APRESENTAÇÃO A Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu realizou, no período de 25 a 29 de maio de 2009, o seu VI Congresso Internacional de Direito, com o tema “Direito, Economia e Estado”. Neste Congresso, assim como nos que o antecederam, buscou-se propiciar aos alunos do Curso de Direito oportunidade de aprofundamento de diversos temas atuais, que se relacionam com o Direito e com diversas disciplinas, como a sociologia, economia, filosofia, antropologia, etc. Influenciados por essa perspectiva, os palestrantes abordaram diversos temas interrelacionados, tendo em vista o temário do Congresso, contando sempre com análises interdisciplinares. As exposições consideraram esse contexto, bem como os desafios que o mundo globalizado enfrenta diante da grave crise econômica, levando todos a refletir sobre a relação do Direito com a Economia, bem como da relação desses aspectos com o Estado. Os anais apresentam alguns desses temas na forma de resumos ou textos, elaborados pelos palestrantes. Nesse sentido, também contribuíram com as exposições participantes da Argentina e da França, que trouxeram experiências que enriqueceram mais ainda os debates. Os interessados que se inscreveram, puderam apresentar teses, que foram defendidas e também constam dos anais. É importante ressaltar que o Congresso teve a participação diária de aproximadamente mil alunos, considerando as duas Unidades da Faculdade de Direito da USJT – Mooca e Butantã, períodos da manhã e noite. Também participaram professores da instituição, além de estudantes e profissionais interessados de outros cursos da Universidade São Judas e de outras instituições de ensino superior. Os debates que se desenvolveram ao longo dessa semana de Congresso certamente contribuíram para a reflexão de todos os participantes, o que atende plenamente aos objetivos da Universidade São Judas Tadeu e do seu Curso de Direito. FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU COMISSÃO ORGANIZADORA: Adriano Guedes Laimer (Presidente) Solange Gonçalves Dias Fernando Guilherme Bruno Filho Lucyla Tellez Merino COMISSÃO CIENTÍFICA: Adriano Guedes Laimer Solange Gonçalves Dias Fernando Guilherme Bruno Filho Lucyla Tellez Merino Caio Gracco Pinheiro Dias DIAGRAMAÇÃO E ARTE FINAL: Celso Lemos Ferreira Mara Beatriz Dionisio Munir Abdo Baarini Junior Patrícia Gil dos Santos Sumário - Palestras Os Três Mitos do Direito Econômico............................................................................... 1 Fernando Herren Aguillar A moeda do Estado e o estado da moeda na crise econômica mundial........................... 8 Ademir Buitoni El Terrorismo Internacional como amenaza global a la Democracia Constitucional .... 20 Agustín Zbar Contratos incompletos e a atividade empresarial ........................................................... 22 Rachel Sztjan Desenvolvimento versus crescimento econômico nas cidades: Elementos para uma agenda de pesquisa urbana interdisciplinar ...................................................... 40 Jeroen Klink Planejamento tributário e limites na desconsideração de negócios jurídicos................ 41 Fabiana Del Padre Tomé Sistemas produtivos regionais no Brasil: uma perspectiva contemporânea .................. 43 Luis Paulo Bresciani La intervención administrativa en la economía: La actividad de fomento..................... 44 Alberto Biglieri. Promotoria Comunitária no Júri de Santo Amaro: seu surgimento, situação atual e perspectivas. ..................................................................................................... 45 Augusto Eduardo de Souza Rossini Atuação do Estado no domínio econômico e suas contrapartidas tributárias e não tributárias.......................................................................................................... 63 Tácio Lacerda Gama A recuperação das empresas em crise: um enfoque prático* .......................................... 66 Alexandre Alves Lazzarini A Crise Econônica Mundial e seus Impactos nas Relações de Trabalho no Brasil ....... 68 Otavio Pinto e Silva Teses 71 1 OS TRÊS MITOS DO DIREITO ECONÔMICO Fernando Herren Aguillar Doutor em Direito Econômico pela USP Mestre em Direito pela Académie Européenne de Théorie du Droit (Bruxelas) Diretor da Faculdade de Direito da Universidade São Judas Tadeu Professor de Gestão de Políticas Públicas da USP A quase totalidade das teorias do Direito Econômico forjadas antes da década de 90 do século XX, sejam as que pretendiam explicar o surgimento do Direito Econômico, sejam as que tentavam explicar o papel do Estado na economia capitalista, tornou-se subitamente defasada, insuficiente, inadequada mesmo para explicar o fenômeno da ação do Estado numa economia profundamente transformada. Para entender porque as doutrinas tradicionais de Direito Econômico perderam sua vitalidade, é preciso falar um pouco da superação de três mitos que justificadamente atormentavam a mente de economistas e juristas ao longo do século XX. O primeiro mito é o de que a Intervenção do Estado na economia seria a negação do Capitalismo, seria um desvio de rota, uma exceção, uma deformação do modo de produção1, ou ainda a sua socialização. O segundo mito, que corresponde à antítese do primeiro, é o de que a Intervenção do Estado seria a concretização da justiça no capitalismo, a correção de rumos necessária para alcançar-se o equilíbrio social, seria a versão definitiva e mais aperfeiçoada do capitalismo liberal. Por fim, o terceiro mito, o de que teria havido um período de abstenção estatal na economia capitalista. Esses mitos apenas puderam ser ostensivamente desmentidos com os fatos recentes da economia mundial. Antes disso, qualquer tentativa de negá-los poderia ser questionada como expediente meramente ideológico. Hoje, tais proposições perderam nitidamente a força e quem o demonstra são os fatos históricos, com muito mais poder de convencimento do que qualquer teoria. Apenas hoje é possível entender com maior clareza as oscilações do papel do Estado no sistema capitalista. Velhas concepções do Direito Econômico foram muito prejudicadas nesse aspecto. Não se pode culpá-las. Somente puderam explicar o mundo diante dos fatos que se apresentavam então. Em termos macroscópicos, hoje é possível perceber-se que a ação do Estado no modo de produção capitalista oscila como um pêndulo, entre a sua atividade mais intensa e a sua retração, privilegiando-se ora o intervencionismo, ora a liberdade de iniciativa. Antigas teorias do Direito Econômico não tiveram o privilégio de contemplar uma oscilação completa do pêndulo. Por isso, os precursores do Direito Econômico apenas podiam especular sobre os rumos que a economia e o Estado adotariam, mas não podiam ter certeza disso. 1 Para um exemplo clássico nacional, v. Eugênio Gudin. 2 Revendo tais especulações, destacam-se três grandes correntes, impregnadas de ideologia, e que mobilizaram o debate político e econômico durante décadas. Para duas dessas correntes, e desde há muito, as mudanças do modo de produção capitalista levariam ao colapso do sistema, embora com diagnósticos opostos. Inimigos do capitalismo prognosticavam o futuro: na imagem do pêndulo, ao alcançar-se o máximo estágio do intervencionismo, e ao verificar-se que os problemas da sociedade permaneceriam insolúveis, estaria provada a insuficiência do sistema. Já uma segunda corrente, de simpatizantes do capitalismo, denunciava o “erro”: nunca deveríamos ternos desviado da rota do livre mercado. Para os primeiros, portanto, era o capitalismo que era incorrigível, apontando para a necessidade de se instituir um novo modo de produção. Para os segundos, o capitalismo somente poderia funcionar satisfatoriamente com liberdade de ação empresarial e pouco Estado. Se ainda é cedo para dizer que o prognóstico do colapso falhou, dado que não podemos afirmar historicamente que o sistema atingiu seu ponto crítico2, podemos afirmar que o pêndulo atingiu o ápice da intervenção estatal no capitalismo com o Welfare State, o Estado do Bem-Estar Social. E, este é o ponto importante, refluiu. Ao atingir o ápice do intervencionismo estatal, o sistema nem ruiu, nem deixou de ser capitalista. Ao contrário, posto em xeque pelas crises fiscais e pela insuficiência de recursos públicos para a dinamização da economia, o Estado capitalista recorreu à estratégia de ceder espaço à iniciativa privada. O pêndulo retornou ao ponto de partida do capitalismo liberal, para aquele remoto contexto em que a sociedade acreditava que os problemas sociais seriam resolvidos com competição, com liberdade empresarial, com abstenção estatal 3 . A crise do Estado Providência, que marcou os últimos 20 anos do século XX, não levou, portanto, a mais intervenção do Estado na economia. Isso representou, e convém enfatizar, a ruptura com uma tradicional sucessão de diagnósticos até então produzidos, desde os primórdios do sistema. De que ruptura estou falando? A evolução histórica do capitalismo, em duzentos anos, sempre apontou no sentido de que as crises estruturais eram remediadas com mais ação estatal. Se não se pode falar em termos históricos como uma evolução linear - e inegavelmente as intempéries conjunturais trazem muitas exceções a regras gerais - isso não impede que se constate que a participação estatal no universo econômico apenas fez aumentar em quantidade e intensidade desde a Revolução Industrial inglesa até os anos 80 do século XX. Esse fato novo na história do capitalismo é que precisa ser analisado com grande proveito para o entendimento do Direito Econômico. Pela primeira vez, em termos estruturais, reagindo a uma grave crise econômica e social, o sistema deu mostras de que a sobrevivência dependeria de um retorno às origens liberais. O mito de que a intervenção estatal era uma exceção à regra, mesmo uma perversão do jogo, dissolve-se bruscamente. As evidências são por demais claras: a maior presença do Estado na economia capitalista é em regra uma demanda do próprio sistema, assim como sua eventual retração. A intensidade da ação econômica estatal é uma variável influenciada por incontáveis fatores, mas responde claramente a anseios de manutenção do próprio regime de mercado. 2 Que dependeria, ainda na imagem do pêndulo, de mais de uma oscilação completa, por exemplo. 3 Cf. relato de Eric Hobsbawn A Era dos Extremos, São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 3 Nesse ponto pode-se analisar a terceira grande vertente, a das teorias da “socialização do direito pelo Direito Econômico”, que corresponde precisamente ao segundo grande mito do Direito Econômico. Um grande número de especialistas em Direito Econômico pode ser encaixado nessa concepção, que vislumbrava com incontido entusiasmo a ação estatal destinada a corrigir os rumos do mercado livre. Para eles, o Direito Econômico era sinônimo de intervenção retificadora do Estado no domínio econômico e, ao invés de sinalizar o colapso do sistema, como o faziam as duas outras grandes ideologias já apontadas, a “nova disciplina” viria justamente permitir que as “injustiças” do capitalismo tivessem um fim. Significativo dessa postura é o lançamento da Nuova Rivista di Diritto Commerciale, Diritto dell’Economia, Diritto Sociale, em 1947, que tem como primeiro artigo publicado uma espécie de profissão de fé de Lorenzo Mossa4. Na Itália do pós Segunda Guerra Mundial, de sucessivas derrotas bélicas e morais, o jurista relança o Direito Comercial para uma nova e benemérita função. Com um estilo vibrante e emocionado, Mossa aponta que o direito de guerra deve transmudar-se em direito da paz, e para tanto, a nova Revista terá papel fundamental: “A revista se lança decididamente ao estudo do direito da economia, que, após a segunda guerra mundial, na espantosa crise econômica e ética da Europa, forma assim a desbordante realidade social, como a esperança do nosso destino. Este direito, tão sensível ao imperativo da política e à razão suprema da ética, será objeto de pesquisas por estudiosos”, que se deslocarão do direito comercial para o direito da economia, de caráter social. 5 Depois de 25 anos 6 , aponta Mossa, “il diritto dell’economia sta, finalmente, nel destino dell’economia per il bene della comunità nazionale, in una relazzione cioè, od in un vincolo, della organizzazione all’interesse comune, secondo l’idea sociale, che fa precipitare, ad un punto, nella luce dell’ideale sociale tutto il diritto. Il cominciamento è nel diritto dell’economia. 7 ” Tal como Mossa, embora por razões parcialmente diversas, muitos teóricos apontam um caráter finalístico pré-concebido para as normas de Direito Econômico. Robert Savy, Geraldo de Camargo Vidigal, A. F. Cesarino Jr. , são exemplos de defensores dessa concepção 8 . Subjazia nessas idéias a pretensão de que algo de absolutamente inovador estava por acontecer, capaz de afetar mentalidades, de mudar os homens e o mundo. O melhor exemplo dessa postura é Robert Savy, que apresenta uma definição finalista de Direito Econômico, tendo-o por “um conjunto de regras tendentes a assegurar um equilíbrio entre os interesses individuais dos agentes econômicos privados 4 Cf. o artigo Diritto Commerciale, Diritto dell’Economia, Diritto Sociale, vol. I, fasc. 1-4. Idem, p. 2. 6 Certamente refere-se ao lapso entre o lançamento da Nuova Rivista e a ascensão de Benito Mussolini ao poder, em 1922. 7 Op. cit., p. 3. 8 Em oposição a essa pre-concepção alinham-se outros autores, que deixam em aberto a ideologia da norma, para que seja preenchida pelo próprio ordenamento jurídico. Tal posição, com a qual concordo, é adotada por Modesto Carvalhosa, Washington Peluso Albino de Souza e José Nabantino Ramos. 5 4 ou públicos e o interesse econômico geral, para um dado momento e numa determinada sociedade. É a finalidade da regra que permite a sua qualificação: será de direito econômico, sempre que o seu objetivo for levar os vários agentes econômicos a tomar em consideração as exigências do interesse econômico geral. (...) Na sua essência, constituirá o direito de intervenção do Estado na vida econômica...” 9 Há pelo menos dois problemas nesta definição: em primeiro lugar, também o direito do período liberal, onde a presença do Estado era mais discreta, pretendia, declaradamente, estar fazendo valer a satisfação dos interesses gerais. Apenas se pensava que tal podia ser alcançado com níveis de interferência estatal inferiores aos que se praticariam a partir dos anos 30 do século XX. Uma tal definição não permite a conclusão do próprio Savy de que o surgimento do Direito Econômico se encontra no alargamento do papel do Estado sobre a economia. Em suma, não é o fato de visar ao interesse geral que delimita o território do Direito Econômico. Um segundo problema básico se encontra na pretensão de atribuir ao agente econômico capitalista a função de considerar os interesses gerais. Tal proposição parece absolutamente inverossímil. O agente econômico capitalista não é obrigado a levar em conta outro interesse que não o seu. O engano aqui se prende à concepção errônea de que a mudança do papel do Estado tenha alterado a lógica do capitalismo e de seus agentes. O empresário de hoje não difere, em termos de postura, do empresário de há duzentos anos, porque a dinâmica fundamental do capitalismo permanece dotada da mesma vocação de buscar proveito individual, e, assim, dar, tendencialmente, satisfação a necessidades sociais. A presença do Estado apenas fez introduzir novas variantes a serem consideradas pelo agente econômico na perseguição de seus interesses individuais. E isso não quer dizer que este passe a buscar a satisfação de interesses outros que não o seu próprio 10 . Geraldo Vidigal sustenta que “o Direito Econômico é a disciplina jurídica de atividades desenvolvidas nos mercados, visando a organizá-los sob a inspiração dominante do interesse social” 11 . Em primeiro lugar, repete-se aqui o erro de atribuir-se finalidades ex-ante ao ordenamento jurídico. Não se pode afirmar que uma dada norma ou conjunto de normas tenham por função proporcionar um bem-estar. Se proporcionam ou não um bem-estar (e para quem proporcionam) depende de aferição ex-post, ou seja, após a ocorrência do fato, mediante pesquisa de campo. Ainda uma vez se vê a influência do idealismo herdado da filosofia clássica. 