busca o concreto, o qualitativo e o crítico (MUNNÉ, 1996, p. 339). 1 1 As traduções do espanhol foram feitas livremente pelo autor. “Frente a la línea comtiana, la de Marx está centrada no em el orden sino em el conflicto, no em la armonia supresora de la lucha sino em la lucha por la armonia, no em la reproducción social sino em el cambio, no en la adaptación del hombre sino em su tranformación hacia um hombre nuevo. Todo ello conduce a uma psicología social que sustituye a la abstracción, la cuantificación y el dogma por um conocimiento que busca lo concreto, lo cualitativo y lo crítico.” 16 Esse contexto influencia a psicologia social. Segundo Munné (1982, p. 7), “como ciência social, a psicologia social está extremamente vinculada à sociologia, entre outras razões, porque uma e outra compartilham as mesmas raízes históricas”. Nesse sentido, a psicologia social também reflete essas duas vertentes antagônicas de pensamentos: A de Comte, que procura manter a estrutura da sociedade capitalista, e a de Marx, que procura revolucionar, transformar a estrutura dessa mesma sociedade. A linha desenvolvida por Comte tem uma proposta, segundo Munné (1996), contrária à de Marx. Para ele, Comte desenvolve uma ciência cujo objetivo é alcançar um sistema social equilibrado e harmonioso, ou seja, que justifique uma ordem de desigualdade social. Para Sabucedo, D’Adamo e Beaudoux (1997), Durkheim (1858-1917) deu continuidade às idéias de Comte, porém em outro contexto social e histórico, uma vez que nesse momento, a sociedade burguesa estava consolidada. Durkheim é o representante mais ilustre do holismo sociológico, que tem um mesmo método para estudar objetos diferentes. Para ele, o social absorve tudo o que é individual e o que é individual é antes social. Portanto, ele descarta a necessidade de estudar o individual e de existir uma psicologia social. Apesar de seu antipsicologismo, Durkheim influenciou a psicologia social, ao abordar temas como representação social, determinismo social, grupos sociais, imitação, sempre enfatizando o caráter empírico das ciências sociais. Segundo Sabucedo, D’Adamo e Beaudoux (1997), Gabriel Tarde (1890) foi contra o positivismo e o holismo sociológico e criou uma polêmica com Durkheim, ao defender que é o individual que explica o social. Em sua obra intitulada As leis da imitação, Tarde indica que a sociedade é imitação, e que as massas copiam a elite. Foi Gustave Le Bon quem fez as primeiras interpretações psicológicas para as falhas sociais, em 1895 dedicou-se ao estudo das multidões e publicou a obra Psicologia das multidões, em que explicou o comportamento das massas pelo contágio. Ele mostrou sua tendência ideológica em relação ao perigo das massas, afirmando que elas são nocivas ao indivíduo. Essa tese foi contestada por Freud (1921) em “Psicologia de grupo e a análise do ego”. Mas o primeiro marco da psicologia social foi a psicologia dos povos de Wundt, no final do século XIX. Foi Wundt que ofereceu um desenvolvimento conceitual e teórico da psicologia social, influenciando o desenvolvimento das ciências sociais e da psicologia social atual. Ele compreendia que 17 a psicologia tinha duas vertentes: a psicologia fisiológica (experimental) e a psicologia social. Os americanos que estudaram com Wundt na Alemanha só levaram para a América o modelo experimental, do laboratório. A conseqüência disso foi a constituição de uma psicologia social norte-americana extremamente individualista e experimentalista. O método básico que emprega é o positivista e suas derivações, buscando a verificação e a comprovação, mantendo sempre a concepção objetivista. Com o domínio behaviorista, não houve, nos Estados Unidos, espaço para a dimensão histórica, em termos de filogênese e história social. Nesse sentido, explica Thomae (1998, p. 376): As reformas na estrutura organizacional das universidades e faculdades americanas [...], no final do século XIX, permitiram aos jovens cientistas americanos, formados na Europa, estabelecer departamentos independentes para psicologia, enquanto na Europa esse domínio permaneceu vinculado à filosofia por mais meio século. Esse fato possibilitou que a psicologia social se tornasse autônoma nos Estados Unidos, na primeira metade do século XX. E o seu desenvolvimento sofreu a influência de: MacDougall e Ross (1908) que publicaram, nos Estados Unidos, os primeiros livros sob a rubrica de psicologia social. Mas MacDougall adotou uma posição psicológica (a influência do indivíduo sobre o grupo) e Ross adotou uma posição mais sociológica. Cooley(1902), em sua obra A natureza e a ordem social, afirma que a sociedade e o indivíduo formam um todo indissociável. Para ele, os hábitos, as atitudes, os valores não vêm de uma reflexão abstrata, mas da vida real nos grupos primários, família, grupos de brinquedo e são complementados pelas relações secundárias. John Dewey realizou estudo (1910) sobre a análise do pensamento em termos de adaptação. Ele foi o responsável pela aplicação do pragmatismo à educação. Para ele, era necessário estudar a influência do grupo no indivíduo para saber como educá-lo. Após a Primeira Guerra Mundial, que abalou a auto-estima do mundo dito civilizado, a psicologia social e outras ciências sociais desenvolveram várias pesquisas para compreender a crise. Os psicólogos sociais foram chamados a dar respostas. Por isso, passaram a estudar fenômenos como: liderança, opinião pública, propaganda, preconceito, mudança de atitudes, comunicação, relações raciais, conflitos de valores e relações grupais. Assim, escalas de mensuração das atitudes, desenvolvidas por 18 Thurstone (1928) e Likert (1932), e, ainda, o desenvolvimento da medida da opinião, por Gallup (1935), assinalaram o desenvolvimento da mensuração em psicologia social (FARR, 2004). Para Estramiana (1995), a psicologia social dos anos 1920 a 1940, nos Estados Unidos, tem o foco principal na medição das atitudes. Isso impulsionou a consolidação e o reconhecimento científico da disciplina e a crescente utilização do método experimental. Nesse período, foram realizadas várias investigações de campo, como as de Thomas e Znaniecki (1920), que publicaram um estudo sociológico sobre os camponeses americanos e poloneses, comparando comportamentos e atitudes. Floyd H. Allport (1924) dedicou-se a estudar o fenômeno do comportamento a sós em comparação com o comportamento na presença de outros. Sob a influência do behaviorismo, negou a existência de uma psicologia de grupo, acreditando ser possível apenas uma psicologia individual. Essas contribuições serviram para despertar o interesse pela psicologia social. Nesse período, diversos estudos foram realizados: Jahoda, Lazarsfeld e Zeisel (1933) sobre as conseqüências psicossociais do desemprego; os estudos experimentais de Bartlett (1932) sobre a memória e os fatores sociais da recordação; a psicologia topológica de campo de Lewin (1935/1936); a obra Espírito, pessoa e sociedade, de Mead (1934), fundamental para o desenvolvimento do interacionismo simbólico; o enfoque sociométrico para o estudo das estruturas e relações grupais de Moreno (1934); os estudos experimentais sobre o efeito autocinético, essenciais à elaboração por Sheriff (1936) da teoria sobre a formação de normas; o estudo sobre formação e mudança de atitudes de Newcomb (1943). Registrou-se, ainda nesse período, significativa influência da antropologia cultural sobre a psicologia social, em razão dos escritos de antropólogos como Franz Boas (Antropologia cultural, 1938), Ruth Benedict (Personalidade e cultura, 1934), Margaret Mead (Sexo e temperamento em três sociedades primitivas, 1935) e Ralph Linton (O estudo do homem, 1936). Influenciados pele antropologia, os psicólogos sociais incorporaram, em suas análises, conceitos como instituição, cultura, status e papel (VALA e MONTEIRO, 1997). A abordagem histórica das raízes da psicologia moderna tem a universidade de Chicago como referência, o que proporcionou a origem de diferentes formas de psicologia social: O behaviorismo social de G. H. Mead; o estudo científico de Thomas sobre as atitudes sociais; as técnicas de 19 Thurstone para a mensuração de valores sociais; o interacionismo símbolo de Blumer e na era moderna, a sociologia das relações interpessoais de Ichhweiser e as formas dramatúrgicas de psicologia social de Goffman (FARR, 2004, p. 161). De acordo com o mesmo autor, com esse formato, foi-se constituindo a psicologia social, naquele momento, como um fenômeno tipicamente norte-americano. O processo de imigração de cientistas, psicólogos, líderes acadêmicos e artistas da Europa para os Estados Unidos, que foi acelerado em 1933 com a ascenção de Hitler ao poder na Alemanha contribuiu para o crescimento da psicologia social. Segundo Vala e Monteiro (1997), para o mundo norte–americano, dirigiram-se grandes nomes da psicologia social européia, tais como: Muzafer Sherif (1906-1988), Kurt Lewin (18901947), Fritz Heider (1896-1988), Kurt Koffka (1886-1941), Solomon E. Asch (19071996), Wolfgang Kohler (1887-1967), Max Wertheimer (1880-1943), Katona, Bartlett. Com sua atuação, esses cientistas europeus contribuíram efetivamente para o desenvolvimento da psicologia social nos Estados Unidos. O país consolidou-se como o lugar da produção de uma determinada psicologia social, como reunia as condições ideais – seu fortalecimento tanto nos campos da economia e da política quanto no campo da cultura – para a autonomização dessa ciência, Vala e Monteiro (1997) ressaltam que os cientistas europeus encontraram na América do Norte, na década de 1930, uma psicologia dominada pelo funcionalismo e voltada para a aplicação dos seus conhecimentos à educação, à indústria, à opinião pública, à medicina etc. Isso refletia a exigência da sociedade americana de que a psicologia e a psicologia social ajudassem a educar e a adaptar o indivíduo e os grupos a ela. Assim, a psicologia social positivista encontrou, naquele momento, nos Estados Unidos, um campo fértil para o seu desenvolvimento. Com foco no atendimento grupal, em conseqüência da demanda de clientes, eram estimulados os estudos sobre grupo e preconceito, porém, numa perspectiva individualista, ou seja, mediante explicações do fenômeno por meio do comportamento individual. O principal fator da individualização da psicologia social na América foi sua filiação ao positivismo e ao pragmatismo, que explicam os fenômenos sociais pelo comportamento individual, tendo no behaviorismo um de seus expoentes. Outra vertente da individualização da psicologia é a Gestalt, principalmente com os trabalhos de Lewin, Heider e Asch. A Gestalt contribuiu para a emergência da psicologia social cognitiva na América. Com base em seus princípios e métodos, nessa vertente da 20 psicologia, os fenômenos sociais são analisados na perspectiva do indivíduo, porém em termos de percepção, enquanto o behaviorismo o faz em termos de comportamento. Nos Estados Unidos, foram os principais marcos da origem da psicologia social os trabalhos de Binet e Henry (“De la suggestibilitè naturalle chez les enfants”, 1894) de Triplett (“O rendimento das pessoas na presença de outras pessoas”, 1898), de MacDougall (“Introdução à psicologia social”, 1908) e de Ross (“Psicologia social”). E estes influenciaram vários autores, considerados neste estudo e suas principais pesquisas. Em suma, o desenvolvimento da psicologia social nos Estados Unidos deu-se por meio dos projetos que explicavam os fenômenos sociais com base no comportamento e na percepção do indivíduo. Comprova isso a preferência dessa ciência pelo projeto de MacDougall de uma psicologia social de cunho psicológico, com teses instintivistas, em detrimento do projeto de Ross, de uma psicologia social de cunho sociológico, que defendia uma perspectiva mais social. Desde os primeiros manuais de psicologia social, registra-se a divisão entre as concepções psicológicas – cognitivismo: busca os fatores presentes no indivíduo para explicar a relação indivíduo–sociedade – e sociológicas – papel social: apresenta os fatores sociais como os determinantes dessa relação. Registra-se também que o desenvolvimento da psicologia social de caráter individualista impediu que o pensamento de Ross influenciasse essa disciplina. Portanto, o que prevaleceu na psicologia social norte-americana foi a disciplina experimental e condutivista, que favoreceu a individualização do seu objeto de estudo (ESTRAMIANA, 1995). Os principais autores da psicologia social norte-americana de 1910 a 1940 que influenciaram J. L. Moreno A psicologia social produzida nos Estados Unidos com sua tradição pragmática, nas décadas de 1910 a 1940 – portanto, no período da Primeira Guerra Mundial e que antecede a Segunda Guerra Mundial – é uma ciência, em grande parte, comprometida com o positivismo e com a manutenção da sociedade burguesa. Ela é chamada, juntamente com outras ciências sociais, para compreender a crise que abalou essa sociedade e dar soluções a ela. Em face dessa realidade, os psicólogos sociais norte-americanos puseram-se a estudar fenômenos de liderança, opinião pública, propaganda, preconceito, mudança de 21 atitudes, comunicação, relações raciais, conflitos de valores, relações grupais. O resultado disso foi a constituição de vasto acervo de trabalhos que visavam o desenvolvimento de procedimentos e técnicas de intervenção nas relações sociais a fim de possibilitar o ajustamento e a adequação do indivíduo ao contexto social. O critério de seleção dos autores da psicologia social norte-americana foi que eles (positivistas ou não) tivessem realizado sua pesquisa no período compreendido entre 1910 e 1940 e influenciado diretamente J. L. Moreno. Foram, assim, relacionados como as principais expressões desse período os seguintes estudiosos: James Mark Baldwin (1861-1934), sociólogo, com a sua obra The individual and society (1919), foi quem deu destaque à psicologia social no interior das ciências sociais. Vala e Monteiro (1997) sinalizam que Baldwin, em uma conferência em 1897, foi o primeiro norte-americano a usar a expressão psicologia social. Baldwin procurou precisar as idéias de Tarde2 sobre imitação, definindo a imitação como uma reação sensório-motora e um processo geral cuja gênese está no indivíduo, embora seja ela um fenômeno social. Segundo esse autor, o indivíduo é um fator fundamental no processo de socialização. Ele não concebe o psicológico produzindo o social e nem o contrário, pois, para ele, a dicotomia pessoa–sociedade não encontra evidência na realidade, uma vez que indivíduo e grupo formam um mesmo conjunto (RAMOS, 2003). Sabucedo, D’Adamo e Beaudoux (1997) referem-se à contribuição de Baldwin para uma orientação de cunho mais social da psicologia do desenvolvimento, elaborando a teoria da recapitulação que aborda o desenvolvimento social da personalidade. William Isaac Thomas (1863-1947), importante sociólogo de Chicago, definiu a psicologia social como o estudo das atitudes sociais. Seu trabalho foi publicado na década de 1920, em co–autoria com Znaniecki, sob o título O camponês polonês na Europa e na América, editado em cinco volumes, usou o conceito de atitude social para estabelecer diferenças entre grupos, como, por exemplo, os imigrantes e a comunidade nativa. Os valores são tratados como representações coletivas. Ele encarou as atitudes como o lado subjetivo da cultura (FARR, 2004). O conceito de atitude, que foi cunhado por Thomas e Znaniecki, possibilitou estabelecer uma ligação entre o psicológico e o cultural. Outro tema destacado na obra 2 Gabriel Tarde (1843–1904), psicólogo social que publicou, em 1890, a obra As leis da imitação (VALA, MONTERIO, 1997). 22 são os grupos: “encontramos a idéia de que os membros de um grupo formam atitudes e valores comuns resultantes da partilha de condições de vida também comuns” (VALA, MONTEIRO, 1997, p. 383). Kurt Lewin (1890-1947), psicólogo, americano naturalizado desenvolveu seus primeiros estudos sobre a memória e a percepção. Desde o início de sua carreira, deu grande importância à psicologia aplicada, voltada para resolver os problemas humanos e para a solução de problemas sociais. Goldstein (1983) ressalta que Lewin acreditava que a teoria e a pesquisa poderiam associar-se para dar explicações aos problemas sociais. Em 1936, por influência da Gestalt fundamental, publicou Principles of topological psychology, obra em que pensou a psicologia em termos da física e adotou as noções de campo de forças. Para o autor, só por meio da apreciação do campo psicológico total (espaço vital), num dado momento e em um caso concreto, é possível prever o comportamento. De acordo com Lewin, topologia é a disciplina matemática que mais convém ao estudo do comportamento (VALA e MONTEIRO, 1997). Lewin e seus associados assumem, em 1939, uma notável importância na evolução da psicologia social com o estudo experimental sobre atmosferas grupais – autoritárias democráticas e laissez-faire – e a criação do Research Center for Group Dynamics no Massachussats Institute of Technology, reúne a nata dos psicólogos americanos. A esse respeito escreve Farr (2004, p.148): “Foi Lewin, muito mais do que Heider, que influenciou decisivamente o desenvolvimento da psicologia social experimental nos Estados Unidos”. Em outro estudo, sobre os processos grupais, Lewin trabalhou com a dinâmica de grupo – termo cunhado por ele. Foi uma incumbência recebida do governo norteamericano, para ajudar a modificar hábitos da população americana durante a guerra, considerados nefastos do ponto de vista alimentar, sanitário e econômico. (VALA e MONTEIRO, 1997). Segundo Goldstein (1983), o mérito do conceito de dinâmica de grupo é atribuído a Lewin. Este considerava os membros do grupo não isoladamente, mas numa relação de interdependência. Em sua visão, o grupo é mais do que a soma de seus membros e tem propriedades dinâmicas que os indivíduos não têm. Lewin criou os grupos T, cujo objetivo era tornar as pessoas mais conscientes dos sentimentos e das idéias das demais pessoas por meio da coesão grupal. 23 Lewin desenvolveu ainda outro conceito importante na abordagem do grupo: a tensão explica a dinâmica desse conceito nos seguintes termos: como força motivadora do comportamento humano. Goldstein (1983, p.21) “cria-se tensão sempre que existe uma necessidade psicológica; a tensão se reduz quando esta necessidade foi satisfeita”. De acordo com Marx e Hillix (1982), Lewin, no início, concentrou-se nos problemas do sujeito individual, os quais o levaram a estudar a organização da personalidade; só posteriormente direcionou seus esforços para os problemas da psicologia social, focando a dinâmica de grupo e a pesquisa de ação. George Herbert Mead3 (1863-1931), filósofo e psicólogo social, foi o último dos psicólogos-filósofos americanos. Como filósofo, era pragmático, e ,como cientista, era um psicólogo social. Fez pós-graduação em psicologia e filosofia na Alemanha. Em sua obra Mind, self and society: from the standpoint of a social behaviorist, publicada, em 1934, após sua morte, demonstrou como o self emerge da interação social e como a relação entre indivíduo e sociedade é dialética,4 de tal modo que a individualização é o resultado da socialização. A proposta apontava para a convergência entre indivíduo e sociedade, que aconteceria na comunicação. Sociedade, indivíduo e mente seriam três entidades indissociáveis, que comporiam o ato social (FARR, 2004). Mead concebe o ato social como a essência do comportamento social. As pessoas, ao satisfazerem seus impulsos devem levar em conta os outros, pois elas não vivem isoladas umas das outras. Assim, não se pode compreender o comportamento sem compreender a interação, uma vez que aquele é originário desta, e não simplesmente algo que ocorre durante seu curso. Nesse ponto da visão teórica de Mead, emerge o papel da linguagem. As pessoas interagem efetivamente por meio dela. É a capacidade de se comunicar por meio da linguagem simbólica que diferencia os seres humanos de outras espécies (GOLDSTEIN, 1983). Segundo Haguette (2003), Mead ofereceu uma descrição do self social na habilidade do indivíduo de tomar o lugar do outro, por meio do uso da linguagem. Em 3 George Herbert Mead (1863-1931), filosófo pragmático, psicólogo social, foi fortemente influenciado pela Volkerpsychologie de Wundt e pela teoria da evolução de Darwin (FARR, 2004). 4 Mead não era marxista e, sim, um pragmatista, por isso abdicou da dialética, em cuja perspectiva um pólo expressa-se no outro. Não chegou a negar a “natureza” social do comportamento humano, mas postula que o caráter social é neutralizado. Para ele, a sociedade é anterior ao indivíduo e é ela que explica o indivíduo e não o contrário (SASS, 2004). 24 outros termos, o indivíduo só aparece em seu próprio comportamento como um self quando ele é capaz de tomar a atitude do outro e torná-la parte essencial do próprio comportamento. Para essa autora, Mead fundamenta sua teoria na descrição do comportamento humano, cujo dado principal é o ato social, concebido como comportamento externo observável e também como atividade encoberta no ato. Ele se opunha à teoria de John B. Watson, que reduz o comportamento humano aos mecanismos atuantes no nível infra-humano, cuja dimensão social é vista apenas como influente sobre o indivíduo. Para Mead, o comportamento envolve uma resposta às intenções não transmitidas por meio de gestos que se tornam simbólicos. De acordo com Figueiredo (2003, p.101), Mead, por influência de Wundt, familiarizou-se com o conceito darwiniano de gesto, que quer dizer “uma ação recebida e interpretada por um outro organismo que, ao responder, estabelece um comércio de informações – uma conversação”. Assim, no comportamento dos atores sociais na vida social cotidiana, tem como substantivo elementar a ação e suas formas diversificadas de manifestações. A obra de Mead aborda também a natureza social da personalidade, bem como a autoconsciência. Para ele, o eu nasce na conduta, quando a pessoa torna-se um ser social por sua própria experiência. A expressão do eu na conduta para com os outros é um papel. Os papéis assumidos por uma pessoa são múltiplos, mas essa multiplicidade não constitui uma personalidade. Para que esta se constitua, os papéis têm de integrarse. Para Sass (2004), Mead entende que o desempenho do papel é constitutivo da pessoa e não há um sujeito oculto. Sass discorda de que Mead seja o precursor da teoria funcionalista dos papéis sociais. Gardner Murphy (1895-1979), psicólogo que foi educado em Yale, Harvard e Colúmbia. Dedicou-se inicialmente à psicologia acadêmica. Foi professor na Universidade de Colúmbia. Publicou diversas obras, embora sejam mencionadas neste estudo somente as que foram publicadas no período estipulado pela pesquisa: em 1931, Psicologia social; em 1933, Compêndio de introdução à psicologia; em 1938, colaborou com Likert na publicação sobre o tema de medição de atitudes e comportamento eleitoral nas urnas. Tornou-se depois diretor de departamento no City College de Nova Iorque. Realizou estudos na área de parapsicologia, sobre as relações internacionais e a personalidade, que foram publicados após 1940 (MARX e HILLIX, 1982). 