(Jo 2,1-11): DA ANTIGA À NOVA ALIANÇA

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ANTONIO DE SOUSA BRANDÃO SILVA
O CASAMENTO EM CANÁ DA GALILÉIA
(Jo 2,1-11): DA ANTIGA À NOVA ALIANÇA
CANOAS, 2011
ANTONIO DE SOUSA BRANDÃO SILVA
O CASAMENTO EM CANÁ DA GALILÉIA
(Jo 2,1-11): DA ANTIGA À NOVA ALIANÇA
Trabalho apresentado à banca examinadora do Curso
de Teologia do Centro Universitário La Salle Unilasalle, como exigência parcial para a obtenção
do grau de Bacharel em Teologia.
Orientação: Prof º. Dr. Bruno Godofredo Glaab.
CANOAS, 2011
ANTONIO DE SOUSA BRANDÃO SILVA
O CASAMENTO EM CANÁ DA GALILÉIA
(Jo 2,1-11): DA ANTIGA À NOVA ALIANÇA
Trabalho de conclusão aprovado como requisito
parcial para a obtenção do grau de Bacharel em
Teologia pelo Centro Universitário La Salle –
Unilasalle.
Aprovado pela banca examinadora em 09 de dezembro de 2011.
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________
Prof. Dr. Bruno Godofredo Glaab
Unilasalle
_________________________________________________________
Prof. M.e Itacir Antônio Gasparin
Unilasalle
Dedico este trabalho aos cristãos que buscam conhecer e viver, cada vez mais, o
Evangelho de Jesus.
AGRADECIMENTOS
A Deus que me concedeu o dom vida e o desejo de buscá-lo constantemente. Agradeço
muito também:
À minha família: meus pais, Maria e Antonio, minhas irmãs e irmãos.
Ao professor Bruno, meu orientador, por acompanhar cada etapa da elaboração desta
monografia.
À Congregação dos Irmãos das Escolas Cristãs.
Ao Unilasalle que me acolheu desde 2009.
Ao Irmão José Ivo Ulerich pela revisão desse texto e pelo grande incentivo na
realização de uma monografia de qualidade.
Ao Postulado La Salle de Esteio - RS, na pessoa do irmão Marcelo Salame, pelo
empréstimo de livros.
À professora Nair pelo aprendizado realizado nas aulas de Português, muito úteis na
hora de escrever este trabalho.
Aos meus ex-professores (as) do Curso de Formação Humana e Cristã da CRB, no Pará.
Enfim, agradeço a todos (as) que contribuíram no meu processo formativo, o que tornou
possível, entre tantas outras coisas, a realização deste trabalho.
“[...] Deveis, a exemplo do profeta Elias, manifestar
vosso zelo pela glória de Deus e a salvação de
vossos discípulos. Eu me consumo – disse ele – de
zelo ardente pelo Senhor Deus dos Exércitos,
porque os filhos de Israel abandonaram a aliança
contraída com Deus [...] deveis entrar nesta santa
disposição do profeta Elias [...]: “Tão zeloso estou
pela glória de meu Deus, que não posso ver-vos
renunciar à aliança que contraístes com ele no
Batismo, nem à qualidade de filhos de Deus que nele
recebestes” (Meditações de São João Batista de La
Salle para os Dias de Retiro nº 202).
RESUMO
O presente trabalho apresenta um estudo sobre Jo 2,1-11, na perspectiva da passagem da
Antiga à Nova Aliança. Na Antiga Aliança a relação com Deus era possível pelo
cumprimento da Lei. A Nova Aliança, mediada por Jesus, não está baseada apenas em leis,
mas principalmente na alegria e no amor, vividos no serviço aos irmãos.
Palavras-chave: Evangelho de João. Simbolismo. Antiga e Nova Aliança.
RESUMEN
Este trabajo presenta un estudio sobre Jn 2,1-11, desde la perspectiva del paso de la Antigua a
la Nueva Alianza. En la Antigua Alianza la relación con Dios se da a través del cumplimiento
de la Ley. En la Nueva Alianza, iniciada por Jesús, no sólo se basa en las leyes, pero sobre
todo en la alegría y en el amor, vividos en el servicio a los demás.
Palabras-clave: Evangelio de Juan. El simbolismo. Antigua y Nueva Alianza.
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO...........................................................................................................9
2
VISÃO GENÉRICA SOBRE O EVANGELHO DE JOÃO...................................11
2.1
Quem escreveu o Evangelho?.....................................................................................12
2.2
Onde foi escrito?..........................................................................................................13
2.3
Quando foi escrito o Evangelho de João?.................................................................13
2.4
Por quê?.......................................................................................................................14
2.5
Destinatários do Evangelho........................................................................................15
2.6
Contexto religioso........................................................................................................16
2.7
Contexto político..........................................................................................................18
2.8
Estrutura do Evangelho de João................................................................................20
2.9
Teologia do Quarto Evangelho...................................................................................21
3
ANÁLISE DA PERÍCOPE Jo 2,1-11........................................................................25
3.1
A estrutura da perícope..............................................................................................27
3.2
Os símbolos..................................................................................................................27
3.3
A expressão ao terceiro dia (v. 1)...............................................................................28
3.4
A presença da Mãe e o seu papel no diálogo com Jesus (v. 1, 3, 4 e 5)..................29
3.5
Os discípulos (v. 2 e 11)...............................................................................................30
3.6
A Antiga Aliança.........................................................................................................31
3.7
A presença de Jesus (v. 6 e 7).....................................................................................34
3.8
Os serventes.................................................................................................................36
3.9
O mestre-sala...............................................................................................................37
3.10
A Nova Aliança............................................................................................................38
4
PONTOS DE REFLEXÃO PARA HOJE.................................................................39
4.1
Espiritualidade............................................................................................................39
4.2
Pastoral.........................................................................................................................40
4.3
O milagre......................................................................................................................40
4.4
Somos membros da Nova Aliança (Igreja)...............................................................41
4.5
Características da Nova Aliança................................................................................42
5
CONCLUSÃO.............................................................................................................44
REFERÊNCIAS..........................................................................................................46
9
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade analisar a perícope de Jo 2,1-11, apresentando a
passagem da Antiga à Nova Aliança, iniciada pelo primeiro sinal de Jesus realizado em Caná
da Galiléia. Na Antiga Aliança era preciso observar muitas leis: eram seiscentas e treze. Para
permanecer puro diante das exigências religiosas judaicas era preciso oferecer sacrifícios,
fazer ritos de purificação. Tudo isso ia causando um sentimento de culpa muito grande e, em
consequência, se formou a imagem de um Deus castigador. João usa a palavra sinal para
indicar que o realizado por Jesus é apenas um indicativo do que está por vir. Por isso, no
casamento em Caná da Galiléia, encontra-se o “primeiro sinal realizado por Jesus”. Este sinal
não pode ser tomado de forma mágica, mas dentro da perspectiva simbólica, muito usada por
João. Neste sentido, Jo 2,1-11 mostra que a imagem de Deus transmitida pela religião só
causava tristeza. Não poucas vezes causava exclusão, pois quem não sabia ler, estava distante
do conhecimento de Deus. Jesus, em contraponto a essa teologia, mostrou que o verdadeiro
vinho é o amor e alegria, que devem permear nossas relações humanas e com Deus.
É central na nossa reflexão a palavra Evangelho, que significa boa nova. Podemos dizer,
com convicção, que o Evangelho pregado por Jesus é uma notícia boa para os pobres, para
aqueles que estão com sua humanidade comprometida. Esta boa nova implica a libertação
integral do ser humano, nas dimensões física, psíquica e espiritual. A pregação e a prática de
Jesus explicitam seu interesse pelo resgate dessas dimensões humanas.
A Nova Aliança é um convite feito por Jesus. Ele nos chama para sermos seus
colaboradores, por meio do amor. Somos convidados também construir o Reino Deus. É no
compromisso diário que se vive o ser cristão. Não aceitar a nova imagem de Deus (e suas
implicações) significa, para os cristãos, permanecer na Antiga Aliança, onde observar leis é
mais importante que agir motivado pelo amor de Jesus.
Para perceber o fio condutor deste trabalho - a passagem da Antiga à Nova Aliança precisamos observar que: Jesus já realizou, de uma vez por todas, com sua entrega na cruz a
Aliança com toda a humanidade. Entretanto, é preciso corresponder a este convite de Jesus e
alicerçar a vida no amor. Caso contrário, a aplicação da lei por si mesma, não pode trazer uma
verdadeira transformação na vida da pessoa. Vive-se, assim, na Antiga Aliança.
O Evangelho de João é um escrito original, possui muitos símbolos e uma alta
cristologia. É um texto que ajuda a pensar a imagem de um Deus que assume a humanidade, e
10
a partir disso, mostra-se como Filho de Deus. Para um melhor entendimento do tema, iremos
realizar um percurso no qual cada fase nos prepara para a seguinte.
O segundo capítulo é semelhante a uma apresentação de duas pessoas “desconhecidas”.
Queremos conhecer um pouco sobre o Evangelho de João. Para isso elucido, fundamentado
em Fabris e Maggioni, Konings, Bortolini e outros autores, informações básicas: quem
escreveu o Evangelho; onde e quando foi escrito; a razão da produção deste texto. Também
elucido informações a respeito dos destinatários. Finalizando veremos o contexto religioso e
político; a estrutura do Evangelho e a sua teologia.
O terceiro capítulo com o suporte teórico dos autores já citados e também de outros,
analisaremos a perícope em questão: Jo 2,1-11. Não é intenção fazer uma análise minuciosa
de cada frase desse texto bíblico. Interessa saber como se desenvolve a Nova Aliança em
Jesus. Nesta perspectiva, veremos alguns comentários sobre a perícope; os símbolos usados
por João neste trecho; a expressão ao terceiro dia. Também será visto o papel que a mãe, dos
discípulos, de Jesus e dos outros personagens no texto. Será elucidado como o povo de Israel
entendia a Aliança (que aqui recebe o nome de Antiga Aliança). O último ponto aborda o
tema da Nova Aliança. Acredito que esses subitens podem nos ajudar a entender melhor o
texto bíblico em estudo.
O quarto capítulo é uma atualização. A partir do estudo realizado trago pontos de
reflexão e provocações. São ideias que partiram das reflexões feitas no Curso de Teologia e
também de minha caminhada enquanto Postulante à Vida Religiosa. Não busquei ideias
novas, pois as elencadas já são desafios de vivência. Afinal, o Evangelho de Jesus é para ser
vivido, especialmente. Nesta etapa da pesquisa, o leitor encontrará perguntas que orientam a
sua própria reflexão.
A conclusão traz, de forma sintética, o itinerário de toda pesquisa. Sei que nenhuma
pesquisa pode saturar o conteúdo do Evangelho de João. E essa não foi minha intenção, em
momento algum. Porém, reconheço que este trabalho pode ser útil especialmente para os
estudantes de Teologia. Alegro-me em partilhar os resultados desta pesquisa.
Enfim o trabalho enquanto um todo pode ajudar na reflexão sobre o Evangelho de João,
especialmente a perícope de Jo 2,1-11. Realizei este trabalho não só para que tenha
conhecimento, mas também com o intuito de partilhar. Que o esforço materializado nestas
páginas possa levar cada leitor a envolver-se com o tema, aprofundando ainda mais a sua fé,
seu conhecimento e sua prática pastoral.
11
2 VISÃO GENÉRICA SOBRE O EVANGELHO DE JOÃO
É imprescindível, antes de desenvolver qualquer tema, situar o leitor de maneira que ele
possa entender ideias que serão chaves de leitura do trabalho como um todo. Esse primeiro
momento é muito importante, especialmente quando pesquisamos a área bíblica e teológica.
Da qualidade dessa primeira parte depende todo o restante.
História é palavra-chave nesta parte introdutória. Queremos com isso dizer que, não é
possível entender um texto bíblico - seja qual for - sem que saibamos o contexto em que
surgiu, a linguagem, o objetivo e quais os problemas existentes na comunidade. Temos a
certeza de que o Evangelho de João primeiro foi vivido e proclamado, depois escrito. E se foi
escrito é para nos ajudar a vivermos melhor nossa fé.