9 10 Savy, Robert. Direito Público Econômico, Lisboa, Editorial Notícias, 1984, p. 12. Max Weber afirma que a “ânsia do lucro ilimitado” não é privilégio do capitalismo. Mas “de qualquer forma, o capitalismo, na organização capitalista permanente e racional, equivale à procura de um lucro sempre renovado, da ‘rentabilidade’”. “Só pode ser assim”, conclui, “uma empresa individual que não se orientasse por esse princípio estaria condenada a desaparecer.” ( A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Introdução). 11 Teoria Geral do Direito Econômico, São Paulo, RT, 1977, p. 44. 5 Também não haveria motivos para se sustentar que antes do intervencionismo dos anos 1930 não existia interesse em alcançar-se o bem-estar social. Toda a teoria liberal econômica está calcada na premissa de que o maior bem-estar coletivo advirá da maior liberdade individual de agir e empreender. Para desmitificar o Direito Econômico, laicizá-lo, é preciso compreender apenas que intervir ou deixar a economia seguir livre curso são opções de política econômica estatal. São remédios decorrentes de diagnósticos de detentores do poder sobre os problemas econômicos e sociais. Nada mais do que isso. Não são a cristalização do bem-estar social, nem a socialização do capitalismo. São técnicas de ação estatal, utilizadas de acordo com as avaliações dos governantes e podem priorizar este ou aquele segmento social, esta ou aquela solução, dentre várias possíveis. E essa intervenção estatal oscila ao longo da vida do capitalismo, ao sabor das pressões, das necessidades, do jogo político e da capacidade dos agentes econômicos de influenciar decisões. Desamarrado de compromissos pré-arranjados pela doutrina, de ideais artificialmente colados ao Estado, o Direito Econômico pode ser melhor entendido. A maior intervenção do Estado não é nem a perversão do capitalismo, nem sua socialização ou aperfeiçoamento rumo a uma sociedade de bem-estar. É uma solução conjuntural para problemas sociais detectados por aqueles que têm o poder de decidir em nome do Estado, num ambiente inescondivelmente capitalista. O terceiro mito, o de que teria havido um período de abstenção estatal na economia, segue o mesmo destino dos dois primeiros. Aqui encontramos a chave para entender a origem da disciplina do Direito Econômico. O conteúdo da disciplina do Direito Econômico está intimamente relacionado ao papel desempenhado pelo direito e pelo Estado na concertação política que escolhe as formas de organização econômica da sociedade, particularmente na vivência do fenômeno jurídico das sociedades ocidentais capitalistas. Enquanto se concebeu a intervenção econômica estatal como uma exceção ao regime capitalista, um determinado quadro teórico prevaleceu como explicação válida dentro do direito. Quando se passou a visualizar o intervencionismo como característica inerente ao próprio capitalismo, esse quadro cedeu lugar a novas formas explicativas: não é que tenha havido um período sem intervenção do Estado no domínio econômico. É que essa intervenção era julgada inerente à “natureza das coisas”. A proteção mínima à propriedade era tida como fruto do Direito Natural e, portanto, regulada ou não pelo direito positivo (Estado), seria objeto de necessária tutela. John Locke dá o melhor exemplo para a afirmação. Em passagem antológica, Locke justifica a transformação da propriedade. De algo dado por Deus aos homens como um todo, para algo que pode e deve ser detido individualmente, pela razão e pala natureza das coisas 12 . Mesmo assim, Locke defende a constituição de uma “sociedade civil”, porque, em “estado de natureza”, o direito de propriedade, ainda que preexistente, seria vulnerável à cobiça humana. A positivação da proteção à propriedade, na tradição liberal-contratualista a partir de Locke, portanto, significa o resguardo mais firme a esses direitos naturais, preexistentes à lei posta, mas que seriam melhor protegidos por esta última. Entretanto, a regulação em si era tida por neutra, 12 “Esforçar-me-ei por demonstrar como os homens puderam tornar-se proprietários de partes daquilo que Deus deu à Humanidade em comum, e isso sem qualquer consentimento expresso de todos os comunheiros.” (Segundo Tratado sobre o Governo Civil, cap. V, 24. Tradução do autor) 6 ambientalmente integrada. O direito positivo que tutela a propriedade nada mais fez que ampliar a proteção a um “direito natural de propriedade” preexistente. A Constituição não devia comportar regulação econômica, segundo o conceito da época. A própria Constituição do Império no Brasil, em seu art. 178, dispunha que “é só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos cidadãos”. A fundação estrutural da economia capitalista pelo direito, implícita na tutela da propriedade privada e do contrato, não era percebida como uma regulação econômica. Por esse motivo, a intervenção que se verificava então, nem era considerada como tal, porque fazia parte da “natureza das coisas”. A historicidade e a relatividade da propriedade privada era obscurecida pelo discurso da transcendência dessa forma específica de organizar a sociedade e a economia. Enxergava-se o que era dado ver, dentro dos padrões de conhecimento adquiridos, e em face do estágio de desenvolvimento histórico da economia capitalista. Nesse primeiro quadro de apreensão das relações entre Estado e economia, não se distinguia o Direito Econômico. Quando, mais tarde, a presença do Estado passou a ser cada vez mais notada no âmbito econômico, o conjunto de regulações jurídicas que a expressava, agora mais pronunciadamente, passou a ser referido como Direito Econômico. Assim, o Direito Econômico surgiu, aos olhos dos que testemunharam aquelas transformações em seu nascedouro, como sinônimo de transformação das estruturas do modo de produção capitalista, no sentido de afastamento de suas fundações originais. Daí ter sustentado Farjat que a mentalidade liberal do século passado representava a proibição do surgimento de um Direito Econômico. Nessa forma de visualizar o Direito Econômico, seu surgimento dataria dos anos trinta do século XX. Ocorre, porém, que o retorno, presentemente vivido, a ambientes de mercado menos intensamente regulamentados, sinaliza que a ação maior ou menor do Estado no modo de produção capitalista não se dá de maneira a perverter suas estruturas originais. Ao contrário, a ação estatal é episodicamente mais ou menos conveniente na preservação do próprio sistema capitalista. Para tanto é ora conclamada ora contestada, do que se pode legitimamente concluir que o Direito Econômico não é nem um disciplinamento que apenas surge nos momentos de crise de mercado, nem um fenômeno de perversão da lógica e da dinâmica capitalista. Ele tem função constante no modo de produção, mas essa função é altamente maleável e sensível ao ambiente. Mais ainda, o Direito Econômico tem seu conteúdo definido igualmente pelo perfil da ação concreta praticada pelo Estado e, portanto, pode variar tanto quanto esta última. Na realidade, o Direito Econômico (enquanto conjunto de normas que veiculam políticas econômicas) só começou a ser percebido com o aumento da intensidade da interferência estatal sobre a economia, mas preexistiu a esse fato. E o conceito limitado de Direito Econômico que foi produzido pelos primeiros analistas do fenômeno interventivo é decorrência necessária das limitações que a história impunha. O fluxo e refluxo do papel do Estado ao longo de dois séculos de capitalismo nos oferecem hoje elementos de análise que não eram tão ampla e plenamente acessíveis ao observador do mesmo sistema há apenas uma década. 7 A retração por que passa o papel do Estado na economia capitalista não sinaliza, portanto, o fim do Direito Econômico, tanto quanto a hiperatividade estatal não marca seu aparecimento. O aumento da regulação estatal apenas permitiu a "descoberta" de um Direito Econômico preexistente, e a sua diminuição forneceu elementos para melhor entender a dinâmica capitalista, impondo, por conseguinte, uma reavaliação circunstancial do âmbito do Direito Econômico. Em determinado momento, o Direito Econômico não pôde ser visualizado porque coincidiu, praticamente, com o âmbito de regulação do Direito Civil e Comercial, o Direito Privado. O Direito Econômico do Liberalismo é a garantia estatal à propriedade privada, ao contrato e à livre empresa. É o direito que espelha uma política pública econômica desconcentrada normativa e operacionalmente. Apenas na medida em que o Direito Econômico se emancipa do Direito Civil e Comercial e se robustece com feições próprias é que se pode falar de um "surgimento" do Direito Econômico. Mais ainda, o atual processo de desestatização da economia não tem conduzido a um enfraquecimento do Direito Econômico, muito menos se verifica uma recondução de sua esfera de abrangência às lindes do direito privado. É que a predominância social do discurso político privatista se dá em novo contexto histórico, no qual qualquer Estado inserido na competição comercial internacional tem tarefas indispensáveis na promoção de políticas de fortalecimento do mercado interno. O Direito Econômico, ao contrário, tem vivido formidável expansão, consolidando-se como instrumento relevante da organização e incremento da economia capitalista. Esta não prescinde do Estado, muito menos do Direito. Enquanto ela estiver constituída e vigente, o Estado e o Direito adquirirão as mais diversas formas, amoldando-se às suas necessidades. Não sendo eliminado em absoluto, o papel do Estado adquire novas feições, reavivando ou abolindo mecanismos jurídicos diversos. O mesmo se dá com o Direito Econômico, como instrumento da ação regulatória do Estado sobre a economia e como disciplina universitária. O seu conteúdo e seu âmbito de ação não têm formas definitivas sacramentais, muito menos essencialistas, porque permanentemente cambiantes. Mais do que em outras disciplinas, descobrir o que o Direito Econômico tem sido não é prova nem justificativa do que ele será amanhã. Há mais de uma maneira correta de se definir o que é o Direito Econômico. Enquanto inatacáveis do ponto de vista lógico e enquanto matrizes disciplinares compatíveis com matrizes ideológicas determinadas, essas definições são todas elas invariavelmente toleráveis pela Ciência do Direito. O analista de hoje tem o privilégio de investigar e explicar o mundo com base em novas e cruciais informações sobre a mecânica histórica do sistema capitalista. Por essa razão, a produção precedente, em suas diversas fases, precisa ser entendida com essas limitações. Mas, fundamentalmente, precisa ser revista. 8 A MOEDA DO ESTADO E O ESTADO DA MOEDA NA CRISE ECONÔMICA MUNDIAL Ademir Buitoni Mestre em Direito Comercial e Doutor em Direito Econômico pela FDUSP. Advogado e Mediador em São Paulo, Professor de Direito Empresarial da FDUSJT. INTRODUÇÃO A Moeda é um símbolo que se relaciona com o Direito, o Estado e a Economia. É o ordenamento jurídico quem estabelece as condições de existência da moeda. É o Estado quem emite a moeda. É a Economia quem usa a moeda para a circulação de bens e serviços. De fato, a Moeda só existe por ato de emissão. O monopólio de emissão da moeda, atualmente, é do Estado. Emitir é um ato jurídico praticado pelo Estado e as peças monetárias emitidas adquirem a validade de dinheiro de acordo com o ordenamento jurídico vigente. A Moeda que vale é a moeda do Estado, não existe outra alternativa. A política monetária praticada pelo Estado, num contexto de absoluta hegemonia do capitalismo financeiro como o mundo atual está vivendo, acaba sendo a política mais importante. Por outro lado, a Moeda, além de sua utilidade econômica, tem uma função social como parte do ordenamento jurídico, estimulando certos comportamentos da sociedade e inibindo outros. Em razão do grande crescimento do sistema econômico capitalista, em especial no último século, o controle da Moeda, pelo Estado, ficou muito complexo. O funcionamento equilibrado da sociedade, pelo menos em termos formais, como objetivo do sistema jurídico democrático, diante da globalização econômica do capitalismo, vem sendo explicitamente ameaçado. O Estado está ameaçado de perder o controle da circulação internacional de capitais e assim começa a ficar difícil saber qual o efetivo estado da Moeda na economia em crise. O surgimento de uma crise econômica não é novidade no sistema capitalista, outras já existiram, sendo que a crise de 1929 sempre surge como o grande exemplo. A novidade é constatar que as nações mais importantes do mundo não sabem a extensão, nem as causas, nem como superar a crise. Não cabe ao Direito, isoladamente, dar respostas para essa crise, mas cabe ao Direito contribuir para entender e colaborar no encontro das soluções. O Direito, apesar de ser praticado de modo excessivamente dogmático, positivista e racionalista, ainda é o campo privilegiado dos Direitos Humanos, da axiologia, dos valores sociais,da ética e dos sentimentos de Justiça , cabendo aos operadores do direito contribuírem para a criação de novos paradigmas sociais e econômicos. Assim, a Moeda do Estado, regulada pelo ordenamento jurídico, a nosso ver, está no centro da crise, por ser a Moeda o elemento fundamental para o funcionamento da economia capitalista. Porém, a Moeda deve ser analisada e entendida pelos juristas como um símbolo que ultrapassa os limites da área financeira, tendo uma função mediadora muito relevante na crise econômica em discussão. O CARÁTER MONETÁRIO DA CRISE GLOBAL O ano de 2008 registrou uma das mais graves e profundas crises econômicas dos últimos cem anos, com conseqüências ainda imprevisíveis para a vida dos cidadãos deste complexo mundo do século XXI. Trata-se de uma crise que só superficial e 9 aparentemente tem origem nas questões do inadimplemento das hipotecas americanas (sub prime), mas que, na verdade, vem se desenhando há muito mais tempo no atual sistema econômico capitalista. Joseph Stiglitz ,Prêmio Nobel de Economia , avaliou que essa crise representou a queda do conceito do fundamentalismo do mercado livre, assim como a queda do Muro de Berlim foi o símbolo do fim do comunismo. Disse ele: ”O programa da globalização esteve estreitamente ligado aos fundamentalistas do mercado: a ideologia dos mercados livres e a liberalização financeira. Nesta crise observamos que as instituições mais baseadas no mercado vieram abaixo e correram a pedir ajuda do Estado. Todo mundo dirá agora que este é o final do fundamentalismo de mercado. Neste sentido a crise de Wall Street é para o fundamentalismo de mercado o que a queda do muro de Berlim foi para o comunismo: ela diz ao mundo que este modo de organização econômica é insustentável” (cf.Joseph Stiglitz, entrevista para Nathan Gardels, jornal El País, 25.9.08). A dimensão da crise atual parece ainda ir muito além da crise econômica, parece ser mais ampla atingindo, inclusive, outros campos da atividade humana, ligados à ecologia, produção de energia e alimentos, como já foi também observado: “Nunca havia acontecido antes. Pela primeira vez na história da economia moderna, três crises de grande amplitude – financeira, energética e alimentar – estão em conjunção, confluindo e combinando-se. Cada uma delas interage sobre as demais, agravando, de modo exponencial, a deterioração da economia real. Por mais que as autoridades se esforcem em minimizar a gravidade do momento, o certo é que nos encontramos diante de um sismo econômico de magnitude inédita, cujos efeitos sociais, que mal começaram a se fazer sentir, explodirão nos próximos meses com toda a brutalidade.” (cf. Ignácio Ramonet, Le Monde Diplomatique, julho/2008). Em decorrência mesmo de vivermos numa sociedade globalizada, a crise assume proporções globais. Nosso