25 Em 1937, Murphy foi o primeiro editor do periódico Sociometry: a journal of interpersonal relations, criado por J. L. Moreno. Ele contribuiu para divulgar a sociometria no meio acadêmico (MARINEAU, 1992). O que se pôde constatar, nessa breve revisão de alguns autores da psicologia norte-americana do período de 1910 a 1940, foi que a maioria deles manteve tem uma posição tradicional positivista e pragmática, em que as pesquisas teriam apenas a função de definir papéis, a identidade social dos indivíduos, com o objetivo de promover a harmonia, a produtividade e a coesão grupal. Em geral, foram estudos que se caracterizaram pelo propósito de intervenção para minimizar conflitos e que segundo Lane (1986b), viam o grupo e a sociedade como a–históricos. Ou seja, nesses estudos, o ser humano surge como portador de uma natureza que o define a priori, independentemente de suas relações sociais, sendo um ideal natural a ser perseguido e nunca um ser em construção em condições específicas e determinadas. A abordagem do pragmatismo como expressão da sociedade norte-americana impõe-se a fim de que se possa compreender uma mediação significativa do objeto de estudo deste trabalho. Como seu objetivo é a teoria sociométrica e a psicologia social americana de 1910 a 1940, não seria possível, para este estudo, aproximar-se da essência dessa relação sem considerar a relevância, naquele contexto sócio–histórico, do pensamento pragmático. Pragmatismo como expressão da sociedade norte-americana A sociedade norte-americana tem-se caracterizado pelo pensamento pluralístico, receptivo a uma grande variedade de temas e movimentos. Mas, apesar da diversidade proporcionada pela influência do pensamento estrangeiro, parece haver uma tendência, constante na tradição dessa sociedade: todas as idéias têm sido avaliadas pragmaticamente e sua importância determinada pela referência a possíveis aplicações práticas. No entanto, nem sempre se tratou de acolher apenas aquilo que é prático ou útil. O pragmatismo transformou-se em doutrina somente a partir das últimas décadas do século XIX e continuou ativo no século XX, acompanhando a projeção internacional dos Estados Unidos no domínio econômico e político. Essa teoria é também orientada pela concepção do controle social no sentido de auto-regulação e solução de problemas coletivos. 26 A sociedade americana necessitava de uma ciência que pudesse ser aplicada às exigências cotidianas e aos problemas da vida moderna. O contexto dessa sociedade estava, pois, propício à evolução da visão e atitude pragmatista. Para Bock, Furtado e Teixeira (1993, p. 37) “uma sociedade que exigia o pragmatismo para o seu desenvolvimento econômico acaba por exigir dos cientistas americanos o mesmo espírito”. O crescimento material e social da sociedade norte-americana, a institucionalização do ensino e o pragmatismo estão intimamente interligados. Segundo Mills (1971), o pragmatismo tem origem fora da academia e apenas posteriormente é absorvido e sistematizado por ela como escola de pensamento. Para ele, a história do pragmatismo confunde-se com a história do profissionalismo intelectual dos Estados Unidos. Então, por ser um sistema de pensamento bem estruturado, o pragmatismo confirma-se como um dos elementos organizadores da nova ordem do mundo. Essa nova ordem está fundada na lógica do desenvolvimento do capitalismo, que exige a expansão do Estado, nova ordem na divisão do trabalho, a diversificação profissional, a supremacia da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura, a implementação de técnicas modernas. Em razão disso, a ciência e a universidade americanas são fundamentais para a consolidação dessa nova ordem (SASS, 2004). O pragmatismo é uma importante forma assumida pelo pensamento moderno para combater os estilos de pensamento que dificultam a instauração da nova ordem do mundo. Segundo Sass (2004, p. 58), “dizer que o pragmatismo é tão-somente a elevação do senso comum dos homens práticos americanos à categoria de filosofia é uma simplificação excessiva e injustificada”. Para ele, o pragmatismo não é uma concepção ingênua e espontânea, mas uma filosofia que tem um corpo coerente de princípios e métodos sistematizados. Por suas críticas ao racionalismo idealista e ao empirismo inglês, o pragmatismo configura uma visão de mundo que apresenta enraizamentos sociais e culturais profundos. As idéias originais do pragmatismo surgiram na Inglaterra. Porém, foi nos Estados Unidos que, em 1878, elas foram desenvolvidas e sistematizadas por Charles Peirce, 5 5 que traçou as principais linhas do pensamento pragmático em seu artigo Charles Sanders Peirce (1839-1914), filósofo norte-americano, criador da corrente de idéias surgida nos Estados Unidos e que se estendeu por todo o mundo no século XX: o pragmatismo. Para ele o ser humano não pode aceitar uma crença sobre o mundo se esta se contradiz com a experiência. Influenciou os filósofos americanos de sua época. Pierce deu também importante contribuição à teoria dos signos. 27 “Como tornar claras as nossas idéias”. Nesse artigo, Peirce esclarece que toda função do pensamento é produzir hábitos de ação e que o significado de uma coisa é o conjunto dos hábitos que envolvem. Assim, os efeitos da concepção de um objeto são dados pela sua conseqüência prática. Para ele, as conseqüências práticas são as idéias que têm um efeito na nossa ação, na nossa prática. Quando a experiência humana é influenciada por idéias que têm conseqüências práticas, então o pragmatista diz que essas idéias têm significado. Logo, idéias que não têm conseqüências práticas não têm significado (HIFUME, 2003). Com o objetivo de elucidar o termo pragmatismo, William James (1989, p. 18) recorre à história: “o termo deriva da mesma palavra grega prágma, que significa ação, da qual vêm as nossas palavras ‘prática’ e ‘prático”. É um método que explica um objeto por meio da natureza prática que o objeto pode envolver. Para ele, o pragmatista volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, para a ação e o poder em contraposição ao dogma, à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade. Peirce propôs posteriormente o termo “pragmaticismo” para designar sua doutrina, com o intuito de diferenciá-la do pragmatismo de William James, que é uma transposição para o campo ético daquilo que inicialmente se tinha pensado em um sentido puramente científico e metodológico. De acordo com Hifume (2003), Peirce destacou que o seu pragmatismo não é tanto uma doutrina que expressa conceptualmente aquilo que o homem concreto deseja e postula, mas, sim, uma teoria que permite dar significação às únicas proposições que podem ter sentido. Para Peirce (1983), o pragmatismo é um método que deveria reconstruir e explicar os significados de conceitos que não são claros. A determinação do significado do conceito é dada por suas possíveis conseqüências futuras, denominadas por ele como conseqüências práticas, nas quais pensamento e ação deveriam estar ligados. Assim, conceber algo equivaleria a conceber como ele funciona ou como pode ser realizado. O pragmatismo, conforme o explica Pierce (1983, p. 5), é: efeitos A opinião segundo a qual a metafísica será amplamente clarificada pela aplicação da seguinte máxima que visa a conseguir clareza: considerar os práticos que possam pensar-se como produzidos pelo objeto de nossa concepção. A concepção destes efeitos é a concepção total do objeto. Um dos objetivos do pragmatismo, de acordo com Peirce (1983, p. 7) seria colocar um termo às disputas filosóficas. Que seria solucionada da seguinte forma: 28 “para determinar o sentido de uma concepção intelectual devem-se considerar as conseqüências práticas pensáveis como resultantes necessariamente da verdade da concepção; e a soma dessas conseqüências constituirá o sentido total da concepção.” Portanto, esse método procura determinar os sentidos dos conceitos abstratos, sobre os quais trabalha o raciocínio. E o raciocínio, sob o ponto de vista pragmático, deve ser necessário e não vago. O pensamento vem a ser, então, uma aplicação da doutrina daquilo que se escolhe fazer. E a separação da concepção confusa ocorrerá na medida em que ela tiver uma aplicação prática. De acordo com Marx e Hillix (1982), para os pragmatistas, o conhecimento só é válido em função das suas conseqüências, valores ou utilidades. Essa concepção tem como meta estudar o sujeito no seu ajustamento e reajustamento ao meio. Na visão de Peirce, como um método de esclarecimento de conceitos, uma teoria da significação6, o pragmatismo situa-se no terreno da lógica. Em William James (2006), entretanto, o pragmatismo é muito mais amplo, indo além de um método de determinação de significados e contemplando uma nova teoria da verdade. De acordo com James (2006, p. 47), a validade de uma idéia deve ser verificada por suas conseqüências práticas. Isso quer dizer que uma coisa só é verdadeira se funcionar. Na sua forma de pensar, o pragmatista “volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e o poder. [...] em contraposição ao dogma, à artificialidade e à pretensão de finalidade na verdade.” Assim, uma idéia torna-se verdadeira pelos acontecimentos, pelo processo de descoberta, pelo empírico. A verdade é, pois, um processo de descoberta. O pensamento de James tem dois momentos: no primeiro, ele combate o racionalismo e a metafísica e, no segundo, discute a concepção de verdade, que entende ser construída processualmente pelo sujeito e de acordo com os resultados práticos. Em ambos, o alvo é o racionalismo e a metafísica decorrente (SASS, 2004). A verdade de uma doutrina, para o pragmatista, consiste em que ela seja útil e propicie alguma espécie de êxito ou satisfação. James (2006, p. 114) ressalta que “o valor prático de idéias verdadeiras é, pois, derivado primariamente da importância prática de seus objetos para nós.” Portanto, a verdade deixa de ser concebida como 6 Segundo Peirce, para solucionar os problemas filosóficos, era necessário descobrir métodos apropriados que conferissem significados às idéias filosóficas em termos experimentais e organizassem essas idéias para que pudessem ser estendidas a novos fatos. O pragmatismo deveria constituir um método de reconstrução ou de explicação dos significados de conceitos pouco claros (PEIRCE, 1983). 29 adequação entre o pensamento e o pensado, a mente e a realidade exterior para tornar-se funcional. Por esse raciocínio, uma proposição é considerada verdadeira na medida em que possa orientar o ser humano na realidade circundante e conduzi-lo de uma experiência até outra. Assim, a verdade modifica-se e expande-se sempre. O pragmatista agarra-se aos fatos e coisas concretas, observa como a verdade opera em casos particulares e generaliza. James (2006) vincula a percepção de verdade ao método pragmático e defende uma disciplina do método. Para ele, a filosofia deveria imitar os procedimentos das ciências naturais e ser indutiva e empírica como elas. Nessa perspectiva, as proposições exigem comprovação para serem admitidas como verdadeiras; assim, as idéias verdadeiras são aquelas que podem ser assimiladas, validadas e verificadas. Como método, de acordo com James (2006, p. 44), o pragmatismo “é, primariamente, um método de assentar disputas metafísicas que, de outro modo, se estenderiam interminavelmente”. A diferença básica entre James e Peirce está na definição de verdade e significado. Para Peirce, tais definições dependiam de processos públicos, enquanto para James eram mais subjetivas e pessoais. Sass (2004, p. 64) afirma que “a subjetivação da verdade é a base para James erigir a psicologia como ciência”. A noção de verdade subjetiva de James (2006) é convertida em um processo de construção psicológica. Então, para que a verdade seja verificada deve-se incluir a dimensão psicológica. De acordo com Sass (2004, p. 66) mais do que isso, a verdade psicológica de James não se ajusta à psicologia dos estados mentais aceita pelos racionalistas, exige uma psicologia em que a experiência do sujeito e, portanto, da introspecção exerça papel decisivo. Põe-se de pé assim a psicologia fisiológica do médico William James. Essa noção de verdade que repousa na conseqüência da ação do sujeito destrona a psicologia associacionista, dos estados mentais, e substitui-a pelo modo como a mente humana funciona. Segundo Sass (2004), as promoções do essencialismo para o funcionalismo dos conceitos; do lógico para o psicológico, feitas pelo pragmatismo de James, foram recebidas com severas críticas por Peirce. Peirce (1983, p. 104-105), em carta endereçada a James, expressa o seu descontentamento com a direção que o pragmatismo havia tomado: “Você e o Schiller levam o pragmatismo muito longe para o meu gosto.” E continua com sua crítica: 30 “Também dizer que, apesar de tudo, o pragmatismo não resolve nenhum verdadeiro problema mostra apenas que pretensos problemas não são problemas reais”. As divergências entre Peirce e James demonstram que o pragmatismo não é um bloco monolítico. Por isso, Sass (2004) alerta que não é um procedimento científico satisfatório generalizar distintas concepções. Assim, talvez seja mais apropriado falar em pragmatismos e não em pragmatismo, pois não se podem apagar as distinções da forma de pensar de Charles Peirce, William James, John Dewey e George Mead. Nesse sentido, cabe reiterar que, para Peirce, a fonte do pragmatismo é Kant, para James, é Hume e para Mead, é a filosofia idealista de Hegel. Mesmo sendo distintas essas posições, pode-se verificar uma aproximação entre Pierce e Mead e entre James e Dewey. Os primeiros, de acordo com Farr (2004), são mais claramente sociais, no que tange à teoria da verdade, do que os dois últimos. Para Vala e Monteiro (1997), John Dewey, discípulo de James, alia o funcionalismo ao pragmatismo. Assim, ele lida com a mente em ação e não com um sujeito passivo que responde a estímulos. Para isso, construiu a teoria social da mente, que segundo Mills (1971), é o cimento da psicologia liberal de Dewey. A propósito da ação, Dewey (1952, p. 45) escreveu: Ação [...] é adaptação, ajustamento. [...] toda atividade se efetiva em um meio, em uma situação, e com referência às suas condições. [...] Tudo afinal se resume na atividade em que entra a inteligência reagindo ao que lhe é externamente apresentado. O sentido da vida é a ação e o valor da verdade resulta do rendimento da ação. Para Dewey, a ação se exerce como forma de experiência. A vida é constituída de várias experiências. E não se pode separar a vida da experiência nem da aprendizagem, pois simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos. Portanto, “o verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento da experiência, pela experiência” (DEWEY, 1952, p. 39). A experiência, para Dewey, é a relação que se processa entre dois elementos do cosmos, alterando-lhes, até certo ponto, a realidade. Dewey compreendia o ser humano como resultado do hábito, por sua vez modelado pela capacidade adaptativa da natureza humana, passível de ser modificada pela atividade educacional. Nesse sentido, a inteligência é fundamental na visão liberal de Dewey, pois tem a função de harmonizar os valores morais, educacionais e políticos. Os corpos agem e reagem, para a conquista de um equilíbrio de adaptação. A serviço 31 dessa compreensão está a tradição psicológica social do pragmatismo que se desenvolve entre o racionalismo e o individualismo (MILLS, 1971). Dewey (1959) propugna que a escola deve desenvolver no aluno a aptidão para pensar. Para ele, o pensamento é uma forma de abordar a experiência, em face de problemas reais. Em Dewey, tudo é relativo à ação e se esta é útil –portanto, necessária–, seus resultados são os únicos valores que a sociedade pode aceitar. A partir dessa psicologia de fundo funcional-pragmático, constituiu-se, nos Estados Unidos, a psicologia social de caráter utilitário. Para essa forma de pensamento importa saber o que os homens fazem e por que o fazem. Então, a resposta é pesquisada na compreensão do funcionamento da consciência e de como o sujeito usa-a para adaptar-se ao meio. O desenvolvimento do capitalismo, naquela sociedade, teve grande impulso no período compreendido entre meados do século XIX e a Segunda Guerra Mundial e estimulou a psicologia social a desenvolver dois aspectos: o funcionalismo e a aplicação. Foi em razão disso que, nos Estados Unidos, a psicologia social ganhou autonomia, dotando-se de objeto e métodos próprios. Naquele momento, investia-se em uma ciência que pudesse interferir nas relações grupais para harmonizá-las e assim garantir a produtividade (SASS, 2004). Enfim, o impacto das condições e processos sociais da sociedade norte-americana possibilitou que a psicologia social se tornasse autônoma e atingisse seu auge. A CONSTRUÇÃO DO PSICODRAMA E DA SOCIOMETRIA Vida e obra de J. L. Moreno A vida e a obra de Moreno interpenetram-se. Por isso, conhecer sua história de vida favorece a compreensão da obra que ele realizou. Esta surgiu e desenvolveu em um contexto histórico determinado, sob a ação desse homem determinado. Jacob Levy Moreno nasceu em 18 de maio de 1889, em Bucareste, na Romênia, e somou “raízes romenas, turcas, austríacas, cristãs e judias” (GOMES, 2005, p. 155). Era o primogênito de uma prole de cinco irmãos; seu pai era turco e sua mãe, romena, ambos com ascendência sefardita.7 Motta (1998, p. 76) descreve a família de Moreno da seguinte forma: Relembrando o perfil da família Moreno podemos ver uma mãe adolescente de 15 anos, judia, pobre, imigrante, que passa a maior parte do seu tempo com o filho primogênito, enquanto o pai, 32 anos, caixeiro-viajante, está fora da cidade a negócios ou ausente de casa com compromissos sociais. Este pai, aparentemente intermitente na vida da família, e para o filho, em um plano de realidade suplementar e virtual, o contrapapel constante e desejado que inspira o projeto moreniano, incluindo a persistente busca de incorporar ao seu nome original – Jacob Levy – o nome paterno. O casamento dos pais de Moreno foi, segundo Marineau (1992), de conveniência, sob vários aspectos. O pai, Moreno Nissim Levy, tinha 32 anos, era caixeiro-viajante e relativamente pobre. Contava uma idade em que era importante estabelecer-se e ter uma família. A mãe, Paulina Iancu, tinha 15 anos e era órfã de pai e mãe. Recém-saída do convento católico, foi obrigada a aceitar a escolha dos irmãos mais velhos para se casar. Este foi o começo de uma relação tensa, em que o casal 7 Descendentes dos judeus que viveram em Portugal e na Espanha por cerca de 500 anos, até 1492, quando foram expulsos pelos reis católicos Fernando e Isabel, espalhando-se pela Europa, pelo Oriente Médio e pelas Américas (KNOBEL, 2004, p. 35). 33 ficava mais separado do que junto. Assim foi o ambiente em que o pequeno Jacob nasceu e foi educado. Ser o primeiro filho e estar com freqüência a sós com a mãe, nos primeiros meses de vida, propiciou a construção de um vínculo especial entre Moreno e Paulina, que se traduziu na preferência dela pelo filho mais velho. Esse vínculo foi reforçado por uma doença grave e longa que acometeu Moreno, quando tinha um ano de idade. Mãe e filho conseguiram superar a crise e essa experiência fez que ela desenvolvesse a idéia de que aquela criança não era comum (MARINEAU, 1992). Essa idéia é importante, em razão da influência que exerceu sobre o jovem Jacob, que desenvolveu uma relação especial com aqueles que o cercavam, marcada pela admiração. Demonstram isso as brincadeiras de criança de Moreno, as quais refletem a idéia de que era uma pessoa especial: sua brincadeira predileta era desempenhar o papel de Deus. A propósito desse aspecto de sua experiência, Moreno (1997, p. 27) escreveu: Com quatro anos de idade, comecei a freqüentar uma escola bíblica sefardita. [...] Assim meu fascínio pela idéia de Deus começou em minha tenra infância. A mais famosa “pessoa” do universo era Deus, e eu gostava de estar ligado a Ele. A primeira sessão psicodramática teve lugar quando eu atuei como Deus, aos quatro anos de idade, em alguma data em 1894. Em 1896, Moreno emigrou com sua família para Viena, na Áustria, que nessa época era o grande centro cultural da Europa. Com cerca de seis anos, entrou na escola e saiu-se bem nos estudos, sendo motivo de orgulho para os pais. Seu pai era pragmático e lhe sugeriu que fosse médico. A partir desse momento, todos passaram a chamá-lo de doutor. Essa forma de tratamento acompanhou-o até a morte (MARINEAU, 1992). Em 1905, quando Moreno contava dezesseis anos, sua família mudou-se para Berlim. Mas ele não conseguiu ficar longe de Viena. Depois de uma briga com os pais, obteve o consentimento deles para retornar àquela cidade. Foi, então, morar com amigos e passou a manter-se sozinho, sem jamais voltar a viver com sua família (MARINEAU, 1992). Separado da família e procurando compreender a si mesmo, buscou respostas na filosofia, na religião e na poesia. Dedicou-se à leitura, não sistemática, do Velho e do Novo Testamento; de filósofos como Spinoza, Descartes, Kant, Hegel e Marx; de 34 escritores e poetas, como Dostoiévski, Tolstoi, Whitman e Goethe. Outra fonte importante em suas buscas foi o diálogo com os seus pares, com os quais compartilhava idéias e experiências (MORENO, 1997). Na opinião de Romaña (1990, p. 72), as experiências vividas por Moreno na adolescência foram fundamentais para a formação do homem Moreno: “Penso que foi ela [a adolescência] que deu aos seus anos adultos e maduros o ar de juventude, de inconformismo, de irreverência, de quem precisa sempre olhar as coisas pelo avesso”. Foram cerca de dois anos – entre 1906 e 1907 – de intensa busca espiritual e isolamento, sobrevivendo em Viena como professor. Aos poucos, Moreno retomou o contato com o mundo e, em 1909, entrou para a universidade de Viena. Estudou um ano na faculdade de filosofia e depois transferiu-se para a faculdade de medicina. Lá, conheceu Chaim Kelmer, Andras Petö e Hans Feda Brauchbar e, juntos, fundaram a Casa do Encontro, que funcionava como abrigo, instituição de ajuda a imigrantes e refugiados e como comunidade. Sobre essa experiência, declara Moreno (1997, p. 44): “É como se eu fosse profundamente impulsionado a alcançar uma espécie de vitória interna que não podia ser atingida a menos que fizesse coisas extraordinárias”. Segundo Gonçalves, Wolff e Almeida (1988), nesse período Moreno ia aos parques de Viena e reunia as crianças para brincar. Por meio de jogos de improvisação, incentivava o desenvolvimento de sua espontaneidade e criatividade. Moreno (1997) admitiu a influência de Rousseau, Pestalozzi e Froebel, mas acrescentou a improvisação, a espontaneidade e a criatividade, que favoreciam uma revolução criativa entre as crianças. Em 1912, estudante de medicina, Moreno trabalhou como assistente de pesquisa do professor Otto Pötzl no estudo sobre sonhos dos alcoolistas. Depois, trabalhou com Deutsch e Schilder na pesquisa sobre os sonhos. A ligação com Pötzl possibilitou a Moreno trabalhar na clínica da universidade, na Lazarettgasse e no hospital psiquiátrico Steinhof, sendo essa sua primeira experiência com instituições de doentes mentais. Demonstrou não aprovar o que viu, mas, pela circunstância de ser ainda estudante, não pôde manifestar sua reprovação em seus comentários, pois temia ser afastado do estudo. Nesse período, Moreno não imaginava que um dia iria trabalhar no campo da saúde mental, uma vez que estudava para ser médico de família (MARINEAU, 1992). 