Sabemos que a pesquisa sempre possui suas limitações. E em parte, o Evangelho de
João ainda possui aspectos que para muitos estudiosos permanecem obscuros. Neste sentido,
“[...] temos de aceitar este fato. O que se consegue entender dele já é de grande valor e
compensa o esforço do estudo [...]” (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 251). E por isso estamos
cientes de que
para saborear um texto no sentido em que foi escrito, precisamos reviver à luz do
momento presente o impacto que produziu nos primeiros destinatários. Importa
captar as perguntas, as circunstâncias, as preocupações, a cultura, as tensões e os
conflitos vividos pelos primeiros destinatários. Como não dispomos de muitas
informações externas a respeito disso, devemos inferir esse conhecimento a partir do
próprio texto (KONINGS, 2005, p. 15).
A tentativa do retorno à experiência primeira é sempre um desafio. Entretanto, não
podemos nos esquivar desse retorno, pois é somente olhando para o passado e seu contexto
amplo que poderemos evitar fundamentalismos. A compreensão do texto em si é muito
importante, embora não suficiente para a compreensão. Outros aspectos, que não estão
presentes no texto, são muitas vezes esclarecidos pela consulta de autores.
Os pontos que seguem têm o intuito de ser o primeiro passo para entendermos a
comunidade joanina. Buscaremos também elucidar pontos relevantes para a compreensão do
Evangelho.
12
2.1 Quem escreveu o Evangelho?
Os escritos bíblicos foram produzidos dentro da realidade de uma comunidade de fé.
Por isso, podemos dizer que sempre, por trás de um autor, existe um grupo de pessoas que o
ajudaram, de modo direto ou indireto, a escrever o texto sagrado. Neste sentido,
[...] o evangelho de João não é fruto do esforço de uma pessoa isolada. Por trás desse
evangelho está uma comunidade que nasceu de modo simples, foi crescendo e
adquirindo um jeito próprio de ser e de agir [...] (BORTOLINI, 2008, p. 7).
João, foi discípulo de Jesus e pelas leituras dos três primeiros evangelhos, sabemos que
João era de Carfarnaum, cidade na qual, Zebedeu, seu pai, possuía barco e uma pequena
indústria de pesca. Os autores cristãos e os papiros do escrito evangélico o designam
“Evangelho segundo João”. Essa terminologia já foi usada desde o século II. A tradição cristã
tem unanimidade na indicação de João como autor do Quarto Evangelho (NICCACI;
BATTAGLIA, 2000, p. 10).
A questão de autoria na maioria dos textos sagrados é problemática. A autoria, nos
tempos após a morte de Jesus, servia para dar respaldo ao escrito, não como forma de direito
autoral, como atualmente entendemos: “[...] antigamente a atribuição de um escrito a
determinado ‘autor’ não servia para o pagamento de direitos autorais, mas para respaldar o
uso na comunidade. Expressava o valor do escrito para a fé [...]” (KONINGS, 2005, p. 28).
Observa-se que a questão de autoria servia para dar autenticidade a um texto usado
como forma de aprofundar a fé. Entretanto, mesmo que levemos isso em consideração, não
podemos transformar o autor em mero expoente de coletividade, pois esta produção revela
uma teologia profunda, que ultrapassa a expressão do coletivo (KONINGS, 2005, p. 31).
O aspecto comunitário e pessoal da autoria como observamos estão interligados. O
escritor sagrado não é uma pessoa que senta em uma escrivaninha e relata fatos ou
ensinamentos teológicos. A experiência de fé que João fez, juntamente com a iluminação do
Espírito, o fará escrever o Evangelho, incentivo a viver a fé.
13
2.2 Onde foi escrito?
As primeiras comunidades começaram a se formar logo após a morte e ressurreição de
Jesus. Da mesma forma a comunidade Joanina que, a princípio, era formada apenas por
judeus que se converteram a Jesus.
O Evangelho de João foi escrito na cidade de Éfeso (BORTOLINI, 2008, p. 7). A
opinião da grande maioria dos estudiosos é praticamente unanime na afirmação de que o texto
de João foi escrito em Éfeso. Observemos este dado que é muito importante: “[...] os estudos
recentes tendem a confirmar a opinião tradicional de que as comunidades às quais se destina o
Evangelho de João provavelmente viviam na região de Éfeso, no fim do século I”
(KONINGS, 2005, p. 32).
2.3 Quando foi escrito o Evangelho de João?
É importante ter uma referência de quando foi escrito o Evangelho de João. Sabendo
que a data é uma tentativa que pode, ora ser mais exata, ora menos. Mesmo assim, não deixa
de ter sua importância enquanto referência que nos ajuda a perceber que nenhum texto está
separado da realidade de uma comunidade de fé, num período específico.
Brown é da opinião que a principal redação do evangelho data de 90 d.C. Essa data
corresponde a um período em que a comunidade joanina ainda estava sendo perseguida.
[...] “Escrito” é um termo ambíguo, pressupondo-se a atividade tanto de um
evangelista como de um redator, mas o período de aproximadamente 90 d.C. dataria
a principal redação do evangelho. A expulsão das sinagogas então já se passou, mas
a perseguição (16,2-3) continua, e há profundas cicatrizes na alma joanina em
relação “aos judeus” [...] (BROWN, 2006, p. 21).
Aconteceu no contexto acima referido um conflito entre os cristãos joaninos e os
representantes da sinagoga. Os cristãos joaninos se desligaram do judaísmo por pressão das
autoridades das sinagogas. O evangelho foi escrito nesse tempo de conflito.
Blank ratifica a opinião de Brown, em relação à data em que foi escrito o Evangelho e
ainda destaca sua autenticidade, trazendo um dado histórico importante.
[...] Tomando por base que o quarto evangelho já era conhecido no Egito nos anos
120-130, onde provavelmente não foi redigido, concluímos que já devia ter existido
14
por volta do ano 100 dC. Sua compilação, segundo a opinião geral hoje em dia, data
dos anos 90-100 dC. [...] (BLANK, 1990, p. 17).
Já, no ano 100, de acordo com Brown (2006, p. 22) aconteceu a redação das cartas de
João. Estas cartas tinham o objetivo de desfazer algumas interpretações errôneas do
Evangelho, especialmente no que se refere à humanidade de Jesus. Aqueles cristãos que
pensavam que Jesus não era humano de verdade, e o consideravam-no aparência foram
chamados de gnósticos e assim são caracterizados:
os espíritos gnósticos, por causa da tendência ao dualismo ( a oposição entre a esfera
do divino e do humano, do espírito e do corpo), tinham dificuldades de aceitar a real
encarnação do Filho de Deus e concebiam a salvação em termos de conhecimento
antes que de fé e amor [...] (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p 265).
Os gnósticos pensavam a fé cristã mais como conhecimento do que como prática de
amor. Neste sentido, as três cartas de João foram bem claras na afirmação da verdadeira
humanidade de Jesus: “o que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos
olhos, o que contemplamos, o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida [...]” (1Jo 1,1).
Podemos perceber a insistência de João em apresentar Jesus como verdadeiro humano: a
possibilidade de ouvi-lo, vê-lo e tocá-lo.
Como observamos neste ponto, o ano 90-100 é considerado por muitos autores como a
data da compilação do Evangelho, ou seja, o período que foi escrito e organizado como obra
completada com redação final, incluindo as três Cartas de João. Este evangelho foi escrito
num período de conflito, quando os cristãos joaninos tinham sido expulsos das sinagogas e
sofriam perseguições sutis ou explícitas por parte dos “judeus” e dos cristãos gnósticos.
2.4 Por quê?
Quando escrevemos é costume colocar o objetivo logo nas primeiras páginas. Com o
Evangelho de João acontece o contrário: só conseguimos saber, explicitamente, o porquê
desse escrito sagrado, quando chegarmos às suas últimas linhas.
A finalidade teológico-literária do evangelho é expressa com toda clareza no final:
“Muitos outros sinais fez Jesus ainda diante dos discípulos que não estão escritos
neste livro. Estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Messias, o Filho de
Deus, e para que pela fé tenhais a vida em seu nome (20,30-31) (BLANK, 1990, p.
14).
15
Jesus fez muitos outros sinais (palavras e ações) que nem foram registradas no
Evangelho. Os que foram escritos tinham o intuito de apresentar Jesus, o Messias, que dá vida
a todos.
Entende-se o objetivo deste Evangelho, por meio da compreensão do todo, não apenas
das unidades que o compõe (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 5). Podemos aplicar isso, por
exemplo, ao relato do casamento em Caná da Galiléia, onde de modo geral, se apresenta a
Aliança que Jesus fará. A leitura de todo o Evangelho é que nos possibilitará conhecer, como
Jesus realizará esta Aliança.
O evangelho de João é o mais teológico. Por isso mesmo ele “[...] pretende mostrar que
Jesus é o Messias (Jo 20,31). Aceitar Jesus como Messias era o que distinguia os cristãos dos
(outros) judeus, porém dando a ‘Messias’ um conteúdo diferente [...]” (KONINGS, 2005, p.
41). Não um Messias que vai instaurar o Reino de Deus pela espada, mas pela paz, pelo amor.
Portanto, como bem observamos o Evangelho de João é interligado entre suas partes.
Considerando isso, só podemos entender qual o seu objetivo quando o lermos do começo ao
fim.
2.5 Destinatários do Evangelho
O Quarto Evangelho, conforme os estudos deste último meio século, aponta como
ambiente cultural o helenismo, o judaísmo e a gnose. Há boas razões para essa opinião. As
antíteses: luz/trevas; verdade/mentira são detalhes da linguagem que se identificam com o
gnosticismo.
Os símbolos da luz, da água e da vida fazem referência ao judaísmo rabínico. Pelas
muitas referências implícitas ou explícitas de textos do Antigo Testamento é lógico pensar
que João conhecia a fundo a cultura hebraica e que a esta se dirigiu (MATEOS; BARRETO,
1999, p 14).
Coisas-celestes/coisas-terrenas são expressões que remetem ao platonismo vulgarizado,
presentes nos ambientes judaicos daquele tempo. Não podemos, portanto, excluir nenhuma
dessas possibilidades, pois o ambiente no tempo de João era plural. Poderia ser que ele
quisesse se dirigir a muitos interlocutores (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 263).
No que tange aos destinatários do Evangelho as possibilidades são muitas: judaísmo,
helenismo, gnose, platonismo. Todas possuem sentido. Por isso, não se trata de acentuar a
16
possibilidade desse escrito se dirigir a um grupo em particular. Trata-se, antes, de deixar as
várias possibilidades como legítimas.
2.6 Contexto religioso
Para entendermos um pouco do contexto religioso em que o Evangelho de João foi
escrito, iremos considerar períodos marcantes, levando em consideração o desenvolvimento
do cristianismo no judaísmo. Depois, o desligamento de ambos.
Num primeiro momento temos o anúncio da Boa Nova de Jesus, pela força do Espírito
Santo. O livro de Atos dos Apóstolos fala especialmente sobre a missão dos discípulos de
Jesus. As comunidades cristãs crescem e se espalham pela Galiléia, em Jerusalém, na Samaria
e entre os judeus do Oriente Médio (a “Diáspora”). Graças às contribuições de Paulo, um
grande missionário, as comunidades se formaram inclusive na Europa (KONINGS, 2005, p.
31).
Com a difusão do Evangelho, a pluralidade cresce nas comunidades. Neste sentido, o
encontro entre os apóstolos - que é chamado Conferência de Jerusalém (realizado entre
representantes da Igreja de Jerusalém e Antioquia) tratou da evangelização dos pagãos e teve
a seguinte conclusão.
Irmãos, vós sabeis que, desde os primeiros dias, aprouve a Deus, entre vós, que por
minha boca ouvissem os gentios a palavra da Boa Nova e abraçassem a fé. Ora, o
conhecedor dos corações, que é Deus, deu testemunho em favor deles, concedendolhes o Espírito Santo assim como a nós. Não fez distinção alguma entre nós e eles,
purificando seus corações pela fé. Agora, pois, porque tentais a Deus, impondo ao
pescoço dos discípulos um julgo que nem nossos pais nem nós mesmos pudemos
suportar?Ao contrário é pela graça do Senhor Jesus que seremos salvos, da mesma
forma que eles (At 15,7-11).