foco, porém, é analisar mais o caráter financeiro da crise, ou seja, as questões ligadas sobretudo ao fenômeno da moeda, ao fluxo monetário mundial, assuntos pertinentes ,basicamente, ao uso simbólico da moeda. Vamos discutir o que é, e como funciona, essa idolatrada invenção humana: a moeda. Nas outras crises econômicas, as discussões principais foram ligadas ao excesso ou escassez de produção de mercadorias, ao controle de preços, a dominação de mercados, proibição de importações, estímulo de exportações ou problemas análogos. O problema agora é o dinheiro, a moeda, é como lidar com o complexo mercado financeiro nacional e internacional. O funcionamento e utilização da moeda, que o liberalismo tratou com tolerância, quase sem limites, nos últimos anos, entrou em crise, apresentando surpresas, anomalias e instabilidades difíceis de serem controladas. Isso levou, recentemente, o conhecido economista Alan Greespan, ex-presidente do Fed (o Banco Central dos Estados Unidos), a declarar que errou, parcialmente, ao acreditar que as instituições financeiras não seriam irresponsáveis nos empréstimos, como foram (cf. “Greespan admite ter errado parcialmente” Folha de São Paulo, 26/10/2008), Mas a crise ,a nosso ver, vai muito além da irresponsabilidade ou não das instituições; é uma crise da hegemonia do paradigma do sistema monetário,como tentaremos demonstrar. Os governos dos Estados Unidos da América do Norte, da União Européia, Japão, da maioria dos países, inclusive o Brasil, passaram a intervir para ajudar os bancos, empresas de seguro e outras, visando proteger os interesses e a poupança dos cidadãos, e de todos os ameaçados de perder o dinheiro. O Estado vem atuando 10 fortemente como o grande agente Interventor ,visando manter o funcionamento do sistema econômico vigente e superar a crise, pois a ideologia e as forças do Mercado livre se mostraram sem condições para tanto. Nesse contexto, parece ser necessário voltar a refletir sobre a moeda, sua origem, seu significado, sua finalidade, pois acabamos achando tão natural usar o dinheiro que esquecemos que ela é um produto da civilização humana, um instrumento mediador para facilitar a atividade econômica. A moeda não pode ser o objetivo principal do sistema econômico. A moeda é um meio e não um fim , como discutiremos a seguir. A MOEDA COMO SÍMBOLO A origem da moeda, apesar de não haver precisão absoluta, é atribuída aos Lídios, no século VII, entre 687 e 650 A.C, pois eles unificaram o sistema de cunhagem. (Rivoire,1985: 9). Mas ,antes disso, no terceiro milênio AC já existia o ouro como unidade de conta no Egito e a prata na Mesopotâmia. Os chineses a partir do séc. IX AC, usavam o bronze como meio de pagamento, em diversas formas de inscrições gravadas. Ou seja, a moeda não existia num estágio anterior da civilização, ela aparece junto com as formas mais evoluídas de organização social, substituindo o escambo ou troca material de mercadorias por mercadorias equivalentes, por um padrão mais abstrato de troca. A partir da Grécia e da Pérsia, sobretudo, a moeda vai se espalhar pelo Mediterrâneo, vai para Roma, para todo o Ocidente medieval e renascentista, sendo então objeto de estudos de teólogos, de filósofos como Platão, e outros pensadores. Desde sua criação, a moeda passou a representar um instrumento poderoso de realização dos desejos do ser humano, pela suas principais funções de: instrumento de troca, padrão de valor, meio de pagamento e reserva de valor. Possuir moeda, nesse contexto, passou a significar possuir poder, ter acesso aos bens materiais, poder comprar mercadorias, utilidades e outros bens. A partir da invenção da moeda, os fenômenos monetários passaram a intrigar e a inquietar a atividade da sociedade. Talvez a moeda seja a realidade que penetra mais intimamente na vida privada de cada um, pois é, principalmente, pela mediação monetária que as pessoas satisfazem suas necessidades e desejos. Este mundo global é cada vez mais penetrado pelo fato econômico e pelo predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo. De outro lado, o capitalismo, para operar, necessita da estrutura da regulamentação jurídica. Então cabe indagar: qual a contribuição do Direito diante do fenômeno monetário? Várias abordagens podem servir para discutir a natureza da moeda: seria a moeda fruto da necessidade econômica? Da linguagem jurídica? Da cobiça? Da violência? Da soberania do Estado? Dentro dessa complexidade, o tratamento mais adequado, a nosso ver, é encarar a moeda como símbolo porque nos parece mais próximo do aspecto jurídico: símbolo é convenção e o Direito Positivo depende, basicamente, das convenções. Mas o conceito de símbolo vem da linguagem humana, daí a necessidade de recorrer a conceitos da Semiótica. A linguagem utiliza signos. Na definição de Peirce o signo “é um cognoscível, que por um lado é determinado por algo que não ele mesmo, denominado de seu objeto, 11 enquanto, por outro lado, determina alguma mente concreta ou potencial” (Peirce, 1960:160) Ou, de um modo mais simples: "Signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto” (Santaella, 1988: 78). Portanto, o signo representa o objeto, mas com ele não se confunde. Símbolos, portanto, são tipos gerais aceitos - por convenção - como representantes do objeto. "Sendo uma lei, em relação ao seu objeto o signo é um símbolo. Isto porque ele não representa seu objeto em virtude do caráter de sua qualidade (hipoícone), nem por manter em relação ao seu objeto uma conexão de fato (índice), mas extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto” (Santaella, 1988: 91,92). Nesse sentido, a moeda é um símbolo porque assim foi convencionado: substitui o objeto que representa. A moeda é signo de grande poder de representação: substitui uma série indefinida de objetos, mediando quase todas as trocas num determinado contexto econômico. A moeda, além disso, é símbolo porque resulta de uma convenção social, impondo-se a todos como representante geral do valor de bens e serviços desejados pelas pessoas. A moeda é de tamanha utilidade que sua posse e acumulação constitui um dos elementos definidores do sistema econômico capitalista, pois sem isso o sistema não funciona. Ter e usar o dinheiro acabou sendo tão natural que o ser humano talvez tenha perdido a consciência do artifício que representa a moeda. Mas a moeda continua sendo criação humana do mesmo modo que a fala. ”A moeda é tão pouco natural quanto o é a fala" (Aglieta, 1990: 25). Como falamos, espontaneamente, usamos moedas, espontaneamente. A moeda tornou-se, assim, um dos símbolos mais conhecidos e desejados do mundo, fazendo as pessoas confundirem a representação simbólica com a realidade. Mas ela não é uma realidade por si mesma, é um símbolo a que se atribuiu valor. O monetarista Milton Friedman é categórico: “Os pedaços de papel verde têm valor porque todo mundo acha que eles têm valor”. Todo mundo pensa que eles têm valor porque, segundo a experiência de todos, tiveram valor. Essa ficção não é nada frágil. Pelo contrário, o valor de ter uma moeda comum é tão grande, que as pessoas defenderão a ficção mesmo sob uma provocação extrema. Mas também a ficção não é indestrutível: a frase americana “não vale um continental “é um lembrete de como a ficção foi destruída pela quantidade excessiva de moeda continental que o Congresso Continental emitiu para financiar a Revolução Americana” (Friedman, 1992:23)”. Como todo símbolo, a moeda, para ser forte, deve ser respeitada, deve ter credibilidade. Porém, a atual crise econômica mundial é um desses momentos críticos em que o símbolo-moeda perde o prestígio. Quando isso acontece, a história mostra que as economias não voltam ao escambo, ou seja, à economia das trocas das mercadorias por outras mercadorias; mas, pelo contrário, mantêm a moeda - trocando-a por outro símbolo, eliminando moedas ruins, criando novas regras jurídicas para o mercado e procedimentos afins, como estamos assistindo no mundo todo. A moeda, de uma forma ou de outra sobrevive. É quase impossível neste momento, imaginar uma economia não-monetária; embora seja necessário criar alternativas para que a Moeda do Estado não seja o grande mediador da sociedade, redefinindo o lugar da moeda, de modo não hegemônico, ao lado de outros símbolos e elementos mediadores. Inexiste, porém, neste momento, outro símbolo que faça o papel 12 da moeda. Como símbolo, acabou sendo o símbolo máximo, de maior importância, do sistema econômico capitalista global, suplantando os demais símbolos nacionais, religiosos, políticos, ideológicos e afins. Por outro lado, não cabe ao campo de conhecimento da Economia, mas ao Ordenamento Jurídico - dar valor à moeda e definir suas funções, como veremos a seguir. FUNÇÕES DA MOEDA Do ponto de vista funcional, a moeda oscila entre a Economia e o Direito. Nascida na prática para mediar as trocas de mercadorias, com o tempo foi se tornando cada vez mais dependente da ordem jurídica e, modernamente, do Estado, que possui o monopólio da emissão da moeda. Isso não significa que a Moeda deixou de ser um símbolo de valor, mas que o Direito deu uma nova estrutura ás funções da moeda. As funções básicas da moeda são: padrão de valor, instrumento de troca, meio de pagamento e reserva de valor. Do ponto de vista da Economia, prevalece a função de instrumento de troca e de reserva de valor. A partir do pós-guerra, de 1945 em diante, a função principal tem sido de reserva de valor, ou seja, a acumulação de moeda como um fim em si mesmo, como uma mercadoria, acompanhando justamente a evolução do capitalismo produtivo para o financeiro. A “financeirização” da economia, que chegou ao auge agora, representa também o aspecto predominante da atual crise. Para o Direito,a função predominante da Moeda é a de meio de pagamento, para extinguir obrigações; e padrão de valor, para servir de medida de equivalência quantitativa nas trocas. Mas, na verdade, todas essas funções interagem, umas com as outras, numa complexidade que só para efeitos de análise se distinguem. Tais funções são regulamentadas pelo ordenamento jurídico de cada Estado, variando conforme o contexto econômico. Historicamente, a função mais importante da moeda sempre foi como instrumento de troca, e talvez seja necessário voltar a enfatizar essa função básica da moeda.Em 1355, no Pequeno Tratado da Primeira Invenção das Moedas, do teólogo Nicole Oresme, considerada a primeira obra inteiramente dedicada ao assunto, já se colocava a justificativa da criação da moeda, para facilitar trocas, mas com a advertência de que era artificial .Escreveu Oresme: “(...) como surgissem nessa forma de permuta e de troca das coisas muitas dificuldades e controvérsias, os homens,engenhosos descobriram uma maneira mais ágil de fazê-lo, isto é, fazer uso da moeda, a qual foi o instrumento para permutar e comerciar entre si suas riquezas naturais. E como unicamente estas, por si próprias, satisfazem diretamente as necessidades humanas, todo o dinheiro é dito riqueza artificial e não poderia ser de outro modo, podendo acontecer que alguém que as tenha em abundância possa até morrer de fome ao lado delas”(Oresme,1382:36). Portanto, a riqueza monetária é apenas uma invenção dos homens. Sobre a utilidade da Moeda, no clássico Tratado de Economia Política, Jean Baptiste Say, em 1803, ensina , em sentido semelhante , sobre a função da moeda: "Se existir na sociedade uma mercadoria procurada, não em razão dos serviços que, em si mesma, dela possamos tirar, em razão da facilidade encontrada em trocá-la por todos os produtos necessários ao consumo, uma mercadoria tal que possamos adequar 13 exatamente à quantidade que entregamos dela ao valor do que se deseja ter será somente essa mercadoria que nosso cuteleiro procurará obter em troca de suas facas, porque a experiência lhe ensinou que, com ela, obterá facilmente, mediante outra troca, pão ou qualquer outro artigo de que possa precisar. Essa mercadoria é a moeda”. (Say, 1983: 210). O economista moderno Milton Friedman define a função da moeda de forma parecida: "... a moeda é aquilo que é aceito por todos em troca de bens e serviços aceito não como um objeto para ser consumido, mas como um objeto que representa um conteúdo temporário de poder aquisitivo a ser usado para comprar outros bens e serviços" (Friedman, 1992:28). Essa função básica da moeda, de ser meio de troca, é universal e foi o motivo da invenção da moeda. Porém, como já dito, ela foi se tornando cada vez mais reserva de valor, ou seja, sendo objeto de negociação como mercadoria moeda, acumulando valores que geraram um novo tipo de mercado, o financeiro. A moeda, enfim, se tornou a mercadoria mais valiosa do sistema. Isso está na base da crise atual, em que o mercado financeiro passou a atuar sem que o Estado pudesse saber ou regular o que os agentes econômicos estavam fazendo com a moeda do Estado. A crise vem criando uma tendência em voltar a analisar os pensadores clássicos nesse assunto monetário, como Marx, que já havia apontado o inadequado uso da moeda como reserva de valor. Usar a moeda como mercadoria é inverter a ordem natural das coisas, pois o valor essencial da vida humana estaria na natureza e no trabalho social: "Desde que o dinheiro, noção existente e manifesta de valor, confunde e troca todas as coisas, ele é a confusão geral e a troca de todas as coisas, sendo, pois o mundo invertido, a confusão e a troca de todas as propriedades naturais e humanas". (Marx, 1963:107 Na verdade, a crítica marxista retoma sob outro enfoque, o que os teólogos e filósofos falavam da moeda antes do capitalismo se tornar o regime dominante, a começar por Aristóteles, no livro V da Ética:”A moeda foi instituída por convenção, e por essa razão ela é chamada de nómisma, ou seja, pela lei, porque justamente tem valor por lei e não por natureza, e porque está em nosso poder modificá-la e torná-la sem valor” (apud Galiani, 2008:72). Essa convenção artificial do símbolo moeda,de tão aceita hoje em dia sem maiores discussões , pode até acabar se tornando um mito, como já observou, recentemente, um conhecido economista brasileiro, prof. João Sayad, da Faculdade de Economia da USP: “Dinheiro é um mito. Não é uma mentira. É história de origem esquecida que organiza a vida social - fala da criação do mundo e de heróis que transmitem os valores da sociedade. O mito é um discurso. Dinheiro é o mito que organiza a atividade econômica, a escolha entre diferentes alternativas, custos, receitas, lucros! (artigo publicado no Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 22.3.09, p.7). Pode parecer estranho um economista dizer que a moeda é um mito, porém isso tem fundamento. A moeda acabou se tornando um fetiche, um fim em si mesma, um símbolo quase onipotente que condiciona a vida das pessoas e do Estado, mas cuja existência é, sem dúvida, abstrata e artificial. Para exemplificar essa conotação mitológica, sagrada, que o Capitalismo vem dando à moeda, basta lembrar que no papel moeda do dólar americano está escrito: “In God we trust” (Em Deus Confiamos) e que no nosso atual papel moeda do Real está escrito “Deus Seja Louvado”. Por que essas inscrições teológicas na moeda? Seria para 14 lembrar que Deus circula junto com o dinheiro? Lembrar que o dinheiro é sagrado? Dar credibilidade á moeda? Se não duvidamos da existência de Deus também não devemos duvidar do valor da moeda? Seria esse mesmo, a nosso ver, o sentido dessas inscrições ,ou seja, reforçar que sem a moeda não podemos viver: a moeda do Estado é o “Deus” do sistema capitalista,o valor máximo a ser perseguido pela atividade dos homens. Nessa perspectiva, talvez a solução da crise exija reavaliar o sistema monetário e econômico como um todo, criar outros mecanismos sócio-econômicos de convivência - outros mediadores não monetários -, para se conseguir o equilíbrio vital. Aí entra o problema da disciplina jurídica da moeda, da organização internacional do sistema monetário e, em última análise, o problema da estabilidade