35 Gomes (2005) afirma que Moreno foi influenciado pelo movimento expressionista e que se engajava em várias atividades paralelas durante o curso de medicina. Para ele, a ação foi sempre importante. Ele acreditava que cada ser humano deve fazer-se autor e ator de sua própria história. Assim, estava sempre atento a todas as possibilidades de agir, como na ocasião em que ele se juntou a um amigo jornalista e a um médico venereologista e, por meio de técnicas grupais, desenvolveu um trabalho educativo com as prostitutas vienenses. Outra experiência importante na formação de Moreno ocorreu no período de 1915 a 1918, quando ele trabalhou em dois campos de refugiados da Primeira Guerra Mundial, na Áustria e na Hungria. O trabalho que desenvolveu no campo austríaco de Mittendorf tem interesse especial, pois foi um prelúdio ao desenvolvimento da sociometria. No hospital infantil e no dia-a-dia desse campo de refugiados, ele se pôs a observar as condições de vida em cada casa, as interações entre as casas e nas fábricas constituídas dentro do campo. Moreno teve a colaboração do psicólogo italiano Ferruccio Bannizone, que era o administrador do campo e constatou a importância de considerar as preferências e afinidades das pessoas (MARINEAU, 1992). Sobre a experiência de Mittendorf, Moreno (1997, p. 67) escreveu: O advento da sociometria não pode ser compreendido sem avaliar meu passado pré-sociométrico, tendo em vista o contexto histórico-ideológico do mundo ocidental antes, durante e após a Primeira Guerra Mundial. Moreno formou-se em medicina em 1917, pela universidade de Viena. Depois foi trabalhar no interior da Áustria, primeiramente em Kottingbrunn e, depois, como chefe da saúde pública municipal de Bad Vöslau, a convite do prefeito. Nesse período, em seu tempo livre, freqüentava os cafés, onde se reuniam vários intelectuais e artistas, de quem ele ficou amigo. De 1918 até 1920, colaborou com o jornal, inicialmente denominado Daimon, de filosofia existencialista, tornando-se, por um período, seu editor. Segundo Knobel (2004, p. 47), esse jornal teve a participação de diversos nomes importantes: Os poetas Franz Werfel e Peter Altenberg, o filósofo Martin Buber, o sociólogo Max Scheler, o dramaturgo Georg Kaiser, os escritores marxistas Gustave Landeauer, Hugo Sonnenschein e Ernest Toller. Participam também os 36 tchecos: Max Brod, Robert Musil, Otokar Brezina e Franz Kafka. Ainda em 1920, Moreno publicou anonimamente o livro As palavras do pai. Na opinião de Marineau (1992), essa obra propõe uma filosofia de co-criatividade e de co-responsabilidade. Há nela vários conceitos da futura teoria moreniana. Aos poucos, Moreno foi se afastando do grupo de intelectuais do Daimon e, ao mesmo tempo, aproximando-se de um grupo de atores e atrizes. Esse grupo passou a se reunir regularmente a partir de 1921. Nesse mesmo ano, Moreno fundou o teatro vienense da espontaneidade, com o objetivo de tirar o teatro das “conservas culturais.” 8 O tema predominante na vida de Moreno, nesse momento, era – embora não abandonasse a medicina – o teatro. Mas não era o teatro convencional, com o uso de textos decorados e ensaiados. Moreno estava interessado no teatro do improviso, em que o ator, sem um texto e ensaio prévio iria, no aqui e agora, criar e representar uma história, para transformá-la (MARINEAU, 1992). O próprio Moreno (1984, p. 19) explica a perspectiva da experiência teatral que propunha: O teatro consistia num retiro seguro para uma revolução à surdina, oferecendo possibilidades ilimitadas para a pesquisa de espontaneidade a nível experimental. A espontaneidade poderia ser testada e mensurada numa atmosfera isenta dos abusos da mediocridade. O interesse de Moreno por essa nova modalidade de teatro estava contextualizado por um momento histórico e sócio–cultural que propiciava essas alternativas. A arte afastava-se do mundo burguês em busca de autenticidade e pureza. E isso, segundo Grinberg e Luz (2004, p. 305), motivava “os artistas do início do século XX a uma procura incessante, cujo resultado se comprova na produção de obras que darão corpo a uma notável revolução cultural”. As autoras acrescentam que as artes sintonizavam com o novo tempo e espaço relativizado, influenciadas pela teoria da relatividade, do físico alemão Albert Einstein, em 1905. 8 Todo resultado de um processo de criação ou de um ato criador pode cristalizar-se como conserva cultural. Conservas culturais são objetos materiais (incluindo-se obras de arte), comportamentos, usos e costumes, que se mantêm idênticos, em uma dada cultura. Para que a criatividade se manifeste é necessário, segundo Moreno, que as conservas culturais constituam somente o ponto de partida e a base da ação, sob pena de se transformarem em seus obstáculos (GONÇALVES, WOLFF, ALMEIDA, 1988). 37 Essas mudanças ocorriam também no teatro. De acordo com Gonçalves, Wolff e Almeida (1988, p. 14), o mundo estava revolucionando essa forma de expressão cultural: Em 1905 Stanislavski criara o estúdio experimental de teatro; também nesse ano Max Reinhardt quebrou a convenção entre palco e platéia e levou o teatro para as igrejas e circos. Em 1917 Pirandello alcançava sucesso com seu teatro psicológico, e em 1927 Artaud fundava o teatro de vanguarda propondo a catarse do terror. Nesse contexto, Moreno realizou o teatro da espontaneidade, em que não há texto ou ensaio. A criação se dá no momento mesmo da apresentação, por isso o enredo e as falas são improvisados. As histórias são inventadas pelos atores, surgem da vida, dos fatos da comunidade. Os personagens atuam no mesmo momento que são criados (MORENO, 1984). A proposta do teatro espontâneo despertou interesse. Porém, essa forma de apresentação enfrentou algumas dificuldades, tais como: o público e a crítica duvidavam das apresentações. Questionavam se realmente poderia haver teatro espontâneo. Por isso, quando as apresentações desenvolviam-se bem, vinham as acusações de que tudo havia sido ensaiado, portanto tratava-se de uma fraude; e quando iam mal, diziam que a proposta era inviável. A forma que Moreno encontrou para superar essas críticas foi dramatizar as notícias dos jornais do dia. Para Gonçalves, Wolff e Almeida (1988), nesse momento foram lançadas, sem saber, as bases de um futuro método, o sociodrama, que tem como finalidade trabalhar os temas grupais. Moreno realizou várias formas de trabalho teatral: na prática médica, utilizou o teatro recíproco (cada um influi nos demais) para trabalhar o relacionamento familiar e da comunidade; na clínica psiquiátrica do professor Otto Pötzl, fez teatro espontâneo com os pacientes psiquiátricos; no Komödienhaus, convidou vários grupos para subirem ao palco e representarem seus papéis sociais. O aspecto terapêutico do psicodrama começava a aparecer. Ele desenvolveu o psicodrama por meio de um processo gradual de descoberta e de exploração de possibilidades variadas. Para Knobel (2004), o psicodrama nasceu meio casualmente, com o caso Bárbara-Jorge, 9 que caracterizou o início do teatro terapêutico. Essa forma teatral é definida por Moreno (1984, p. 53) do seguinte modo: 9 Ver Moreno (1990 p. 52-54). 38 O teatro terapêutico emprega o veículo do teatro da espontaneidade para fins terapêuticos. A pessoa central é o paciente mental. O caráter fictício do mundo do dramaturgo é substituído pela verdadeira estrutura do mundo do paciente, seja esta real ou imaginária. Essa é uma nova abordagem, que demonstrou os efeitos poderosos de se desempenhar papéis no contexto terapêutico. Com esse caso, Moreno percebeu as possibilidades terapêuticas existentes na representação de situações psíquicas conflituosas (KNOBEL, 2004). A teoria e as técnicas do teatro utilizadas com fins terapêuticos estavam em um estágio inicial e experimental. Segundo Marineau (1992), Moreno ainda não sabia utilizar-se da catarse ou compreender a amplitude da dramatização terapêutica. Mas foi, aos poucos, reconhecendo a necessidade de focar temas reais da comunidade, da família, do casal, das pessoas. E logo ele compreendeu que essa ação verdadeira de viver e reviver as situações, seguida de reflexão sobre elas, poderia levar a transformações na vida das pessoas. Assim, o teatro espontâneo transformou-se em teatro terapêutico, que se transformou em psicodrama, um método voltado para a ação e que utiliza o grupo como base para as mudanças. Nesse sentido, Naffah Neto (1997, p. 32) ressalta que Moreno, por meio do caso Bárbara, percebeu que “a representação improvisada das situações da vida (que eram fonte de conflito) provocava a catarse, isto é, uma purificação, ou iluminação, levando o indivíduo a superar as próprias dificuldades, nasceu o psicodrama”. Em 1923, Moreno escreve a obra O teatro da espontaneidade, em que desenvolve seus conceitos de teatro. Nesse livro, ele propõe quatro formas de teatro revolucionário: o teatro de conflito ou teatro crítico; o teatro da espontaneidade ou teatro imediato; o teatro terapêutico ou teatro recíproco e o teatro do criador. Essas formas interagem uma com as outras e são interdependentes. Nessa obra estão as raízes da sociometria, da psicoterapia de grupo e do psicodrama (MARINEAU, 1992). Em dezembro de 1925, Moreno emigrou, por motivos pessoais, para os Estados Unidos e levou consigo três invenções: um tipo de gravador, o sociograma interacional e o palco psicodramático. Como nessa época havia vários inventores na área de gravação de som, com trabalhos bem adiantados, não houve interesse das empresas americanas pela invenção de Moreno. 39 Nos Estados Unidos, até conseguir a validação do certificado médico, que ocorreu em 1927, foi ajudado pelo irmão e pelo trabalho que realizava na clínica infantil do hospital Monte Sinai. Nessa época, conheceu Beatrice Beecher que estava ministrando conferências sobre psicologia infantil no mesmo hospital e se interessou pelo trabalho de Moreno. Como ele ainda não havia obtido visto de permanência no país, Beatrice ofereceu-se para se casar com ele, a fim de regularizar sua situação de imigrante. O casamento realizou-se em 1929 e o divórcio, cinco anos depois, quando Moreno tornou-se cidadão americano (MARINEAU, 1992). No final de 1927, Moreno realizou conferências e apresentações do teatro da espontaneidade em escolas, igrejas, universidades e fundou o “teatro do improviso”, no Carnegie Hall. Nesse teatro, Moreno conheceu Helen H. Jennings, que o apresentou a Gardner Murphy, o qual, por sua vez, faz a conexão de Moreno com os psicólogos sociais e sociólogos. Além de ser eleito membro da Associação Americana de Psiquiatria – APA, outros importantes eventos marcaram a carreira de Moreno, em 1931: seu engajamento na pesquisa sociométrica; a inauguração oficial do teatro do improviso; a controvérsia com Abraham Brill e a psicanálise; a introdução, na comunidade científica, do termo psicoterapia de grupo e a publicação da primeira revista sobre psicoterapia de grupo, Impromptu. No ano de 1932, Moreno apresentou, em uma mesa-redonda, na Associação Psiquiátrica Americana, os resultados do estudo qualitativo e quantitativo das relações interindividuais com um grupo de prisioneiros da penitenciária de Sing Sing. Segundo Moreno (1997), o objetivo dessa pesquisa foi tornar a prisão uma sociedade terapêutica, em que o critério de agrupamento fosse as necessidades e a força de cada um dos prisioneiros. A partir dessa experiência, Moreno foi convidado a dirigir uma pesquisa sociométrica na escola de reeducação de moças em Hudson, Nova Iorque. Com base em outras pesquisas, mas principalmente com o material extraído da pesquisa em Hudson, Moreno publicou em 1934, a obra Quem sobreviverá? Esse livro demonstrou a intenção do autor de consolidar a sociometria como uma ciência da medição de grupos e de reagrupamento da comunidade. Nele, Moreno registrou o estudo matemático das propriedades psicológicas de uma população por meio da análise quantitativa e qualitativa. 40 A preocupação que Moreno demonstra em estabelecer regras objetivas e a separação entre quantitativo e qualitativo revela a vertente de ciência subjacente a suas escolhas: o positivismo. Para a dialética, objetividade e subjetividade, quantidade e qualidade, não estão cindidas, mas profundamente implicadas. Em 1936, Moreno recebeu o certificado que lhe permitiu abrir o seu próprio hospital, o Beacon Hill Sanatorium. Mais do que um centro de tratamento, o sanatório tornou-se o laboratório de suas idéias e hipóteses sobre saúde mental e de aperfeiçoamento das técnicas do psicodrama e da psicoterapia de grupo. Beacon tornouse uma instituição de formação e um centro de difusão das idéias morenianas. Para alcançar um público mais amplo e ter outro espaço para divulgar seus métodos, Moreno criou um periódico, a Sociometric Review, tendo como colaboradora Helen H. Jennings. Entretanto, Moreno queria ampliar sua base de colaboradores e seu público; por isso, em 1937, fundou Sociometry: a journal of interpersonal relations. Esse periódico tinha um quadro editorial com nomes conhecidos nas áreas de sociologia, antropologia, psicologia e psicologia social. Seu primeiro editor foi Gardner Murphy, à época professor da Universidade de Colúmbia. Sendo assim, Moreno atingiu um público bem mais amplo e introduziu, na comunidade acadêmica, um novo termo: “relações interpessoais”. Moreno contou, ainda, com a influência do cientista social Pitirim Sorokim, que o ajudou a esclarecer vários conceitos sociológicos. Nesse período, associou-se às universidades de Colúmbia, Nova Iorque e Harvard, e à Nova Escola de Pesquisa. O papel de professor ajudou-o a refinar as técnicas sociométricas (MARINEAU, 1992). Mas as excessivas apresentações de trabalho e aulas nas universidades impediam Moreno de concentrar-se em seus escritos. Além disso, paralelamente à sociometria, desenvolvia o método e a psicoterapia de grupo. Considerando o modo como Moreno dedicava-se a essas múltiplas atividades Marineau (1992, p. 128) conclui: Basicamente, Moreno não tinha paciência para ser pesquisador em tempo integral. Atraía-o mais o mundo prático e um certo fascínio a ele associado. Isto poderia explicar por que o psicodrama aos poucos se tornou seu instrumento favorito. Outra hipótese é que o campo da sociometria era acompanhado de algumas polêmicas. Uma delas, com Kurt Lewin, ocorreu em 1938. Pelo fato de terem alunos em comum, Moreno reivindicava sua influência na teoria desse autor. 41 Em 1941, Moreno conheceu Celine Zerka Toeman, que foi sua ego-auxiliar, co-terapeuta e co-pesquisadora. Oito anos mais tarde, casaram-se. Zerka foi fundamental para a sistematização das idéias de Moreno e também atuou como pacificadora em suas polêmicas com outros autores (GOMES, 2005). O desenvolvimento do psicodrama como método terapêutico foi gradual. Em junho de 1941, foi oficialmente inaugurado, no hospital público Saint Elizabeth, um teatro de psicodrama. Em 1942, criou-se lá o cargo oficial de psicodramatista e essa instituição passou a realizar formação de psicodramatistas. Nesse mesmo ano, Moreno inaugurou, em Nova Iorque, o Instituto Sociométrico e o Instituto Psicodramático, onde fez apresentações públicas de psicodrama e ministrou aulas formais. Esse instituto transformou-se também em um laboratório para o criador do psicodrama. Nessa época, os princípios de uma sessão de psicodrama já estavam estabelecidos – os contextos, os instrumentos, as etapas (aquecimento, dramatização e compartilhamento) e as técnicas básicas. Moreno e Zerka publicaram o primeiro ensaio sobre o assunto. Foi também esse o ano de criação da Sociedade de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo. No entanto, oito anos mais tarde, essa sociedade foi incorporada à Sociedade Americana de Psicoterapia de Grupo (MARINEAU, 1992). A Segunda Guerra Mundial estava no auge, em 1943. Havia muitas vítimas que necessitavam de tratamento médico, para as feridas orgânicas, e psicológico, para as feridas emocionais. O psicodrama, rapidamente, ganhou espaço nos departamentos de psiquiatria e psicologia, pois os militares estavam preocupados com o alto custo da psicoterapia e com a escassez de psicoterapeutas treinados. Então, a psicoterapia de grupo passou a ser preferencialmente indicada. Henry H. Murray, um dos criadores do teste de apercepção temática–TAT, construiu, nessa época, um palco psicodramático na Universidade Harvard, quando era chefe do laboratório de psicologia (MORENO, 1997). A partir da década de 1940, o psicodrama foi-se consolidando como uma forma específica de psicoterapia. Nessa época, já somava com múltiplas atividades: uma associação para agrupar os psicodramatistas; três centros de formação – Beacon, Nova Iorque e no Hospital Santa Elizabeth, em Washington –; programa de formação e a publicação de vários artigos sobre sociometria, psicodrama e psicoterapia de grupo, de periódicos e de livros. Uma publicação importante foi o livro Psychodrama, volume um, em 1946, traduzido para o português e publicado no Brasil pela editora Cultrix, em 42 1978, sob o título Psicodrama. Outro fator significativo foi a criação do Departamento de Psicoterapia de Grupo na Associação Psiquiátrica Americana, em 1951. Moreno publicou, em 1959, o segundo volume de Psychodrama, com a colaboração de Zerka. Foi traduzido para o português, sob o título Fundamentos do psicodrama, e publicado no Brasil, em 1983, pela Summus Editorial. No mesmo ano, publicou o terceiro volume de Psychodrama, também traduzido em português e publicado pela Mestre Jou, sob o título Psicoterapia de grupo e psicodrama, em 1974. De 1956 a 1960, Moreno publicou cinco volumes de progressos na psicoterapia, inicialmente com Fromm-Reichman e depois com Jules Masserman. Editou também o Manual internacional de psicoterapia de grupo e psicoterapia de grupo: um simpósio (MARINEAU, 1992). Com o objetivo de integrar e credenciar institutos no exterior, Moreno criou, em 1961, nos Estados Unidos a Academia Mundial de Psicodrama e Psicoterapia de Grupo. Para propiciar a formação de psicodramatistas em várias partes do mundo, ele criou o centro mundial de psicodrama, psicoterapia de grupo e sociometria. Os últimos vinte anos da vida de Moreno foram voltados para a expansão e a consolidação do psicodrama. Por isso, ele viajou amplamente pelo mundo. O primeiro congresso internacional de psicodrama aconteceu em Paris, em 1964, com mais de mil participantes, vindos de 35 países. Os encontros internacionais seguintes ocorreram, segundo Marineau (1992), em: Barcelona (1966); Baden (1968), onde se realizou também o Primeiro Congresso de Sociometria; Buenos Aires (1969); São Paulo (1970); Amsterdã (1971); Tóquio (1972) e Zurique (1974). Em 1974, Moreno teve uma série de pequenos derrames e faleceu no mês de maio, aos 85 anos de idade. Pediu que fosse gravada, em sua sepultura, a seguinte frase: “Aqui jaz aquele que abriu as portas da psiquiatria à alegria” (GONÇALVES, WOLFF, ALMEIDA, 1988, p. 17). Foi nos Estados Unidos da América que Moreno organizou e consolidou a sua teoria. Esta ficou mundialmente conhecida como psicodrama, porque foi este o seu primeiro método, mas ele preferia denominar a totalidade de sua teoria como “socionomia”. 43 Psicodrama: a linguagem da ação dramática Psicodrama foi um termo criado por J. L. Moreno (1984, p. 148) que o esclarece na obra O teatro da espontaneidade da seguinte forma: Significa completa psico-realização, neste termo estão incluídas todas as formas de produção dramática nas quais os participantes, sejam eles atores ou espectadores, fornecem: a) a fonte de material; b) a produção e c) são os beneficiários imediatos do efeito catártico da produção. Cada sessão é um ato comunal e cooperativo. O psicodrama é um método que articula teoria e técnicas do teatro, da psicologia e da sociologia. Do teatro guarda a catarse, que, conforme esclarece Widlöcher (1970), tem origem em Aristóteles. Foi o filósofo grego quem primeiro citou os efeitos da expressão dramática nos espectadores da tragédia grega clássica que, ao serem submetidos às emoções, relatavam alívio e purificação. Da psicologia e da sociologia vem as noções que levam a tratar as causas coletivas em sua forma subjetiva, a idéia de que o grupo não existe por si mesmo, mas em função de elementos interrelacionados e representantes de um mesmo contexto cultural. No psicodrama, contudo, não ocorre a apresentação de peça de teatro formal, uma vez que sua proposta é a representação de um problema real de uma pessoa presente no grupo. Durante a dramatização, o problema pessoal é tratado por meio de técnicas psicodramáticas. O desempenho de papéis proporciona ao sujeito a oportunidade de libertar as emoções e os sentimentos que estavam aprisionados, impedidos de ser expressos por causa dos papéis sociais cristalizados, rígidos. Logo, a teoria moreniana está assentada no elemento drama, que vem do grego δράµα e significa ação. Outro elemento importante nessa teoria é a visão do ser humano sempre em relação uns com os outros. Assim, ela abrange o plano social e interessa-se pela interação das pessoas no seu contexto. Aqui se percebe a influência, em Moreno, do pensamento marxista – “o homem só se reconhece em outro homem” –, do qual ele se afastou quando emigrou para os Estados Unidos. Segundo Kaufman (1992), Moreno ampliou, na época, a posição da medicina e da psicologia, quando defendeu que o tratamento da pessoa devia se dar dentro do 44 grupo e que este também é passível de tratamento. Para designar sua teoria, que abarca o fenômeno grupal e as relações interpessoais, Moreno criou o termo socionomia, que significa “a ciência das leis sociais”. Essa teoria vai se preocupar em estudar o desenvolvimento e a organização dos grupos e a situação das pessoas nesses grupos. A socionomia, segundo Moreno (1999), tem três ramificações: a sociodinâmica, a sociometria e a sociatria. Esses ramos estão interligados e possuem métodos de investigação específicos, que são, respectivamente: desempenho ou interpretação de papéis; teste sociométrico; psicoterapia de grupo, psicodrama e sociodrama. Naffah Neto (1997, p. 128) oferece, de modo sucinto, uma apresentação conceitual da socionomia: Três conjuntos de métodos, três perspectivas interdependentes e complementares que visavam apreender o fenômeno social em suas dimensões básicas – a estrutura, a dinâmica e as transformações – e que postulavam um tipo de cientista que, mais do que um simples observador passivo, deveria reconhecer sua situação dentro da própria realidade pesquisada e funcionar como um agente ou um “catalisador” dos movimentos latentes de transformação que dela emanavam. A teoria de Moreno foi surgindo paulatinamente. De acordo com Marineau (1992, p. 118), no início, “ele agia intuitivamente na maior parte do tempo, mas sempre colocava ênfase no desenvolvimento do indivíduo, no grupo e através do grupo”. Essa característica colaborou para que a teoria moreniana ficasse mundialmente conhecida como psicodrama, que fora criado por ele na década de 1920. Já a socionomia, que é a organização e consolidação da sua teoria geral, foi criada na década de 1940. Portanto, o todo ficou sendo conhecido pela parte, uma vez que o psicodrama é apenas um método da sociatria, um ramo da socionomia. Mas, pelo hábito, o termo psicodrama gradualmente consolidou-se no mundo todo, e passou a denominar todos os procedimentos da teoria moreniana. Por essa razão, neste estudo, manteve-se a hegemonia do termo. O psicodrama foi assim definido por seu criador, Jacob Levy Moreno (1992, p. 183): “Drama é a transliteração do grego δράµα que significa ação ou coisa feita. Psicodrama pode ser definido, portanto, como a ciência que explora a ‘verdade’ através de métodos dramáticos. Trata de relações interpessoais e de mundos particulares”. Como se pode ver, em sua concepção, o psicodrama é uma teoria da ação, que procura 45 resgatar nas pessoas o estado espontâneo e criativo, possibilitando o encontro consigo, com o outro e com o mundo no aqui e agora. No entendimento de Santos (1990), Moreno, ao criar o nome psicodrama, adjetiva a psique e deixa claro seu objetivo de pesquisa: o drama da psique que protagoniza. Essa autora ressalta que a ação dramática é essencial na sustentação do psicodrama. Mas alerta para o risco de se transformar essa teoria em simples “teatrinho”. Por isso, ela esclarece: A ação dramática se faz quando se reconhece o universo como conflitual, contraditório, instável e ambíguo. O drama se faz quando, questionando-se a tradição, o passado, problematiza-se o presente. A cena dramática se realiza quando um homem, perdendo sua ilusão egóica de indivíduo desvinculado, protagoniza comprometido e comprometendo sua rede de relações (SANTOS, 1990, p. 140). Portanto, para ser transformadora, a cena deve revelar a contradição do ser, trazendo o não ser, o fugidio, o oculto, o drama. A proposta de Moreno é criativa. Em lugar da exposição exclusivamente verbal dos pensamentos e fantasias, ele propõe a atuação explícita dentro de um contexto protegido (“como se”), artificial, metafórico, psicodramático, cujos limites protegem a pessoa das repercussões que podem acontecer no contexto real, tocando profundamente o ser humano, pois ele está absorvido pelo ato, pelo presente. O contexto do “como se” diminui o compromisso social, pois é o contexto dramático, em que o tempo e o espaço são fenomenológicos, subjetivos, virtuais; nele tudo ocorre no “como se fosse” do imaginário e da fantasia. Esse afastamento que o “como se” do psicodrama propicia dá ao ser humano outras possibilidades para a realidade (“como é”). A concretização, que é a materialização de emoções, conflitos, objetos inanimados por meio de imagens, movimentos e falas dramáticas, possibilita à pessoa descarregar os seus impulsos contidos. Aliviar o campo emocional tenso propicia a ampliação da percepção, o que vai permitir uma visão nova e mais adequada da situação. Portanto, a concretização, no psicodrama, possibilita ao ser humano uma forma de pensar e de ser diferente da habitual, suprimindo hábitos que, possivelmente, levaram-no a ter dificuldades. O psicodrama, por meio da dramatização, explora os sintomas, os conflitos, os mecanismos de defesa, os acontecimentos marcantes. Ou seja, investiga como a pessoa se sente no “aqui e agora”, não só por meio da fala, mas também combinando elementos 46 de imaginação, emoção, gesto, movimentos físicos e cognição. Portanto, fica circunscrito ao imediato. No psicodrama, o protagonista (pessoa ou grupo que desempenha o papel principal em uma dramatização) atua nos acontecimentos de sua vida, reais e fantasiosos, vivencia situações penosas, representa papéis indesejáveis, atua com pessoas que ama, odeia ou teme e antevê futuras possibilidades e outras experiências marcantes em sua vida. Mais do que simplesmente falados, os aspectos emocionais são vivenciados. Além de perguntar ao protagonista sobre sua vida, seus problemas e seus conflitos, o psicodramatista sugere que ele mostre esses aspectos por meio da dramatização. Esse método possibilita chegar mais rapidamente ao foco da situação, pois é ao mesmo tempo físico e visual, remete a narrativa verbal ao espaço e ao tempo e produz diálogo. O psicodrama é uma ciência que trata a verdade das pessoas e dos grupos por meio da ação dramática. Portanto, pode-se falar, nesse caso, em catarse de ação. Moreno (1990, p. 231) apresenta o psicodrama da seguinte forma: O psicodrama coloca o paciente num palco onde ele pode exteriorizar os seus problemas com a ajuda de alguns atores terapêuticos. É um método de diagnóstico, assim como um tratamento. Um de seus traços característicos é que a representação de papéis inclui-se organicamente no processo de tratamento. Pode ser adaptado a todo e qualquer tipo de problema, pessoal ou de grupo. A dramatização é, pois, o elemento essencial do psicodrama, cujo objetivo é o resgate da espontaneidade-criatividade,10 e constitui a primeira lição de espontaneidade.O termo dramatização deriva de drama, que, desde sua origem grega, porta o significado de ação, episódio, acontecimento. Nessa técnica, não se mostra uma imagem como uma representação, mas sim como uma cena, na qual a situação é revivida por meio do jogo de papéis. A cena é o ponto alto por meio do qual o psicodrama se designa como uma forma de atuação psicossocioterapêutica. Sua concepção originária pertence ao teatro e significa a unidade básica da ação dentro da produção dramática (MASSARO, 1996). 