O discurso que acabamos de ver foi o de Pedro que toma posição favorável à
evangelização dos gentios. A graça dada por Jesus é para todos. Tiago, no seu discurso,
afirma que não se pode discriminar os gentios que se convertem a Deus, colocando as
seguintes considerações: “[...] mas se lhe escreva que se abstenham do que está contaminado
pelos ídolos, das uniões ilegítimas, das carnes sufocadas e do sangue [...]” (At 15,20).
Podemos dizer que Tiago ainda se atém a pontos importantes no Antigo Testamento,
mas não exclui a opinião de Pedro. Neste sentido, a Conferência de Jerusalém marca um
período importante na história do cristianismo: “[...] o encontro dos apóstolos em Jerusalém,
17
em 48/49 dC, é um marco de consolidação da unidade da Igreja, composta de comunidades
culturalmente diversificadas de judeus-cristãos e de pagãos convertidos [...]” (KONINGS,
2005, p. 31).
Com a volta dos exilados e a progressiva articulação do judaísmo antigo, no século V a.
C. começaram a surgir as reuniões para o estudo da Lei. No tempo da diáspora, essas reuniões
receberam o nome de synagogé (reunião). Nas sinagogas liam-se trechos da Lei de Moisés (o
Pentateuco) e um trecho menor de algum profeta. Em Jerusalém existia um grande número de
sinagogas. Jesus e seus discípulos freqüentaram, muitas vezes, as sinagogas da Galiléia. Aí
Ele fez comentários das leituras da Lei. Assim também, a comunidade joanina manteve-se
ligada à herança da sinagoga (KONINGS, 2005, p. 42).
Com a morte de Tiago (At 12,1s) em 62 d.C., por influência das autoridades do Templo,
a relação entre a Igreja-mãe em Jerusalém e outros judeus se tornou um problema
(KONINGS, 2005, p. 31). E neste contexto vale considerar que
[...] no tempo em que o evangelho foi escrito os cristãos joaninos tinham sido
expulsos da sinagoga (9,22;16,2) porque reconheciam Jesus como Cristo. Tal
expulsão reflete a situação do último quartel do século primeiro, quando o centro de
ensino judaico era em Jâmnia (Jabneh) - um judaísmo predominantemente fariseu e
assim não mais pluralístico como antes de 70. Com efeito, a ação da expulsão pode
está ligada à reformulação (85 d. C. aproximadamente) de uma das dezoito bênçãos
(shemoneh Esreh) que eram citadas nas sinagogas. A reformulação da décima
segunda benção envolvia uma maldição sobre os minîm, isto é, os que se tinham
desviado, os quais, ao que tudo indica, incluíam os judeus cristãos [...] (BROWN,
2006, p. 20).
Podemos dizer que as comunidades joaninas foram missionárias e perseguidas. Mas não
temeram testemunhar a fé “no mundo”, mesmo diante das ameaças do Império Romano e de
um grupo restrito de judeus (KONINGS, 2005, p. 43). Neste sentido enquanto estavam
ligados ao judaísmo, os cristãos estavam livres de repressões. Mas como foram amaldiçoados
e expulsos da sinagoga, foram perseguidos pelo imperador, uma vez que se negavam a
oferecer sacrifícios aos ídolos.
Alguns cristãos do século segundo acusavam os judeus de os entregarem de forma
traiçoeira aos inquisidores romanos (BROWN, 2006, p. 44). Como consequência dessas
perseguições, algumas comunidades cristãs sentiram-se obrigadas a mudar-se para Perla,
cidade da Trasnsjordânia.
Os zelotas eram um grupo de resistência advindo dos fariseus. Armados a punhal,
lutavam por uma reforma social. Lutavam pelo templo e neste sentido ajudavam na
18
conservação das instituições judaicas (MORIN, 2006, p. 112). Este grupo em 66 a 70 chega
ao auge: declaram guerra aos romanos e ocupam o templo (KONINGS, 2005, p. 30).
Em 70 ocorreu a destruição do templo pelos romanos. A realidade após a destruição do
templo é descrita nos seguintes termos.
Depois da destruição do Templo, que acarretou o fim dos sacrifícios e do sacerdócio,
os rabinos (mestres leigos) da tendência farisaica de Hillel reconstituem a
comunidade farisaica em torno do estudo da Torá, em Javne/Jâmnia, perto da atual
Tel-Aviv. A relação entre sinagoga judaica e a comunidade cristã é de conflito
aberto. O Evangelho de João conheceu sua redação final na atmosfera de conflito
com esse novo judaísmo, chamado “judaísmo formativo”, depois de 80 [...]
(KONINGS, 2005, p. 32).
Muitos judeus se fecharam em sua ortodoxia e prestavam devoção, à Torá, considerada
a manifestação última da vontade de Deus. A Torá era chamada vida, luz, sabedoria de Deus
no meio dos homens. Jo se opõe a esta mentalidade apresentando pessoa de Jesus de Nazaré,
como a verdadeira e última manifestação de Deus. Para João, Jesus é o centro da fé, não a Lei
(FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 265).
Como bem observamos, a comunidade cristã começou a passar por momentos muitos
tensos, seja na relação com os romanos, por não aceitarem oferecer sacrifícios aos ídolos; seja
na relação com os judeus, que a partir de 70 tornou-se muito conturbada.
2.7 Contexto político
Iremos agora voltar um pouco da nossa atenção à organização política no tempo em que
foi escrito o Evangelho de João. A primeira dificuldade, se assim pudermos dizer, se encontra
na palavra política que muitas vezes estava ligada à religião. Religião e política algumas vezes
se uniam, de maneira que não era possível separá-las.
O sistema religioso judaico possuía grande influência junto ao Império Romano. Essa
influência foi tão forte que a religião judaica pode gozar da seguinte situação: os romanos, em
consequencia da influência judaica, concederam aos judeus um estatuto especial por meio do
qual poderiam observar sua lei (JAUBERT, 1985, p. 22).
Na segunda metade do século primeiro houve um renascimento das religiões dos povos
subjugados pelos romanos. Isto significava, para o Império Romano, motivo de desintegração.
Pensando na articulação política, o Império afirmava que a Paz dos Deuses, fruto da Pax
19
Romana, era iniciativa do imperador, conhecido também como Deus et Dominus, Deus e
Senhor (MESTERS; OROFINO, 2003, p. 42).
Dentro do aspecto político vale destacar a questão dos templos romanos: “do ponto de
vista econômico, os templos funcionavam como bancos e centros financeiros [...]”
(MESTERS; OROFINO, 2003, p. 43). Eram contratadas pessoas para fabricar os utensílios
necessários para as cerimônias, escultores, fabricantes de pergaminhos para livros. E mais:
aqueles se negassem ao culto aos ídolos poderiam perder o emprego ou serem rejeitados pelos
parentes e amigos, dependentes do culto idolátrico.
Existia uma ligação muito forte entre Império e judeus. Isto significava que na prática, o
conflito entre judeus e cristãos teve suas repercussões no conflito entre os cristãos e o Império
(MESTERS; OROFINO, 2003, p. 41). Em decorrência disso, João não vê nem no poder
político romano nem no messianismo judaico, caminhos para a realização do Reino:
O Evangelho de João não se entusiasma com o messianismo político judaico.
Segundo João, Jesus não concorda com o messianismo nacionalista [...] Jesus não
anunciava o Reino de Deus no sentido em que os judeus entendiam, mas dizendo “o
meu reino não é deste mundo” situa o “reino” para lá de sua vitória sobre o “chefe
deste mundo”, que se dá na sua glorificação [...] (KONINGS, 2005, p. 41).
Em relação o poder político Romano, João, no mínimo, não simpatiza. Isto se observa
na maneira de como é ironizado o processo de Jesus perante Pilatos (18,28-19,22)
(KONINGS, 2005, 41).
Mas em que sentido aconteceu um conflito entre os cristãos e o Império? Não era, em
princípio, uma perseguição sangrenta, mas sutil:
[...] a quase imperceptível infiltração crescente da ideologia do Império Romano na
vida diária e no modo de pensar e de viver das comunidades. Isto se concretizava,
sobretudo, na compra de carne oferecida aos ídolos, na participação em algum ato de
culto ao imperador ou em procissão em honra das divindades romanas, na aceitação
das idéias gnósticas etc (MESTERS; OROFINO, 2003, p. 46).
Diante da realidade da propagação ideológica do Império Romano e também de outras
doutrinas religiosas, os cristãos eram cada vez mais desafiados a viverem a fé e afirmarem
que Jesus é o Senhor, não o imperador romano. Esta é a mensagem implícita que encontramos
no Apocalipse de São João.
O Evangelho de João recusa estruturas que não colaboram na promoção da vida e neste
sentido, a cultura geral do helenismo, ligado ao comércio internacional e respaldada por
20
instituições romanas não ganhavam sua simpatia. Também não eram bem vistas pelo
evangelista as comunidades judaicas da diáspora que tinham laços estreitos com Jerusalém e
desejavam viver em bons termos a administração do Império Romano (KONINGS, 2005, p.
5).
Assim, diante de várias formas de perseguição - sangrenta ou ideológica, os cristãos
joaninos eram desafiados afirmarem a fé em Jesus. Não se poderia fazer aliança com o
Império, como fizeram alguns judeus. Era preciso ser testemunha de Jesus e buscar, mesmo
com dificuldades, ser fiel à mensagem de Jesus, e não ser complacente com o sistema
opressor da época, na qual a sede pelo poder tinha deixado “a religião e o império cegos”.
2.8 Estrutura do Evangelho de João
É importante ter uma visão geral deste Evangelho. Isto ajudará na compreensão.
Seguiremos livremente as indicações das grandes linhas estruturais propostas por Mateos e
Barreto (1999, p. 26).
I.
II.
III.
A.
1.
2.
B.
1.
2.
3.
IV.
V.
Prólogo: O desígnio do criador (1,1-18).
Seção introdutória: De João a Jesus (1,19-51).
Primeira parte: Sexto dia. A obra do Messias (2,1-19,42).
O dia do Messias (2,1-11,54).
Ciclo das Instituições: “Os seus não o acolheram” (2,1-4,46a).
Ciclo do homem. O êxodo do Messias (4,46b-11, 54).
A hora final. A Páscoa do Messias (1,55-19,42).
Primeira seção: a opção perante o Messias (11,55-12,50).
Segunda seção: A Ceia. A nova comunidade humana (13,1-17,26).
Terceira seção: Entrega, morte e sepultamento de Jesus. A manifestação da
sua glória (18,1-19,42).
Segunda parte: O primeiro dia. A nova criação (20,1-31).
Epílogo: A missão da comunidade e Jesus (21,1-25).
Bortolini (2008, p. 12-13) divide o Evangelho em duas partes: a primeira chama-se de o
livro dos sinais (1,19-12,50); e a segunda o grande sinal (13, 1-20, 29). Coloca ainda como
apêndice (21,1-23) e segundo epílogo (21,24-25). Não há, comparando com Mateos e Barreto
(1999, p. 26), nenhuma mudança significativa no que se refere à divisão em duas partes.
A primeira parte, chamada livro dos sinais, corresponde ao nosso estudo, sendo assim
caracterizada: “o tempo dos sinais é o da vida pública de Jesus, e se estende da pregação de
João Batista, até a vigília da paixão (Jo 1-12). Ali tudo torna-se sinal da divindade de Cristo e
de sua atividade salvífica [...]” (NICCACI; BATTAGLIA, 2000, p. 29).
21
A maioria dos autores divide o evangelho da seguinte maneira: o prólogo sendo a
primeira parte (1,1-8), a segunda parte (12,37-50) e a conclusão (20,30-31) (FABRIS;
MAGGIONI (2006, p. 259). Não será necessário, por isso, expor demasiadamente opiniões de
autores, uma vez que o importante é ter uma estrutura que possa ajudar na compreensão de
que “[...] cada episódio contém uma revelação de Jesus que obriga a tomar posição: ou a fé ou
a incredulidade [...]” (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 259).
2.9 A teologia do Quarto Evangelho
Como João fala sobre Deus? É isto que tentaremos responder neste ponto.