econômica. Porém, não é exclusividade do Direito, nem da Economia, solucionar o problema de forma exclusivamente racional, como vem sendo tentado até agora. A eficiência da racionalidade econômica e jurídica parece colocada em dúvida diante da crise. O dogma de um Direito Positivo onipotente, racional, capaz de dar segurança à vida social e econômica, neste momento está sendo mais do que nunca questionado. A racionalidade de que falava Max Weber no século XIX: “O domínio universal da relação associativa de mercado exige, por um lado, um funcionamento do direito calculável segundo regras racionais” (Weber, 1991: 227), tem se mostrado difícil de alcançar na Economia e no Direito. Os fatores psicológicos, sociais, culturais e afins, o conceito de sociedade complexa, uma mescla de ordem e desordem são cada vez mais valorizados. A crença na economia, com seus postulados dogmáticos baseados na suposta possibilidade de construir um mercado equilibrado, acreditando que todos agem racionalmente para o bem da sociedade, vem sendo abandonada. A atual crise, após a longa experiência da Conferência de Breton Woods (1944), que criou o FMI, sem que, após mais de 60 anos, tenha sido alcançada a almejada estabilidade econômica mundial, coloca em dúvida a manutenção do modelo econômico capitalista praticado até agora. Porém o difícil é encontrar outros caminhos alternativos para a economia e para a sociedade deste século XXI. Há uma oscilação constante entre os partidários de uma maior intervenção do Estado no mercado e os adeptos do funcionamento do mercado com total liberdade. Como sair desse dualismo binário entre Mercado e Estado? Entre normas de Direito e normas de Economia? Não há ortodoxia ou heterodoxia que resista a uma crise global como esta! A resposta ainda não existe, é preciso encontrar um paradigma novo de vida econômica e social. Uma das propostas de novo paradigma, que vêm sendo desenvolvidas em várias áreas de conhecimento, inclusive no Direito, tem sido a Mediação. O Estado, por exemplo, ao invés de atuar como Interventor no Mercado poderia atuar mais como Mediador, e isso seria uma alternativa criativa para desenvolver um novo modelo econômico. Vejamos, brevemente, essa alternativa. O ESTADO: ENTRE A INTERVENÇÃO E A MEDIAÇÃO O Estado tem atuado na ordem econômica mundial, em geral, como interventor ou regulamentador do Mercado. No nosso caso específico do Brasil a atuação do Estado na ordem econômica está definida na Constituição, como um agente normativo e fiscalizador, como detentor de monopólio, como indutor do desenvolvimento econômico (Constituição Federal, art.170 a 181). Poderia, no entanto, atuar mais como um Mediador dos interesses da coletividade. Talvez seja necessário nesta crise redefinir 15 o papel do Estado para que ele atue como Mediador nos conflitos e na atividade econômica. De outro lado, a sociedade civil poderia se organizar mais para decidir os rumos da vida, sem depender do bom ou mau funcionamento do Estado. Seria importante que a própria atividade de Mediação fosse incentivada pelo Estado ou adotada pelo Estado conceitualmente, como meio de solução de conflitos nacionais e internacionais. Nesse sentido, o que seria Mediação e seu papel? Conceitualmente, a Mediação é uma forma de autocomposição dos conflitos, com o auxílio de um terceiro imparcial, que nada decide, mas apenas auxilia as partes na busca de uma solução. O Mediador fica no meio, não está nem de um lado e nem de outro, não adere a nenhuma das partes. É um terceiro mesmo, uma terceira parte, quebrando o sistema binário da solução tradicional do conflito. A Mediação busca livremente soluções, que podem mesmo não estar delimitadas pelo conflito, que podem ser criadas pelas partes, a partir de suas diferenças. A Mediação procura ir além das aparências explícitas, investigando os pressupostos implícitos do conflito. Muitas vezes, pode ser o aspecto legal o mais relevante fator a ser analisado, mas nem sempre isso acontece. O sistema de Mediação é aberto a qualquer aspecto que possa estar causando o conflito. A Mediação é uma espécie de terapia do vínculo conflitivo. O sistema jurídico positivo, na sua função judicial, procura mais estabelecer a uniformidade, eliminar os desvios, penalizar os culpados, obter a normalidade comportamental. A Mediação trabalha, também, com o potencial transformador dos desvios, procurando integrá-los na formulação de uma nova solução. A Mediação destaca o poder emancipatório, que existe em todo sistema jurídico, como fator mais importante do que o poder normativo. Uma sociedade para ser justa precisa, sem dúvida, de um mínimo de leis, porém precisa, sobretudo da boa fé, dos valores éticos e morais. Os romanos já haviam percebido, como observou Paulus, “non omne, quod licet, honestum est”, ou seja, nem tudo que é lícito é também honesto. O Positivismo Jurídico acabou com essa preocupação secular, separando o direito da moral e da ética. Mas o Direito, numa concepção mais abrangente, não se restringe ao Direito posto, vai muito além das normas positivas; existe também com seus pressupostos e princípios gerais de boa-fé, de ética, de justiça, de equidade. A Mediação no campo do Direito recupera tudo isso; é um dos campos privilegiados para o cultivo da Ética, pois sem Ética o sistema econômico não funciona, a política não funciona, a sociedade não sobrevive com harmonia. A prática da ética, nesta crise econômica mundial, é indispensável: “A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez ameaçada de morte, a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos em cada um” (Morin, 2000: 114). É difícil aceitar que, após tanto tempo de normativismo, os Estados continuem alimentando a pretensão de resolver os problemas sociais, ambientais, econômicos e afins, só pela Intervenção, através da regulamentação jurídica. A crise econômica não exige só uma solução para a atividade financeira: ela atinge a sociedade como um todo, as relações privadas, públicas, culturais, sociais, psicológicas, políticas e afins. 16 A solução não virá pela elaboração de novas leis monetárias, como já advertiu Jansen: “Atribuir valor real ao ato jurídico (ou ao serviço ou mercadoria a que aluda aquele ato jurídico) seria criar uma realidade, e uma norma é um dever ser e não um ser. Se a norma atribuísse valor real ao ato jurídico - e não apenas nominal, através da elevação dos preços e salários (que são o valor dos atos jurídicos que dizem respeito a bens e serviços) poderíamos transformar um país paupérrimo no país mais rico do mundo, e não apenas inflacionar a economia". (Jansen, 1988: 17). Talvez seja o momento de “desmonetarizar” certas atividades , como a saúde e a educação; por exemplo, tirar do campo da moeda valores sociais que não são mensuráveis em dinheiro. A tendência a medir todos os bens em moeda é um fenômeno econômico novo e globalizado, que precisa ser enfrentado. Será mesmo que só temos a moeda como mediador? Precisamos, também, ser mediados por outros valores . O Direito e o Estado devem atuar como instrumentos mediáticos que podem ajudar a regulamentar aspectos da crise, mas não podem resolver totalmente a crise. A solução foge da área jurídica e se projeta na soma da colaboração de todos os agentes econômicos, sociais e políticos. O uso da moeda criou uma realidade muito complexa a ponto de ser difícil dar uma direção ao sistema monetário, controlar seu funcionamento, em meio à crise sistêmica que estamos vivendo. O Estado, então, oscila entre intervir e mediar para solucionar a crise. No momento de crise as duas coisas precisam ser feitas concomitantemente: intervir e mediar. Mas, a longo prazo, o Estado só poderá exercer bem seu papel de organizador da coletividade, numa perspectiva de paz e desenvolvimento para todos, se atuar mais, conceitualmente, como Mediador, pois as soluções devem ser assumidas por todos. Acabou o tempo da dissociação entre governantes e governados, a crise é planetária. O que está em jogo é a possibilidade de viver num mundo ecologicamente equilibrado e isso depende da colaboração de todos. CRISE ECONÔMICA E CRISE ECOLÓGICA Na busca de uma solução para a crise econômica não podemos esquecer que o modelo econômico precisa ser modificado, sob pena de inviabilizar a vida no nosso planeta.Vale lembrar a recente advertência de Jeffrey Sachs: “No século XXI, nossa sociedade global florescerá ou perecerá, dependendo da nossa capacidade de encontrar um acordo mundial relacionado a um conjunto de objetivos compartilhados e os meios práticos para alcançá-los.As pressões da escassez dos recursos energéticos, das crescentes crises ambientais, de uma população global cada vez maior, de migrações em massa – legais e ilegais – da transferência de poder econômico e de profundas desigualdades de renda são demasiadamente grandes para serem deixadas à mercê de forças do mercado e de uma livre competição geopolítica entre nações. O resultado dessas crescentes tensões poderia ser, perfeitamente, um choque de civilizações, o qual poderia vir a constituir nosso último e definitivo choque devastador. Para superarmos, pacificamente, essas dificuldades, teremos de aprender, em escala global, as mesmas lições básicas que as sociedades bem-sucedidas aprenderam, gradual e relutantemente, no interior de suas próprias fronteiras nacionais” (Sachs, 2008: 14). 17 Nesse contexto, a atividade de todos pode ser orientada por um comportamento de Mediação, pelo quais os interesses vão sendo autocompostos para que se preserve permanentemente o ritmo social e econômico em bases sustentáveis, sem agredir a ecologia, sem colocar a natureza apenas a serviço do lucro. Qualquer solução tem que levar em consideração o esgotamento do atual modelo energético, baseado no petróleo, o esgotamento do modelo alimentar, baseado na agricultura extensiva e na produção de gado e o esgotamento do modelo industrial que produz o efeito estufa e assim por diante. É necessário consultar a população para saber em que tipo de sociedade pretende viver daqui para frente. Não basta mais os governantes agirem, nem a ONU, a OEA, a União Européia e outros organismos internacionais traçarem diretrizes de ação. A participação dos bilhões de seres humanos é indispensável. As soluções hão de ser coletivas, participativas e não mais impostas pela intervenção do Estado. A crise mundial coloca a necessidade de resolver as contradições entre a predominância do Direito Privado, centrado na propriedade individual, e o Direito Público, centrado nos interesses gerais da população. O Direito, na verdade, é um todo indissociável. Da mesma forma, a economia não pode funcionar, eficazmente, só com base nas particularidades do individualismo possessivo e consumista em que mergulhamos. O sistema econômico individualista também tem limites. Esses limites devem ser consagrados, pedagogicamente, pelo ordenamento jurídico como uma sinalização do dever ser, do comportamento desejado como melhor para todos. Os Direitos Humanos foram consagrados pela ONU em 1948, pela primeira vez na história, e são parte do Direito Positivo. É oportuno enfatizar que o Direito se fundamenta na dignidade da pessoa humana, na moralidade, na ética e na honestidade, como aprendemos desde o Direito Romano (Honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere, ou seja, viver honestamente, não lesar ninguém, e dar a cada um o que é seu). Não basta a racionalidade econômica e a eficiência, nem o planejamento estatal, ou privado, da economia. A crise atual tem muito de previsível, mas tem muito de acaso, pois o ser humano é também obra da evolução, cheio de imperfeições e imprevisibilidades. A natureza não funciona segundo leis deterministas. Segundo Jung, metade dos acontecimentos na vida humana são previsíveis e metade são imprevisíveis: "Apesar de nosso sentimento e não obstante os fatos ocorrerem segundo as leis gerais, não se pode negar que estamos sempre e em toda parte expostos aos acasos mais imprevisíveis. Será que existe algo mais imprevisível e mais caprichoso do que o acaso? O que poderia ser mais inevitável e mais fatal? Em última análise, podemos dizer que a conexão causal dos fatos, de acordo com a lei geral, é uma teoria que se confirma na prática em cinqüenta por cento dos casos. Os outros cinqüenta por cento ficam por conta da arbitrariedade do demônio chamado acaso”. (Jung, 1993: 58) No entanto, insistimos em buscar a onipotente segurança da certeza. Não integramos o acaso, o analógico, no todo social. Perdemos a visão grega da história (Heródoto e Tucídides) que valorizava o acaso e adotamos a visão iluminista que valoriza mais o esforço humano. Agredimos a natureza, exploramos as florestas e os animais, os rios e os mares, na vã expectativa de obter uma permanência e estabilidade sócio-econômica, quando a ecologia planetária é instável e em constante mutação. O efeito estufa, reconhecido pelos cientistas, mostra como a ecologia tem de ser respeitada, como o ser humano precisa parar de destruir a natureza e retomar uma 18 conduta de harmonia com o meio ambiente. Nesse sentido Ecologia, inclusive, deve ser entendida na sua tríplice dimensão: ambiental, social e mental, ou seja: ”Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universo de referências sociais e individuais” (Guattari, 2001, 25). Cada qual a seu modo, Direito e Economia devem ser conhecimentos a serviço da convivência social, e, sobretudo dessa nova concepção de ecologia. A moeda não pode ser a mercadoria mais valiosa do mundo! O momento atual exige a criação de um novo modo de atividade econômica, onde a moeda atue como mediadora no conjunto das demais atividades sociais, e não seja mais o principal elemento da vida social. CONCLUSÕES A moeda é um símbolo mediador, de grande significação para a vida humana. A eficiência da moeda reside na sua interação qualitativa com a realidade vital e não, isoladamente, na sua expressão jurídica. A crise econômica mundial deve levar em conta a complexidade dos fatores, pois o controle e solução dos problemas econômicos não se dá unicamente pela imposição de normas jurídicas. É preciso encarar o poder da Moeda apenas como um instrumento a serviço da sociedade e não como o símbolo máximo, que pode chegar até a ser um mito. O momento atual exige uma postura de Mediação das pessoas, dos Estados, da sociedade civil, das instituições econômicas, das Ongs, do sistema financeiro, enfim de todos. Esse poder de autocomposição e de decisão os próprios interessados devem manifestar para construir uma sociedade mais solidária. Somos todos iguais, vivemos num só planeta. Não basta resolver essa crise econômica mundial para restabelecer tudo como era antes, tudo de volta ao “status quo ante”. É necessário retomar a Ética e a verdade, eliminar o cinismo, visando construir uma nova sociedade baseada não na moeda, mas sim na dignidade da pessoa humana, valor primordial da sociedade. Aliás, isso está escrito na nossa Constituição: o fundamento do Estado é a dignidade da pessoa humana (art.1, III) e um dos objetivos fundamentais da República é “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3, I). Não teria chegado o momento de cumprir esses objetivos consagrados pela Constituição? Não teria chegado o momento de recolocar a moeda como Mediadora das relações e não como fim último, como razão de ser de toda a atividade deste mundo complexo e global? É urgente responder essas questões básicas, antes que o desequilíbrio ecológico do planeta provoque catástrofes incontroláveis e ameace a própria sobrevivência do ser humano. A crise mundial deve, no mínimo, recolocar o símbolo moeda do Estado no seu devido lugar, aliás, de onde nunca deveria ter saído: a Moeda é meio e não fim. Esse deve ser o verdadeiro estado da Moeda do Estado: ser um meio para facilitar a existência pacífica da vida humana, esta sim, a única riqueza que nos cabe preservar e desenvolver. NOTAS Aglieta, Michel - A violência da Moeda. S. Paulo, Brasiliense, 1990, p. 25. Buitoni, Ademir - O Direito na Balança da Estabilização Econômica, SP, LTR, 1997. 