10 Espontaneidade: do latim sponte: por livre vontade. Definição dada por Moreno (1992): “a espontaneidade opera no presente, aqui e agora; propele o indivíduo em direção à resposta adequada à nova situação ou à resposta nova para situação já conhecida”. Espontaneidade e criatividade são categorias diferentes, porém interdependentes, e ambas são essenciais ao processo da vida. 47 Em suma, dramatizar nada mais é que produzir uma cena ou mais. Sem a cena não há dramatização. Nesse sentido, a cena pode ser vista como a essência da metodologia do psicodrama. Entretanto, Massaro (1996) vai além e define a cena como o local de transformação, que possibilita ao psicodramatista cumprir o seu papel de investigador social. No psicodrama, consideram-se três contextos: social, grupal e dramático. A dramatização acontece nesse último, em que tudo se passa no “como se fosse” do imaginário e da fantasia. Ele é constituído pelo tempo subjetivo, pelos espaços fenomenológicos, virtuais, construídos no espaço concreto e marcados. O contexto psicodramático possibilita reviver o passado, clarear o presente e antecipar o futuro, sem as conseqüências da vida real. Então, a ausência de limites reais de tempo e espaço é um recurso fértil para a elaboração de conflitos, para preparar a espontaneidade-criatividade e para corrigir as distorções. As técnicas básicas a serviço do psicodrama são: 1. a troca de papéis, que propicia a cada pessoa a oportunidade de se transformar na outra; 2. o duplo, em que se é o outro e 3. o espelho, ou seja, a pessoa, de fora, vê a si mesma e aos outros, dando uma visão totalizadora. Mas o meio de relação não se restringe apenas às percepções, à tele11 e ao encontro.12 É, também, a ação (jogo de papéis). A transformação se dá na própria consciência, já que a consciência se dá no próprio ato. O psicodrama oferece um espaço que possibilita à pessoa efetuar o corte em sua repetição estereotipada. O “como se” da dramatização afrouxa as amarras que a prendem às exigências de um real que a deixa impotente e, então, ocorre uma relativização. Ela é levada a cortar sua repetição para liberar sua espontaneidade e criatividade, identificar e assumir o seu drama – o que a protege é o que a faz sofrer. O contexto dramático, com o seu campo relaxado, permite que o protagonista se recuse a ser apenas um indivíduo e se perceba como sujeito. Então, no espaço protegido, do contexto psicodramático, a cena dramática torna-se uma extensão do próprio mundo que cerca a pessoa. Ela é lançada na existência 11 Tele foi um termo criado por Moreno, que o definiu como “um processo emotivo projetado no espaço e no tempo em que podem participar uma, duas ou mais pessoas. É uma experiência de algum fator real na outra pessoa e não uma ficção subjetiva. É, outrossim, uma experiência interpessoal e não o sentimento ou a emoção de uma só pessoa” (MORENO, 1990, p. 295). Para Aguiar (1990, p. 98), tele “é a articulação criativa entre parceiros de um mesmo ato. Nesse sentido, o termo tele deve ser entendido como co-criação”. 12 Encontro é uma descrição poética do termo científico tele. É o poeta Moreno, e não o terapeuta, que o define assim: é apelo para a sensibilidade do próximo; é convite para a vivência simultânea e bi-empática (GONÇALVES, WOLFF e ALMEIDA, 1988). 48 e descobre-se na dramatização. Ao tomar consciência de si mesma, abre-se para o outro e descobre a interdependência dos destinos humanos e, assim, tem a possibilidade de alcançar a solidariedade. O psicodrama procura não ignorar as estruturas da existência e forçar um confronto do real com o imaginário. Ele propicia a recontextualização, a percepção de que existem maneiras diferentes de enfrentar os diferentes aspectos da vida e a construção da realidade. Essa visão articula-se com a teoria sociométrica (reagrupamento). O que vem a ser sociometria? Jacob Levy Moreno, criador do psicodrama e da sociometria, teve como objetivo estudar as pessoas na relação com seus grupos e com seus pares, procurando a inclusão daqueles que de alguma forma foram excluídos pelo seu grupo social. Para Blatner e Blatner (1996, p. 143), a sociometria representa o aspecto sociopsicológico do psicodrama, em que não é “apenas um grupo de métodos, mas, mais do que isso, uma filosofia de pesquisa coletiva e aplicada”. A raiz da sociometria pode ser localizada no período de 1915 a 1918, durante a Primeira Guerra Mundial, quando Moreno trabalhou no campo de refugiados do Tirol italiano, em Mitterndorf, 13 nos arredores de Viena. Estudou a organização do acampamento (que era composto por mais de dez mil pessoas), analisou as relações e formulou hipóteses sobre como poderiam organizar-se melhor dentro daquela pequena sociedade. Para Blatner e Blatner (1996), a meta de Moreno era ajudar na formação de subcomunidades cooperativas, baseando-se nas preferências das pessoas. Para Moreno (1992) a humanidade, quando considerada em seu conjunto, constitui uma unidade e disso resultam certas tendências, tais como aproximações e distanciamentos entre os indivíduos. E à sociometria cabe estudar as formações e tensões sociais no “aqui–agora”, no momento em que nascem e se impõem ao indivíduo no interior dos grupos que constituem essa unidade chamada humanidade. 13 No ano de 1916, Moreno escreveu ao Departamento do Interior da monarquia austro-húngara, sugerindo uma reorganização dos refugiados de Mitterndorf. Foi quando utilizou pela primeira vez a palavra sociometria (BUSTOS, 1979). 49 A origem conceitual da sociometria está ligada aos trabalhos desenvolvidos por Moreno na Europa e ao contexto histórico-ideológico, durante e após a Primeira Guerra Mundial. Outro fator fundante foi a publicação da obra de Moreno Das Stegreiftheater, em 1923, que continha as idéias “responsáveis por conduzir a sociometria à fama” (MORENO, 1992, p. 22). Mas é nos Estados Unidos que a sociometria encontra espaço para a sua sistematização e, assim, eleva o psicodrama à categoria de escola de pensamento. O reconhecimento da sociedade científica e do público em geral foi, como declara o próprio Moreno (1992, p. 21) o fator que “conduziu ao clímax o período de latência das idéias originadas [...] na Europa e que encontraram nos Estados Unidos solo verdadeiramente fértil para desenvolvimento”. Por isso, o movimento sociométrico é considerado genuinamente americano, ainda que alguns aspectos da sociometria tenham sido trabalhados por ele na Europa. De acordo com Marineau (1992), os primeiros cinco anos de Moreno nos Estados Unidos foram difíceis. No entanto, podem ser considerados como uma preparação para o trabalho futuro. Nesse período, Moreno fez conferências e apresentações do trabalho de espontaneidade em hospitais, escolas, igrejas, universidades e fundou o teatro do improviso, no Carnegie Hall (tradicional teatro de Manhattam). Em razão desses trabalhos, Moreno passou a relacionar-se com psicólogos sociais, sociólogos e advogados ligados a universidades. Segundo informa Knobel (2004, p. 111), é dessa época sua relação com o “o criminologista E. Stagg Whithin, então presidente do Comitê Nacional de Prisões e Trabalho Penitenciário, órgão destinado a introduzir inovações no campo das instituições correcionais”. Em maio de 1931, na Associação Psiquiátrica Americana, Moreno expôs suas idéias sobre a influência mútua entre as pessoas e sobre como proceder para classificálas e agrupá-las, de acordo com a interação no grupo. Whithin, que estava presente na reunião, convida Moreno para desenvolver uma pesquisa na penitenciária de Sing Sing (KNOBEL, 2004). Moreno vai construindo paulatinamente o método sociométrico. Depois da pesquisa na prisão de Sing Sing, ainda em 1931, ele inicia estudo com bebês, com o objetivo de pesquisar o desenvolvimento das crianças durante os três primeiros anos de vida e a evolução das estruturas grupais ( MORENO, 1994a). 50 Nesse mesmo ano, ele amplia as experiências com o método, aplicando-o também em ambientes escolares (MORENO, 1994a). Pesquisou alunos (meninos e meninas) da educação infantil até o final do ensino fundamental da escola pública, no bairro do Brooklyn, em Nova Iorque. Nessa escola, segundo informa Knobel (2004) Moreno usou pela primeira vez o teste sociométrico. Ele pediu a cada aluno que escolhesse, por escrito, com quem gostaria de se sentar e por meio de entrevistas investigou as justificativas da escolha. Sobre essa pesquisa Moreno (1994a, p. 15) relata: Como conseqüência do teste aplicado a esses alunos, descobriu-se complexa estrutura da organização de salas, amplamente diferenciada da predominante. Certa quantidade de alunos permaneceu isolada ou não-escolhida; outros alunos escolheram entre si, formando pares, tríades ou correntes mútuas; outros atraíam tantas escolhas que conquistavam o centro do palco, como estrelas. Essa pesquisa envolveu também os professores, por meio de um teste de opinião. Eles deveriam escrever os nomes dos alunos que receberiam o maior e o menor número de escolhas. Os julgamentos dos professores coincidiram com o que revelou o teste sociométrico. A pesquisa demonstrou que as estruturas relacionais, as escolhas entre os sexos, as mutualidades, as incongruências e o isolamento modificam-se de acordo com a idade (KNOBEL, 2004). Moreno (1994a) também realizou pesquisa com o teste sociométrico em um estabelecimento de ensino particular de ensino médio, na escola de Riverdale. Os sujeitos dessa pesquisa foram só rapazes entre 14 e 18 anos, que estudavam em regime de internato e de externato. O critério de escolha foi o mesmo utilizado na escola pública do Brooklyn. O teste foi reaplicado após três meses e demonstrou, segundo Moreno (1994a, p. 20), “que os alunos ajustados, geralmente, mantêm ou melhoram suas posições, ao passo que os desajustados mantêm a mesma posição ou até regridem”. No ano de 1932, Moreno apresentou, novamente, na Associação Psiquiátrica Americana, os resultados do estudo qualitativo das relações interindividuais com o grupo de prisioneiros da penitenciária de Sing Sing. Marineau (1992) esclarece que, nessa reunião, Moreno utilizou o termo psicoterapia de grupo pela primeira vez na história das ciências sociais. A sociometria foi definida por Moreno (1992, p. 157) inicialmente da seguinte forma: 51 Minha primeira definição de sociometria veio, coerente com sua etimologia, do latim e do grego, mas não enfatizamos apenas a segunda parte do termo, por exemplo, o metrum, significando medida. Também enfatizamos a primeira parte, ou seja, o socius, significando companheiro. [...] os dois aspectos da estrutura são tratados juntos, como unidade. Portanto, sociometria é a ciência da medida do relacionamento humano, sem se esquecer do social. Gurvikch (apud MORENO, 1972, p. 14) acrescenta: O que constitui a originalidade da sociometria é o fato de que a medida (metrum) aparece somente como um meio técnico bem delimitado para alcançar melhor as relações qualitativas com o socius; essas relações estão caracterizadas por sua espontaneidade, seu elemento criador, suas relações com o instante, sua integração em configurações concretas e singulares. Moreno (1994a) utiliza-se da técnica experimental, dos métodos quantitativos, mas sem esquecer o socius, o qualitativo. Sua preocupação era com a superação da dicotomia existente entre os aspectos qualitativo e quantitativo, pois, para ele, ambos estão contidos um no outro. A sociometria constitui um instrumento de compreensão das influências mútuas no grupo, com a possibilidade de controle dessas influências. Com ela, torna-se possível promover uma investigação sobre a evolução e a organização dos grupos e sobre a posição das pessoas neles. Busca-se identificar o dinamismo grupal, a partir das forças de atração e repulsão que se estabelecem entre os integrantes do grupo. Segundo Monteiro (2001), a sociometria visa identificar e explicitar as redes interacionais entre os membros de um determinado grupo. Assim, compreender o que sustenta a coesão grupal em torno de um conjunto de critérios de escolha proporciona o acesso a respostas para o que preserva a composição do grupo com certas pessoas, mas não com outras. De acordo com Vala e Monteiro (1997), a coesão de um grupo está diretamente relacionada com a estrutura sociométrica. Esses autores citam os estudos de Back (1951) e Loh e Loh (1961) que atestam a relevância da coesão grupal. Em função desta, o grupo apresenta boa comunicação, satisfação e influência dos membros, de modo que as pessoas tendem a ser amigáveis e cooperativas. Vala e Monteiro (1997) acrescentam, ainda, que Moreno demarcou a relevância prática dos métodos sociométricos, mediante a reorganização da geografia psicológica dos grupos; da 52 identificação dos indivíduos com mais popularidade (líder), dos mais rejeitados (bodes expiatórios); das subconfigurações (com as alianças) e da coesão do grupo (que é determinante na produtividade dos grupos). A sociometria realiza uma investigação sobre a evolução e a organização dos grupos e sobre a posição das pessoas nestes, considerando-as como estrutura nuclear da situação social avaliada. De acordo com Bustos (1979), a teoria sociométrica parte do pressuposto de que os membros de um grupo relacionam-se por meio de três sinais possíveis: positivo (aceitação), negativo (rejeição) e neutro (indiferença). Esse método procura identificar o sinal que media os vínculos estabelecidos entre as pessoas de um grupo, bem como determinar a intensidade desses vínculos. Assim, a sociometria realiza o estudo matemático das propriedades psicológicas dos grupos, para medir as relações pessoais dentro de um grupo ou entre grupos. “Seu instrumento principal é o teste sociométrico, do qual resulta o sociograma” (KAUFMAN, 1992, p. 68). Esse teste foi criado por Moreno (1992, p. 193), que o definiu inicialmente, nos seguintes termos: “um instrumento para medir a quantidade de organização mostrada pelos grupos sociais”. Em outra obra, Moreno (1999, p. 35) acrescenta que o teste “é um método de pesquisa de estruturas sociais através da medida das atrações e rejeições que existem entre os membros de um grupo”. Portanto, esse método de pesquisa visa desvelar as estruturas relacionais existentes no grupo estudado, bem como mobilizar a participação comprometida e espontânea de seus membros. O teste sociométrico mede a quantidade de organização de um grupo, investiga a estrutura grupal e a posição (status sociométrico) ocupada por seus componentes. Com esse instrumento, fica mais fácil identificar membros isolados, líderes do grupo e os critérios que sustentam o grupo em torno de seus objetivos. O caminho da investigação de Moreno segue do simples para o complexo, do átomo social para o grupo. Essas categorias evidenciam a filiação de Moreno ao positivismo. Nesse sentido, Naffah Neto (1997, p. 160) afirmou que Moreno aceitou “uma fundamentação da sociometria baseada em categorias positivistas, como as de manipulação de dados observáveis ou a de derivação inferencial dos sistemas mais complexos partindo do mais simples”. Segundo Bustos (1979), o teste sociométrico pode ser utilizado em qualquer grupo em que seja necessária uma reorganização de vínculos, distribuição de tarefas e 53 investigação da estrutura interna de grupos psicoterapêuticos. A aplicação do teste é simples. Consiste em pedir ao sujeito que escolha, no grupo ao qual pertence, as pessoas que gostaria de ter por parceiras, de acordo com um critério previamente estabelecido pelo grupo. A aplicação do teste é feita, conforme explicam Gonçalves, Wolff e Almeida (1988), em quatro etapas, que se sucedem na seguinte ordem: 1. estabelece-se um critério, que é o motivo pelo qual se escolhe, que impulsiona o sujeito a um determinado fim. Trata-se de formular uma pergunta direta, que leva cada membro do grupo a expressar a sua escolha afetiva em relação aos demais; 2. cada integrante do grupo deve fazer suas escolhas positivas, negativas e indiferentes seguidas do porquê da escolha. De acordo com Moreno (1994a), com base em estudos similares, cinco escolhas são suficientes, mas todos os membros do grupo devem participar; 3. fazer a parte do teste que é denominada perceptual, que consiste em dizer quem, dentro do mesmo grupo, os membros acreditam que seria escolhido e o porquê da escolha; 4. as escolhas são lidas em conjunto no grupo e é montado o sociograma. Esses passos são registrados em uma folha de papel de dupla entrada14 e traduzidos para o sociograma. O sociograma é a identificação das escolhas e o desenho gráfico da distribuição entre os participantes do grupo. Segundo Moreno (1992), ele “torna visível o que está invisível aos olhos”, ao formar um mapa das escolhas, interações e relações entre os membros do grupo. Esse mapa permite ver a real posição que cada pessoa ocupa no grupo, bem como todas as inter-relações estabelecidas. Ao analisar um sociograma e as configurações reais que ele apresenta, é possível observar as posições ocupadas pelos participantes do grupo. De acordo com Moreno (1994a), essas posições podem ser: 1. isolado – indivíduo sem mutualidades não escolhe e nem é escolhido por ninguém; 2. rejeitado – indivíduo com escolhas negativas; 3. par – quando há escolha (positiva ou negativa) mútua entre dois participantes do grupo e não há outras ligações; 14 Papel em branco quadriculado, no qual escrevem-se os nomes dos sujeitos na primeira linha superior e, na mesma ordem, na primeira linha vertical. No primeiro quadrinho do papel, não se coloca nenhum nome (BUSTOS, 1979). 54 4. corrente – série aberta de escolhas mútuas com base em qualquer critério, por exemplo: A escolhe B, B escolhe A, B escolhe C, C escolhe B, C escolhe D, D escolhe C etc; 5. triângulo – quando há mutualidade de três membros do grupo, com mesmo sinal; 6. quadrado – quando há mutualidade de quatro pessoas, com a mesma escolha; 7. círculo – os membros de um grupo não necessitam de um vínculo específico para manter o vínculo dinâmico; é uma configuração que demonstra coesão grupal; 8. estrela – membro do grupo que recebe número esperado de escolhas, ou mais, com base no mesmo critério. Segundo Bustos (1979), a estrela sociométrica é o participante do grupo em que há maior número de mutualidades, sejam elas positivas, negativas ou neutras, e não aquele que só teve escolhas positivas (popularidade). Quando se analisa a estrutura detalhada do grupo, percebe-se a posição de seus membros e o núcleo de relações constituídas ao redor de cada um. Esse núcleo de relações significativas na vida de uma pessoa foi denominado por Moreno (1992) átomo social. Partes desses átomos sociais unem-se a partes de outros átomos sociais, formando complexas correntes de inter-relações, que receberam o nome de redes sociométricas. Estas implicam a formação da tradição social e da opinião pública. As redes sociométricas estruturam-se a partir do entrelaçamento dos vínculos, ou seja, dos processos de atração e rejeição das correntes afetivas, criadas entre os membros de um grupo. Esses processos podem ser compreendidos por intermédio dos conceitos de tele e transferência. Para Moreno (1992, p. 159), “tele é empatia recíproca. Como um telefone, ela tem duas pontas”. Esse conceito tem, para o autor, uma noção social e opera no plano social. Já transferência e empatia são conceitos psicológicos e operam no plano individual. Mas tele não tem existência própria, é uma abstração. Para ser compreendida deve ser descrita como um processo interno dos átomos sociais e das redes sociométricas. De acordo com Perazzo (1994), para se definir tele, que é um conceito próprio da teoria moreniana, deve-se focar a co-criação, o projeto dramático, tendo o campo sociométrico para desenvolver na complementaridade de papéis. Kaufman (1992) acrescenta que o grau de realidade nas relações interpessoais pode ser verificado pela tele. A forma de expressão da tele no teste sociométrico, nesse caso, é a mutualidade, ou 55 seja, as pessoas se escolhem reciprocamente com um mesmo sinal – positivo, negativo ou neutro. Nos termos de Moreno (1994a, p. 182), a transferência “pode ser definida como o ramo psicopatológico da tele e a empatia, como seu ramo emocional”. Então, no caso da transferência, a pessoa tem uma visão distorcida do outro, que é expressa no teste sociométrico na forma de incongruência, ou seja, as pessoas se escolhem mutuamente com sinais diferentes. Bustos (1979) ressalta que a transferência é compreendida pela interação de papéis complementares. Teoricamente, a sociometria fundamenta-se na teoria dos papéis, pois cada rede sociométrica, cada átomo social, cada vínculo é exercido por meio de um papel, definido como unidade psicossocial de conduta. O conceito de papel desenvolvido por Moreno (1992, p. 179) tem origem no teatro: o termo papel vem da linguagem do palco. Posteriormente, o termo foi incorporado pelas ciências sociais e ganhou conotações sociológicas, antropológicas e psicológicas. Do sentido originalmente teatral evoluiu-se para a acepção de que papel é a posição que a pessoa assume dentro da sociedade. E é com esse sentido que o empregam sociólogos, antropólogos e psicólogos (MARTIN, 1984). Na obra de Moreno (1992), o conceito de papel estendeu-se e agregou diferentes sentidos. Entre suas diversas acepções, as principais são: a fusão de elementos coletivos e individuais; conectividade com espontaneidade; representação do aspecto tangível do eu, pois só se pode ter consciência do eu quando se está desempenhando um papel; nascimento da interação mãe–filho, baseada na complementaridade dos dois; existência em função de seu complementar, o contrapapel. O papel funciona como meio de comunicação entre as pessoas. Na interação com o meio, a comunicação se dá por meio dos papéis. Moreno considerava mais produtivo trabalhar com a noção de papel do que com a noção de personalidade ou ego. Em sua concepção, os papéis representam os aspectos tangíveis do eu, aparecem nas ações e podem ser observados. Por isso, ele definiu papel como a menor unidade observável de conduta. Pode-se notar, nessa referência, a herança positivista da psicologia norte-americana. Todavia, Kaufman (1992) afirma que a teoria de papéis possibilita a Moreno estabelecer uma teoria da personalidade, em que esta é avaliada pela quantidade de papéis que o sujeito consegue assumir. 