Considerando, de início, a seguinte argumentação:
a teologia de João parte da realidade humana de Jesus tornada manifesta na sua
morte. Este é o fato central do evangelho: Jesus foi condenado à morte executado
por instituição que não o aceitou, por considerá-lo perigoso para seus interesses
políticos, econômicos e religiosos, defendidos por interpretação da Lei na qual se
apoiaram para dar-lhe a morte (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 9).
A cruz foi conseqüência da opção que Jesus fez diante da sociedade em que viveu. Ele
não foi conivente com o sistema opressor, o qual usou a própria Lei para condená-lo. Nisto se
mostra que o Evangelho de João possui uma alta cristologia, que não nega, em momento
algum, a humanidade de Cristo.
João fala muito “da hora” de Jesus. “[...] No Quarto Evangelho a ‘hora de Jesus’
designa o cume da sua missão, isto é, a paixão e morte na cruz e seu retorno ao Pai [...]”
(NICCACI; BATTAGLIA, 2000, p. 60).
Jesus, o Verbo encarnado de Deus, é verdadeiramente Deus e homem. Podemos
confirmar isso logo no prólogo do Evangelho: “no princípio era o Verbo e o Verbo estava
com Deus e o Verbo era Deus [...] E o verbo se fez carne e habitou entre nós [...]” (Jo1,1.14).
Este Verbo que se fez homem é o próprio Jesus de Nazaré. Por isso,
a idéia dominante do escrito joaneu é a da revelação de Jesus como Filho de Deus
encarnado, vindo para salvar o mundo. Assume por isso muita importância na obra
a terminologia de “revelação” com os verbos “manifestar, conhecer, testemunhar,
crer,” e com os substantivos “palavra, verdade, testemunho, testemunhas, luz, glória,
sinal, nome” (NICCACI; BATTAGLIA, 2000, p. 27).
22
Mas que tipo de revelação João apresenta? A revelação de Jesus como Messias, ou seja,
como enviado de Deus.
Como podemos observar Jesus, o Messias apresentado por João, não é metafísico, mas é
o enviado por Deus para salvar o mundo. Ele se encarnou, se fez humano para salvar o
mundo. E essa salvação é integral.
Do conteúdo deste Evangelho entendemos, por um lado, a pregação feita por Jesus e a
proximidade do Reino de Deus; e também, por outro lado, a boa nova que é a atuação de
Jesus Cristo nos fins dos tempos, especialmente na cruz e na ressurreição (BLANK, 1990, p.
12). Neste sentido, o Evangelho é sempre o anúncio de Boa nova e expectativa da instauração
definitiva do Reino.
O Evangelho irá, portanto, sempre apontar para a dimensão do Reino de Deus. Reino
que já acontece aqui e agora, mas não em plenitude. Comprometer-se com o Reino significa ir
até a cruz com Jesus, inclusive, sendo capaz de suportar críticas e perseguições, ou em alguns
casos, o martírio.
O plano do Evangelho João é, antes de tudo, teológico. Sua intenção ao escrever não é
fazer ata da vida de Jesus, mas apresentar Jesus como Messias.
De fato, o plano que estrutura o Evangelho de João é o teológico. Não é biografia de
Jesus (20,30), nem se quer um resumo de sua vida, mas interpretação de sua pessoa
e obra, feita por uma comunidade no seio de sua experiência de fé. Daí, o leitor
deverá interpretar os fatos que encontra no texto, cuja historicidade não se pré-julga,
atendo-se à finalidade do Evangelho, ou seja, como linguagem teológica (MATEOS;
BARRETO, 1999, p. 6).
Por isso devemos evitar o fundamentalismo. E mais ainda: não podemos ler João em
perspectiva meramente histórica, pois há no texto algumas dificuldades desde a perspectiva
histórica. Nosso desafio é sempre ir além das palavras, procurando captar o sentido profundo
deste escrito.
Eis uma narração que, sob aparente simplicidade, esconde um significado muito
rico. A facilidade do evangelho de Jo engana. O leitor poderá observar na narração
certas asperezas, certas rupturas. Jo não está atento à fluência da narração, nem à sua
lógica, mas ao seu significado, e exatamente as asperezas podem ajudar-nos a
evidenciar o significado (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 302).
A preocupação de João, enquanto hagiógrafo, é fazer-nos mergulhar na compreensão da
pessoa de Jesus por isso, o aspecto histórico e lógico, não são as suas preocupações primeiras.
23
A linguagem usada no texto apresenta poucas variações. Dependendo do contexto em
que se inserem, os termos podem ter significados diferentes. Nesta perspectiva: pelas palavras
o evangelista tenta traduzir uma realidade, que é o próprio Cristo, mesmo que saibamos que a
linguagem é sempre aproximativa (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 298).
Em João um aspecto relevante em relação à questão textual são os símbolos. O estilo
joaneu usa em muitas ocasiões a linguagem figurativa, comum na mentalidade semítica de
Jesus e do autor. João fala de Cristo muitas vezes usando alegorias e símbolos (NICCACI;
BATTAGLIA, 2000, p. 15). O símbolo tem relação com a vida do ser humano e por isso,
como imagem, o símbolo nasce e se desenvolve através do contato do homem com o
meio ambiente; e, como este ambiente é ao mesmo tempo natural e cultural, o
símbolo pode referir-se ao mundo mais primitivo da natureza ou então ao mundo
social, da família, da técnica [...] (FIORES; GOFFI 1989, p. 1068).
No caso de João temos muitos símbolos que se referem ao contato do homem com a
natureza: “o evangelho de Jo está cheio de símbolos: luz e trevas, videira, água, pão etc. E,
ainda que não pareça à primeira vista, também o vocabulário é simbólico: ver, buscar,
permanecer, etc [...]” (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 299).
O uso dos símbolos é importante porque, enquanto humanidade o falar sobre Deus é
sempre aproximativo:
O simbolismo é uma exigência - que pode ser mais ou menos consciente - da
linguagem religiosa. Não é exigência didática, mas teológica. Nasce do fato de que
não podermos falar de Deus e de seu Reino de modo direto, pois ficam além de
nossa experiência [...] (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 299).
E João sabe a quem se dirige, aos judeus, por isso, usa o simbolismo como forma de
falar de Deus. Considera-se que a cultura judaica usa muitos símbolos e neste caso, entendiam
sem demora a mensagem que se queria passar, diferentemente dos gregos que usavam, na
maioria das vezes, a palavra como forma de conhecimento religioso. E neste sentido,
o leitor não deve estranhar o uso da linguagem simbólica. Para o evangelista, a
aparência externa dos fatos não dá todo o seu sentido; a mera crônica da vida de
Jesus teria parecido, em certas ocasiões, anódina para aquele que percebia a
realidade profunda que nela se escondia [...] (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 18).
João faz citações do Antigo Testamento, sejam elas implícitas ou explícitas: “[...] embora
as citações explícitas do Antigo Testamento não passem de treze no evangelho, são, contudo,
24
muito numerosas as alusões, quer a passagens concretas, quer, sobretudo, a temas teológicos
[...]” (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 10).
As referências constantes às passagens veterotestamentárias mostram a homilia,
comumente praticada na comunidade judaica, na qual a comunidade joanina teve suas raízes.
Por isso, João usa, ao citar o AT, o midrash, entendido como uma explicação homilética do
sentido. Seus ouvintes o entendiam; nós não (KONINGS, 2005, p. 23). No entanto, mesmo
que não entendamos numa primeira leitura o sentido que João quis dar às passagens do Antigo
Testamento, não significa que não podemos pesquisar e encontrar algumas repostas.
Por João ser um escritor que mereça uma atenção particular, foi evitado compará-lo com
escritos neotestamentários, para não correr o risco de agregar a João elementos que fazem
parte de outros contextos (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 9).
No momento em que foi escrito este Evangelho, usou-se também os sinóticos. No
entanto, a intenção não foi completá-los nem corrigir-los. O procedimento na hora de escrever
o Evangelho modificou a letra e o teor das fontes utilizadas (KONINGS, 2005, p. 36).
Considerando a particularidade deste escrito podemos dizer que “[...] qualquer que tenha sido
o andamento das coisas, Jo é fruto de uma tradição que conheceu um desenvolvimento
próprio e original e é constituído conforme um projeto teológico peculiar [...]” (FABRIS;
MAGGIONI, 2006, p. 261).
Por ser um escrito original, é importante tentar descobrir a “[...] coerência do texto que
temos diante de nós [...]” (KONINGS, 2005, p. 36). Com isso podemos dizer que de certo
modo o Evangelho mantém relações textuais entre si que podem nos ajudar a compreendê-lo.
Mas para entender isso é preciso uma atenção acurara.
25
3 ANÁLISE DA PERÍCOPE Jo 2,1-11
Estamos agora num ponto crucial do trabalho. Analisaremos o perícope Jo 2,1-11.
Entretanto, antes de entrarmos no assunto propriamente dito, consideremos algumas
observações importantes.
O Evangelho de João, como já foi observado, é uma obra que deve ser compreendida
em sua totalidade. Por isso, algumas vezes, será necessário considerar algumas passagens que
não fazem parte do texto em estudo, mas que ajudam a fundamentar a pesquisa. Que a alusão
ou citação de outras passagens de João ou do Novo Testamento não sejam consideradas
incoerência.
Existem muitos autores e também muitos comentários bons em relação à perícope em
questão. Neste capítulo iremos buscar fundamentação teórica, por exemplo, em Konings,
Mateos e Barreto, Niccaci e Battaglia e outros teólogos de referência no assunto.
A morte de Jesus aconteceu por volta do ano 30. Depois de sua morte, os discípulos
voltaram a se reunir; e animados pelas aparições do Ressuscitado, esperavam a instauração
plena do Reino de Deus. Com o tempo a comunidade se espalhou, conforme se observa nos
livros dos Atos dos Apóstolos (KONINGS, 2005, p. 31).
Se Jesus morreu por volta do ano 30, e o Evangelho de João foi escrito de 90-100, como
já foi elucidado, temos hoje um texto pós-pascal com aproximadamente ou até mais de 60
anos de distância entre o Acontecimento Jesus e a redação do Evangelho. Mas isso não coloca
em dúvida nem tira a autenticidade deste escrito espiritual, por que
hoje, pela fé, temos consciência de que o Acontecimento-Jesus é o farol que aclara o
sentido da aventura humana. Esta convicção, fundada na experiência e não no
raciocínio, adquirida na participação da prática de fé da Igreja, nos re-envia ao
acontecimento fundador. O Acontecimento Jesus, ao qual nos ligamos, produziu um
novo sentido de vida, na Palestina do século I. Instaurou um novo estilo de
existência (MORIN, 2006, p. 8).
Na perspectiva apresentada por Morin, vale destacar que o Evangelho não foi uma ata
da vida de Jesus, nem tão pouco, um registro literal do que pregou. O Evangelho é fruto de
uma experiência e, por isso, não estamos procurando saber que palavras foram pronunciadas
pela boca de Jesus. Isso não coloca a fé em dúvida, pois o objetivo primeiro deste escrito é
animar as comunidades - e a nós também - na vivência da fé.
26
Fica a certeza que mesmo com os melhores comentários disponíveis, não esgotaremos o
sentido do texto. Ficarão ainda questões que serão da responsabilidade do cristão responder: o
que estes comentários me impelem a fazer, a mudar na minha vida? As reflexões podem ser
muitas, mas a reposta a essa pergunta é sempre pessoal.
É sempre importante partir do texto. A compreensão do texto em si, agora, é decisiva.
Interpretações e comentários veem depois.
No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estava
lá. Jesus foi convidado para o casamento e os seus discípulos também. Ora, não
havia mais vinho, pois o vinho do casamento havia acabado. Então a mãe de Jesus
lhe disse: “Eles não têm mais vinho. Respondeu-lhes Jesus: “Que queres de mim,
mulher? Minha hora ainda não chegou. Sua mãe disse aos serventes: “Fazei tudo o
que ele vos disser”.
Havia ali seis talhas de pedra para a purificação dos judeus, cada uma contendo de
duas a três medidas. Jesus lhe disse: “Enchei as talhas de água”. Eles as encheram
até a borda. Então lhes disse: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”. Eles levaram.