19 Friedman, Milton - Episódios da História Monetária, RJ, Record, 1992, p. 9. Galiani, Ferdinando - Da Moeda, Curitiba, Musa, 2000. Guattari, Félix - As Três Ecologias, SP, Papirus, 2001. Jansen, Letácio - A norma monetária, RJ, Forense, 1988, p. 17. Jung, C.G. - Civilização em transição, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 58. Marx, Karl - "Economia Política e Filosofia”, Rio, Mebo, 1963, p. 107. Morin, Edgar - Os sete saberes necessários à educação do futuro, SP, Cortez, 2000. Oresme,Nicole- Pequeno Tratado da Primeira Invenção das Moedas, d.1382, Curitiba, Segesta, 2004 Pierce, Charles C. - "Semiótica", São Paulo, Perspectiva, 1990, p. 160. Rivoire, Jean - História da Moeda, Lisboa, Teorema, 1985. Sachs, Jeffrey - A riqueza de todos, RJ, Nova Fronteira, 2008. Santaella, Lúcia - O que é Semiótica, 6. ed., S.Paulo, Brasiliense, 1988, p. 78. Say, Jean Baptiste - Tratado de Economia Política, S. Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 210. Weber, Max - Economia e Sociedade, UNB, 1991, p. 227. 20 EL TERRORISMO INTERNACIONAL COMO AMENAZA GLOBAL A LA DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL Agustín Zbar Abogado, Profesor de la Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la Universidad de Buenos Aires. En mi presentación abordaré la problemática del terrorismo como fenómeno global y contemporáneo, con impacto en el Estado de Derecho, la política y la economía de los países. Por ello, mi idea es tratar la cuestión del terrorismo desde una perspectiva jurídica internacional, regional y nacional a la luz del nuevo escenario global que se nos presenta en los inicios de este siglo XXI. El terrorismo internacional, es actualmente una de las cuestiones que más preocupa al mundo civilizado, pero pese a ello, pese al sinnúmero de ataques terroristas sufridos en la última década y media en prácticamente todo el mundo, Latinoamérica parece encontrarse al respecto “fuera de la historia”. Nuestra región, aquejada por lógicos fantasmas del pasado, se encuentra atravesando respecto del flagelo del terrorismo, lo que denomino el síndrome del “out of time”: es una zona a la que el terrorismo ha llegado y ha golpeado fuerte, pero pese a ello, no hemos arribado a la hora de hablar jurídicamente y legislar a su respecto, especialmente considerando el impacto que el lavado de dinero, como delito transnacional tiene en el funcionamiento de los mercados. Nuestros países latinoamericanos han sufrido y sufren la penetración y los embates del terrorismo internacional: la voladura de la Embajada de Israel en Buenos Aires en 1992, la voladura de la AMIA en Buenos Aires en 1994, la toma de rehenes por parte de las FARC en Colombia, la toma de la Embajada de Japón en Lima por parte de Sendero Luminoso, etc., demuestran que nuestra región no es en absoluto ajena al terrorismo, y que nuestras democracias constitucionales se deben una discusión jurídica seria en esta materia. Es por ello que en mi ponencia retomo conceptos jurídicos relevantes como los de “Democracia”, “Constitución” y “Terrorismo”, con el fin de partir de una base conceptual común que permita introducirnos en cuestiones más complejos como aquellas derivadas de la siempre difícil búsqueda de equilibrio entre los binomios “terrorismo”/ “anti-terrorismo”, “libertades individuales” / “seguridad”, etc. Es por ello, que considero de suma relevancia proponer un ejercicio filosófico y jurídico-constitucional, con miras a aportar herramientas tendientes a generar un debate robusto entre los distintos interlocutores regionales y países de la zona. Los conceptos elaborados por pensadores como Michael Walzer, serán esbozados y utilizados para comprender más claramente los contornos del flagelo terrorista y los límites de la guerra justa contra el terrorismo. 21 Como los Estados democrático-constitucionales no se suicidan, intentaré aportar ideas para la elaboración de legislaciones internas razonables, tan efectivas para combatir este flagelo como respetuosas por los derechos humanos. En este sentido, haré hincapié en la necesidad de distinguir claramente entre los viejas normas “anti-terroristas” esgrimidas por las dictaduras militares de nuestra región para violar derechos humanos y perseguir a grupos políticos; y la necesaria, humanista y razonable legislación anti-terrorista que nuestras democracias deberán darse en marcos de normalidad institucional, atento la globalización y radicalización del flagelo del terrorismo internacional en nuestro mundo de hoy. 22 CONTRATOS INCOMPLETOS E A ATIVIDADE EMPRESARIAL Rachel Sztjan Professora de Direito Comercial - Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo INTRODUÇÃO A noção de incompletude de contratos proposta pelos economistas, na medida em que reflete repartição de riscos, ex ante, ou contempla formas de fazê-lo ex post, interesse aos operadores direito, particularmente porque tem relevância em operações empresariais. A questão vai além dos limites em que normas supletivas preenchem lacunas deixadas pelas partes seja na contratação seja na elaboração do clausulado contratual. O reconhecimento de que nem sempre é possível ou desejável dispor sobre o tratamento a ser dado às obrigações dos contratantes quando eventos futuros, previsíveis, ou não, afetem suas prestações (direitos ou deveres), durante o prazo de vigência do contrato. Admitir que nem sempre os contratos são completos, e que o clausulado contratual seja passível de negociação posterior, implica aceitar a noção de incompletude que pode, muitas vezes, servir como importante ferramenta na recomposição do negócio. Contratos de longo prazo, de execução continuada ou diferida contemplam a perspectiva de que fatos imprevistos venham a ser objeto de mudança do regramento contratual, hipótese não descartável nas operações entre empresas. O direito empresarial convive bem com a possibilidade de revisão das operações, particularmente quando entre partes contratantes existe confiança, ou quando as instituições sociais favorecem novas discussões e ajustes por conta de efeitos imprevistos, ou previstos mas em relação aos quais não há disposição clara.. Contratos empresarias tendem a ser mais flexíveis ou, de outra forma, menos rígidos se comparados com os de direito comum. As cadeias produtivas encontradas nas economias modernas resultam da especialização que reduz custos gerando aumento da eficiência produtiva. Mas, para tanto, é preciso que haja estabilidade nas relações negociais manifestadas em contratos de longo prazo, de execução continuada, ou diferida, o que exige previsibilidade na programação da produção. Sabe-se, contudo, que a especialização da produção (e distribuição/comercialização) exige esforços e investimentos cujos resultados serão apurados em momento futuro. A combinação de investimento atual e resultado futuro implica aceitar riscos tais, por exemplo, mudanças das preferências individuais, obsolescência dos produtos, alteração de políticas econômicas. Como se prevenir de eventos dessa espécie, em geral fora do controle de quem produz? Ou, como dispor sobre a partilha de direitos, deveres e obrigações no momento do contrato quando sua execução se der em data futura? È possível garantir que as previsões relativamente a certos eventos foram baseadas em informações perfeitas e 23 completas? Quais os custos quando se tenta prever todos e quaisquer possíveis eventos que possam incidir sobre as prestações das partes? Não ha resposta única e satisfatória para o problema. O equilíbrio do contrato, a eficiência das alocações iniciais, poderá ser comprometida em razão da incompletude negocial, da falta de previsão sobre eventos futuros e/ou a forma de repartição dos efeitos deles derivados entre contratantes. Investigando práticas negociais correntes nas sociedades industrializadas percebe-se que a premissa da economia clássica, disponibilidade de informações iguais e completas é irreal. Ainda que se considere que as partes, racionalmente, tenderão a promover uma primeira divisão de riscos para a ocorrência de evento futuro, podem deixar de fazê-lo postergando a discussão sobre contingências para o momento em que vierem a afetar as prestações, ou a divisão inicial de riscos. A propensão ou aversão ao risco (ganhos ou perdas) estimula as partes a tratarem de disciplinar efeitos de eventos previsíveis ex ante, ou ex post. A primeira alternativa tende a dispor sobre medidas a serem adotadas se ou quando fatos previstos ocorrerem. A segunda, ex post, deixa para o momento em que se fizer necessária nova partilha de direitos e obrigações. Irrelevante que os fatos ou eventos sejam previsíveis. O certo é que dificilmente se imaginam todas e quaisquer contingências ex ante. Este o ponto sobre o qual os economistas constroem a noção de contratos incompletos. A incidência de eventos futuros que afetam a execução de contratos de longo prazo –execução continuada ou diferida – , o que talvez, explique a atenção dos operadores do direito que militam na área empresarial Recorrer à teoria de imprevisão não basta para discutir problemas gerados pelos contratos incompletos nesse campo do Direito em que é preciso considerar a alocação eficiente de recursos, a dinâmica de mercados, a assimetria de informações e os custos de transação. O equilíbrio econômico entre direitos, deveres e obrigações dos contratantes caro ao direito, está atrelado a uma complexa teia de eventos que pode transformar ganhos em perdas. Mudanças da estrutura do mercado desequilibram, ou tornam menos eficientes, operações de longo prazo já em curso e que se as partes pudessem prevê-las, provavelmente, haveria regras a respeito. Suponha-se que a redução da demanda de um bem deve ser acompanhada pela redução da oferta ao longo da cadeia produtiva (ou redução do preço a fim de incentivar o consumo). Como, rápida e equitativamente atingir o novo equilíbrio? Ou, situação inversa, imagine-se que o aquecimento do consumo exija aumento da quantidade do bem. Será que a demanda aumentada será permanente? E se cair, como reequilibrar riscos entre partes que ajustaram oferta à demanda (capacidade de produção e desejo pelo bem)? As dificuldades de ajuste instantâneo diante das mudanças descritas leva os economistas a afirmarem que, dificilmente, contratos de longo prazo serão completos. As decisões são tomadas com base nas informações disponíveis e no que, razoavelmente, se pode prever em termos de mudanças futuras. Não estranha a inexistência (falta de previsão e não imprevisão como poderia parecer) de disposições contratuais que reflitam, de maneira completa e consertada, 24 ações destinadas a harmonizar, de forma eficiente e equilibrada, as relações entre empresas ao longo da cadeia produtiva que abranjam mudanças dos “estados da natureza”. 1 Não convence supor que teriam agido de forma imprevidente, e que questão proposta pelos economistas não interessa ao Direito porque fundada no equilíbrio econômico do contrato, argumentos que não levam em conta que o contrato é a vestimenta legal da operação econômica, e, pior, supõe que as pessoas sejam pouco ou nada inteligentes. Da mesma forma não é conveniente aceitar, e a dificuldade já foi incorporada pelo sistema jurídico, que as informações das partes são simétricas e perfeitas, assim como pensar que assimetria informacional é equivalente a hipossuficiência e não vulnerabilidade. Experiência, vivência , atenção, são vieses que se refletem na racionalidade das pessoas a afetam o equilíbrio contratual. A maximização de utilidades, e a racionalidade imperfeita estimulam a discussão da incompletude dos contratos para desenvolver estratégias negociais, visando-se a evitar oportunismos ou a tomada de reféns como fruto da incompletude contratual, que criam ou aumentam custos de transação. Essas e outras questões são comuns no cotidiano das organizações empresariais em que a busca por cooperação e preservação da estabilidade da cadeia produtiva são vitais para o bem-estar geral. Até mesmo a distribuição de poderes (jus variandi) ou a governança atribuída a uma das partes no disciplinamento do contrato é importante para promover a cooperação. Portanto o tema contratos incompletos não é estranho ao direito, estando incorporado sob diferentes roupagens nas normas jurídicas, como observa Stefano Rodotá que reconhece ser a realidade social importante, mesmo quando não se leva em conta todas as possíveis relações dos dados sociais no contrato. Esse fato não exclui que tais realidades e dados sociais venham a ser incorporados nas estratégias negociais, que seriam melhor equacionadas mediante modelos de auto-integração. 2 Sob a perspectiva da atividade empresária a iniciativa econômica e o regulamento contratual, definem ou estruturam a cadeia produtiva formando um nexo único e sistêmico, pelo que fixar a atenção nas estruturas segmentadas do processo produtivo não se presta à análise de operações contratuais na economia globalizada. Institutos jurídicos como a resolução do contrato por onerosidade excessiva superveniente, impossibilidade de cumprimento da prestação, teoria da imprevisão, contratação em estado de perigo ou necessidade, nem sempre se coadunam com a estabilidade necessária do exercício da empresa. A organização da atividade econômica sofre os efeitos da distribuição de riscos e perdas entre agentes e influi na tomada de decisões econômicas. 3 A complexidade de certas operações em que há vazios, ambigüidades ou lacunas no clausulado contratual, a terminologia muito técnica pode constituir barreira para a exata compreensão do regramento. A noção de contrato incompleto dos economistas é mais clara nesses casos assim como releva a importância de discutir eficiência e incentivos, especialmente porque a rigidez do clausulado contratual destinada a manter a estabilidade da cadeia produtiva convive mal com incertezas, particularmente as de natureza jurídica, o que pode aumentar custos de transação. 25 CUSTOS DE TRANSAÇÃO Transação é, para economistas, qualquer operação econômica que promova a circulação de riqueza na sociedade. Custos de transação são aqueles incorridos na realização de uma transação, representados, ou não, por dispêndios financeiros, mas que decorrem do conjunto de ações e medidas adotadas antes, durante e depois de consumada a operação econômica. Custos de transação compreendem desde o esforço na procura de bens em mercados, a análise comparativa de preço e qualidade antes de decisão, desenho da garantia que incentiva o cumprimento das obrigações pela outra parte, o adimplemento certo, seguro e a tempo, outras garantias que se exija para fazer frente a eventual inadimplemento, ou adimplemento imperfeito, pela contraparte, a redação de instrumentos contratuais que reflitam as tratativas entre contratantes e disponham sobre direitos, deveres e obrigações. Cuidados e tempo despendido desde o início da procura pelo bem, a decisão de realizar a operação ou transação, o cumprimento de todas as obrigações pelas partes contratantes e as garantias para tanto, incluindo as relacionadas a eventual inadimplemento - custo de demandar em juízo ou qualquer forma de solução de controvérsias – são custos de transação. Incertezas são custos de transação e, quanto maiores forem, mais intensos serão os custos de transação imputados àquela operação. Deve-se a Ronald H. Coase a incorporação da noção de custo de transação às decisões dos agentes econômicos. Em 1937, em The Nature of the Firm, atualmente em The Firm, The Market and The Law , Coase explica a constituição de empresas como mecanismo de redução de custos de transação incorridos nas operações em mercados. Afirma que empresas existem e atuam em coordenação com mercados . 