56 Nesse sentido, Fonseca (2000) esclarece que tanto matriz de identidade, quanto teoria do desenvolvimento sociopsicológico da criança são o esboço de uma teoria de personalidade, acrescentando-se à teoria de papéis. Esse aspecto da teoria de Moreno reflete a preocupação de que suas idéias fossem aceitas pela comunidade científica. Essa teoria foi escrita em co-autoria com a assistente social Florence Bridge Moreno, que era ligada à universidade de Columbia. A matriz de identidade é, segundo Moreno (1990), a base do processo de aprendizagem emocional, é a placenta social da criança. É o local em que a criança, ao nascer, se insere em um conjunto de vínculos, em um clima psicológico, mas que também é geográfico e socioeconômico. Por meio do fenômeno relacional, a criança irá, paulatinamente, se reconhecendo no que a identifica e no que a diferencia dos outros. A esse respeito escreve Moreno (1990, p. 119): Na fase primitiva da matriz de identidade, a criança ainda não distingue entre próximo e distante. Mas, gradualmente, o sentido de proximidade e distância vai-se desenvolvendo e a criança começa a ser atraída para pessoas e objetos ou afasta-se deles. Este é o primeiro reflexo social – indicando o aparecimento do fator tele, e é o núcleo dos subseqüentes padrões de atração-repulsa e das emoções especializadas – por outras palavras, das forças sociais que cercam o indivíduo ulteriormente. Na obra moreniana, o conceito de identidade está vinculado à sociometria, pois esta se interessa pelo movimento que congrega as formações sociais e os valores norteadores das escolhas de papéis e seus respectivos desempenhos, constituintes de uma configuração grupal e identitária. Portanto, é uma noção de identidade cunhada na inter-relação, e sua configuração faz parte, segundo Aguiar (1990), do processo de pertença de um sujeito em relação a um grupo social e cultural específico. De acordo com Fonseca (2000, p. 117) o ser humano “forma a personalidade na matriz de identidade, relaciona-se por meio de papéis, faz vínculos télicotransferenciais, tem ou não encontros e libera espontaneidade em seus momentos de criatividade”. Nesse sentido, a relação humana se efetiva por meio de papéis, pois cada vínculo é vivido a partir de um papel definido como unidade psicossocial de conduta. É por meio dos papéis que uma pessoa estabelece relações e reconhece a si mesma e ao outro. 57 Para Moreno (1990), os papéis são experiências interpessoais, pois estão vinculados necessariamente a uma complementaridade – o contrapapel, por exemplo, pai e filho – com o qual o papel tem uma relação estrutural, de interdeterminação recíproca. Então, o vínculo estabelece-se por meio dos papéis. Mas a sua teoria dos papéis não se limita aos papéis sociais. Ela inclui todos os aspectos da vida e, por isso, a análise dos papéis deve incluir as três dimensões: fisiológica, social e psicológica. Considera-os como eus parciais. Moreno (1992) postula que é o papel que estrutura o eu. No processo de desenvolvimento do ser humano, os papéis surgem junto a sua matriz de identidade. Moreno (1990) cita três estágios do desenvolvimento como os mais importantes: 1. fase da identidade total ou fase do duplo, em que criança (eu) e mãe (tu) encontramse em simbiose e a mãe funciona como ego auxiliar da criança. Nessa etapa, acontecem as primeiras aprendizagens emotivas da criança e ela começa a desempenhar papéis psicossomáticos que estão focados em determinadas zonas corporais. Do conglomerado e integração desses papéis, tem-se a formação do eu parcial fisiológico; 2. fase do reconhecimento do eu e do tu ou fase do espelho, em que a criança (eu) consegue se perceber separada da mãe (tu) e reconhecer sua singularidade como pessoa, mas ainda não diferencia realidade de fantasia; 3. fase da brecha entre fantasia e realidade ou fase da inversão de papéis, na qual ocorrem dois movimentos: em primeiro lugar, a criança é capaz de tomar o lugar do outro, ou seja, de representar o papel; em seguida, ela consegue inverter papéis, ou seja, sair do seu eu e se colocar no lugar do outro (tu) e o tu, colocar-se no seu lugar. Ao atingir o estágio da matriz de identidade, a criança desenvolve mais dois tipos de papéis: os papéis sociais, que correspondem à dimensão da interação social, em que opera, fundamentalmente, a função de realidade e formam o eu parcial social e os papéis psicodramáticos, que correspondem à dimensão da fantasia e mais individual da vida psíquica, formam o eu parcial psicológico, em que os papéis sociais preexistem ao modo individual no qual são desempenhados. Os papéis psicodramáticos (psicológicos) e sociais completam as condições para o surgimento do eu. Assim, a articulação entre papéis psicossomáticos, psicológicos e sociais propicia o surgimento do eu. Portanto, corpo, psique e sociedade são partes intermediárias do eu total. 58 O processo de autoconhecimento é inesgotável. Por isso, a identidade é uma construção infindável e os papéis – que constroem a identidade do sujeito – podem ser modificados (WECHSLER, 1995). A noção de identidade subjacente à teoria moreniana refere-se à sociometria, pois se refere ao estudo das composições sociais, conseqüência das associações humanas. Destaca a organização e o funcionamento dos grupos a partir de seus movimentos afetivos, as atrações e as repulsões que se estabelecem, em função de uma tarefa e de critérios de escolha de parcerias para o cumprimento ou não de um projeto comum. Pesquisa sociométrica de uma comunidade O livro Who shall survive? foi o resultado da pesquisa sociométrica que J. L. Moreno realizou na escola para educação de moças do estado de Nova Iorque, de 1932 a 1934. A primeira edição da obra foi publicada em 1934, na língua inglesa, em um volume, com prefácio do psiquiatra William Allison White. Moreno dedicou essa edição à superintendente da instituição, Fannie French Morse. Em 1953, Moreno publicou uma segunda edição, que foi revista e ampliada. Moreno acrescentou um novo capítulo, denominado “Prelúdios do movimento sociométrico”. Essa edição foi dedicada a sua esposa Zerka T. Moreno. A obra foi traduzida para o português e publicada no Brasil pela editora Dimensão em três volumes. O volume I, em 1992, e os volumes II e III, em 1994, sob o título Quem sobreviverá? Fundamentos da sociometria, psicoterapia de grupo e sociodrama, com prefácio dos psicodramatistas brasileiros Geraldo Francisco do Amaral e Paulo Maurício de Oliveira. Essa obra é um monumento à sociometria, embora apresente também a filosofia moreniana da espontaneidade/criatividade. Demonstra a atuação do método sociométrico no indivíduo, nas relações intra e intergrupais. O livro aborda outras experiências sociométricas de Moreno, com destaque para o estudo realizado na prisão de Sing Sing, que foi significativo e projetou o autor no meio científico. Moreno, depois de apresentar os resultados de seu trabalho, realizado na penitenciária de Sing Sing, no encontro da Associação Psiquiátrica Americana, foi convidado pela superintendente da Escola para Educação de Moças do 59 Estado de Nova Iorque, Fannie French Morse, para realizar um estudo sociométrico em sua instituição. Fannie tinha como objetivo transformar jovens delinqüentes em pessoas preparadas para conviver novamente em sociedade. Ela acreditava na educação humanística, em que cada pessoa tem algum potencial que pode ser desenvolvido (KNOBEL, 2004). À época, estavam sob os cuidados da instituição cerca de dez mil moças infratoras, com idade entre 12 e 18 anos, sendo que aproximadamente seiscentas viviam no reformatório na cidade de Hudson e as demais, distribuídas em orfanatos ou cumprindo pena em regime de liberdade condicional por todo o estado de Nova Iorque. Moreno (1994a, p. 97) descreve a estrutura da comunidade da seguinte forma: A comunidade na qual o estudo foi feito situa-se perto de Hudson, Nova Iorque; é do tamanho de uma pequena vila, povoada por aproximadamente, 500 a 600 pessoas; é comunidade fechada; sua população é composta por pessoas de apenas um sexo; as meninas ainda estão em seus anos formativos e permanecem em Hudson por vários anos até o final de seu treinamento; vêm de várias localidades do Estado de Nova Iorque, encaminhadas por órgãos competentes. A organização é dual, consistindo nos grupos: pessoal administrativo e estudantes. Há 16 cabanas servindo de alojamento, uma capela, escola, hospital, instalações industriais, lavanderia, loja, administração e uma fazenda. A pessoa encarregada da cabana tem a função de mãe; todas as refeições são ali preparadas sob a direção do cozinheiro– chefe; as meninas participam das tarefas caseiras exercendo funções diferentes: garçonetes, ajudantes de cozinha, cozinheiras, lavadeiras, arrumadeiras. A população de cor fica em cabanas separadas. Nas atividades educacionais e sociais, entretanto, os brancos e os negros integram-se, livremente. Qualquer que seja a “estrutura social” de determinada cabana é necessário determinar a função psicológica de cada um de seus membros e a “organização psicológica” do grupo dessa cabana. [...] correntes psicológicas fluem, também, entre os administradores e os estudantes e mesmo dentro do próprio grupo de administradores, como um todo, afetando e moldando o caráter e a conduta de cada pessoa e da cada grupo, na comunidade. Com essa pesquisa, Moreno determinou a posição e a função psicológica que cada moça tinha no grupo. Ao desvelar a organização psicológica e fazer a confrontação desta com a organização social, fez o mapeamento da instituição, tornando possível a sua reorganização. 60 Para efetuar o estudo, Moreno utilizou o teste sociométrico (criado por ele), com o critério de que a pessoa escolhesse cinco moças para morar na mesma casa. As escolhas eram hierarquizadas. De acordo com o relato Moreno (1992, p. 203), foi feito o seguinte esclarecimento às moças quanto ao critério de escolha: Vocês moram em casas determinadas, com pessoas determinadas, de acordo com instruções fornecidas pela administração. As pessoas que moram com vocês na mesma casa não foram escolhidas por vocês, do mesmo modo como vocês não foram escolhidas por elas, apesar de que, dadas as oportunidades, talvez tivessem feito essa mesma opção. Têm, agora, a oportunidade de escolher as pessoas com quem gostariam de morar, na mesma casa. Podem escolher, sem restrições, quaisquer indivíduos desta comunidade, mesmo que eles já estejam morando com vocês. Escrevam, primeiro, o nome daquele de quem mais gostam, depois, o nome de quem gostam em segundo, terceiro, quarto e quinto lugares. Olhem em volta e decidam-se. Lembrem-se de que aqueles que escolherem poderão vir a morar com vocês na mesma casa. Assim, foi possível classificar cada moça com base nas escolhas feitas e recebidas, tendo em vista três tipos de resposta: aceitação (positivo), rejeição (negativo) e indiferença (neutro). O teste visava desvelar as estruturas relacionais existentes na comunidade de Hudson e mobilizar a participação comprometida e espontânea das moças que viviam na instituição. Como o teste sociométrico produz uma dinâmica especial, as moças deixaram de ser simples objeto de observação e passaram a ser também observadoras do cenário relacional e os profissionais, por sua vez, passaram também a ser observadores participantes, de tal modo que a pesquisa passou a envolver a participação conjunta de todos. De acordo com Moreno (1994a), a classificação em sociometria é diferente da classificação dos métodos psicométricos. Nestes, a classificação é centrada em uma única pessoa, enquanto naquela, a classificação é feita de um indivíduo em relação a outros; e, no caso dos grupos, de um grupo em relação a outros. A fim de aclarar as escolhas, Moreno e sua equipe realizavam entrevistas para investigar as motivações subjacentes a essas escolhas. E, para determinar a diferença entre a primeira e a segunda escolha, media, pelo tempo que as moças passavam juntas, a intensidade da escolha. Esses procedimentos foram acrescentados ao teste sociométrico, na tentativa de aumentar a precisão de suas conclusões (MORENO, 1994a). 61 Outro instrumento utilizado por Moreno na pesquisa foi o sociograma, que é a representação gráfica dos fatos inter-relacionais e a exploração deles. Esse recurso possibilitou a análise estrutural da comunidade de Hudson e facilitou a visualização das correntes psicológicas15 e ideológicas que antes eram invisíveis. O gráfico sociométrico consiste em colocar os líderes no centro e dispor os demais membros do grupo em círculos concêntricos, de dentro para as bordas, na ordem decrescente de importância de cada em (MORENO, 1992). Moreno formulou vários tipos de sociogramas em Hudson, mas todos retratavam o padrão da estrutura social como um todo e a posição de cada moça dentro dela. Os gráficos revelaram o significado funcional, a localização geográfica, os subgrupos, o percurso das informações, dos boatos e os porquês das fugas constantes das moças. Sobre as fugas, escreve Moreno (1994a, p. 287): “Estes [classificações sociométricas e sociogramas] indicam que muitos outros indivíduos, além das fugitivas, mostravam posição sociométrica, na comunidade, que as predisporiam à fuga”. Por esse auxílio importante, Moreno (1992) comparou o sociograma a um microscópio que amplia e mostra o lugar de cada moça no conjunto das inter-relações da comunidade de Hudson. Por meio das análises dos sociogramas e das entrevistas realizadas com as moças, Moreno descobriu uma rede sociométrica, em que a comunicação fluía por estruturas (pares, correntes, triângulos etc.), as quais funcionavam como um leito em que as correntes de opinião se misturavam e pelo qual se espalhavam. Segundo o princípio da formação de átomos sociais, em uma comunidade, as pessoas relacionam-se com determinada quantidade de outras pessoas. Ele percebeu, ainda, que as correntes psicológicas eram seletivas. Isto é, normalmente, as notícias, os mexericos, os comentários externos e íntimos que não prejudicavam quem os contava transitavam, sem resistência, pelas redes. Contudo, quando se tratava de alguma atividade secreta, como o comportamento sexual, racial ou político, os assuntos não atravessavam partes regulares e já estabelecidas das redes (MORENO, 1994a). A análise do sociograma só permite evidenciar as posições sociométricas, ou seja: quem está isolado, é rejeitado, é estrela, forma par, correntes etc. Foram as 15 Correntes psicológicas consistem em sentimentos de determinado grupo em relação a outro. A corrente não é produzida em cada indivíduo separadamente, tampouco se encontra pronta em todos, esperando, apenas, ser somada para chegar ao resultado final. Essas correntes não permanecem no indivíduo, mas fluem para o espaço e, neste, não fluem desordenadamente, mas por meio de canais e estruturas erigidas pelo ser humano: famílias, escolas, fábricas, comunidades (MORENO, 1994a). 62 motivações16 – declaradas pelas moças por meio de entrevista gravada individualmente – que possibilitaram fazer a diferenciação de uma estrutura da outra, pois elas demonstraram a atmosfera afetiva e as dinâmicas relacionais expressas nas classificações. Essas motivações explicitaram-se no estudo que Moreno realizou sobre as dimensões da integração de um pequeno grupo. O estudo foi feito dentro da comunidade de Hudson, e Moreno escolheu a casa oito, em que a jovem Elsa T. L. era central. Sua justificativa para a eleição dessa casa foi por tratar-se de um grupo interligado na comunidade e bem explorado, no que tange aos índices de familiaridade, sociométricos e motivacionais. Com esse procedimento, Moreno (1994a) deixa clara a sua estratégia de recortar o grande grupo, de 505 moças, em pequenos subgrupos, a fim de facilitar o estudo. O grupo em questão era formado por cinco moças: Elsa, Maud, Gladys, Joan e Virgínia. Apesar de Elsa morar com dezesseis jovens, Moreno considerou grupo somente o conjunto de moças escolhidas positivamente por ela, mesmo sendo as escolhas incongruentes. A quinta escolha positiva de Elsa não foi incluída no grupo por Moreno, pois se tratava de uma jovem fora da casa e isolada, que, portanto, não afetava a posição e as relações de Elsa na comunidade. O teste sociométrico demonstrou que Elsa estava isolada e rejeitada no seu grupo e na comunidade, ao evidenciar que as dezesseis colegas de casa, quinze jovens e a funcionária responsável pela casa, rejeitaram-na. A posição de Elsa era de extrema marginalização. Mas ela escolheu Virgínia e Joan, que eram duas jovens muito influentes. Segundo Moreno (1994a), parecia ser uma tentativa de Elsa para melhorar sua aceitação na comunidade (status sociométrico). Não obstante, Joan e Virgínia eram líderes e exerciam influência sobre 47 e 21 jovens, respectivamente. Elas rejeitaram Elsa, e isso provocou um efeito multiplicador negativo sobre ela. Esse fenômeno foi denominado por Moreno antipatia indireta e surge quando a rede sociométrica é muito forte. Em suma, a análise do teste sociométrico permitiu que Moreno (1994a) identificasse o status relacional de cada jovem, a participação de cada uma nas redes sociométricas e a definição de lideranças. 16 Motivação é o que move cada moça na direção da companheira, com o intuito de realizar o objetivo proposto pelo critério de escolha (MORENO, 1994a). 63 Moreno deu seguimento à pesquisa realizando outros métodos, com os testes de espontaneidade, de situação e role-playing. Um de seus objetivos era apresentar soluções práticas para os problemas relacionais na instituição, bem como desenvolver a reflexão das jovens sobre suas vontades e atos, de modo que elas pudessem alcançar seus projetos de vida dentro e fora da instituição. A aplicação do teste de espontaneidade objetivava identificar a intensidade da espontaneidade na troca de emoções entre as moças. Para realizá-lo, Moreno (1994a, p. 208) deu as seguintes instruções: Deixe-se levar por um estado de emoções em relação a x. A emoção precipitante pode ser tanto a raiva como o medo, a afinidade ou a dominação. Desenvolva qualquer situação que quiser produzir com ela, expressando esta emoção em particular, acrescentando tudo o que sentir, sinceramente, no momento deixe-se levar pelo estado emocional sem nada em sua mente a não ser a pessoa que tem em frente; pense nesta pessoa como a pessoa real que conhece tão bem no cotidiano. Chame-a por seu nome de verdade e aja em relação a ela como geralmente o faz. Uma vez que tenha começado a produzir um destes estados emocionais, tente elaborar a relação por aquela pessoa durante toda a situação, vivendo toda e qualquer experiência, emocional, intelectual ou social. Todo o processo acontece de improviso, de modo que os sujeitos exercitam por completo sua espontaneidade. O fluir das emoções é registrado pelo tempo de reação, pelas palavras ditas, as expressões mímicas e os movimentos no espaço. Esse procedimento foi aplicado para avaliar os relacionamentos de Elsa com Maud, Gladys, Joan e Virgínia e resultou em oito relatórios. Para aprofundar o conhecimento da estrutura relacional do grupo, Moreno utilizou mais dois procedimentos: o teste de situação e o teste de role-playing. O primeiro consiste em vivenciar uma cena de relacionamento concreto do grupo, para que se possam levantar as várias configurações afetivas existentes nele. Já o teste de roleplaying explora os papéis particulares e sociais, presentes no pequeno grupo. Esse teste possibilitou que Elsa interpretasse vários papéis e revelasse alguns aspectos de sua vida que as colegas desconheciam. Portanto, as situações vivenciadas no teste propiciaram ao grupo maior conhecimento da pessoa de Elsa e a ela, melhor entendimento de sua própria história de vida e de como, paulatinamente, chegou ao estado atual (MORENO, 1994a). 