Quando mestre-sala provou da água transformada em vinho – ele não sabia de onde
vinha, mas o sabiam os serventes que haviam retirado a água – chamou o noivo e lhe
disse: “Todo homem serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já estão
embriagados serve o inferior. Tu guardaste o vinho bom até agora!”. Esse princípio
dos sinais Jesus o fez em Caná da Galiléia e manifestou a sua glória e os seus
discípulos creram nele (Jo 2,1-11).
Um bom resumo como o que segue ajuda na compreensão do texto ainda mais. João, ao
escrever esta parte, se inspirou na tradição do Antigo Testamento, a de Elias (2Rs 17,1-16) e
mais ainda a de Eliseu (2Rs 4,1-7).
2,1-11 apresenta-se como narrativa de milagre. Jesus presencia uma festa de
casamento. Quando constata a falta e vinho, sua mãe o incentiva a intervir. Depois
de breve diálogo com a mãe, Jesus manda encher de água os jarros de purificação e
manda servir essa água, que ao ser servida se revela em vinho. Esta narrativa não
aparece na tradição sinóptica [...] (KONINGS, 2005, p. 100).
Niccaci e Battaglia (2000, p. 58) também concordam com Konings (2005, p. 100), no
que se refere ao não paralelismo desta passagem com Mateus, Marcos e Lucas: “[...] o milagre
aqui referido é o único do Quarto Evangelho que não tem qualquer paralelo nos Sinóticos
[...]”.
Já foi elucidado que no Evangelho de João aparecem muitos símbolos. Estes são
importantes para entendermos a mensagem. Devemos levar em conta, ainda, neste ponto, a
interação entre as partes, de modo que vamos gradualmente entendendo a mensagem deste
Evangelho na medida em que vamos fazendo ligações internas.
27
Os pontos que seguem têm o objetivo de aprofundar, baseado em autores, a perícope em
questão. Sempre tendo presente o que já vimos: a questão simbólica e o uso do Antigo
Testamento.
3.1 Estrutura perícope Jo 2,1-11
A estrutura desta perícope é bem simples:
[...] a estrutura do trecho é nítida. Temos uma introdução (v. 1-2) que apresenta
todas as circunstâncias do fato; o diálogo entre a Mãe e Jesus (v. 3-5); a cena central
em que Jesus dá o vinho em abundância (v. 6-8) a consideração do mestre-sala (v. 910); e enfim a conclusão (v. 11), que retoma alguns elementos da introdução
(conclusão estilística) (NICCACI; BATTAGLIA, 2000, p. 58).
O bloco que analisaremos corresponde ao dos sinais. João usa sinais como termo
técnico e seu objetivo é apresentar Jesus através de gestos particulares reveladores. Não é
intenção apresentar o aspecto maravilhoso do milagre em si mesmo, mas apontar para a
pessoa que os realiza, Jesus (NICCACI; BATTAGLIA, 2000, p. 61).
3.2 Os símbolos
Já vimos, em páginas anteriores, que o Evangelho de João usa muitas vezes os
símbolos. Estes foram usados como recurso teológico, pois não têm a intenção de definir, mas
de apontar para algo maior, para Deus, que mesmo sendo definido, continua sendo mistério
em nossa vida. Por isso, aqui queremos aprofundar a linguagem simbólica de João. Isto nos
ajudará a entendermos melhor o texto em análise.
Nos profetas a relação entre Deus e o povo era representada através do símbolo conjugal
(MATEOS; CAMACHO, 1991, p. 60). Na mesma linha de raciocínio: “na Bíblia, o
casamento simboliza a aliança entre Deus e o povo. Os profetas usaram muitas vezes essa
imagem para falar do amor mútuo entre Deus e Israel [...]” (BORTOLINI, 2008, p. 33). No
Cântico dos Cânticos Deus aparece como esposo e Israel como esposa.
Não há, pois, nada de estranho no fato de os evangelistas utilizarem o símbolo das
bodas e as figuras do esposo e da esposa para descrever a nova relação que, através
da sua pessoa, Jesus estabelece entre os homens e Deus [...] (MATEOS;
CAMACHO, 1991, p. 60).
28
Os leitores de João entenderam logo que mensagem ele queria passar. As núpcias
possuem sentido simbólico. O evangelista João faz, assim, uma releitura do Antigo
Testamento: Deus aparecia como Esposo do povo (Os 2,16-25). O casamento significava a
aliança entre Deus e o povo (MATEOS, BARRETO, 1999, p. 136). E “[...] na comunidade
joanina é conhecida a idéia de núpcias do Cordeiro (Ap 19,7.9); e “Cordeiro”(1,29) é o
primeiro título dado a Jesus [...]” (KONINGS, 2005, p. 100). Assim,
no Evangelho de João, as bodas de Caná são figuras da antiga aliança, a que
pertence a mãe de Jesus, porém, não ele nem seus discípulos. A mãe representa o
povo fiel da antiga aliança, como esposa de Deus. Ela mostra a Jesus a falta de
vinho/amor (2,3), esperando que o Messias dê remédio à situação. Jesus anuncia a
inauguração de novas bodas/aliança, em que ele dará o vinho do amor/Espírito (2,4).
(MATEOS; CAMACHO, 1991, p. 61).
O vinho é um elemento que não pode faltar em um casamento. Simboliza o amor entre o
esposo e a esposa, como podemos perceber nos Cânticos dos Cânticos. O vinho é sinal,
também de alegria. O casamento representa a Antiga Aliança. A falta vinho de vinho significa
a ausência do amor entre Deus e o povo (MATEOS; BARRETO, 1999, p.138).
Por sua vez as “tábuas ‘de pedra’ eram o símbolo da Lei de Moisés (Ex 31,18).”
(MATEOS; CAMACHO, 1991, p. 186).
3.3 A expressão ao terceiro dia (v. 1)
Os números, dentro da mentalidade judaica, possuíam um significado e transmitiam
uma mensagem: “no Oriente Antigo, o número não era um mero valor aritmético, possuía
também um sentido de fundo filosófico e religioso [...]” (LÄPPLE, 1978, p. 34).
Na perspectiva apresentada acima, o terceiro dia precisa ser compreendido no plano
simbólico, não simplesmente como componente narrativo, pois no terceiro dia acontecem
fatos importantes na vida do povo. Exemplificando: a Torá (Lei, ou melhor, Instrução) é dada
ao povo ao terceiro dia (Ex 19,11.15.16). Deus socorre o povo ao terceiro dia (Os 6,2). A
ressurreição acontece, também, ao terceiro dia (KONINGS, 2005, p. 100). Neste sentido, a
expressão ao terceiro dia sugere a novidade, a intervenção de Deus na história.
É importante também salientar que a perícope em análise está interligada a um contexto
mais amplo, e para entendermos melhor a expressão “ao terceiro dia” devemos considerar a
seguinte argumentação.
29
O primeiro sinal realizado por Jesus acontece no sexto dia da semana. De fato, a
expressão “no terceiro dia” (2,1) significa três dias após o quarto dia isto é, o sexto
dia. De acordo com Gênesis 1,26-31, neste dia Deus criou a humanidade. Portanto, o
primeiro sinal realizado por Jesus mostra o surgimento da nova humanidade, ou seja,
o grupo daqueles que aderem a Jesus pela fé [...] (BORTOLINI, 2008, p. 32).
Portanto, como bem ficou explícito, nas Bodas de Caná, Deus realizou a criação de uma
nova humanidade, onde o referencial de vida será a fé e a prática do seguimento de Jesus. Em
Caná da Galiléia, Jesus começa sua obra messiânica “[...] e seus discípulos passam a crer nele.
Mas ainda não é a fé madura e completa, que só será possível no termo da obra de Jesus,
quando não será mais preciso ver sinais” (KONINGS, 2005, p. 102).
3.4 A presença de mãe e o seu papel no diálogo com Jesus (v. 1, 3, 4 e 5)
Que lugar a mãe ocupa nestes quatro versículos? A presença da mãe, logo entre os
primeiros convidados para festa, dentro do simbolismo joanino, pode ser uma maneira de
destacar a mãe de Jesus no início da obra da salvação, assim também será importante na hora
da “consumação” (KONINGS, 2005, p. 101). Também Fabris e Maggioni (2006, p. 303)
afirmam a importância da mãe em dois momentos: no início da vida pública de Jesus, em
Caná e ao pé da cruz (19,25). Neste sentido, em Jo, a mãe é um modelo de Igreja e de
discipulado.
A mãe de Jesus é apresentada sem nome. Sabemos que é a mãe, mas não sabemos seu
nome. Esta falta de nomeação continuará em 2,12; 6,42; e também ao pé da cruz (19,25). A
mãe pertence à Antiga Aliança juntamente com as seis talhas de pedra (MATEOS;
BARRETO, 1999 p. 137). Em João encontramos a designação de mãe e não Maria. A
designação mãe de era honorífico na mentalidade oriental:
[...] a presença de Maria é importante na economia do episódio, exatamente como
será na cruz (19,25). A sua figura nos v. 1-5 revela certa majestade junto ao Filho;
entre outras coisas, ela é nomeada três vezes, exatamente como Jesus (NICCACI;
BATTAGLIA, 2000, p. 58).
Mesmo que nesta narrativa a presença da mãe seja importante, o relato é cristológico,
porque a presença de Jesus é decisiva no desenrolar da história teológica (NICCACI;
BATTAGLIA, 2000, p. 5).
Jesus chamou, em certo momento da narração, sua mãe de mulher. Este tipo de
tratamento somente o marido poderia dar à sua esposa.
30
[...] Na Bíblia, nenhum filho chama desse modo sua mãe. Somente o marido podia
chamar sua esposa de “mulher”. Isso mostra que a “mãe de Jesus”, representa um
grupo. É o grupo dos que se mantiveram fiéis a Deus e agora, manifestam essa
fidelidade, obedecendo a Jesus (BORTOLINI, 2008, p. 33).
Argumentação semelhante a de Bortolini encontra-se em Mateos e Barreto (1999, p.
140). Afirmam que a mãe, que reconheceu o Messias, representa todos os israelitas que
preservaram a fidelidade a Deus e às esperanças de suas promessas. Representa, portanto,
todos os israelitas que, mesmo com as dificuldades, permaneceram fiéis a aliança feita com
Deus.
No diálogo com a mãe, Jesus diz que sua hora ainda não havia chegado. Precisamos
entender o que João quer dizer quando usa essa expressão. A hora de Jesus é o momento da
cruz, inseparável da ressurreição (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 303). A resposta de Jesus:
“minha ora ainda não chegou” (v. 4) parece ser uma forma rude de um filho tratar a mãe.
Porém, Jesus não está rechaçando a mãe, mas sugerindo que o irá fazer não é a plenitude da
sua obra, que será manifesta na sua “hora” (KONINGS, 2005, p. 101).
3.5 Os discípulos (v. 2 e 11)
No início da narrativa, assim como no versículo 11, a presença dos discípulos é tímida.
Eles simplesmente não dizem nada apenas presenciam a ação de Jesus. Neste sentido, “Jesus
conduz seus discípulos para que presenciem a nova Aliança de Deus com o povo”
(KONINGS, 2005, p. 103).
Jesus, o Messias, começa o dia da sua atividade. Inicia sua missão libertadora. Jesus e
os seus discípulos não vivem na Antiga Aliança (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 138). A
atitude dos discípulos, diante da ação de Jesus, é positiva.
[...] O discípulo se fia em Jesus, entrega-se a ele, deixa-se conduzir por ele. É como
a atitude de Maria [...] a messianidade de Jesus inclui uma passagem do antigo ao
novo. Por isso, a fé é conversão, abertura ao novo, disponibilidade (FABRIS;
MAGGIONI, 2006, p. 303).
Os discípulos se converteram, viram que a Antiga Aliança, não poderia mais ser
referencial para as suas vidas. Essa conversão não aconteceu em Caná, mas se tornará
possível na trajetória do discipulado: “[...] seus discípulos passam a crer nele. Mas ainda não é
uma fé madura, que só será possível no termo da obra de Jesus, quando não será mais preciso
31
ver sinais” (KONINGS, 2005, 102). É interessante observar que “[...] a epifania do Verbo
começa na intimidade de uns poucos. E sem dúvida começa no meio de gente muito modesta,
daqueles que se chamam ‘os pobres’ [...]” (JAUBERT, 1985, p. 51).