4 5 A idéia de Coase é que contratos de longo prazo evitam a necessidade de, com freqüência, recorrer a mercados, facilitando, portanto, à estabilidade da produção; de outro lado, esses mesmos contratos nem sempre produzirão o resultado mais eficiente em termos de alocação de riqueza uma vez que não há como aproveitar as oscilações típicas da dinâmica dos mercados. Retomando o tema de custos de transação, em escrito de 1961, conhecido como Teorema de Coase, discute o problema da diferença entre ganho social líquido e benefício particular explicando que o sistema de normas positivadas deveria ter levar em conta as externalidades, isto é, custos não suportados pelo agente que oneram a coletividade em benefício daquele. Sobre contratos Coase afirma que quando as partes podem exigir a execução dos contratos em virtude da convergência de interesses, não há necessidade de normas indutoras de resultado eficiente porque se não houver custos de transação, basta que as regras especifiquem quem suporta quais custos de externalidades. Normas supletivas para distribuição de responsabilidades seriam desnecessárias já que as partes determinarão, de forma eficiente, a repartição das vantagens e ônus entre elas. A distinção entre produtos sociais e privados tem vem associada às alocações em sistema que tende a se auto-alimentar, e cujas mudanças podem produzir danos maiores do que as originais . 6 26 Assemelhando, para fins de raciocínio, os fatores da produção a direitos, considera-se que são passíveis de apropriação e transmissão, de sorte que alguns inconvenientes na distribuição de direitos seriam aceitáveis se, na escolha entre diferentes arranjos sociais, as decisões produzirem ganhos sociais. Segundo Coase, sem considerar os custos envolvidos na operação desses vários arranjos sociais, uma ou outra solução deve levar em conta o efeito total, o custo social em comparação com o individual. Em The Problem of Social Cost, analisa as soluções do Direito quando uma pessoa causa danos a outra e como se dá o dever de indenizar. A indenização pode compreender lucro cessante e dano emergente que, nem sempre são eficientes porque quando o valor que se defere ao ganhador for inferior àquele a ser pago a título de indenização, o resultado é indesejável. Sugere outra forma de analisar a re-alocação de direitos e deveres levando em conta as várias e diferentes formas de dificuldades, porque, diz, um sistema jurídico em que todos os direitos fossem absolutos, ilimitados, implicaria em não haver direitos a serem adquiridos. Está-se diante da noção de relatividade dos direitos, inclusive na esfera constitucional dos direitos individuais. O deferimento judicial de pedidos de indenização causa mudanças na alocação de recursos, mudanças essas que não ocorreriam se as operações fossem realizadas em mercados e desde que não houvesse custos de transação. Entretanto, diz Coase, a concessão de indenizações gera como efeito o fato de que passam a integrar o custo do processo produtivo sendo transferidas para a sociedade, criando externalidades. Insta o legislador para que colabore na redução de custos de transação visto que o Estado, atuando como gigantesca empresa pode realizar operações a custos menores do que os resultantes da organização privada, o que é desejável na formulação de normas jurídicas indutoras de comportamentos. O operador do direito deveria atentar para as implicações econômicas das leis e das decisões e aplicar, de forma mais eficiente, voltado para a relação entre o dano e o ganho, não o individual, mas o da comunidade. FUNÇÃO JURÍDICO-ECONÔMICA DOS CONTRATOS Talvez a mais importante função do instituto contrato seja a de promover a regular, voluntária, e legítima circulação da riqueza. A circulação de bens na sociedade está apoiada na idéia de que quem tem a propriedade de uma coisa pode sempre transferi-la a outrem, mediante acordo. A circulação aloca bens e direitos de forma eficiente se as partes diretamente envolvidas ficam, ambas, melhor do que estavam antes. No processo de circulação da riqueza diz-se que a mudança é Pareto eficiente ou Pareto ótima quando, a par de as partes ficarem melhor, ninguém tiver sua posição piorada. Porém, não menos importante, para quem analisa contratos, é verificar como foi estipulada a distribuição de riscos entre contratantes. Riscos são todos e quaisquer efeitos – positivos ou negativos – que sobrevenham da mudança de titulação sobre o bem, da mudança de posição jurídica, acarretados por fato posterior. Assim a regra res perit dominus expressa a imputação de riscos ao proprietário da coisa. 27 Em contratos de execução instantânea a distribuição de riscos fica em segundo plano; realçando-se o momento da execução do contrato. Já naqueles de longo prazo, sejam de execução continuada ou diferida, as duas funções atribuídas aos contratos – circulação da riqueza e alocação de riscos – ficam no mesmo plano e estão mais claramente associadas. Eventos ou fatos que ocorram durante o prazo de execução do contrato - ou daquele que vai da celebração até a execução - , que podem alterar a previsão inicial de distribuição de riscos (e vantagens) que representavam as preferências individuais e, portanto, informaram as estratégias de negociação. Prever tais mudanças é considerado custo de transação. Contratos de longa duração e custos de transação Contratos de duração ou de duratta como são designados pela doutrina italiana, segundo os economistas, serão sempre incompletos em virtude da dificuldade de distribuir riscos e perdas entre partes antecipadamente segundo mudanças dos estados da natureza. Premissa é que, raramente, as circunstâncias ou o conjunto de fatos existentes e analisados no momento da contratação permanecerão constantes durante o tempo de execução do contrato; ainda que as pessoas prevejam ou intuam algumas possíveis mudanças, a predisposição de regras que mantenham o equilíbrio e garantam a eficiência das alocações, para todas as situações é difícil. Os efeitos da passagem do tempo sobre as prestações de cada uma das partes difere, o que se percebe mediante comparação com as hipóteses de adimplemento da prestação imediatamente após a conclusão do contrato por uma das partes, enquanto a da outra se protrai no tempo, ou quando a prestação devida for continuada ou periódica ao longo do prazo do contrato, (a execução consiste em série de atos escalonados). Também não será igual se o contrato for de execução diferida e as prestações das partes forem simultâneas, em contraste com aquela em que as prestações de uma das partes são continuadas e a da outra é única e diferida; e até quando as prestações de cada uma das partes é periódica, a periodicidade pode ser diferente. Cada uma das possibilidades é disciplinada de forma a respeitar as características da operação. As incertezas em relação às prestações futuras deveriam, segundo lógica do homem comum, limitar a celebração de contratos de longo prazo o que, entretanto, não se dá eis que recorrentes na organização de atividades empresariais. Sobre a possibilidade de o clausulado de um contrato de longa duração contemplar todas e quaisquer mudanças das circunstâncias iniciais ou originais que alterem cálculos econômicos das partes, dizem os economistas que, em alguns casos, isso pode ocorrer mas, na maioria deles, a redação do clausulado contratual é incompleta. Explorar e dispor a respeito de todas as eventualidades futuras é tarefa árdua até para o mais cuidadoso profissional do direito, bem assessorado por espertos nas áreas fora de seu domínio, porque os cuidados envolveriam previsões a respeito de todas e quaisquer mudanças sociais, econômicas, políticas, legislativas, tecnológicas. Propor medidas corretivas para cada uma delas neutralizando seus efeitos sobre a operação demandaria muita negociação além de minuciosa redação do instrumento contratual, no mais das vezes inviabilizando a operação. 28 Veja-se, a propósito, texto de Hart e Moore no qual se lê que contratos configuram uma relação de resultados e as partes, ex ante, não listam todos os pontos da operação; alguns ficam para negociação futura, ex post, se e quando algum problema emergir. Explicam que se não estiverem especificadas formas ou mecanismos que regerão a escolha futura, é fácil incluir entre as contingências qualquer fato ou evento; que, de outra parte, se relacionadas de forma extensa, bastante flexível, contingências futuras pode-se comprometer decisão de investimento ex ante. Conforme a importância e magnitude do investimento a ser feito, as partes reduzirão a lista de eventos, fato que, por sua vez, pode comprometer a eficiência do acordo no futuro. 7 8 Se a relação de eventos constante do clausulado contratual for fruto de negociação entre partes, uma lista longa e flexível lhes dá mais espaço para formular opções de resultados desejados para circunstâncias futuras. A flexibilidade contratual tem dois lados: deixa espaço para a inclusão de eventos não expressamente previstos e, de outro, é fonte de efeitos indesejados pelas partes no processo de negociação futura, quando poderá ser ineficiente ou desvantajosa. Entendem Hart e Moore que, muitas vezes, as partes preferem se acautelar em relação ao que não ocorrerá, (o que está previsto) e não em relação àquilo que poderá acontecer. É uma forma complicada de dizer que a inclusão de eventos é restritiva e o que não for mencionado fica fora. Daí insistirem em que contrato bom, bem negociado, preverá incentivos para a cooperação ao longo de sua vigência. A opção referida pelos economistas – rule in but nor rule out- pode ser encontrada em serviços que envolvem tecnologias – telefonia e Internet, em que sofisticação e inovação são eventos cotidianos. Comuns nesses contratos a inserção de cláusulas relativas à cessação de serviços, a critério exclusivo do fornecedor ou provedor, cuja razão se deve exatamente à imprevisibilidade quer do plano tecnológico quer da concorrência. Manter o equilíbrio da distribuição de riscos, perdas e vantagens ou do surplus da operação é quase impossível. Por isso que empresários, habituados à dinâmica dos mercados, à concorrência, aos efeitos de avanços tecnológicos, mudança de preferências, que afetam custos de produção e distribuição de bens não se assustam com a incompletude de contratos de longa duração, mas incorporam as incertezas aos custos de transação. Luca Anderlini e Leonardo Felli entendem haver relação direta entre a incompletude dos contratos de longa duração e os custos relacionados à complexidade da redação do instrumento e implementação da operação, razão pela qual. os instrumentos contêm menos informações do que seria ótimo. 9 Se a complexidade da operação torna difícil a redação do instrumento contratual a realização de novas relações segue disciplina que é fruto do momento em que seja celebrado, pelo que, a incompletude do contrato se explica por considerações de eficiência, estratégia, magnitude da operação,em que a partilha e alocação dos ganhos entre partes reflete o cálculo dos custos de implementação dos resultados que o contrato prescreva para cada estado da natureza em particular. 10 Para Rodotà, o conteúdo do contrato identificará tutte le determinazione poste in essere dalle parti per regolare i propri interessi , porque o conteúdo do contrato deve espelhar o acordo quanto aos efeitos desejados. 11 Os contratos de longo prazo e execução continuada são instrumento que associa custos, ex ante e ex post; aqueles presos à escolha do procedimento, sua 29 definição; estes associados aos resultados que o procedimento descrever para cada estado da natureza. Se o contrato previr conjunto finito de hipóteses (cláusulas), para cada estado da natureza haverá um valor determinado cuja repartição estará prevista no respectivo instrumento, permitindo calcular os efeitos da repartição entre as partes a cada mudança do estado da natureza. Compare-se ou relacione-se o custo da previsão de cada uma das possíveis e previsíveis mudanças do estado da natureza e o custo de redigir o instrumento com o de implementação das regras nele predispostas – é isso o que preocupa os economistas quando se referem a custos de transação e utilidades -: se as utilidades esperadas pelas partes forem afetadas pelos estados da natureza, pessoas avessas a riscos preferirão incorrer custos ex ante: as propensas a riscos preferirão equacioná-los e incorrer os custos ex post, dado que relacionados à implementação das cláusulas ou regras contratuais. Demais disso não se pode esquecer, como possível estratégia, o oportunismo. Não estranha, pois, que Oliver Hart e John Moore considerem difícil que contratos de execução continuada ou diferida contemplem todas as hipóteses de adimplemento perfeito e que, conquanto seja possível prever certo resultado (payoff) para cada uma das partes se a execução for perfeita, não há como comprovar ou verificar, antecipadamente, se a previsão será concretizada. 12 Os autores lembram que a expressão contrato incompleto é empregada em mais de um sentido; podendo indicar casos de incompletude das obrigações, ambigüidades terminológicas ou falta de descrição de contingências. Obrigação completa nem sempre significa contrato completo; pode haver disposições prevendo mecanismos para hipóteses de inadimplemento por impossibilidade ou adimplemento imperfeito, ou por dificuldades subseqüentes redundando em obrigação incompleta e contrato quase completo. 13 Intrigante o fato de empresários, agentes econômicos racionais e sofisticados, conviverem com termos vagos, ambigüidades no clausulado contratual, imprecisão no regramento negocial. Possível explicação para quem teme o custo de litígios, notadamente se o contrato é um programa em que há ambigüidades ou falta descrever algum evento, é que a celebração de contratos incompletos reduz custos de transação. Lacunas deliberadas e racionais, dizem alguns, servem para diminuí-los; outros afirmam ser irrelevante, no que diz respeito à eficiência e equilíbrio, pensar em suprimir lacunas ou conviver com elas. A divisão de custos associada a eventos futuros, tanto previsíveis quanto imprevisíveis, seja ela ex ante ou ex post, permite escolher os riscos que se deseja prevenir e os custos de transação que se aceita suportar. É dessa avaliação ou comparação entre reduzir custos de transação e aceitar algum, ou alguns riscos em momento posterior, que resulta um contrato com, ou sem lacunas, cálculo este baseado em probabilidades de as circunstâncias existentes no momento da contratação não se manterem, ao longo do prazo do contrato. 14 Investigar o que as partes desejavam, em que medida o futuro projetado foi descrito de forma considerada completa, ou não, tem que ver com o custo de alocar riscos. Se for menor do que o custo de alocar perdas, dada a probabilidade de sua materialização, a opção lógica é não aceitar lacunas no clausulado contratual. 30 Contratos incompletos Contratos incompletos resultam da capacidade limitada de se descrever os infinitos estados da natureza, predispor medidas para a execução da operação. Nesses casos boa-fé e correção são fundamentais para a preservação das relações. A literatura econômica distingue dois tipos de contratos em que pode haver falta de previsão para todos os estados da natureza: contratos frouxos ou flexíveis e contratos incompletos. O contrato será frouxo quando flexível, e incompleto se, em razão da complexidade da operação, contiver expressões ambíguas, faltar descrição de algum elemento, com previsão da inserção futura de cláusulas que, no momento da celebração, por algum fato (estado da natureza), não há como redigir de forma satisfatória. Esses são contratos manifestamente incompletos. Um contrato é considerado incompleto relativamente a contingências quando gera incentivos para, conforme o estado da natureza, levar à renegociação ou ao descumprimento da obrigação por qualquer das partes. São funcionalmente completos (ou tão completos quanto possível), aqueles que exploram todas as distinções verificáveis entre estados da natureza , quando a execução é boa tendo em vista dificuldades das partes em distinguir estados da natureza e a habilidade dos julgadores para verificar que estado ocorreu. 