64 A partir dos registros, Moreno (1994a) fez a análise da matriz situacional e da matriz de papel do pequeno grupo em questão. Com a matriz situacional, ele avaliou o ângulo situacional das interações. Ele observou o conteúdo da comunicação e as correlações entre espaço, tempo, movimentos, atos, pausas, número de palavras e de gestos, quem iniciou o diálogo, como o fez, quem transformou ou encerrou as cenas. Com esses dados, foi possível indicar a qualidade dos vínculos. Moreno (1994a) formulou a hipótese de imaturidade social como uma das explicações para que Elsa permanecesse isolada e rejeitada na comunidade. Ela demonstrou não ter habilidade para integrar-se ao círculo das moças de sua mesma idade, escolaridade e quociente intelectual; no entanto, invariavelmente, estava interagindo com as jovens com idade e desenvolvimento intelectual aquém dos seus. O outro motivo para a tendência do grupo em rejeitá-la era a influência de certas líderes que a rejeitavam tanto quanto suas atitudes transgressoras. Em face desses dados, concluiu Moreno (1994a, p. 231): “Uma tentativa de cura, naturalmente, envolveria toda a corrente de indivíduos interligados a sua posição”. Com a análise da matriz de papel do pequeno grupo, Moreno pôde identificar três papéis significativos na vida de Elsa: o papel de simpatizante de negros, o de autora de pequenos furtos e o de rebelde. Essa matriz é composta por diferentes papéis sociais e particulares, os quais esse pequeno grupo desempenhou, tanto em seus denominadores coletivos como em seus diferenciadores individuais. Nessa relação de papéis complementares, houve um movimento vicioso, ou seja, moças responderam à ação de Elsa e esta, por sua vez, respondeu com atitudes de indiferença, apatia e rebeldia, o que a excluiu do grupo. Por meio do role-playing, Elsa dramatizou papéis e enredos de sua vida. Essa oportunidade revelou a sua capacidade de se emocionar, reação bem diversa do que seu jeito indiferente e apático demonstrava na casa oito. A esse respeito, Moreno (1994a, p. 232) relatou que, ao dramatizar os conflitos com a mãe e as experiências horríveis com os homens, Elsa mostrou o “seu outro lado, sua personalidade afetuosa e sonhadora, vem à tona. Levou a audiência às lágrimas, mesmo suas inimigas oficiais”. Moreno tinha também como objetivo tratar as relações em Hudson. Assim, adotou procedimentos, tais como tratamento por sugestão, análise de conduta, mudança de função e, por fim, trabalho grupal, para melhorar a posição sociométrica de Elsa na instituição. Moreno identificou, por meio do trabalho grupal, condições apropriadas para 65 que isso pudesse acontecer. Na casa treze, para onde foi removida, Elsa contou com a aceitação de duas jovens e da funcionária encarregada. A reorganização da instituição fez melhorar as relações interpessoais, pois Moreno focou na valorização dos relacionamentos centrados na confiança e na continência mútua. O resultado foi um maior entendimento entre as detentas e a diminuição das fugas; com isso, a vida na instituição adquiriu um caráter mais humano. Fica patente o caráter adaptativo e o intento apaziguador de tensões sociais da sociometria, a despeito de seu potencial transformador. Conforme afirma Naffah Neto (1997, p.151), “se é verdade que, depois de tudo, a instituição e as posições oficiais ainda permaneceram, também é verdade que já não eram as mesmas”. Contudo, a transformação restringiu-se àquela instituição e só foi permitida porque não afetava a estrutura da sociedade capitalista. Para promover a possibilidade de uma transformação ampla, é necessário à sociometria romper com a visão de indivíduo e construir a de sujeito. E essa construção pressupõe considerar a determinação social e histórica do ser humano. CATEGORIAS DA PSICOLOGIA SOCIAL DESENVOLVIDAS POR J. L. MORENO EM QUEM SOBREVIVERÁ? Na análise da obra de Quem sobreviverá?, emergiram as categorias ciência, relação indivíduo–sociedade e grupo. Focalizar essas categorias pode ajudar a esclarecer quais são os pressupostos da psicologia social de J. L. Moreno e que teoria influenciou a sociometria, concebida por ele, na década de 1930, nos Estados Unidos. Ciência: positivismo e pragmatismo Na obra Quem Sobreviverá?, Moreno explicitou a sua pretensão em conferir à pesquisa sociométrica um caráter científico. “A sociometria tem a aspiração de ser ciência por seus próprios méritos. É prólogo indispensável para todas as ciências sociais” (MORENO, 1992, p. 154). Porém, que ciência pode ser reconhecida nessa obra? Percebem-se evidências de proximidade entre certas categorias do pensamento positivista e a sociometria de Moreno. Entre elas, podem ser citadas a classificação sociométrica, a busca de fórmulas matemáticas (quantificação), o controle, a adaptação, a manipulação dos dados observáveis, a formulação de leis gerais, a construção de gráficos (sociograma), a opção pelo procedimento indutivo, partindo do particular (átomo social) para o mais geral (grupo). Segundo Vigotski (2004, p. 208-209), ir do “simples ao complexo, do animal ao homem” é uma concepção defendida por Pavlov. Esta é contrária ao método marxista, que parte do mais complexo para o mais simples. Compreender o mais desenvolvido abre a compreensão do funcionamento do processo e do desenvolvimento dele, porque o mais simples está contido no mais complexo. Na perspectiva desse enfoque metodológico, Moreno (1992, p. 157) escreveu: “a sociometria é, em grande parte, ciência classificatória e podemos fazer generalizações tendo por base tais classificações”. Ele não deixa dúvida sobre sua posição de fazer, naquele momento, uma ciência positivista. Nesse sentido, afirmou: “a sociometria trata do estudo matemático das propriedades psicológicas das populações, 67 da técnica experimental e dos resultados obtidos com a aplicação de métodos quantitativos” (MORENO, 1992, p. 157). Nessa época, havia vários estudiosos de psicologia social, que, como Moreno, procuravam quantificar os relacionamentos grupais nos Estados Unidos. O cenário norte–americano, de 1910 a 1940, mostra uma psicologia social que se desenvolve como estudo científico sistemático, de forte tradição pragmática, positivista, experimental, que entendia o ser humano e a sociedade como fenômenos distintos. É nesse contexto que Moreno e muitos outros cientistas, de orientação positivista, vão construir suas teorias das relações humanas, baseadas na visão de que é possível isolar as pressões internas e externas do indivíduo e explicar a sua conduta e pensamento. Entre eles, está Kurt Lewin, que também utilizou fórmulas matemáticas para explicar o comportamento humano em grupo. De acordo com Knobel (2004), essa busca da tradução matemática justificava-se como um sinal da seriedade e do rigor científico, portanto, de respeitabilidade. Moreno (1992, p. 164) deixou clara a influência que teve da ciência positivista, quando afirmou: “Toda ciência reporta-se à constelação de fatos e de como medi-los. Sem meios adequados de descobrir fatos e sem formas apropriadas de avaliálos, a ciência não existe”. A crítica não é por investigar o fato, mas por tratá-lo como algo imediato e tomá-lo como bastante em si mesmo, sem problematizá-lo. No âmbito positivista, a ciência é concebida como um processo de investigações empíricas, que trabalha com fatos possíveis de serem expressos em números a fim de que a objetividade seja assegurada. No entanto, essa não é a única concepção de ciência. Outra forma de concebê-la é a dialética. Nesse sentido, Vigotski (2004, p. 318) afirmou: Quando se conhece um pouco a metodologia (e a história) das ciências, a ciência começa a ser vista por nós não como um conjunto morto, acabado, imóvel, integrado por princípios preparados de antemão, mas como um sistema vivo, em constante evolução e avanço, de fatos demonstrados, leis, suposições, estruturas e conclusões, que se completam ininterruptamente, são criticados, comprovados, rejeitados parcialmente, interpretados e organizados de novo etc. a ciência começa a ser compreendida dialeticamente17 em seu movimento, pela perspectiva de sua dinâmica, de seu crescimento, desenvolvimento, evolução. 17 Grifo do autor 68 Na perspectiva dialética, o homem é compreendido como um ser sóciohistórico. A noção de historicidade permite uma análise crítica da sociedade na qual o homem se encontra. Abordar o objeto de estudo em sua historicidade significa procurar apreendê-lo inserido em um processo de transformação constante. E a ciência perde, desse modo, a sua condição de “neutra”, pois é reconhecida como conseqüência da ação de seres humanos situados social e historicamente, que determinam como os fatos são abordados, ou seja, podem representar a afirmação e a manutenção da realidade histórica ou a sua negação e a expressão da transformação social. Moreno (1992, p. 129) esboçou uma tentativa de autocrítica sobre seu excessivo interesse métrico: “Tais formas ingênuas e rudes de medição constituíram o primeiro passo indispensável antes do estabelecimento das unidades padronizadas de validade universal”. De acordo com ele, a sociometria, com o tempo, passou do quantum para o socius, deslocando a prioridade para as informações qualitativas dos relacionamentos. No entanto, não conseguiu romper com o modelo positivista, pois ainda continuou tentando estabelecer leis gerais e conceitos imutáveis, além da ausência de uma análise social e histórica, que passa uma visão de naturalização dos fenômenos sociais e humanos. Sobre a ausência dessa análise na obra Quem sobreviverá?, Naffah Neto (1997, p. 149) ponderou: “Quando examinamos as descrições de Moreno, sentimos falta de um elo cognitivo entre a realidade vivida em Hudson [...] e as forças econômicas, políticas e ideológicas características da sociedade americana naquele momento histórico”. Para esse autor, a sociometria baseou-se em categorias positivistas e, assim, tornou-se uma ciência classificatória, sendo essa posição mais um reflexo da influência da exterioridade mecânica de Bergson18 sobre Moreno. Moreno submeteu-se ao paradigma científico dominante nos Estados Unidos, o positivismo, com característica de uma ciência ideológica, reprodutora dos interesses da classe dominante. Essa ciência é produto de condições históricas e sociais específicas. Aquele momento histórico, a década de 1930, foi um período do entreguerras e a sociedade norte-americana caminhava para consolidar-se como uma grande potência. 18 Henri Bergson, filósofo espiritualista que concebeu a inteligência como a capacidade de resolver problemas. Estudou os fundamentos biológicos, topológicos e funcionais, segundo as leis de estímulo e resposta (MERANI, 1977). 69 Aquela sociedade contava com a colaboração da ciência e, especificamente, da psicologia social positivista, para fornecer respostas a múltiplas exigências, advindas de diversos segmentos. As forças armadas procuravam meios de classificação que fossem rápidos, objetivos e eficientes para o recrutamento e seleção de indivíduos para suas fileiras; as instituições escolares de ensino e de reeducação estavam interessadas em novos métodos pedagógicos e em controlar o comportamento dos alunos; as empresas industriais buscavam formas de racionalizar a divisão do trabalho e a partilha das profissões. Essa psicologia específica ressalta a importância da medida, dos métodos de quantificação e dos testes, para fornecer respostas mais precisas, objetivas e eficazes. A utilização sistemática do método de teste tem o sentido prático de classificar os indivíduos, tomando por base a determinação quantitativa de seus traços, afetos e aptidões. Moreno demonstrou, mais uma vez, sua consonância com essa tendência predominante, criando, entre outros, o teste sociométrico para medir e classificar as relações entre os indivíduos em um grupo. A propósito disso, escreveu: “Este teste tem sido aplicado a grupos familiares, de trabalho e escolares. Determina a posição de cada indivíduo em um grupo no qual tenha uma função, por exemplo, no qual vive ou trabalha” (MORENO, 1992, p. 194). Essa posição está de acordo com a psicologia social positivista, de cunho pragmático, desenvolvida nos Estados Unidos que, segundo Lane (1986a, p. 10), visa “alterar e/ou criar atitudes, interferir nas relações grupais para harmonizá-las e assim garantir a produtividade do grupo”. Essa autora acrescenta que o positivismo, na busca da objetividade, perde o ser humano. A subjetividade não pode ser comparada aos fenômenos naturais, pois os fenômenos psíquicos não pertencem à mesma categoria que os físicos. Moreno parecia saber disso, mas, com a pretensão de obter a aceitação da sociometria nos meios acadêmicos norte-americanos, adotou o modelo positivista de ciência. Por isso, por meio dos estudos sociométricos, perseguiu a “objetividade científica”:19 procurou estabelecer leis gerais, elaborou testes e gráficos e procurou predizer distúrbios, como se os fenômenos psicossociais fossem fixos, estáticos, naturais. 19 Na perspectiva dialética, não se concebe a separação entre objetividade e subjetividade. 70 Sobre a possibilidade de a sociometria prever as reações de uma comunidade ou grupo, Moreno (1994a, p. 253) escreveu: A seguinte questão pode ser levantada: será possível, através do estudo da organização de determinada comunidade, predizer, não apenas reações de comportamento, tais como fugas, mas também, alterações maiores, envolvendo grupo de pessoas, alterações estas que podem ser prejudiciais para uma ou outra parte da população? Temos mostrado que é possível reconhecer os sinais que predispõem a tais distúrbios dentro da organização de grupo da comunidade. Essa visão está enraizada no positivismo e no idealismo, presentes nas ciências humanas e sociais de então. Esse modo fechado e rígido de abordar a dinâmica do comportamento humano implica a impossibilidade de instrumentalizar os sujeitos para a transformação social. A sociometria, ao que parece, forneceu elementos para a afirmação da classe dominante norte-americana, pois teve uma intervenção que minimizava conflitos e recolocava as pessoas em um meio sociocultural que era compatível com sua possibilidade de auto-realização, tornando-as “felizes” e adaptadas. É a realidade histórica que faz o pensamento e não o contrário. Assim, pode-se dizer que a realidade histórica da sociedade norte-americana influenciou as ciências que se desenvolveram em seu interior para que estas defendessem a ordem social estabelecida. A sociometria e uma determinada psicologia social norte-americana refletem o pensamento racional, pragmático e institucional, dominante naquela sociedade naquele momento histórico. Seria, portanto, ingênuo esperar que teorias que emergiram naquele contexto, pelo menos no seu nascedouro, pudessem fazer a crítica àquela sociedade. Moreno (1992, p. 21) afirmou que a sociometria encontrou “nos Estados Unidos da América solo verdadeiramente fértil para seu desenvolvimento”. No entanto, o materialismo histórico considera o elemento da contradição dialética, que aponta não só para a reprodução, mas também para a produção. Assim, é possível perceber forças de mudanças, ainda que se faça todo o esforço para não haver “falha”, ou seja, para a eliminação do conflito, da demanda, da falta, da contradição enquanto motores da história. A psicologia social positivista e a sociometria consolidaram-se não pela crítica ou pela denúncia das contradições da sociedade capitalista norte-americana, mas pelo propósito de “solucionar” suas contradições, ou pelo menos pela promessa de resolvê- 71 las. Sobre o alcance da proposta de Moreno na sociedade americana, escreveu Naffah Neto (1997, p. 158): “É verdade que talvez a socionomia não tivesse a aceitação que teve nos Estados Unidos e nem congregasse o apoio dos órgãos governamentais, no momento em que se imiscuísse em zonas perigosas e contrárias à ‘segurança nacional’”. Moreno não desenvolveu uma posição de crítica à sociedade norte–americana. À época de sua pesquisa, existia no país uma lei de segregação racial que foi estabelecida pela Suprema Corte. Moreno seguiu com sua pesquisa sociométrica como se esse fato em nada a afetasse e não fez qualquer pronunciamento ou comentário a respeito do racismo. A propósito dessa omissão, Knobel (2004, p. 119) escreveu: Moreno não faz também nenhum comentário crítico em relação ao regime de segregação racial que vigorava no país naquela época, atingindo também essa comunidade, com todos os problemas inerentes a esse processo. A sociometria, ao adotar a posição de adaptabilidade e o método positivista, limitou-se à explicação da realidade; não logrou apreender a sua essência, que é histórica. De acordo com a lei da negação, ela permanece na primeira negação, pois as suas intervenções não são críticas e, sim, apenas humanizadoras. Moreno não produziu uma análise, mas uma descrição da realidade. Não havia nenhum problema com os princípios, havia problema na adaptação aos princípios. A propósito das limitações da sociometria, Chauí (1997, p. 287) concluiu: O limite da experiência de Moreno não se encontra, portanto, no fato de que não teria sido feita pela “boa” classe. O limite parece encontrar-se no fato de que não há em Moreno uma crítica da instituição carcerária como instituição sociopolítica. Há apenas um esforço para amenizá-la e humanizá-la. A negação da negação, nesse caso, seria o esforço para constituir um método que pudesse apreender, compreender e mediar o objeto, para desvendar a realidade, o que não ocorreu. A sociometria não se preocupou em proporcionar uma compreensão política da sociedade norte-americana, nem pelas prisioneiras nem pelas carcereiras. Para se compreender desse modo uma sociedade, é necessário adotar a perspectiva do materialismo dialético. Sem essa visão, é impossível construir uma teoria capaz de romper o estabelecido e promover a emancipação humana, tendo como pressuposto que o ser humano é um ser sócio-histórico. Por não considerar a dialética, cujo alcance faz compreender como um pólo se expressa no outro, Moreno naturaliza o caráter social do homem. Assim, a sociometria 72 está impregnada de idéias que naturalizam o ser humano. Tal como a sociologia e a psicologia norte-americana, a sociometria é, de fato, fruto de um período histórico em que dominaram o positivismo, o pragmatismo e as concepções liberais do ser humano e da sociedade que ainda predominam no presente. O liberalismo é a expressão ideológica do modo de produção capitalista. Essa ideologia aparece na psicologia social com o pragmatismo, que é uma concepção de mundo voltada para o concreto, o adequado, para os fatos, para a ação, para o útil, para a experiência, para o necessário, com o objetivo de ajustar e reajustar o indivíduo ao meio.20 Para Vigotski (2004, p. 352), a crise da psicologia situa-se exatamente “no desenvolvimento da psicologia aplicada, que deu lugar à reestruturação de toda a metodologia da ciência sobre a base do princípio da prática, ou seja, de sua transformação em ciência natural”. A ideologia do capitalismo, em que a sociedade acha-se dividida em classes antagônicas, é um instrumento de ocultação das diferenças e desigualdades, ou seja, funciona como uma forma ilusória de representar o real. A inversão não está na consciência e sim na realidade, pois as pessoas têm preço e a mercadoria tem valor. Portanto, faz parte do processo de reificação supor que a prática, a ação tem de ter uma função, uma serventia. As concepções positivo-pragmática, que são o braço intelectual do capitalismo, estão a serviço da manutenção dessa sociedade. A propósito da filosofia positivo-pragmática, Horkheimer (2000, p. 85) declarou: Quer os positivistas queiram ou não, a filosofia que eles ensinam consiste em idéias e é mais do que um instrumento. Segundo a sua filosofia, as palavras, em vez de terem significado, teriam apenas função. Para esse pensador, o pragmatismo é uma expressão da visão positivista. No materialismo histórico-dialético, encontra-se outra concepção de ação. Löwy (2000, p. 132) defendeu a idéia de que “o materialismo histórico não é somente um instrumento de conhecimento; ele é também, ao mesmo tempo, um instrumento de ação”. E continua, afirmando, nesse sentido, que o proletariado, “em sua luta revolucionária, coincide a teoria e a práxis, e se passa sem transição do saber à ação. Reconhecendo a situação, o proletariado age”. 20 O sentido do termo meio empregado aqui é positivista, porém o autor deste trabalho entende sociedade como um processo, em permanente construção. 73 Na perspectiva dessa concepção de ação, está explícito o objetivo de transformação da sociedade capitalista e não de sua manutenção, como ocorre no pragmatismo. É o método dialético que vai desopacizar, vai desvendar a falsa realidade da sociedade capitalista. Entre esses dois métodos contemporâneos, a sociometria optou pelo positivista-pragmático. Foi o próprio Moreno que admitiu a influência de autores positivistas e/ou pragmatistas sobre a sociometria. “O solo para a sociometria foi preparado pelo pensamento de J. Badwin, C. H. Cooley, G. H. Mead, W. I. Thomas e, particularmente, John Dewey” (MORENO, 1992, p. 62). As afinidades entre sociometria e pragmatismo estão nas categorias da ação, da prática e da experiência. É o próprio Moreno (1992, p. 160–161) que explica: O experimento sociométrico não baseia suas descobertas no método de entrevistas ou de questionário (e este é equívoco comum); é método de ação, prática de ação. O pesquisador sociométrico assume a posição do status nascendi na pesquisa; ele está interiorizando o método experimental, é ator participante. O termo pragmatismo vem do grego prágma, que quer dizer ação. Como método, explica o objeto por sua natureza prática. O pragmatista volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, para a ação. As idéias que têm significado são aquelas com conseqüências práticas, pois a função do pensamento é produzir hábitos de ação. Para Dewey (1959), o pensamento não é senão um processo de abordar a experiência em situação total, ou seja, em face de problemas reais. Aprender para a vida significa não somente agir, mas agir de acordo com o novo modo aprendido. É a capacidade do educando de, ao encontrar situações novas, resolvê-las com êxito (DEWEY, 1952). Pode-se perceber que o pensamento de Dewey está contido na definição dada por Moreno à espontaneidade. Esta e a criatividade são as pedras angulares para a compreensão da sociometria. “A espontaneidade opera no presente, agora e aqui; propele o indivíduo em direção à resposta adequada à nova situação ou à resposta nova para situação já conhecida” (1992, p. 149). De acordo com Moreno e os pragmatistas, os corpos agem e reagem, para a conquista de um equilíbrio de adaptação. O sentido da vida é a ação e o valor da verdade resulta do rendimento da ação. Ou seja, as idéias são verdadeiras porque as expectativas se cumprem e as ações funcionam. Horkheimer (2000, p. 55) afirmou que a ambição do pragmatismo era “ser nada mais do que uma atividade prática, distinta da compreensão teórica”. Tudo, na 74 perspectiva pragmatista, é relativo à ação. E se esta é útil, seus resultados são os únicos valores que se pode aceitar. Mas o pragmatismo não está reduzido àquilo que é prático; aponta também para os modos como tal prática está sendo construída. Para os pragmatistas, a ação é exercida como forma de experiência e a inteligência é a capacidade de resolver problemas. Para Dewey (1952), a experiência é agir sobre outro corpo e sofrer dele uma reação. É uma relação que se processa entre dois elementos do cosmos, alterando-lhes, até certo ponto, a realidade. Moreno também adota a atitude de experimentar. Ação é a experiência da livre ação. Segundo Moreno (1992, p. 177), “uma genuína teoria de ação e atores trabalha com categorias de ação e potenciais de interação como a espontaneidade, a criatividade, o aquecimento, o momento, o encontro”. A realidade é construída pela pessoa por meio de sua ação no mundo e significada por meio do outro. O que propiciou o encontro de Moreno com o pragmatismo foram as noções de ação, criatividade, auto-regulação e solução de problemas coletivos. A experiência é, tanto para Dewey quanto para Moreno, uma categoria muito importante. Dewey (1952) chegou a afirmar que a vida é constituída de experiências de toda sorte. Portanto, vida, experiência e aprendizagem são inseparáveis, pois simultaneamente vivemos, experimentamos e aprendemos. Assim, uma idéia forma-se verdadeira pelos acontecimentos, pelo processo de descoberta, pelo empírico. As origens do conhecimento encontram-se nas necessidades da ação. Os pragmatistas argumentam que se deve considerar como verdadeiro aquilo que mais contribui para o bem–estar da humanidade em geral, tomando como referência o mais longo prazo possível. A sociedade subjacente a Peirce, James e Dewey é a sociedade capitalista, estruturada sobre a realização de bens de produção e de consumo. Para eles, o homem e a sociedade estão submetidos às leis da oferta e da procura. Horkheimer (2000) afirma que a filosofia desses pragmatistas reflete o espírito da cultura comercial predominante, explicitada na atitude de ser prático. A sociometria de J. L. Moreno tem afinidades teóricas e metodológicas com o pragmatismo de Dewey e James. Relação indivíduo–sociedade: uma visão microssociológica Na obra Quem sobreviverá?, Moreno analisa a sociedade, fazendo uma microssociologia, com abordagem a partir de pequenos grupos. A experiência de Hudson 75 levou Moreno a ver toda a sociedade em termos de grupos. Por isso, ele não parte do indivíduo, mas do átomo social. Este, e não o indivíduo constitui, para Moreno (1994, p. 159), a menor unidade social. “Talvez a mente não distraída pelos fatos brutos na sociedade poderá descobrir a menor unidade social viva, impossível de ser dividida, o átomo social”. Então, a sociedade seria a soma, a interpenetração e a multiplicação dinâmica dos átomos sociais. Em suma, o átomo social corresponde ao ponto de transição entre o indivíduo e a sociedade. Ele é o elemento capaz de formar associativamente outras configurações mais complexas. Nesse sentido, Moreno (1992, p. 182) escreveu: A matriz sociométrica consiste em várias constelações: tele, o átomo, o superátomo ou molécula (diversos átomos interligados), o ‘socióide’ que pode ser definido como agrupamento de átomos interligados a outros através de correntes ou de redes interpessoais. Essa visão mecanicista, atomista