3.6 A Antiga Aliança
Iremos ver, neste ponto, o que estamos querendo dizer quando falamos em Antiga
Aliança. O Antigo Testamento nos dará base para isso, juntamente com autores que nos
ajudam a compreender as estruturas religiosas do tempo de Jesus.
A palavra aliança aparece, primeiramente, em sentido humano para o povo de Israel.
Neste sentido, conforme Läpple (1978, p. 159), significa um pacto, a fim de conseguir,
mesmo que depois de um tempo, a cooperação política e econômica. Essa prática era comum
ao povo de Israel. Depois a mesma palavra vai tomando outros sentidos, de modo que no
Antigo Testamento, ganha toda uma realidade histórica e religiosa.
A Aliança, enquanto acordo humano era realizado por meio de um ritual solene que
possuía valor de um contrato escrito. A parte que não cumprisse o combinado poderia sofrer
fortes ameaças. Neste sentido, “[...] essas alianças entre homens podem ser encontradas ao
longo de todo o Antigo Testamento [...]” (McKENZIE, 2005, p. 24). Abraão, por exemplo,
fez um pacto de aliança com os cananeus de Escol e Aner (Gn 14,13).
O sentido de aliança, com o passar do tempo vai se ampliando. Ela ganha um sentido de
pacto entre Deus e seu povo. O marcante, neste sentido, é o Êxodo, que ficou gravado na
memória e na experiência religiosa do povo de Israel. E, por isso,
“[...] o Mar Vermelho é, para os Israelitas, a linha divisória da existência (da
escravidão ao estado de liberdade), da história (etnia subjugada a povo eleito) e da
religião (do politeísmo pagão ao monoteísmo javista) [...]” (KONINGS, 1998, p.
91).
Ao ser liberto da escravidão do Egito e ser um povo livre e monoteísta, Israel
compromete-se com Javé, por isso “[...] com o fito de sublinhar a autoridade religiosa dos dez
mandamentos, a Bíblia narra que o próprio Deus os escreveu em suas táboas de pedra e as
entregou a Moisés” (LÄPPLE, 1978, p. 158).
Deus viu, ouviu o clamor do povo e desceu para libertá-lo. Nisso temos a imagem de
um Deus que ama a vida e não aceita a injustiça.
32
[...] O êxodo lembra a proteção dispensada aos Israelitas na marcha pelo deserto,
representando a situação humana sujeita a dificuldades extremas, mas superadas pela
ajuda divina: fome (Ex 16), sede (Ex 17,1-7) agressão externa (17,8-16) e a divisão
interna (Ex 18) (KONINGS, 1998, p. 91).
Ao se tornar povo de Javé, Israel é desafiado a ser fiel à aliança. Podemos elencar as
seguintes características da aliança entre Deus e o povo, de acordo com o Antigo Testamento.
É uma aliança entre parceiros diferentes. Deus é mais elevado; o parceiro mais poderoso
não precisa da aliança, nem dela tira proveito, mesmo que Ele a contraísse ficava em inteira
liberdade; Javé é doador da aliança, Israel a recebe; a aliança é oferta de fidelidade por parte
de Javé, que não demonstra interesse em relação ao parceiro mais fraco; Israel tem-se como
preferido. Quando cumpre suas obrigações assumidas, confirma seu sentimento de gratidão
para com Javé. Ser povo eleito incluía dois pontos: uma questão de dignidade e de tarefa, pois
incluía corresponder às esperanças de Javé. Concluindo: mesmo quando Israel foi infiel à
aliança, Javé é capaz de esperar, com grande paciência, até que o povo se converta e volte ao
bom caminho (LÄPPLE, 1978, p.159-160).
No Pentateuco, são freqüentes as referências à saída da escravidão. O decálogo “dez
palavras”, (Ex 20) são o cerne deste livro. No Ex, Lv, Nm e Dt as leis estão ligadas com a
saída do povo da escravidão, pela mão libertadora de Javé (KONINGS, 1998, p. 87). A
aliança é iniciativa de Javé, independente dos méritos de Israel (McKENZIE, 2005, p. 25).
O povo nem sempre foi fiel. Quando surgiram as situações de infidelidade, apareceram
os profetas, que irão lembrar a realidade da aliança: Israel como povo escolhido por Iahweh.
Os profetas falarão em nome de Deus; irão incentivar o povo a observar suas obrigações
específicas: as normas de culto e a conduta imposta por Javé (McKENZIE, 2005, p. 26).
No livro de Jeremias, é comum o uso do termo aliança. Ele pensa em uma aliança futura
escrita não em pedras, mas no coração dos Israelitas (McKENZIE, 2005, p. 24). Essa aliança
pressupõe um movimento interno de transformação (Jr 31,31-33).
A fidelidade à aliança, com o passar do tempo, começa ser pensada a partir da
observância da Lei.
[...] A observância da Lei é a condição necessária para que as bênçãos divinas
prometidas ao povo eleito se tornem eficazes e multipliquem seus efeitos para o bem
da coletividade. É por isso que a Lei assumiu tal importância para os Israelitas,
significando a carta magna de Israel, o código fundamental de sua constituição, a
base de suas instituições, a norma de seu modo de proceder [...] (KONINGS, 1998,
p. 91).
33
Com a acentuação da Lei, começou a institucionalização da mesma e o surgimento de
líderes religiosos. Aqueles que por alguma doença, ou por não saberem ler, estavam
impedidos de observar a Lei, viam-se distante da presença de Deus.
[...] As lideranças judaicas, sobretudo os escribas e fariseus, davam muito valor ao
conhecimento, especialmente ao empenho de ‘perscrutar as escrituras’(5,39). Por
outro lado, desprezavam os simples que “não conhecem a Lei” (7,49) [...]
(KONINGS, 2005, p. 49).
Credos antigos, como por exemplo, Dt 6,20ss; 26,5ss; Jr 24,1ss; não mencionam o Sinai
e nem a conclusão da Lei neste lugar. É possível que as irrupções vulcânicas tenham sido o
fato que levou a tribo de José a associar a unicidade de Deus e os ciúmes de Javé, com relação
a este lugar (GUNNEWEG apud LÄPPLE, 1978, p. 159).
A lembrança da aliança era feita por um ritual. Todo ano a comunidade atualizava
aquilo que marcou profundamente sua história: a saída da escravidão do Egito e, com isso, o
início de uma vida nova.
O sacrifício da aliança era, sob um duplo aspecto, fator de fundação e de promoção
da comunidade: fundava-se a comunidade dos homens com Deus, fortificando-se e
aprofundando-se também a comunidade dos fiéis entre si. No sacrifício anual, o
povo de Israel não só pensava num acontecimento passado, mas, em santa
celebração festiva, experimentava a presença do próprio Deus e, daí, renovava e
ativava a comunidade de povo da aliança (LÄPPLE, 1978, p. 163).
Em Ex 12 está escrito o modo de se celebrar a Páscoa. A Páscoa (de origem pastoril) e
refeição dos pães ázimos (de origem pré-agrícola) tinham dois significados básicos e
respectivos: ser lembrança de libertação e de misericórdia do povo de Israel; e memória da
pressa em que os Israelitas tinham ao sair do Egito (KONINGS, 1998, p.88).
O Decálogo constituiu uma grande inovação, uma vez que a dimensão ética da vida nem
sempre era considerada.
A peça central das instituições Israelitas é o Decálogo, “as dez palavras” [...] O
Decálogo vincula as ordens ética e religiosa (que entre os pagãos estão
desvinculadas uma da outra) e estabelece sua base em Javé [...] Na verdade, no
contexto em que viviam os Israelitas, o Decálogo foi revolucionário. Estava em
contraste com os costumes vigentes e era inovador no âmbito ético [...] (KONINGS,
1998, p. 89).
O tempo passa e aos poucos a Lei é institucionalizada. É o Templo de Jerusalém o local
por excelência onde se estuda e se discute a Lei, especificamente o Pentateuco: “[...] o
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judaísmo não é um sistema filosófico, mas a observância de tradições morais e rituais
prescritas na Torá, e interpretadas em diversos sentidos, geralmente simbólicos [...]”
(KONINGS, 2005, p. 60).
Um aspecto que era muito levado em conta era a questão da pureza. Quem tinha posses
podia pagar os sacrifícios de purificação. Os pobres, entretanto, ficavam excluídos
religiosamente, socialmente e culturalmente. Isto podia ser observado, por exemplo, no caso
dos leprosos.
Portanto, a aliança que Iahweh realizou foi boa e constituiu um primeiro passo para o
amadurecimento do povo na fé. Israel, liberto do Egito, recebeu a Lei, que orientou a vida
cotidiana. No entanto, a Lei começou a ser tomada por ela mesma, produzindo discriminação
entre os que a conheciam e os que estavam distantes dela. Os primeiros seriam os bons; os
outros estariam distantes de Deus. Os cristãos, por outro lado irão reconhecer Deus não na
Lei, mas em Jesus. Estavam certos que: “[...] sem se entregar à sabedoria dos sistemas
judaicos ou helenistas, os que acreditam em Jesus chegam ao conhecimento verdadeiro salutar
[...]” (KONINGS, 2005, p. 49).
3.7 A presença de Jesus (v. 6 e 7)
Percebe-se ao ler a perícope que a presença de Jesus, num certo ponto da narrativa,
passa a ser decisiva. Essa presença começa a ser atuante, no sentido de interferir andamento
da festa. A seguir iremos tentar perceber o sentido da ação de Jesus.
O versículo seis, que fala das talhas, é uma interrupção da narração, a fim de apontar a
presença das talhas destinadas à purificação. Elas são descritas em detalhes: número (seis), o
material que as compunha (pedra) e a capacidade, uns cem litros (literalmente de oitenta a
cento e vinte cada uma). Eram, portanto, difíceis de serem movidas. Estavam aí colocadas é
uma expressão que acentua a impossibilidade de mudança. Também aparece a finalidade das
talhas: purificação dos judeus. De pedra, expressão que evoca as tábuas de pedras em que foi
escrita a Lei. Existem muitas passagens bíblicas que mostram isso (Ex 31,18; Dt 4,13) e
outras. Em Jo, estas talhas representam a Lei de Moisés, o código da Antiga Aliança. A pedra
da Lei, a Antiga Aliança, corresponde a um coração de pedra, sem amor (MATEOS;
BARRETO, 1999, p. 141).
Conforme a argumentação dos autores ficou claro que a religião acabou se tornando um
pesado fardo. Era necessário fazer ritos de purificação, oferecer holocaustos. Isso tinha um
35
custo e quem era pobre muitas vezes não conseguia manter-se dentro das exigências
religiosas. A purificação é “dos judeus”, por isso “esta purificação não procede de Deus, é
recurso do sistema de poder para manter o povo atemorizado e submisso. São os dirigentes
que fizeram a aliança fracassar” (MATEOS; CAMACHO, 1991, p. 189). Assim,
[...] a antiga aliança, portanto, não tem mais sentido, pois o amor foi substituído pela
Lei. A mãe de Jesus reconhece isso, pois, em vez de dirigir ao organizador da festa,
vai a Jesus e lhe diz: “Eles não têm mais vinho” (versículo 3). Quem são “eles”?
Aqueles que basearam a relação com Deus numa série de regras, tornando-a fria e
paralisada [...] (BORTOLINI, 2008, p. 33).
Aqueles que tornaram a vida um conjunto de regras a serem cumpridas a qualquer custo
acabaram por perder o sentido da gratuidade que vem de Deus. Deus não quer que sejamos
escravos da Lei nem da religião.
No entanto, estava arraigada na cultura religiosa judaica a necessidade de purificação.