15 Os economistas se referem à bounded rationality, ou racionalidade viesada, proposto por Oliver Williamson, segundo quem as pessoas são influenciadas pelo meio em que vivem, pelo conhecimento e informações que tenham e que se manifestam nas suas decisões. A confiança de que cada um dos contratantes agirá com correção, de boafé gerada por negociações reiteradas entre mesmas partes que não se preocupam com lacunas ou ambigüidades, e agem de forma racional sob a ótica da bounded rationality facilita a incompletude contratual e a adoção de termos genéricos. A maximização da eficiência permite que, agindo racionalmente, celebrem contratos incompletos desde que conheçam as políticas econômico-sociais que possam ser invocadas em face de uma dada operação. São custos de transação a bounded rationality, a especificidade de ativos, a assimetria e a distribuição da informação, assim como o moral hazard , o oportunismo, que estarão compreendidos, imputados no cálculo que antecede as decisões de agentes econômicos sofisticados de contratar, ou não. Logo lacunas, ambigüidades ou imprevisões espelham custos de transação aceitos. 16 A opção pela incompletude ou pela flexibilidade é parte da adoção de estratégias de cooperação fundamentais para a execução de programas negociais desenhados nos contratos. Das observações acima conclui-se que não são eficientes a intervenção de terceiros relativamente ao cumprimento do contrato, a fixação de valor para a composição de danos causados pelo inadimplemento porque, para o terceiro, o estado da natureza relevante não é observável. Fatores “ambientais”, o sistema jurídico, o idioma em que o contrato foi redigido, normas sociais observadas em certas comunidades podem afetar a complexidade da redação do instrumento contratual e nem sempre são claras para o terceiro estranho à relação. A complexidade das operações comerciais, na visão de Jeffrey M. Lipshaw , parte da premissa de que não se trata adequadamente a maneira com que advogados 17 31 lidam com incertezas em operações comerciais complexas. Atribui o descasamento entre teoria e prática ao fato de se pensar sobre modelos legalmente tipificados e, quando focadas as análises na economia normativa fazem-no por pura intuição, como se o homo economicus não figurasse nas relações econômicas e as incertezas comerciais fossem um apêndice das individuais e sociais. Critica a maneira pela qual os legisladores se propõem a dispor e regular o comportamento das pessoas, modelando situações ideais e perfeitas esquecendo-se, diz Lipshaw, que perfeição pode ser pior do que o mito e que, acreditar que a perfeição seja possível é desastroso. As pessoas agem no seu próprio interesse e são, primordialmente, seres racionais, ainda que a racionalidade seja viesada, mas que o egoísmo individual não exclui o respeito aos demais, o sentimento de honra, responsabilidades e deveres. Por isso que negócios estruturados com base em comfort letter agreements, (por exemplo gentlemen’s agreements, tratativas preliminares), não obrigatórios ou legalmente vinculantes são comuns nas relações econômicas. Muitas vezes, antes de celebrar um contrato, prefere-se avaliar aptidões, analisar mercados, consolidar relações, enfim, estabelecer parceria e confiança antes de obrigar-se formalmente. Lipshaw diz haver quem dê pouca (ou nenhuma) importância a decisões judiciais o que os leva a aceitar ou optar por instrumentos incompletos mesmo que legalmente não vinculativos. Empresários que convivem com contingências se habituam a nem sempre invocar a lei para exercer algum controle sobre os resultados das operações acordadas porque confiança, diálogo, e adesão ao um programa são sopesados antes do estabelecimento do vínculo contratual e, supõem, serão igualmente considerados na interpretação ou integração de qualquer contrato incompleto. Para o sucesso da interpretação ou integração do contrato o terceiro precisa adivinhar ou imaginar o que fora negociado e o que as partes queriam no momento da conclusão do contrato, como previam a execução do programa ao longo do tempo, e que evidências por elas produzidas existem e serão consideradas. O lapso temporal decorrido entre a conclusão do contrato e o momento em que haja divergências, é outro fator de complicação porque quanto mais longo, mais problemática, menos fácil, será a alocação de riscos e perdas não previstos, como se percebe no caso de contratos de execução continuada, de longo prazo, quando a busca da descoberta do que as partes quereriam ter disposto se tivessem cogitado a respeito do evento padece dos efeitos do decurso do tempo e dos azares da memória . 18 Lipshaw parte de ponto de vista filosófico vendo contratos como uma das formas de dispor sobre contingências tal como as controvérsias são submetidas a julgadores. Ao celebrar um contrato visa-se a reduzir as contingências que, muitas vezes, estarão fora do controle das partes. Explica que o direito dos contratos se volta para o cumprimento das obrigações, as quais podem ser incompletas se, em todos os futuros estados da natureza, faltar um termo ou elemento o que, para os economistas, seria um contrato completo no plano obrigacional, mas incompleto por não prever a distribuição de ganhos da operação em face de contingências futuras. 19 Interpretação feita por terceiro do que as partes pretendiam ou teriam acordado se tivessem disposto sobre o fato e os riscos relevantes a ele atribuíveis, usualmente tem apoio na realidade fática. Segundo Cooter e Ullen , em hipóteses de complicada comprovação o preenchimento de lacunas ou incompletudes contratuais por terceiros nem sempre alocará direitos de modo eficiente fixando os preços com razoabilidade. 20 32 Eficiência, bem-estar social ou o preenchimento alguma outra função ou finalidade interessam ainda mais, na integração ou interpretação de contratos deliberadamente incompletos porque a mera aplicação de normas supletivas nem sempre resolve a dificuldade a par de poder criar conseqüências socialmente inaceitáveis. A aplicação de normas supletivas apenas se justifica quando não representarem a melhor opção na distribuição de direitos, deveres, riscos e perdas, hipótese em que deveriam ser consideradas cogentes. Até porque a aplicação de normas supletivas a contratos contingencialmente incompletos altera outras variáveis, entre as quais a assimetria de informações ou o valor atribuído à operação pelas partes produzindo ineficiências, estratégica ou informacionais. Para Lipshaw observações sociológicas a respeito do papel da lei em operações complexas são menos relevantes do que a doutrina e os advogados imaginam, embora reconheça a importância do poder de coerção do Estado para determinar a adjudicação judicial de direitos. Contratos estabelecem vínculos morais tanto quanto relações jurídicas; as operações complexas não são modeladas apenas por normas jurídicas ou econômicas mas sobre elas incidem instituições sociais, daí as inúmeras contingências e um espectro muito largo de possibilidades. Estudo de Lisa Bernstein dá conta da importância das relações sociais no trato de contingências imprevistas na indústria de diamantes. 21 Se não há como, no plano fático, impedir a concretização de contingências, estará o sistema jurídico apto a incentivar a cooperação e o equilíbrio na divisão de riscos e benefícios? Que modelo é mais compatível, está melhor predisposto, para diminuir contingências jurídicas, o contrato rígido, formal ou o flexível, maleável? Contratos incompletos no comércio internacional A expressão comércio internacional compreende enorme área disciplinada por acordos bilaterais, regionais, e multilaterais que determinam o espaço dentro no qual os agentes econômicos atuam e contratam. Relativamente a investimentos feitos por particulares em países estrangeiros na implantação de unidades industriais, a distribuição de bens e serviços, emerge a preocupação com possível expropriação que seja decidida pelos governos dos países investidos, sendo causa de incertezas que aparecem no denominado risco país. A perda do investimento sem correspondente e justa indenização não difere do investimento idiossincrático, aquele que tem destinação específica e, portanto cria incertezas e gera custos de transação. Nesses casos a possibilidade de uma das partes, a que faz esse tipo de investimento, ficar refém da outra é expressiva. Por isso as partes têm incentivos fortes para não investir o suficiente dado o risco da contraparte agir de forma oportunista. Partir para a eficiente alocação dos direitos de propriedade, que para os economistas são mais amplos do que usar, gozar e dispor, é preciso atentar para as opções das partes, a interdependência gerada, e a decisão de investir. É que, dada a incompletude contratual, é crucial, quando referida a investimentos específicos ou idiossincráticos, a defesa da posição ex ante. Barreiras tarifárias, cotas ou barreiras comerciais de qualquer natureza, proteção da indústria doméstica ou dos agentes econômicos nacionais são outros fatores importantes no desenvolvimento, ou não, do comércio internacional. 33 Esses problemas são comuns no direito internacional público e refletem sobre a importância de mecanismos que estimulem a execução de contratos. A existência de organismos para a solução de controvérsias relacionadas a descumprimento de obrigações, a instauração de mecanismos de diplomacia informal para exercer o papel de advogado são outros fatores relevantes. Reputação e retaliação servem de estímulo ou incentivo no cumprimento de obrigações ou na adoção de comportamento oportunista. Nos contratos internacionais de longo prazo, às dificuldades inerentes ao tipo de negócio, acrescem os aspectos referidos que amplificam incertezas e podem deixar em segundo plano vantagens comparativas como mão de obra qualificada, disponibilidade de matérias primas, acesso a mercados. Operações transfronteiras são mais complicadas do que as domésticas porque envolvem além de transporte de bens ou pessoas, a transferência de fundos de um para outro país e aqui o câmbio, a relação de paridade entre moeda nacional e moeda estrangeira tem peso tanto no estímulo à importação quanto à exportação de produtos. Para o produtor que vai exportar uma das formas de obter recursos para a produção é a apresentação do contrato de fornecimento ou de venda que serve de garantia para a instituição financeira que adianta os fundos. No caso de importador garantia usual é a carta de crédito quando cláusulas relativas a preço, quantidade e qualidade dos bens impedem grande variação em face do especificado. Isso vale para a contratação de seguro e imposição fiscal quando as tarifas de importação/exportação sejam diferentes conforme a qualidade ou natureza do bem. Cadeias produtivas internacionais são fenômeno mais recente o que não afasta a aplicação de princípios típicos de organização industrial, propriedade e contratos. A existência de empresas não societárias estruturadas como feixes ou nexos de contratos para reduzir custos de transação, é afetada pela incompletude. Contratos de fornecimento e investimentos específicos costumam estar associados, sendo irrelevante qual das partes os incorra: a que produzirá o bem ou a que, para produzir algum outro necessite daquele. As atividades desenvolvidas por ambas se entrelaçam e se complementam criando relação de interdependência entre elas. Há situações em que a atividade de uma delas pode subsistir ainda que a antecedente ou a posterior deixem de estar ligadas o que configura a independência dessa parte da atividade em relação a outra(s), o que, entretanto, não elimina as incertezas do processo produtivo na medida em que quantidades e preço do bem podem variar. Essas incertezas são aquelas típicas dos contratos incompletos. A encomenda de componentes (bens intermediários) depende da capacidade de produção e do volume de vendas esperado. Novos investimentos poderão ser requeridos para atender ao aumento de quantidade de encomendas alterando o equilíbrio contratual, ou exigindo a adoção de políticas de produção distintas. Instituições de cada país são parte do quadro decisório; investimentos em tecnologia ou transferência de conhecimento de ponta depende da proteção dos direitos de propriedade intelectual; contratos com agentes sediados em países nos quais paralisações de trabalhadores são freqüentes, pela insegurança quanto ao atendimento dos pedidos, faz com que sejam vistos como parceiros menos desejáveis. Vantagens comparativas entre países deslocam investimentos específicos para os mais confiáveis, cujas instituições são mais sólidas. A qualidade do judiciário em que 34 apareçam vieses ideológicos é outro fator de desestabilização e desincentivo a investimentos estrangeiros. Fornecimento internacional e incompletude do contrato são compatíveis? Veja-se aplicação das discussões relacionadas a contratos incompletos feita por Pierpaolo Battigalli e Giovanni Maggi, em Direito Internacional Público ao tratar da padronização de produtos negociada entre Estados. Detectam nos acordos de padronização de produtos semelhança com o que se discutia em relação a mudanças do estado da natureza. 22 Como fixar padrões relativamente a bens inexistentes? O preço de novos produtos que substituirão, com mais qualidade, melhor tecnologia os existentes, ainda quando previstos, porque as partes estão informadas a respeito das pesquisas, será igual ao dos atuais? Ou novas versões do mesmo produto? Ambos co-existirão no mercado? Como prever, no clausulado contratual, salvo a negociação futura, a continuidade do fornecimento? Que padrão doméstico será definido para o novo produto? Trata-se de riscos cuja previsão ex ante poderá ser ineficiente ex post, sendo melhor deixar lacunas para preenchimento se e quando o produto vier ao mercado. Alguns países, seja por disporem de mão de obra qualificada, seja por menos restritivos em questões de saúde, meio-ambiente, seja pela abundância de certas matérias primas, tornam-se bases de desenvolvimento de produtos para exportação. (assim como muitos países são base de experimento de fármacos ou alimentos) Se, em momento futuro, os estados da natureza nos quais se basearam as políticas industriais mudarem, possivelmente faltarão disposições, quer no plano do direito nacional quer no do internacional, para redistribuir benefícios, e ônus, o que dará razão aos economistas quando questionam a previsibilidade de todos e quaisquer efeitos externos que venham a incidir sobre o acordo entre Estados. Como se antecipou, regras rígidas são remédio ou tentam evitar problemas gerados pela incompletude dos acordos e contratos. Lacunas deliberadas e racionais e minimização de custos de transação estão intrinsecamente correlacionadas. Por isso os institucionalistas analisam usos e costumes de praças, aqueles criados e respeitados em alguns setores da atividade econômica; avaliam como a repetição de operações entre mesmos agentes que estabelece laços de confiança, explicam os contratos incompletos. Talvez por isso a visão do jurista, mais afeito à dogmática, às formas e estruturas e, por vezes, avesso à função, relute em discutir contratos incompletos fora do quadro da integração e da interpretação sem levar em conta os efeitos que o recurso a regras deduzidas para situações individuais geram no desenvolvimento da atividade econômica organizada em cadeias produtivas. Há que encontrar respostas propositivas, incentivos para a renegociação e cooperação que preservem as múltiplas atividades quando a integração vertical seja menos eficiente do que a externa. Se a complexidade de acordos e contratos for definida considerando o número esperado de contingências e os resultados, que são especificados, a magnitude da variância do fluxo dos resultados entre partes e a compreensão do contrato, pode-se concluir que no comércio internacional todos os elementos estão presentes. 