e associacionista de Moreno vem de sua herança positivista. Ele compreendeu a derivação das formações sociais mais complexas a partir das mais simples. Assim, os métodos sociométricos foram desenvolvidas para pesquisar fenômenos intra e intergrupais. A propósito desse assunto, Naffah Neto (1997, p. 162) escreveu: “Se é impossível apreender a estrutura social em sua totalidade, cumpre formá-la por associação”. Assim, a dinâmica da sociedade seria a irradiação ou o deslocamento da dinâmica específica de seus núcleos microssociológicos – os átomos sociais. Segundo Moreno (1994a, p. 162), “podemos olhar para um átomo social em duas direções: de um indivíduo para a comunidade e desta para ele”. Nessa visão, há uma tendência de separar indivíduo e sociedade e resolver as situações no indivíduo ou na sociedade. É a ressonância da psicologia social positivista, que estuda o indivíduo isoladamente. Em contraposição a essa visão cindida, Vigotski elabora a noção de sujeito e de intersubjetividade, em que o social e o individual estão intrinsecamente relacionados, de forma que um se constitui a partir do outro: a arte é o social em nós, e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado, isto não significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e essência sejam individuais. É muito ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como existência de uma multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas um homem e as suas emoções pessoais. (VIGOTSKI, 2001b, p. 315) 76 O pensamento cindido está a serviço da sociedade burguesa, em que os meios sociais são apenas meio de realização dos desejos privados dos indivíduos. Essa é uma condição da sociedade capitalista para constituir o indivíduo livre, competitivo, para que ele possa vender sua força de trabalho a quem ele quiser. Portanto, o indivíduo é valorizado na competição, na capacidade de produzir e de consumir. Segundo Marcuse (1979), numa sociedade cercada pela administração total, a vida tem aparência de livre, mas apenas na medida em que é livre a escolha de mercadorias. O que não se mercantilizou perde a força na vida social desse tipo de sociedade. É na sociedade capitalista que aparece a concentração das pessoas em grandes cidades, para melhor produzir. Mas as pessoas estão sós. Essa é a condição imposta pela competição inerente a essa sociedade. A condição universal de exteriorização do ser humano para ser reconhecido é, na particularidade do capitalismo, feito pela individualização. Então, a condição de ser humano, nesse sistema, é ser individualista. Essa condição afeta a possibilidade de surgimento do sujeito. A individualização nega ao indivíduo o direito de identificação, e dificulta a formação de um sujeito questionador, pois à sociedade capitalista interessa formar um indivíduo que vá aderir a ela e mantê-la. Nesse sentido, a psicologia e a psicologia social positivista têm como promessa solucionar a contradição, adaptar o indivíduo e torná-lo feliz nessa sociedade. Esse indivíduo é um ser-substância do qual se pode descrever e coisificar as atitudes e comportamentos. Ele é estático e acabado, simples conseqüência da “natureza humana”. Para Bock (1999, p. 37), o positivismo “rechaçou o indivíduo como categoria de pensamento, entregando-o aos cuidados da psicologia do ajustamento e da adaptação”. Essa separação entre indivíduo e sociedade fundamenta-se na concepção de natureza humana predeterminada e a–histórica. Assim, o ser humano, portador de uma natureza que o define a priori, independentemente de suas relações sociais, seria um ideal natural a ser perseguido e nunca um ser em desenvolvimento em determinadas condições. Mas, para a perspectiva crítica, indivíduo e sociedade são indissociáveis, formam uma unidade em que o indivíduo está, o tempo todo, na sociedade e a sociedade está, o tempo todo, no indivíduo. Essas duas dimensões são interdependentes (RESENDE, 1987). O indivíduo é um ser social, em permanente relação com os outros e somente nessa relação se constitui, se faz sujeito, se humaniza. Segundo Resende (1987, p. 20), “a 77 humanização não é, portanto um processo natural, mas é um processo histórico”. Assim, não existe a natureza humana; o ser humano é constituído pela sociedade, pela história. Nesse sentido, Marx (1978, p. 103) escreveu: “indivíduos produzindo em sociedade, portanto a produção dos indivíduos é determinada socialmente, é por certo o ponto de partida”. Moreno propôs-se, por meio de investigação direta e no presente, estudar as tensões sociais. Ele estudou as formações sociais no “aqui” e “agora”, no momento em que nascem e se impõem ao indivíduo. Assim, não há, em sua abordagem, uma dimensão histórica; portanto, o conflito surge dissociado de sua dimensão estrutural e histórica. De acordo com Naffah Neto (1997), Moreno não conseguiu reconhecer o alcance da teoria de Marx e seus seguidores. Por isso, acabou rejeitando os fundamentos marxistas. Ele acreditava que a história real é aquela que se vive. No entanto, ele não percebeu que essa realidade vivida é fixada por uma estrutura opaca, menos visível, mas que é determinante das relações sociais, a qual a teoria marxista se esforça para compreender e desvelar. Moreno estava, segundo Naffah Neto (1997, p. 161), tão preocupado “em defender a especificidade dos fenômenos microssociológicos, que acabou por rejeitar qualquer tipo de teoria que pretendesse descrever a estrutura da sociedade como um todo, inclusive o próprio materialismo dialético”. Ao discordar da teoria marxista para explicar a estrutura social, Moreno teve de elaborar a teoria da tricotomia social para explicar o universo social. Para Moreno (1992, p. 181), o universo social diferencia-se em três dimensões: A sociedade externa, a matriz sociométrica e a realidade social. Por sociedade externa, quero dizer todos os agrupamentos palpáveis e visíveis, grandes ou pequenos, formais ou informais que compõe a sociedade humana. Por matriz sociométrica, quero dizer todas as estruturas sociométricas invisíveis ao olho macroscópico, mas que se tornam visíveis através do processo sociométrico de análise. Por realidade social, quero dizer a síntese dinâmica e a interpenetração das duas tendências já mencionadas. Trata-se de uma teoria em que as três instâncias são consideradas separadamente, passando uma idéia fragmentada de que isso é natural e não determinado historicamente. Para Naffah Neto (1997, p. 158), essa visão é uma recuperação da tradição bergsoniana, em que “a sociedade é concebida como um todo homogêneo em que a história se faz pelo modelo biológico da evolução criadora”. 78 A proposta de Moreno de colocar a matriz sociométrica em oposição à sociedade externa e a realidade social como síntese dialética das duas dimensões anteriores só foi desenvolvida parcialmente. De acordo com Naffah Neto (1997), Moreno ficou somente na descrição dessas dimensões. A propósito da articulação entre as três dimensões da sociedade, Moreno (1992, p. 183) afirmou: A própria realidade social é o entrelaçamento e a interação dinâmicos da matriz sociométrica com a sociedade exterior, a externa. A matriz sociométrica não existe por si própria, assim como a sociedade externa não existe por si; esta última é continuamente modificada pela estrutura subjacente. Nessa concepção, a sociedade externa mascara, turva a matriz sociométrica; porém essa realidade oculta pode ser revelada por meio de estudos sociométricos. Moreno teve o mérito de identificar a camuflagem, o caráter arbitrário e conservador das instituições sociais e revelá-los. Mas, como a experiência de Hudson levou Moreno a analisar toda a sociedade em termos de grupos, a sua ótica ficou circunscrita aos horizontes destes. Assim, Moreno não conseguiu questionar a que serve essa ocultação e dissimulação da sociedade, permanecendo a estrutura social burguesa encoberta por suas máscaras ideológicas. Aqui, mais uma vez, evidencia-se a falta da teoria marxista, para que Moreno pudesse ter uma compreensão macrossociológica da sociedade. Foi Marx que mostrou, por meio da análise crítica do capitalismo, que o fenômeno de reificação é conseqüência necessária desse regime de produção e não um fenômeno natural. Nesse sentido, Naffah Neto (1997, p. 180) conclui que “a sociometria deve finalmente reconhecer seu campo necessariamente microssociológico, pois, por si mesma ela não pode dar conta de uma visão estrutural da sociedade”. Seria possível uma articulação entre o marxismo e a sociometria? Grupo: concepção natural e atomista Com a sociometria, Moreno deu a sua contribuição para se compreender a estrutura e funcionamento dos grupos. Entender os fenômenos grupais é fundamental para qualquer sociedade, pois o grupo tem uma força na estruturação da vida social. O grupo é a base em que o indivíduo se mantém e é um instrumento, na medida em que o utiliza para satisfazer suas necessidades psíquicas ou aspirações sociais. O grupo tem, portanto, grande importância para o desenvolvimento psicossocial 79 do sujeito, como elemento contribuinte de saúde ou de doença mental (MARTÍN, 1984). Moreno concebe o homem em relação. Essa dimensão relacional da sua teoria revela-se em toda a sua obra e tem uma clara influência marxista, da qual ele vai posteriormente afastar-se para adotar uma posição positivista. Para ele, o átomo social é que dá origem ao grupo. Assim, explicou que “de acordo com o princípio de formação de átomos sociais, cada indivíduo relaciona-se a determinado número de outros indivíduos” (MORENO, 1994a, p. 291). O grupo consiste, para Moreno, em uma rede complexa de átomos sociais. Portanto, para estudar o grupo e suas implicações, deve-se partir do átomo social e penetrar no coletivo. Moreno trabalhou com a relação dicotomizada, não conseguindo identificar que um sujeito constitui-se na relação com o outro, em uma intersubjetividade. Entretanto, Moreno ficou circunscrito à pesquisa dos grupos, sem qualquer análise do momento histórico. Desse modo, os fenômenos grupais são por ele descritos como naturais e universais. Átomo social: a origem do grupo O termo grupo foi significativamente usado por Moreno na obra Quem sobreviverá? Porém, estranhamente, ele não deixa clara a sua definição, empregando o termo com o sentido de conjunto de indivíduos. Isso talvez se explique pelo fato de o autor já haver conceituado grupo, em uma obra anterior: Group method and group psychoterapy: sociometry monographs nº 5, Moreno (1931)21, citado por Knobel (2004, p. 140), explicou o significado de grupo como “uma pluralidade de pessoas que está em constante relacionamento, por certo período de tempo”. Moreno não tinha a pretensão de desenvolver uma teoria geral sobre os grupos ou sobre a sociedade. A obra Quem sobreviverá? foi resultado de suas experiências na aplicação do teste sociométrico e de sua intenção terapêutica. De acordo com Martín (1984), após a Revolução Francesa e industrial, surgiram várias teorias sobre a sociedade. Mas Moreno adotou uma atitude mais pragmática para estudar os grupos, podendo ser esta outra explicação para a ausência de teorização sobre grupo. 21 Como se trata de uma obra monográfica de difícil acesso, não traduzida para o português, não foi possível consultá-la diretamente. 80 Moreno (1994), ao estudar os grupos, tinha um interesse tanto sociológico quanto terapêutico. As relações entre os membros dos grupos levaram-no a questionar os problemas da interação entre as pessoas. Assim, ele procurou investigar a complementaridade e o desencontro das relações. E, no seu entendimento, “teorias bem desenvolvidas da espontaneidade e do processo de aquecimento devem preceder qualquer programa de pesquisa de interação” (MORENO, 1994a, p. 202). Com essa afirmação, ele retoma as noções de espontaneidade e de aquecimento, utilizadas no teatro espontâneo vienense para aplicá-las à pesquisa sociométrica. A sociometria, ao focalizar as relações, deu ênfase à correlação ativa entre os componentes individuais de um grupo, com sua estrutura e funções. O processo de aquecimento propicia a manifestação da espontaneidade e da criatividade, que, por sua vez, vão ajudar na constituição do sujeito por meio das relações sociais, permitindo a operacionalização da sociometria. O princípio que colocou a sociometria em movimento foi o conceito gêmeo de espontaneidade e criatividade, não como abstrações, mas como função em seres humanos reais e em seus relacionamentos. Aplicado ao fenômeno social, clarificou o fato de que seres humanos não se comportam como bonecos, mas são dotados, em grau variável, de iniciativa e espontaneidade (MORENO, 1992, p. 151-152). Com o método sociométrico, Moreno retirou os conceitos de espontaneidade e criatividade do meio metafísico e filosófico e trouxe-os para o meio empírico. A partir de experiências com diferentes tipos de grupo – bebês, crianças, prostitutas, refugiados, presos etc. – criou o método da sociometria, o teste sociométrico. Para ele, “o teste sociométrico é o instrumento que examina estruturas sociais através da medição das correntes de atração e repulsão que existem entre os indivíduos em um grupo” (MORENO, 1992, p. 194). O teste sociométrico permite conhecer a posição das pessoas nos grupos, pois, evidencia aquelas com quem um sujeito deseja associar-se e quantas desejam associar-se a ele. Desse modo, pode-se determinar o contorno externo de um átomo social. Esse conceito nasceu da aplicação do teste sociométrico e foi definido por Moreno (1994b, p. 215) nos seguintes termos: Definição operacional – devemos localizar todas as pessoas que determinado indivíduo escolheu e todos que o escolheram, todos a quem ele rejeitou e todos aqueles que o rejeitaram, bem como todos os que não retornaram nem as 81 escolhas nem as rejeições deste indivíduo. É esta a matéria “prima” do átomo social de determinada pessoa. O átomo social, conforme explica Moreno (1994a), é o grupo em que o indivíduo está inserido. É o núcleo formado por todos os indivíduos com quem uma pessoa se relaciona emocionalmente (por aproximação ou afastamento), ou que estão vinculadas a ela em dado momento. As pessoas que lhe são indiferentes ficam fora do átomo social. A estrutura do átomo social está em permanente mudança, pois as relações mudam. Moreno focou o indivíduo no grupo, porque percebeu que este reage de uma forma quando está sozinho e de outra quando em grupo. Este último é tomado por Moreno, não como uma entidade, mas como cenário, – embora sua perspectiva fosse ainda cindida, separasse, de certo modo, indivíduo e grupo. De acordo com Resende (1987, p. 17), “quando se fixa em qualquer um desses elementos, e não na íntima relação que os constitui, é a reflexão abstrata que confirma o arcabouço ideológico burguês.” Afinal, a sociedade capitalista depende de um indivíduo autônomo, “livre” para oferecer sua força de trabalho no mercado. A propósito desse aspecto, Moreno (1994b, p. 119) fez a seguinte comparação: Elétrons têm o mesmo peso e a mesma carga de eletricidade quando isolados, porém, se estiverem ligados uns aos outros produzindo um átomo, começam a demonstrar individualidade. O mesmo se dá com os homens que, quando ligados entre si formando um grupo, exibem “diferenças” individuais que pareciam inexistir, anteriormente. Essa comparação demonstra a influência da fundamentação atomista na postura sociométrica. Para Naffah Neto (1997), é bem clara a visão atomística que Moreno tem da sociedade. Moreno procurou adotar uma postura de equilíbrio, sem perder de vista nem o indivíduo nem o grupo, não obstante ele os tenha compreendido como elementos cindidos. Assim, com base no fenômeno que chamou de átomo social, pôde compreender as relações e os processos subjetivos que constituem a forma de cada membro do grupo vivenciar seus relacionamentos. Além disso, Moreno (1992, p. 158) demonstrou sua visão associacionista, quando afirmou que os átomos sociais entrelaçavam-se, formando as redes sociométricas: 82 Enquanto certas partes desses átomos sociais parecem permanecer enterradas entre indivíduos participantes, algumas unem-se a partes de outros átomos e estes unem-se a outros, novamente, formando correntes complexas de inter-relações que são chamadas, em termos de sociometria descritiva, redes sociométricas. Portanto, as redes são elementos essenciais na constituição do grupo e, por meio das correntes psicológicas, influenciam os membros dos grupos. Ao tratar desse tema, Moreno (1994a, p. 283) esclarece que: Correntes psicológicas consistem em sentimentos de determinado grupo em relação a outro. A corrente não é produzida em cada indivíduo, separadamente; não se encontra pronta em todos, esperando, apenas, ser somada para chegar a resultado final. A contribuição de cada indivíduo difere da dos outros e o produto final não é, necessariamente, idêntico às contribuições pessoais. Porém, da interação espontânea destes contribuintes diferenciados teremos, como resultado, correntes psicológicas poderosas. Ele classificou as correntes psicológicas segundo dois critérios, subdivididos em cinco aspectos cada um: 1. suas causas: a) correntes sexuais, b)correntes raciais, c) correntes sociais, d) correntes industriais e e)correntes culturais; 2. o princípio de sua formação: a) correntes positivas e negativas; b) correntes espontâneas e contracorrentes; c) correntes primárias e secundárias; d) correntes iniciais e terminais e e) correntes principais e laterais. Essas correntes psicológicas são amparadas pelas correntes socioemocionais ou afetivas que se referem às correntes de atração, rejeição e indiferenças que tecem a rede psicológica pela qual as mensagens circulam. As redes sociométricas são determinadas por variáveis subjetivas e por diversos papéis que cada um desempenha. A inserção de uma pessoa em uma dada rede sociométrica vai depender da quantidade de papéis desenvolvidos que ela tem, pois é por meio destes que se estabelece o vínculo. Segundo Knobel (2001), por meio dos papéis, é possível mapear o conjunto de relações de uma pessoa. Conforme o papel pode-se determinar, para um mesmo participante do grupo, vários tipos de átomo social: a) átomo familiar: membros de sua família; b) átomo profissional: pessoas significativas do seu trabalho; c) átomo sexual: quem lhe desperta interesse sexual ou com quem mantém relações sexuais; 83 d) átomo social total: todas as pessoas importantes, segundo vários papéis e critérios. O papel tem uma importante função como meio de comunicação entre as pessoas. Isso se deve ao caráter social e relacional dos seres humanos. Para Moreno (1994a, p. 198): “a habilidade em desempenhar papéis é essencial para a comunicação adequada e para o desenvolvimento do eu social”. Portanto, o desempenho de papel possibilita à pessoa reconhecer a si própria e ao outro. O eu é formado pelos papéis, que estão em constante interação. Estes são, para Moreno (1992), precursores do eu. O conceito de papel na obra moreniana traz uma visão dicotomizante: “Todo papel é fusão de elementos particulares e coletivos; é composto de duas partes – seus denominadores coletivos e seus diferenciais individuais” (MORENO, 1992, p. 178). Essa definição interconecta a concepção de papel, conceito social, com a concepção de espontaneidade, de conteúdo individual, e evidencia a visão psicossocial que Moreno tem do ser humano. Por meio dos papéis desempenhados, o indivíduo revela o grau de diferenciação que uma cultura específica alcançou dentro dele, ou seja, sua interpretação dessa cultura. Mas, de acordo com Lane (1986b, p. 87), se “os papéis são desempenhados como ‘naturais’, os indivíduos têm pouca consciência de sua participação no grupo: as coisas acontecem como ‘devem ser’; ou porque alguém não cumpriu com o seu papel”. Nesse sentido, quando um determinado sujeito expressa seu desejo de estar com um outro, para compartilhar algo em comum, e encontra respostas afetivas compatíveis e harmônicas, cria-se um trânsito afetivo articulado e vivaz entre eles, pois o objetivo é evitar o conflito e o grupo caracteriza-se pelo esforço para preservar a alienação de seus membros. Classificação sociométrica dos grupos Como Moreno adotou o método positivista, ele se limitou a descrever os tipos de grupos a partir do que encontrou nas aplicações do teste sociométrico. Por isso, não conseguiu apreender as mediações sociais e históricas do fenômeno, uma vez que o método não lhe possibilitava tal tipo de análise. Moreno (1994a, p. 109) escreveu: Não tratamos com um indivíduo separado da situação sociodinâmica na qual mora, na qual aparece, continuamente, atraído ou rejeitado por outros indivíduos. O ponto crucial de nossa classificação é definir um indivíduo 84 em relação a outros e, no caso dos grupos, sempre, um grupo em relação a outros. Isto é classificação sociométrica. A abordagem não foi esquema teórico mas produto de indução empírica que cresce, logicamente, a partir de nossa norma inicial de descobrir e controlar as correntes psicológicas em determinada comunidade. Para efeitos didáticos, pode-se identificar, na obra Quem sobreviverá?, os seguintes tipos de grupos: a) grupos formais: são aqueles visíveis e ancorados na lei, por exemplo: família, escola, trabalho etc.; b) grupo sociométrico: é o que surge das relações afetivas de atração, rejeição ou indiferença entre seus membros. Normalmente, essas relações não são evidentes, elas são inconscientes e podem ser conhecidas mediante a aplicação do teste sociométrico; c) grupos sociais: é a síntese da estrutura do grupo formal com a estrutura do grupo sociométrico.22 Por meio da experiência com a comunidade de Hudson, Moreno (1994a) identificou várias características de organização grupal: a) introvertida: quando a maioria das escolhas converge para a casa, enquanto a minoria delas é feita fora do grupo; b) extrovertida: quando a maioria das escolhas é feita, persistentemente, em cada fase fora, enquanto a minoria das moças, em cada fase, escolhe pessoas de dentro da casa. c) equilibrada: quando a minoria das escolhas oscila entre o grupo interno e o externo, sem apresentar tendências definidas; d) exteriormente agressiva: se o grupo, em sua maioria, apresenta uma atitude hostil para com um ou vários grupos externos; e) interiormente agressiva: quando a tendência hostil predomina no interior do grupo. Essa investigação quantitativa e tipificante de Moreno revela uma visão acrítica da sociedade, pois fixa essas realidades como se fossem autônomas, distintas e independentes. Ele não consegue perceber a mediação ideológica e reproduz os grupos como fatos inerentes à natureza do homem. Entretanto, não existe natureza humana, o ser 22 Essa relação foi explicada no item dedicado à categoria indivíduo–sociedade. 85 humano é constituído pela sociedade, pela história, pois, além de biológico, ele é também histórico e, portanto, produto mutável da evolução das sociedades. As pesquisas sociométricas levaram Moreno a compreender o desenvolvimento dos grupos. Nesse sentido, ele afirmou: As três direções ou tendências de estrutura que descrevemos para grupo de bebês – isolamento orgânico, diferenciação horizontal e vertical – são características fundamentais no desenvolvimento de grupos. Estas tendências aparecem várias vezes, não importa o quão extenso ou complexo o grupo se torne (MORENO, 1994a, p. 84). Essas fases de desenvolvimento acontecem de forma alternada e constante na vida dos grupos. Segundo Knobel (1996), o foco é o coletivo, e não apenas a transposição de fenômenos individuais para os grupos. Essas três dimensões do desenvolvimento grupal podem ser assim detalhadas: a) isolamento orgânico: caracteriza o primeiro estágio do grupo, em que as pessoas não se conhecem; há poucos contatos e não existe ação conjunta; b) diferenciação horizontal: é o segundo estágio de desenvolvimento do grupo, em que a ação é individual, mas voltada para os outros; as inter-relações são determinadas pelo grau de proximidade ou distanciamento físico; c) diferenciação vertical: nesse estágio, a cooperação começa a ser possível, pois já aparecem objetivos comuns a subgrupos; há necessidade de pertencer e surgem os líderes e os que se deixam liderar, enquanto alguns permanecem isolados. Com o estudo da comunidade de moças, em Hudson, Moreno (1994b) observou que os grupos tinham estruturas sociais particulares e princípios regulares, sob a influência das forças supra-individuais e sociais que atuam no destino dos participantes do grupo. Essas regularidades fizeram que Moreno formulasse algumas conclusões gerais, que denominou “leis”. De acordo com a lei sociogenética, as estruturas grupais evoluem das mais simples para as mais complexas. Essas estruturas relacionais aparecem na seguinte ordem: par, cadeia, triângulo e círculo. A propósito da lei sociogenética, Moreno (1994b, p. 186) explicou: Por padrões sociais simples queremos dizer sociometricamente simples, padrões resultantes de um mínimo de critérios, tais como entre bebês e entre sociedades pré-tecnológicas. Ao dizer complexos, queremos dizer padrões sociometricamente complexos, resultantes de grandes números de critérios. 