Essa era uma ideia que dominava a antiga Lei. A purificação refletia a consciência de um
povo que se sentia indigno diante de Deus. Esse sentimento de indignidade foi criado pela
própria Lei. Os sacerdotes eram os mediadores da purificação legal (Lv 12-16). Por isso,
podemos considerá-la como instrumento de poder nas mãos dos dirigentes. O povo ficava
submetido a essa prescrição (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 141). Neste sentido,
[...] o evangelho afirma que esses potes serviam “para a purificação dos judeus”, e
isso nos mostra como a instituição religiosa via a relação com Deus: uma relação
distante, fria, diante de um Deus que podia, a qualquer momento e por qualquer
motivo, se zangar com seu povo. E o povo tinha que agradá-lo com ritos de
purificação [...] (BORTOLINI, 2008, p. 34).
A vida e as ações cotidianas poderiam deixar a pessoa impura. E neste “estado”, não se
podia participar das atividades religiosas.
A purificação significava o esforço do homem para reconciliar-se com Deus, que,
segundo o código legal, considerava o homem indigno de seu trato (“impuro”) por
inúmeros e inevitáveis atos da vida cotidiana. Por causa deles, o homem se sente
sempre impedido da relação com este Deus exigente e minucioso [...] (MATEOS;
CAMACHO, 1991, p. 189).
A tristeza da Antiga Aliança acontecia pela falta do vinho do amor. A Lei produziu essa
situação. Jesus apresenta o primeiro sinal: a mudança da Aliança e a relativização do código
legal. Jesus é o novo Esposo. Ele oferece seu vinho (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 142). A
36
religião judaica se preocupava muito com a purificação. Em conseqüência, quem, por algum
motivo, não fosse puro, ficava excluído da religião.
O número seis indica o incompleto. Opõe-se ao número sete, que indica a totalidade. O
seis corresponde ao número das festas judaicas registradas no evangelho (três Páscoas: 2,13;
6,4; 11,55); uma festa anônima 5,1; a festa das Tendas: 7,2; e a da Dedicação do Templo:
10,22. Estas festas são provisórias. Serão substituídas pela Páscoa de Jesus preparado com sua
morte (19,42). A ação de Jesus acontece no sexto dia, porque a criação não está completa. O
seis, que é o número das talhas, mostra também a ineficácia da purificação e a imperfeição da
Lei (MATEOS; BARRETO, 1999, p.142).
Essas festas deveriam trazer vida ao povo, porém na prática, favorecia uns poucos. As
seis festas realizadas durante o ano não serviam para trazer vida ao povo, mas para manter o
status quo dos dirigentes religiosos, exploradores do povo (BORTOLINI, 2008, p. 34).
É importante considerar a expressão “dos judeus” e o que ela significa no Quarto
Evangelho. Não é uma expressão generalizada; quer significar todos aqueles que de alguma
forma não aceitaram a novidade trazida por Jesus.
Focalizando o Quarto Evangelho mais de perto, percebemos que “os judeus” no
sentido adversativo são um grupo que tem peso político e social e até certo poder de
decisão [...] São aqueles que não aderiram a Jesus, nem quando da vida dele nem,
sobretudo, no tempo da pregação apostólica. São judeus conscientes, avessos aos
que reconheciam Jesus como Messias e lhe davam o título de “Filho de Deus” [...]
(KONINGS, 2005, p. 44).
Portanto, as seis talhas de pedra destinadas à purificação dos judeus mostram que a
religião não foi capaz de formar seus membros na liberdade. Sempre era necessário purificarse ou cumprir muitas leis (613). Diante do pesado fardo, o povo se tornou escravo da Lei. Os
dirigentes religiosos percebiam esta situação, mas não faziam nada para mudá-la; preferiam
manter seus interesses e suas posições de destaque na religião.
3.8 Os serventes
Aparecem, em cena, novos personagens, os serventes. A mãe de Jesus, mesmo não
conhecendo os planos do Messias, convida os serventes a aceitarem as indicações de Jesus
(MATEOS; BARRETO, 1999, p. 140).
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A frase dita pela mãe faz alusão ao povo do Sinai (Ex 19,8). Este povo afirma que fará
tudo o que o Senhor disser. A mãe/Israel compreende por meio das palavras de Jesus, que a
Antiga Aliança não rendeu frutos. Pede então aos serventes, colaboradores da missão de
Jesus, que sejam fiéis à Aliança que será promulgada (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 140).
3.9 O mestre-sala
Temos um personagem-símbolo: o mestre-sala. Ele representa os dirigentes judeus, que
não são capazes de reconhecer Jesus como enviado de Deus: “a água converte-se em vinho
depois de ter sido tirada das talhas, não nelas. O mestre-sala, que prova o vinho, não
reconhece o dom messiânico [...]” (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 144). Na mesma
perspectiva desses autores, afirma Jaubert (1986, p. 50): “[...] Jesus mudou a água destinada à
purificação dos judeus: esta água desapareceu, acarretando de maneira simbólica o
desaparecimento dos ritos judaicos que já não têm nenhum valor para a santificação”.
Como se observa, o ritualismo judaico era um empecilho na percepção da ação
transformadora de Deus na história. Os muitos ritos não ajudavam na santificação e, por isso,
perdiam seu valor.
O vinho dado por Jesus mostra a relação de amor entre Deus e o homem. O relato de
Caná anuncia a cruz, “a sua hora” (2,4). Lá encontramos a manifestação de amor externo de
Deus ao homem (17,1) (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 144).
O mestre sala protesta a ordem dos vinhos. Para ele parece irracional; pensava que a
situação já estava estabelecida e não mudaria. Os dirigentes não esperam que algo mude. Os
detentores do poder não acreditam que o regime necessite de melhorias (MATEOS;
BARRETO, 1999, p. 145).
No tempo de Jesus, muitos dirigentes não refletiam sobre sua prática. Para eles estava
tudo bem. Não esperavam a necessidade de mudança; apenas constataram que aconteceu e,
diante disso, ficaram perplexos.
Indo um pouco mais a fundo na questão do vinho oferecido por Jesus em Caná da
Galiléia: “o vinho que Jesus oferece alude indiretamente à eucaristia, a qual, descrita por Jo
com a expressão comer sua carne e sangue, será veículo do Espírito que produz no homem a
vida definitiva (6,54)” (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 145).
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Pelo exposto observa-se que o mestre-sala não foi capaz de perceber a ação do Messias
nem dele sentia necessidade. Neste sentido, representa todos os que, por um motivo ou outro,
não conseguem reconhecer a ação transformadora de Jesus na história.
3.10 A Nova Aliança
Neste ponto queremos elucidar em que consiste a Nova Aliança. Fabris e Maggioni
fazem um comentário sobre o relato das Bodas. Conforme a compreensão deles:
[...] o fundo da narração aponta com clareza a direção messiânica. Núpcias e
banquete são temas messiânicos (Is 54,4-8; 62,4-5). O relato não realça a
importância do milagre em si, mas antes alguns pormenores, como sejam a
abundância do vinho, sua ótima qualidade, e o fato de que o vinho substitui a água
preparada para ablusões rituais. Tudo isso são indícios de sentido messiânico. Jesus
é o Messias; a nova aliança substitui e supera a antiga [...] (FABRIS; MAGGIONI,
2006, p. 302).
O sinal de Caná foi o primeiro; outros virão (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 146). Na
compreensão primeira podemos pensá-lo como algo mágico ou fantástico. Muitas pessoas
buscam o “milagre” como forma de solução dos problemas. Jesus, porém realiza o milagre
como forma de manifestar a sua “glória”.
A Aliança que Jesus vai realizar não é baseada na prática rigorosa da Lei, mas na
vivência do amor, do vinho novo, da Aliança feita pelo derramamento de seu sangue na cruz.
“Também a nova aliança verifica-se na cruz, pois aí se promulga o novo código, a nova
Escritura da aliança, cujo título é o letreiro da cruz; seu conteúdo será o próprio Jesus
crucificado, expressão suprema do amor de Deus ao homem (19,19-22)” (MATEOS;
BARRETO, 1999, p. 147).
Já em termos conclusivos o evangelista afirma que Jesus “manifestou a sua glória”. Isso
ao que tudo indica, aponta para sentido cristológico. João quer nos levar a até a pessoa de
Jesus e seu mistério (FABRIS; MAGGIONI, 2006, p. 302). E por isso “[...] agora, a glória de
Deus é Jesus revelando seu amor sem limites (abundância de vinho) [...]” (BORTOLINI,
2008, p. 35).
A relação que o homem estabelece com Deus deve ser gratuita. O Espírito purifica a
humanidade e a torna filha de Deus. A fé consiste em perceber o amor de Deus, manifestado
em Jesus, e aderir a esse convite (MATEOS; BARRETO, 1999, p. 147).
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4 PONTOS DE REFLEXÃO PARA HOJE
Não se espera ter um resultado pronto e estagnado do que até aqui foi visto, pois o
Evangelho de Jesus é, em primeiro lugar reflexão, sobre como viver de modo maduro a fé
cristã. Fica, para mim, a certeza de que o assunto não foi esgotado. Neste ponto trago
reflexões a partir da Nova Aliança realizada por Jesus em Caná que nos impelem a mudar
alguns pensamentos e atitudes diante de Deus e da religião.
4.1 Espiritualidade
Espiritualidade, no sentido cristão, é uma força interior que motiva as pessoas em suas
práticas diárias. Essa força impele a pessoa a encontrar seu lugar no mundo, ter convicção e
motivação naquilo que faz.
Jesus estava na festa de casamento e faltou vinho, ou seja, alegria. No nosso modo de
vida cristã, somos convidados a deixar-nos envolver pela alegria em servir, em realizar o bem
sem esperar recompensas. Neste sentido, somos motivados a seguir o exemplo da mãe, que
observou que as estruturas não eram capazes de trazer vida e alegria à festa. Não ficou
somente na observação, mas buscou a ajuda de Jesus, que mudou a tristeza em alegria,
transformando a obrigação da Lei, em doação pelo amor. Somos capazes de fazer isso?
Somos cristãos de esperança ou “cruzamos os braços”, aceitando as situações e sendo vítimas
da história?
Quem se deixou envolver pela Nova Aliança é capaz de viver sua espiritualidade de
modo prático, sensibilizando-se com os excluídos da religião e da sociedade. Muitas vezes
não se pode mudar a situação de exclusão estrutural que há na sociedade. No entanto, é
possível realizar mudanças no cotidiano, em suas diversas dimensões. Essa é uma atitude
cristã muito importante. Não posso mudar o mundo, mas posso mudar “o meu mundo”.
O mestre-sala representa cada um nós quando não é capaz de perceber injustiças e
transformá-las. A espiritualidade que deve mover o cristão é a da sensibilidade. Não se pode
ficar indiferente frente a tantas situações desumanas. E tão importante quanto perceber essas
situações é tentar mudá-las. Frente à proposta de Jesus, que é o amor, é preciso tomar posição:
estamos do lado dos que governam, dos ricos? Ou dos que mais precisam?
Portanto, a partir da Nova Aliança, iniciada em Caná da Galiléia, os cristãos são
convidados buscar o servir sem desejar recompensas. Neste sentido, a espiritualidade é um
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movimento constante: perceber a ação de Jesus hoje, nas diversas dimensões da sociedade e
buscar ser transformador.
4.2 Pastoral
A dimensão pastoral é crucial na missão da Igreja. Esta dimensão está fundamentada na
figura de Jesus, o Bom Pastor, aquele que conduz todo o rebanho; se alguma ovelha, se
perder, sem tardar ele a resgata.
Na Antiga Aliança a justiça e amor a Deus eram medidos pela observância da Lei. Essa
supervalorização da Lei causava, em certos momentos, a desvalorização da pessoa. Ainda
hoje nas práticas eclesiais de muitas comunidades há situações em que o Direito Canônico (as
leis da Igreja), não consideram a realidade da pessoa. Precisamos conciliar as leis, que
também são importantes, e a dimensão pastoral (conduzir pelo melhor caminho). Afinal, Jesus
relativiza a Lei e convida-nos a superar a obrigação e optar pela espontaneidade, pela
inclusão. Em nossa comunidade, como resolvemos situações complexas, em que pessoas não
estão de acordo com certas exigências da Igreja? Conseguimos colocar, em primeiro lugar, a
vida?
Importante, no ponto referente às leis da Igreja é notar que elas são válidas, mas que não
estão acima do Evangelho. Antes muita gente vivia a fé por tradição. Hoje é necessário ter
convicção e saber por que frequentar a missa. Caso contrário o cultivo da religião e da
espiritualidade, ao invés de ser positivo, acaba se tornando um fardo, um peso que não se
pode levar por muito tempo.
4.3 O milagre
A análise da perícope mostra que é perigoso ser fundamentalista, ou seja, ler o texto
sem considerar os símbolos e o contexto. Em nossas comunidades, e em certas homilias, ouvi
explicações que não foram capazes de ir além do texto bíblico. Neste ponto quero trazer um
olhar sobre o milagre. Milagre significa “algo que provoca admiração”. Será que Jesus, para
mostrar seu poder, transformou a água em vinho? Será que precisava fazer isso? E se fizesse o
que isso significaria para a vida cristã hoje?
Como foi elucidado o vinho é um elemento simbólico, que representou a alegria, o amor
que estava faltando. Jesus não transformou a água em vinho. Entretanto, podemos afirmar que
41
ele transformou a imagem de Deus: de um Deus da Lei, ao Deus-amor, que quer a vida em
abundância a todos. E viver no amor é o caminho que, por vocação, todos os cristãos são
convidados a trilhar.
Jesus não foi nenhum curandeiro ou mágico. Não precisou mostrar seu poder, para ser
“reconhecido”. É importante que mudemos nossa compreensão de milagre: de algo
extraordinário, ao ordinário. Se milagre é algo que provoca admiração, a vida de cada pessoa
é um milagre, pois Deus gratuitamente concede-nos vida, saúde, e motivos para viver. E esse
mesmo Deus nos chama a sermos colaboradores na realização de milagres, por meio do nosso
comprometimento com a sociedade, especialmente na luta pela justiça.
Afirmar que Jesus transformou a água em vinho não diz nada à fé cristã. Entretanto, a
verdadeira mudança/transformação que Jesus quer realizar hoje é a transformação de nossos
corações, a fim de que, mesmo diante dos desafios atuais, sejamos fieis ao mandamento do
amor. Mas, para isso, é preciso que correspondamos a essa vocação.
4.4 Somos membros da Nova Aliança (Igreja)
O percurso realizado neste trabalho nos permite elucidar algumas reflexões sobre uma
eclesiologia pensada e vivida a partir da Nova Aliança. Também nós cristãos batizados, hoje,
com a força do Espírito Santo, somos convidados anunciar a mensagem de Jesus. Aqui
acentuo o ministério na Igreja e a celebração.
A Igreja é sinal e instrumento do Reino. Isto se manifesta pela atitude interior de doação
frente às necessidades dos nossos irmãos. Em nossas comunidades somos capazes de, assim
como Maria, perceber a necessidade da comunidade? Somos igualmente capazes de colocarnos serviço da comunidade? Acredito ser a disponibilidade uma atitude essencial. É na
necessidade de minha comunidade que Deus me chama a fazer a Aliança, colaborando, assim,
com a construção do Reino.
Essa perspectiva de serviço muda a compreensão de ministério na Igreja. Algumas
vezes os cargos ocupados nas comunidades são meios de promoção pessoal, não de um
serviço à comunidade. A palavra ministério significa serviço, por isso, seria contradição
assumir qualquer função na Igreja por interesse. Quem ainda não descobriu isso, vive na
Antiga Aliança. Nova Aliança, não importa quem é o maior, mas quem serve melhor,
buscando em primeiro lugar a gratuidade.
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Tempos novos pedem novas formas de ser e de agir. Vivemos num período em que é
marcante a liberdade e o individualismo. Neste sentido, a Igreja precisa refletir sobre suas
práticas, ser mais acolhedora, preferir mediar experiências que impor leis. Fazer uma
verdadeira atualização da Palavra de Deus, não se preocupando com discursos que têm pouca
relação com a vida do povo.
Celebrar a vida. A religião, como muitas vezes se experiencia, se mostra como uma
esfera quase que excluída da vida cotidiana. Costumamos dizer: agora vou rezar, vou à Igreja,
vou trabalhar. Parece que o religioso e o cotidiano então em dicotomia. Necessitamos mudar
essa compreensão. Primeiro porque a religião nos religa a Deus; segundo porque essa
experiência com Deus nos faz perceber e tomar sérias atitudes éticas em relação a nós e aos
nossos semelhantes.
A Antiga Aliança foi realizada com o povo de Israel. A purificação da pessoa se dava
pelo sacrifício de animais no templo. Pela interpretação dos fariseus, era uma aliança
excludente, feita somente com o povo de Israel. Jesus, porém, realiza uma Aliança com toda
humanidade. Não é preciso o sacrifício de animais, pois o próprio Jesus, com sua entrega na
cruz, expiou de uma vez por todas os pecados da humanidade.
É no Batismo que somos marcados como membros da Nova Aliança. Tornamos-nos
participes da vida de Jesus e membros da Igreja. Este sacramento nos torna filhos de Deus, e
por isso, o batizado assume um compromisso de defender a vida em todas as suas dimensões:
física, psíquica e espiritual.
Penso que os pontos aqui elucidados podem nos ajudar a repensar nosso modo ser
Igreja. Igreja não é prédio, mas é cada pessoa que assume o Evangelho em sua vida. Quem fez
a experiência de Jesus, não consegue ficar no anonimato, mas partilha isso com seu modo de
viver.
4.5 Características da Nova Aliança
O estudo realizado nos permite elencar algumas características da Nova Aliança. Estas
características são para os cristãos fundamentais:
a) É Jesus o autor da Nova Aliança. Jesus não se compromete conosco por causa de
nossos méritos, mas por que nos ama. Nas Bodas de Caná acontece uma antecipação
da Aliança, plenificada pela cruz de Jesus em expiação dos pecados de toda
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humanidade. Não há mais povo escolhido, todos são incluídos na Aliança realizada
por Jesus;
b) A Nova Aliança não acontece por si, é preciso que o ser humano responda
positivamente. Jesus, mesmo sendo autor da Aliança, não pode tirar a liberdade
humana. Neste sentido, há sempre um diálogo entre Jesus e nós. A realização da vida
no amor e na alegria depende, também, do esforço humano;
c) A Nova Aliança implica liberdade para amar. Só quem ama é capaz ir além, burlar as
regras, sacrificando-se pelo bem do outro. Exemplo disso é explicito na prática de
Jesus. Há uma grande diferença entre o convite ao cumprimento leis e o amar.
Somente quem supera o legalismo é capaz de viver na liberdade.
d) Caná da Galiléia é uma cidade pequena onde havia pobres. Não se esperava que esta
cidade trouxesse algo de bom. O primeiro sinal de Jesus, porém, acontece no meio
dos esquecidos. Por isso, a Nova Aliança é um convite à inclusão, incondicional.
Portanto, a Nova Aliança nos traz desafios para a espiritualidade e para a pastoral. Eu
elucidei alguns. Também somos desafiados a repensar o milagre, entendido como a própria
ação amorosa de Deus em nossa vida. Além disso, temos desafios na perspectiva
eclesiológica. Ser membro da Nova Aliança implica mudança, conversão. Isso se dá a partir
de dois movimentos: da reflexão sobre a prática e da busca de viver o Evangelho cada vez
mais.
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5 CONCLUSÃO
Ao estudar Jo 2,1-11 compreendi e aprofundei o tema da passagem da Antiga à Nova
Aliança. Este tema é atual, pois ainda hoje em nossas comunidades eclesiais e também na
sociedade existem situações em que a lei não está a favor da vida. Neste sentido, foi marcante
em minha caminhada acadêmica refletir o amor mais que a lei. Ao ir desenvolvendo este
trabalho tentei mostrar a passagem da Antiga Aliança, que prendia, à Nova Aliança, que
liberta.
Neste estudo, observamos que o Evangelho de João foi fruto de uma experiência póspascal. Por um lado, não pode ser considerado ata da vida de Jesus. Por outro, é um escrito
profundo, no qual encontramos a afirmação de Jesus enquanto Filho de Deus. Essa afirmação
fundamental da fé cristã, não nega em momento algum a humanidade de Jesus. Hoje, com as
contribuições deste Evangelho, é preciso que em nossas comunidades se equilibre a natureza
humana e divina de Jesus.
João estava ciente de que Evangelho, mensagem de Jesus, é universal. Essa
universalidade é reconhecida na medida em que o evangelho contemplou diferentes
destinatários: judeus, helenistas e gnósticos. Também podemos, em nossa ação
evangelizadora, falar a linguagem salvífica do Evangelho com palavras que toquem a alma
das pessoas de nosso tempo. Eis um desafio.
Este escrito sagrado foi elaborado num período de conflito. Os cristãos dos anos 90 d.C
precisavam afirmar a importância de viver a sua fé, sem deixar-se seduzir pela idolatria. E
neste sentido, foram convidados a renovar a fé em Jesus, o verdadeiro Senhor, e evitarem
qualquer forma de aliança com o poder romano.
O povo da Antiga Aliança compreendeu a saída do Egito e o código da Aliança como
manifestações de Javé. Com o passar do tempo, o povo nem sempre foi fiel. Mas Deus
permanece fiel. Também a Nova Aliança, em continuidade, mostrará a fidelidade de Deus.
O povo de Israel usava a linguagem simbólica: via sua relação com Deus como um
casamento, uma aliança, onde Deus é o Esposo e Israel, a esposa. Essa ideia é explicita em
passagens do Antigo Testamento, entre as quais podemos citar o Cântico dos Cânticos.
Inspirada nisso, a perícope Jo 2,1-11 apresenta os símbolos do casamento e outros. São usados
pelo evangelista de forma pedagógica, pois nosso falar sobre Deus é sempre aproximativo.
Neste sentido, mundo não precisa de grandes discursos sobre a fé; precisa, urgentemente, de
espaço e orientações que ajudem a fazer experiência de Deus.
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A ação transformadora de Jesus, a nova criação começa ao terceiro dia (Jo 2,1ss). É no
terceiro dia que acontecem eventos importantes, entre os quais, a ressurreição de Jesus. A
Mãe, símbolo dos fieis a Deus, colabora com a aliança; não consegue ficar inerte diante da
realidade do desamor. Jesus nos convida, também, a colaborarmos na transformação das
estruturas que não trazem a para a vida do povo. Esse é o verdadeiro vinho, o vinho do amor
que faltou na Antiga Aliança.
Os discípulos de Jesus primeiro fazem a experiência: olham a ação de Jesus. Depois
disso, estão preparados para seguir o exemplo do mestre. Passar da Lei externa ao coração é o
grande desafio cristão. Nosso mundo precisa também aprender a contemplar a ação de Deus.
Iniciada em Caná, a Nova Aliança, é instaurada definitivamente na cruz. A princípio os
serventes não entenderam o que estava acontecendo. Nós também, muitas vezes precisamos
deixar de lado o raciocínio para fazer a experiência de Deus. Isso se trona necessário porque o
nosso discurso sobre o Mistério é aproximativo. As palavras humanas não esgotam a pessoa
de Deus.
A presença de Jesus na festa irá mudar todo o seu desenvolvimento. Quando faltou
vinho (ou seja, o amor), Deus intervém na história. Transforma o legalismo em liberdade; a
aparência em profundidade de coração. Somos, enquanto cristãos, chamados a fazer a Aliança
com Deus. Uma religião baseada em leis não pode levar o ser humano à sua plena realização:
o amor.
A Nova Aliança, iniciada em Caná, se completará na cruz. É aí que Jesus mostrará seu
amor supremo à humanidade. Nós, cristãos, não somos membros da Antiga Aliança e sim da
Aliança do amor. E amar é fazer o bem, mesmo sem ser reconhecido ou correspondido a esse
bem. Deus é assim: nos ama mesmo quando não reconhecemos seu amor.
Portanto este trabalho mostrou a importância de valorizar a vida. Não simplesmente
cumprir leis. Neste sentido, é necessário investir na formação bíblica nas comunidades, pois
somente assim se aprofunda a fé e se evita o fundamentalismo. Cada cristão é convidado a
refletir sobre sua própria vida, enquanto membro da Nova Aliança. O convite é de Jesus, a
resposta é pessoal e processual.
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