86 A lei sociodinâmica revela que, nos grupos, a distribuição do afeto é desigual. Há uma concentração natural do afeto, de modo que o membro isolado ou com baixo status sociométrico em um grupo tem a tendência de estar isolado também em outros grupos a que pertença. De outra forma, aqueles membros com alto status sociométrico (pessoas integradas) em um grupo, têm a tendência de manter essa posição nos demais grupos sociais. Moreno (1994a, p. 216) completa essa idéia, ponderando que a “lei sociodinâmica afirma que a distribuição dos resultados sociométricos é positivamente inclinada. A tendência, em qualquer grupo, a fazer com que mais escolhas favoreçam poucos membros é chamada de efeito sociodinâmico”. Para ele, a inserção dos isolados não se resolve nem com o tempo nem com a evolução do grupo, mas com a intervenção terapêutica. Ao estudar a formação dos grupos, Moreno (1992) parte da hipótese de que há uma unidade na espécie humana. E se ela é uma, devem emergir tendências entre diferentes partes dessa unidade, ora afastando-as, ora aproximando-as. Assim, a lei de gravidade social norteia o ser humano a organizar-se, desenvolver-se e distribuir-se no espaço. Sobre essa lei, Moreno (1994a, p. 294) escreveu: O caráter dinâmico das correntes psicológicas que levam indivíduos e grupos à diferenciação cada vez maior produz, também, suas barreiras e controles. Um dos processos, o de diferenciação, separa os grupos; o outro, de transmissão e comunicação, os une. Estes ritmos alternados de forças, de contração e expansão, sugerem a existência da lei de gravitação social. 23 Outro princípio para manter o funcionamento operativo do grupo é a sua coesão. Para Knobel (1996), a coesão de um grupo depende da integração dos isolados, pois, quando a força dos não-integrados é maior no grupo, este pode desfazer-se ou não atingir seus objetivos. Depois de feitas tentativas de integrar um membro isolado e, mesmo assim, ele não encontrar seu lugar no grupo, deve-se ajudá-lo a sair. Por meio experimental, Moreno (1994a) observou que uma pessoa rejeitada no grupo podia ser incluída em outro, com outra estrutura de valores, e adaptar-se. 23 Grifo do autor 87 A propósito da coesão sociométrica de grupos, Moreno (1994a, p. 297) escreveu: A hipótese de que, quanto maior for o número de pares mútuos, mais ampla será a taxa de interação e a probabilidade de alta coesão de grupo, já foi formulada. Quanto maior for o número de indivíduos envolvidos em comunicações de tele positiva, maior será a coesão de grupo. Há, entretanto, limitações importantes a esta hipótese. Por exemplo, a possibilidade de que doze indivíduos formem 6 díades, cada uma isolada da outra; tal grupo teria baixa coesão, não obstante ter número comparativamente alto de formação de díades. Este número tem de ser maior do que metade dos membros de modo a causar o aparecimento de triângulos, correntes, estrelas e estruturas mais complexas. Os conceitos de coesão, integração grupal e liderança foram desenvolvidos para controlar o desempenho de papéis e, assim, estes não ameaçarem a ordem instituída. Nessa perspectiva, os grupos seriam puros e os papéis seriam desempenhados como “naturais”. Assim, os valores implícitos reproduzidos são: o individualismo, a harmonia e a manutenção. Ficam, desse modo, camufladas as determinações históricas dos papéis, passando a idéia de que os fenômenos grupais são invariáveis e independentes da ação humana, sendo, portanto, regulados por leis naturais. Fica, mais uma vez, evidente a influência da psicologia social positivista sobre Moreno. Liderança Para Moreno (1994b, p. 198), “liderar é função da estrutura grupal. O índice de poder de determinado líder depende dos índices de poder das pessoas que são atraídas e influenciadas por ele”. Nesse sentido, para avaliar a liderança de uma pessoa deve-se considerar sua quantidade de atrações e rejeições no grupo e também quem a escolhe e a rejeita e qual o alcance das suas redes de influência, pois a distribuição de poder depende das correntes emocionais. Nesse sentido, Moreno (1994a) constatou que a influência dos líderes é maior em grandes grupos, porque, nestes, o sujeito pode ter várias funções diferentes ao mesmo tempo, dirigidas a inúmeras pessoas distintas. Por meio da classificação sociométrica, foi possível determinar o papel de liderança nos grupos. Sobre esse assunto, Moreno (1994a, p. 259-260) afirma: Os grupos sociais desenvolvem suas lideranças proporcionalmente às suas necessidades. [...] se ocorrer 88 superprodução de líderes no grupo pode haver sérias complicações no equilíbrio psicológico deste e vários deles permanecerão isolados, privados sua parte nas correntes psicológicas que circulam através da comunidade. Eles irão gerar descontentamento, produzir facções e estimular agressões. Moreno constatou também que se um amigo líder obtinha êxito em sua estratégia de liderança, um novo líder não poderia quebrar essa influência abruptamente, pois ela ainda se refletia na organização e na inter-relação dos seus membros. Assim, Moreno (1994a, p. 245) afirma: “estruturas antigas cedem, gradualmente, lugar a estruturas novas”. A pesquisa sociométrica revelou também, por meio dos sociogramas, três estruturas de liderança, definidas por Moreno (1994a/1994b) da seguinte forma: a) líder sociométrico popular: exerce, em termos de quantidade, grande influência direta, mas esta se limita à área de sua própria cabana, pois aqueles que o escolheram têm baixo status sociométrico; b) líder sociométrico poderoso: exerce uma influência direta média, mas, por meio da relação com pessoas influentes na comunidade, impõe, indiretamente, a sua influência; ocupa uma posição de proeminência na coletividade, pois aqueles que o escolheram têm alto status sociométrico; c) líder sociométrico isolado: é uma única relação tele que produz, por meio de ligações indiretas, grande rede de influências; pode funcionar como um regulador invisível, exercendo, indiretamente, ampla influência na comunidade. Moreno (1994b) esclarece que não se pode confundir o líder sociométrico com o líder do senso comum, pois este está alicerçado no papel carismático e mágico. Ele adverte que, para compreender o complexo processo de liderança, não se pode ignorar os conhecimentos desenvolvidos pela sociometria. Moreno, quando explica o fenômeno da liderança, a partir de seu experimento sociométrico em Hudson, apenas descreve o que observou, ou seja, aquilo que era aparente sem identificar as relações de poder que existiam na comunidade e na sociedade. Assim, não analisa o movimento de submissão do grupo e nem a ideologia que permeava a atribuição de poder. Essa perspectiva reproduz relações mantenedoras do status quo. Esses pressupostos levam, segundo Lane (1986b, p. 92-93), à 89 reificação do grupo, como processo “natural” e “universal”, reproduzindo a ideologia dominante que define papéis grupais em termos de complementaridade, de produtividade e de coesão, sem que a instituição que os engendra nem suas determinantes históricas sejam consideradas na análise. Portanto, as explicações dos fenômenos de grupo estão nos processos grupais, na sociedade, na história e nas mediações grupais e não no comportamento individual no grupo. Moreno vê o ser humano como produto das relações grupais. Entretanto, não chega a ver essas relações como produzidas a partir da condição histórica de uma sociedade, passando uma idéia de que o grupo é “puro”, “neutro”. Essa neutralidade não existe. Quando Moreno, usando o teste sociométrico, se propõe a avaliar a liderança de uma pessoa no grupo, por meio da qualidade de atrações e rejeições, ele quer medir essa liderança para alguma coisa, o que em si já mostra que a sociometria e o teste não são neutros. Se o líder pode influenciar o grupo, por meio de suas correntes emocionais, e se, mudando o critério de escolha no grupo, pode-se alterar as classificações sociométricas, ou seja, mudando a padronização do teste pode-se beneficiar ou prejudicar uma pessoa, um grupo, uma classe social, isso demonstra que o teste e o seu gráfico, o sociograma, não são instrumentos neutros e nem os seus resultados são “naturais”. Sobre a visão naturalizante, inclusive nas emoções, Sawaia (1995, p. 48) ensina que: necessidade e sentimento não são pulsões naturais e nem funções unicamente orgânicas e biológicas universais, são representações sociais que, além da singularidade, expressam determinações sociais, morais, éticas e ideológicas complexas. Portanto, reproduzir a verdade tal qual ela é, como única, natural e neutra é ocultar a realidade. E esse procedimento tem um caráter ideológico, pois esconde a determinação social e histórica do ser humano. Psicoterapia de grupo No estudo dos grupos, Moreno demonstrou interesse psicossociológico e terapêutico. A abordagem terapêutica é uma constante em sua obra. Para ele, “a psicoterapia de grupo é o método que protege e estimula os mecanismos de auto- 90 regulagem de grupos naturais – através do uso de um homem como agente terapêutico do outro e de um grupo como agente terapêutico do outro” (MORENO, 1992, p. 58). A preocupação de Moreno (1992, p. 117) com os grupos enfermos pode ser constatada na seguinte afirmação: “um procedimento verdadeiramente terapêutico deve ter como objetivo toda a espécie humana”. Utopia ou necessidade? Ele identifica o interrelacionamento como o foco de desajustamento. Por isso, propõe como objetivo de um procedimento psicoterapêutico verdadeiro é tratar todas as pessoas. A sociometria veio impulsionar e dar o caráter científico positivista à psicoterapia de grupo, tendo no teste sociométrico o instrumento para isso. A esse propósito Moreno (1992, p. 59) escreveu: A psicoterapia de grupo foi impelida pelos métodos de avaliação social, ou seja, pela sociometria. [...] Em seu sentido mais amplo, a sociometria compreendia não somente os testes sociométricos, mas todas as formas de avaliação social, entrevista de grupo e dinâmica de grupos subjacentes. Antes do advento da sociometria ninguém sabia como isolar, prevenir ou prever os distúrbios dos grupos. [...] os sociogramas de grupo é pelo menos um modo de calcar a terapia de grupo em base científica. A psicoterapia de grupo desenvolveu-se junto com a idéia de atuar. E com a pesquisa sociométrica, Moreno ofereceu uma contribuição teórica para a inteligibilidade das relações humanas, dos grupos e da psicoterapia de grupo. O grupo psicoterápico, para Moreno (1992), torna-se um espaço privilegiado para mudanças ou transformações, pois propicia a reflexão pelo espelhamento recíproco, em que um indivíduo é agente terapêutico do outro. Para tanto, é necessário um clima de continência e liberdade que leva à superação de preconceitos e atitudes estereotipadas. Apesar de Moreno focar as relações, ainda assim, as idéias presentes nos trabalhos psicoterapêuticos estão afinadas com a idéia do Barão de Münchhausen. Segundo Bock (1999), esse pensamento positivista defende que o homem e suas ações dependem do próprio homem, de seu esforço e de sua vontade. Essa posição é conservadora, pois circunscreve o indivíduo como causa e efeito de sua individualidade, não estabelecendo a relação com a contradição das condições históricas da sociedade, em que o grupo está inserido. Nesse sentido, Lane (1986b, p. 94) escreveu: A conscientização que propõe atingir pela práxis nada mais é que um processo terapêutico tradicional (autoconhecimento) sem que necessariamente seja um 91 processo de conscientização social onde determinações históricas de classe e as especificidades da história individual se aclaram e se traduzem em atividades transformadoras. [...], pois se apenas contradições entre o “interno” e o “externo” são analisadas, passa despercebida a reprodução das relações sociais necessárias para que as contradições não emerjam nem sejam superadas. Contudo, Moreno trouxe para o trabalho com o grupo a integração do pensamento e da emoção na ação dramática. E este é um diferencial para a ciência das relações humanas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Afinal, qual é a psicologia social que se evidencia na obra Quem sobreviverá? elaborada por J. L. Moreno? As reflexões desenvolvidas neste estudo no intuito de responder essa questão apoiaram-se na abordagem sócio–histórica, partindo do contexto histórico social em que a obra foi escrita. Para Vigotski (2001a), o próprio desenvolvimento do ser humano depende diretamente do desenvolvimento histórico da sociedade. Ele chamou a atenção para o fato de que a análise das atitudes das pessoas deve ser baseada no materialismo histórico-dialético. Como um processo dialético, o desenvolvimento pressupõe uma periodicidade e a transformação qualitativa das ações, diretamente relacionadas a fatores externos e internos. Moreno saiu da Europa, onde se encontrava uma tendência fenomenológica, encontrou nos Estados Unidos uma concepção pragmática e cedeu a ela. Ele concentrou os estudo no grupo, pois o período pós-guerra (Segunda Guerra) proporcionou um foco no atendimento grupal, devido à demanda de clientes. Naquele momento histórico, emergiram estudos sobre grupo, preconceito, relações raciais, conflitos de valores, mudança de atitudes, liderança e opinião pública, pois essa era a demanda do ponto de vista da estrutura da sociedade norte-americana. Assim, a psicologia social, bem como a sociometria de Moreno, encontrou, naquele contexto, um campo fértil para o seu desenvolvimento. A Primeira Guerra Mundial foi importante também para o desenvolvimento dos testes psicológicos. Estes, no início, foram concebidos para aplicação individual, mas, com a Segunda Guerra Mundial, foi necessário criar o teste coletivo. A análise da obra Quem sobreviverá?, possibilitou a criação das categorias pragmatismo, ciência, indivíduo–sociedade e grupo, evidenciou a filiação da sociometria de J. L. Moreno à vertente de psicologia social positivista. Moreno adotou o pensamento científico positivista, que é pragmático. Preocupado com a eficiência, ele se ateve ao dado “objetivo”, puramente descritivo, procurando estabelecer leis e fazer previsão. Aplicou esses princípios aos fenômenos sociais e psicológicos. No âmbito das necessidades pragmáticas, essa abordagem matemática é útil, pois o conhecimento pragmático facilita a administração. Para o pragmatismo, as teorias e o conhecimento só adquirem significado na luta de organismos inteligentes com o seu 93 meio. Essa concepção de mundo condiciona o ser humano à situação ou ao ambiente em que vive e entende o mundo de modo objetivo, tangível, relativamente imutável. Dessa forma, ficam mascaradas a luta de classe e o processo de dominação social que embasa a sociedade capitalista, adequando-se meios e fins à racionalização dessa sociedade. O pragmatismo é a expressão do paradigma positivista. Logo, está voltado para os fatos, para a ação útil, para a experiência, com o objetivo de manter a ordem, o equilíbrio e a estabilidade social – ou seja, de manter a sociedade capitalista. A interface entre o pragmatismo e a sociometria de Moreno reúne os conceitos de ação, de experiência, de criatividade, de auto-regulação e de solução de problemas grupais. Nesse âmbito, a verdade é um processo de descoberta e tem de funcionar. Ela expressa um aumento do poder de agir em relação a um ambiente e é exercida como uma forma de experiência. Assim, a existência tende a tornar-se unidimensional, sem contrastes e conflitos. Talvez haja aqui uma conseqüência negativa do poder que é dado à ciência, na sociedade capitalista. Como é uma força produtiva e ideológica, leva, muitas vezes, a uma aceitação incondicional dos resultados que apresenta. Para Marcuse (1979), o contraste social nas sociedades capitalistas, deu-se pela tecnologia e ancora-se nas novas necessidades que esta gerou. Contudo, o caráter utilitário e a comercialização terminam por promover certa conciliação entre dominantes e dominados. O pragmatismo e a sociometria têm em comum o caráter ideológico, uma vez que ambos incorporam, de forma não dialética, os conceitos de conflito e de contradição, camuflando as diferenças de classes, a bidimensionalidade do pensamento. A harmonia do indivíduo e do grupo entraria em sintonia com a harmonia social. Os problemas e desadaptações dos indivíduos são vistos como conseqüência de questões ambientais ou familiares, não tendo nenhuma relação com a estrutura da sociedade capitalista. Assim, os distúrbios seriam a excessão dentro de uma sociedade que promove a liberdade, a igualdade e a fraternidade, ou seja, um todo equilibrado. O propósito desse pensamento é culpabilizar o ser humano pelo seu desajuste social e isentar a sociedade burguesa. Nesse sentido, a detecção sociométrica do isolado, do estrela (líder), dos pares, da corrente, do círculo etc. – ou seja, a classificação do grupo – vem ao encontro da necessidade de justificação social em face da marginalização de um grande contingente 94 populacional. A quantificação e a classificação das pessoas nos grupos desviam as indagações acerca da estrutura social. Esse movimento faz que a problematização se volte para o indivíduo e o grupo para tentar explicar por que a ampla maioria está excluída dos benefícios da sociedade capitalista, a qual surgiu da promessa de igualdade, liberdade e fraternidade. A psicologia, a psicologia social positivista e a sociometria apresentam a resposta em termos das diferenças dos indivíduos, dos grupos e dos critérios para a escolha sociométrica, respectivamente, sem considerar o contexto sóciohistórico. Assim, a sociometria, com a preocupação de mensurar as propriedades psicológicas dos grupos, alia-se à psicologia social positivista norte–americana e, ao mesmo tempo, é produto dela. Como pano de fundo, a inclinação para mensurar os grupos e realizar o reagrupamento da comunidade evidenciou, em um momento histórico que a promessa liberal de igualdade social não consegue mais se sustentar, diante de uma estrutura social injusta, que deixou à margem a grande maioria da população. A sociometria apresenta-se, nessa perspectiva, como um instrumento de classe, de justificação e de manutenção dessa sociedade. Demonstra, assim, sua filiação à forma positivista de fazer ciência, ou seja, fica circunscrito à descrição do dado imediato e reduzindo o pensamento a uma fórmula matemática, pois esta é tida como a única capaz de penetrar a realidade sem deturpá-la com “subjetividades”. Para Lane (1986a, p. 15), se a ciência ou a psicologia “apenas descrever o que é observado ou enfocar o indivíduo como causa e efeito de sua individualidade, ela terá uma ação conservadora, estatizante – ideológica – quaisquer que sejam as práticas decorrentes”. Com o dado imediato, o método positivista desconsidera a realidade histórica e social e evita as contradições. Servindo para ocultar as determinações sóciohistóricas do ser humano, desempenha, assim, um papel ideológico. A análise dos dados deve ser feita por meio da dialética, do antagônico. Assim, estes poderão revelar as mediações sociais e históricas do fenômeno, rompendo com a manutenção do mundo tal como está. A propósito do método dialético, Vigotski (2004, p. 392) afirmou: Toda aplicação do marxismo à psicologia por outras vias, ou a partir de outros pressupostos, fora dessa formulação [dialética], conduzirá inevitavelmente a construções escolásticas ou verbalistas e a dissolver a dialética em pesquisas e testes; a raciocinar sobre as coisas baseando-se em seus traços externos, casuais e secundários. 95 Em suma, a redução advinda do positivismo e da sociometria não deve ser aceita sem críticas. No entanto, é inegável que a sociometria pode servir como um ponto de partida para uma melhor compreensão do grupo, da microssociologia, pois a reprodução social também passa pelo indivíduo, pelo grupo. A micro e a macrossociologia estão interligadas, são produto e produtora uma da outra. Nesse sentido, Naffah Neto (1997, p. 196) ponderou: “Uma revolução econômica pode ser o alicerce e criar a infra-estrutura para uma nova sociedade; entretanto – e, nesse sentido, Moreno tem razão – ela não se completa sem uma revolução da cultura, da vida coletiva e dos próprios indivíduos nela implicados”. Assim, não se pode descartar o conhecimento acumulado sobre o pequeno grupo, o teste sociométrico, a sociometria ou tratá-los como se não significassem nada. Proposições de Moreno receberam outras releituras como o psicodrama analítico e o psicodrama triádico, este sendo a síntese entre Moreno, Freud e Lewin. Estas são referências que atestam o vigor das teses morenianas. E, além disso, trabalhar com os papéis e o grupo propicia o desenvolvimento da identidade social de cada um. É evidente, porém, que o conhecimento comprometido com a transformação não pode limitar-se a esse nível de abordagem. Por isso, é pertinente explorar a possibilidade de desenvolver uma teoria sociométrica a partir de uma psicologia social crítica. Para isso, é necessário identificar e transformar a função ideológica e camufladora dos papéis assumidos dentro de um grupo como naturais e possibilitar a tomada de consciência de que os papéis são determinados social e historicamente. Assim, a sociometria pode converter-se em um instrumento de ruptura com a racionalidade individualista da sociedade capitalista e propiciar efetivamente uma identidade e uma ação grupal, estabelecendo uma relação verdadeira, na qual a pessoa possa fazer-se um ser humano, condição que lhe é negada pelo individualismo. Nesse sentido, Naffah Neto (1997, p. 133) afirmou que, se a sociometria despojar-se “dos preconceitos ideológicos que a obstrui, pode constituir uma abertura realmente revolucionária no âmbito das ciências humanas”. Para isso, a sociometria deve considerar a função estruturante da história e propor uma nova noção de racionalidade em que seja capaz de ser dialética e, assim, transcender o universo social estabelecido, fazendo brotar da própria experiência de vida uma consciência social que possibilite a superação da forma atual. E aí, quem sabe, será possível construir um psicodrama sóciohistórico. REFERÊNCIAS ABRANTES, A. A.; SILVA, N.R.; MARTINS, S. D. F.; Método histórico-social na psicologia social. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. AGUIAR, M. O teatro terapêutico: escritos psicodramáticos. Campinas, SP: Papirus, 1990. ANTUNES, M. A. M. Algumas reflexões acerca dos fundamentos da abordagem social em história da psicologia. In: BROSEK, J. e MASSIMI, M. (Orgs.). Historiografia da psicologia moderna: versão brasileira. São Paulo: Ed. da Unimarco; Loyola, 1998. p. 363–374. BLATNER, A.; BLATNER, A. Uma visão global do psicodrama: fundamentos históricos e práticos. São Paulo: Ágora, 1996. BOCK, A. M. B. 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