35 A cláusula de hardship, cuja função é oferecer solução para problemas gerados por eventos imprevisíveis ou fora de controle das partes, que costuma ser acompanhada da previsão de renegociação do contrato ou de suspensão da execução de prestação devida pela parte que a invoca, é outro indício da percepção de que as incertezas requerem mecanismos especiais. Isso nada tem a ver com a norma do artigo 478 do Código Civil Brasileiro, mas se aproxima daquela do artigo 479. A primeira permite oportunismos, a segunda reflete melhor a boa-fé. Tome-se o contrato de fornecimento com prestações continuadas de um lado e periódicas de outro; a distribuição de riscos, perdas, custos, benefícios entre partes é complexa, especialmente se uma delas fizer investimentos vultosos para atender às necessidades da outra. Imagine-se que os investimentos sejam específicos ou idiossincráticos . Cálculo econômico recomendará que se faça o investimento apenas quando houver mínima certeza de amortização, recuperação do valor durante ou, no máximo, até o termo final do contrato. 23 Quanto menor a probabilidade de recuperação do investimento maiores as exigências que serão feitas à outra parte em razão do perigo de perda por riscos a ele associados. E, mesmo prestadas as garantias o investidor considerará o lapso temporal entre a conclusão do contrato, início da produção e o termo final do contrato, tendo em vista a mutabilidade dos estados da natureza. O artigo 478 aumenta os custos de transação em operações com tais características. Na esteira das incertezas que envolvem não apenas eventos externos, mas abrangem questões derivadas da organização da cadeia produtiva, não se vê como escapar da incompletude, ou no mínimo, de lacunas contratuais, nem de ameaças feitas pela outra parte. Como garantir investimentos se a relação preço/quantidade estimada não for constante? Mais simples contratar com margem de flexibilidade e estabelcer que, futuramente, as partes renegociarão ou negociarão de forma a que os ganhos da operação sejam repartidos de maneira eqüitativa. Associar contratos e atividade econômica organizada em que a distribuição de riscos e perdas, redução de custos de transação requer incentivos que preservem a cooperação, implica aceitar e conviver com lacunas e ambigüidades. O operador do Direito, formado na tradição da dogmática civilista, de forte influência alemã, não aceita facilmente a noção econômica de contrato incompleto, especialmente se típico. Supõe-se que em face de evento futuro, imprevisto ou imprevisível que altera o sinalagma genético a cláusula da imprevisão (rebus sic stantibus ) basta para resolver o problema. Poucos perguntam se a resolução do contrato constitui mecanismo de completamento, aí incluída aquela por onerosidade excessiva se falta de previsão de algum evento futuro. 24 Adaptar a operação a contingências não parece imperativo salvo, talvez, aos mais pragmáticos Se há risco é preciso considerar propostas de solução quando, em operações complexas as regras predispostas ex ante sejam insuficientes. Simplicidade, equidade, confiança, desincentivo a oportunismos, presentes nas negociações e espelhados nos instrumentos de contrato convivem com lacunas e fomentam a negociação ex post. 36 A repetição de operações cujos resultados são positivos tende a formar padrões que se tornam usos e costumes auxiliando na interpretação ex post, até mesmo por terceiros estranhos ao negócio. Pragmatismo combina com flexibilidade, racionalidade em negociar e respeito às instituições. Se a preferência das partes é alocar riscos sobre distribuir perdas, racionalmente escolherão celebrar contratos incompletos criando relações voluntárias entre elas, cabendo-lhes responder às mudanças na medida em que perseguem seus interesses, de forma a assegurar a cooperação. 25 A eficiência na obtenção dos resultados visados combina cuidado e confiança; quanto mais cuidados maiores os custos de transação e, inversamente, quanto maior a confiança entre partes menores os custos de transação. A internalização dos benefícios da cautela contra a quebra do contrato deve ser comparada com a esperada composição de danos, portanto, sem incentivos corretos as partes não se sentirão vinculadas às promessas. Se contratos são modelos de cooperação baseados na confiança, a existência de lacunas ou ambigüidades no clausulado ou, como é comum em contratos mercantis o emprego de expressões como “razoabilidade, boa-fé, melhores esforços”, que embora vagas é usual, refletindo a posição dos economistas relativamente à incompletude de contratos. O temor de que a quebra da confiança imporá sanções – por exemplo ficar fora do mercado, aumento de custos de transação por exigência de garantias – incentiva os agentes econômicos e cumprirem o programa negocial, mesmo presentes ambigüidades. Instituições sociais sólidas estimulam a adoção de estratégias que preservam as obrigações [e deveres paralelos (nebenpflichten)]. 26 Trabalhos recentes de Giuseppe Bellantuono e Antonio Fici trazem a discussão sobre incompletude contratual para o plano do Direito. Fici diz que contratos incompletos, lacunosos, não são fenômeno recente, conhecidos que eram há muito; que, no codice civile há disposições legais a respeito do completamento ou interpretação e integração de contratos. Não explica se a referência é aos contratos funcionalmente incompletos. 27 28 Segundo o autor o exercício da autonomia privada faculta às partes deferir a terceiros o poder para preencher lacunas, voluntárias, deliberadas, ou não, existentes no contrato, assim como lhes estaria facultado, pelo jus variandi, permitir que uma ou outra delas, preenchesse os vazios. Considera possível identificar situações intermédias entre contratos completos e incompletos, entre as quais o que denomina contratos flexíveis, de que seria exemplo o fornecimento em que o preço é corrigido por um índice, ou pela variação de valor de um bem. Cláusula de revisão ou determinação do preço flexibiliza o contrato que seria, sob a ótica jurídica, e, parece-me, da econômica, também, completo. Talvez esse contrato não seja flexível porque o índice de fixação do preço está determinado ex ante, logo, a divisão de riscos e sua partilha entre fornecedor e fornecido igualmente definida. Referindo-se ao que entende ser contrato econômica e juridicamente incompleto, Fici se refere à venda sem indicação de preço ou da quantidade do bem, ou seja, um contrato de compra e venda que não traz os elementos essenciais em seu bojo. Trata-se de uma compra e venda ou de um contrato quadro ou um pré-contrato? A compra e venda está perfeita e acabada quando as partes se põem de acordo sobre res et pretium, ainda que este possa ser determinável segundo critério estipulado no instrumento. Entretanto coisa não determinada, salvo se no quesito quantidade – que 37 variará dentro de limites máximo e mínimo – ou preço sem previsão de critério de fixação, não se ajustam à previsão normativa e mesmo social, de um contrato de compra e venda. Consenso sobre coisa não definida, em quantidade, qualidade, espécie ou gênero, não determinável seria, na melhor das hipóteses, um acordo preliminar. O autor explica: È altrettanto evidente, in secondo luogo, come la completezza giuridica renda il contratto definitivamente incompleto dal punto di vista econômico. ... il contratto incompleto può costituire una peculiare risposta al problema dell’incompletezza economica 29 Possível comparar a incompletude jurídica com a econômica? A existência de lacunas jurídicas não se confunde com a decisão voluntária de não dispor sobre contingências econômicas. A incompletude econômica pressupõe incapacidade fisiológica do contrato e dos contratantes de lidar com todas as modificações de circunstâncias posteriores à sua conclusão. A jurídica pressupõe que eventuais lacunas, mesmo as involuntárias, serão completadas por normas supletivas, princípios gerais de direito, interpretação, e integração, razão pela qual o contrato incompleto o é enquanto não interpretado ou integrado. Se há instrumentos para completar o contrato a discussão parece vazia ainda que os estados da natureza mudem.Porém há que ter presente que lacunas deliberadas, se incentivarem negociação futura, facilitam a decisão de cada parte, de escolher, de maneira ótima, em relação a cada evento, a alocação tornam mais eficiente de recursos. A integração ou interpretação por terceiros, dadas as assimetrias informacionais, pode redundar em alocações perversas e desincentivar novas operações entre mesmas partes, portanto deve ser adotada com cautela. Os remédios existentes nos sistemas jurídicos de direito codificado, em regra, pensados e desenvolvidos para resolver questões pontuais, não se prestam para solucionar problemas gerados por operações seqüenciais nas quais os efeitos da paralisação de um dos elos da cadeia podem atingir a todos. Inibir condutas oportunistas ou moral hazard, prevenir a seleção adversa e compreender os incentivos para renegociações à falta de disposição legal ou contratual são o melhor meio de manter o bem-estar geral. NOTAS 1 - economistas denominam “estados da natureza” às condições atuais ou futuras que as partes levem em consideração ao negociar. 2 - Le fonti di Integrazione del Contratto – Dott. A. Giuffrè Editore – Milano, 1970 –pp. 6 e 7 In altri termini, non è soltanto nei casi di oggettiva inidoneità ad operatr del regolamento predisposto dalle parti Che può aver luogo il ricorso agli strumenti integratvi .... ... l’interpretazione non veniva più limitata ad una funzione circoscritta dell’ambitostrettamente colontaristico. ... si prendevano le mosse anche dalla situazione ambientale in cui ol contratto s’era originato ed era destinato ad operare, ... . 3 - o termo risco é empregado no sentido que lhe dão os estatísticos de probabilidade de desvio de ocorrência de um evento em relação à média; risco, estatisticamente, é variância. Em direito vem associado à idéia de noção de e não naquele usualmente utilizado em Direito como fator que provoca perdas. Riscos podem ser positivos (gerar ganhos) ou negativos (impor perdas), muitos até previsíveis como são os seguráveis. A palavra risco significa desvio de alguma média 38 ou mudança de desvio padrão de um fenômeno. Eventos da natureza, factum principis, são riscos exatamente porque fogem do padrão de normalidade, não porque causam perdas. 4 - The University of Chicago Press- Chicago and London - 1990 5 - há economistas consideram empresas nexos de contratos 6 - Coase – The Problem of Social Cost cit. p. 153 - …diverts attention from those other changes in the system which are inevitably associated with the corrective measure, changes which may well produce more harmthab the original deficiency. …. As Frank H. Knight has so often emphasized, problems of welfare economics must ultimately dissolve into a study of esthetics and morals. 7 - Hart, Oliver e John Moore, - Agreeing now to Agree Later: Contracts that Rule Out but do not Rule In – nber.org. baixado em 25/07/2005 8 - Exemplo desse tipo de operação é o fornecimento de papel para uma editora em que se fixa o preço para o primeiro ano acordando-se que variará nos anos subseqüentes dentro de certos parâmetros. Supondo que as partes elaboram o contrato relacionando todos os possíveis resultados, ou seja, os outcome, a descrição completa do que pode ocorrer – um vetor que liga preço, qualidade e quantidade, acordam que, qualquer evento não integrante da lista fica fora, enquanto os que a integram podem ser escolhidos. 9 - Discussion Paper Series – Coll P DP 20/96 – Centre for the Philosophy of the Natural and Social Sciences da London School of Economics 10 - por estado da natureza entenda-se qualquer mudança em relação à situação inicial 11 - Le Fonti ... , cit. p. 79 12 - Foundations of incomplete Contracts – disponível em www.NBER.org. (baixado em 23/07/2005) 13 - exemplo oferecido: o vendedor entregará um bem pelo preço de R$ 10,00; se as partes desejavam que o preço do bem fosse fixado conforme os estados da natureza o contrato é incompleto porque as partes não lograram descrever as contingências relevantes que podem impedir ou dificultar a entrega do bem ou até tornar a quebra do contrato eficiente. 14 - probabilidade é medida estatística que mede o grau de segurança com que se pode esperar a realização de um evento, determinado pela freqüência relativa dos eventos do mesmo tipo numa série de tentativas 15 - segundos os economistas são verificáveis as ações que cada uma das partes adota diante de um estado da natureza. 16 - empregado no sentido de culpa, ação negligente, imprudente ou imperita 17 - Contingency and Contracts: A Philosophy of Complex Business Transactions – in Depaul Law Review – vol. 54, 18 - Cooter, Robert e Thomas Ullen - Law and Economics – Addison-Wesley- 1997 – second edition explicam que embora completar contratos dependa de investigação acurada dos costumes e das informações detidas pelas partes, uma vez que o tomador de riscos eficiente prevê o risco ou deveria prevê-lo, e sobre esse pressuposto é que o contrato será interpretado. p. 184 19 - autorização de autoridades ou governos para uma determinada empreitada. 39 20 - Cooter e Ullen – ob. cit. p. 183 21 - Opting Out of the Legal System: Extra-Contractual Relations in the Diamond Industry, 21 Journal of Legal Studies – Chicago University Press - 1992. 22 - International Agreements on Product Standards: An Incomplete-contract Theory in http://www.nber.org/papers/w9533 (consultado em 27/07/2005) 23 - impede ou onera sua utilização para cumprir outra finalidade, se possível, ou produz grande perda de eficiência 24 - quem a invoca, à cláusula rebus sic stantibus, parte do pressuposto de que a modificação das circunstâncias originais – não do motivo ou da operação econômica desejada – é genérica, aplica-se a qualquer tipo de contrato em que a conclusão e a execução são separados por algum lapso temporal por isso que não se pode invocá-la nos contratos de execução instantânea. Também há quem considere possível a confusão entre resolução do contrato por onerosidade excessiva e a cláusula rebus sic stantibus, o que parece incompatível com a função de cada uma delas no direito dos contratos. 25 - ob. cit. p. 193 26 - quanto a imprecisões talvez a venda a contento seja exemplo simples. O adimplemento da obrigação pelo vendedor depende de a qualidade do bem, que pode variar, ser a desejada pelo adquirente que aceita, ou não o produto. Óleo e vinho são casos clássicos de contrato incompleto porque a variabilidade da qualidade do produto não é descrita em todas as suas possibilidades, deferindo-se ao adquirente o poder de aceitar, ou não, o produto. Impreciso é, também, o contrato que contenha previsão de diferentes preços para o bem (gênero) se houver dele duas ou mais variedades (espécies). 27 - I Contratti Incompleti nel Diritto e nell’Economia – Cedam - 2000 28 - Il Contratto “incompleto” – G. Giapichelli Editore – Torino - 2005 29 - ob. cit. p. 43 40 DESENVOLVIMENTO VERSUS CRESCIMENTO ECONÔMICO NAS CIDADES: ELEMENTOS PARA UMA AGENDA DE PESQUISA URBANA INTERDISCIPLINAR Jeroen Klink Universidade Federal do Grande ABC Presenciamos recentemente uma proliferação da literatura sobre o papel econômico das cidades e regiões metropolitanas na globalização. Nesta literatura, consolida-se uma visão quase consensual acerca de uma economia mundial intrinsecamente interdependente, cuja espinha dorsal é composta por uma rede de economias regionais. Autores como Turner e Sassen desenvolveram uma visão da globalização em termos de uma serie de complementaridades entre as grandes cidades e áreas metropolitanas, que concentram uma parcela substancial dos serviços empresariais e financeiros especializados. Da mesma forma, vários autores argumentaram que as cidades re-assumiram o seu papel histórico como plataforma para canalizar os fluxos migratórios internacionais. No entanto, este debate sobre as cidades e áreas metropolitanas na economia internacional surpreende, pois, não gerou conclusões robustas sobre o papel das políticas publicas territoriais em prol do desenvolvimento econômico local. Grande parte da literatura econômica mainstream prioriza a analise de estratégias de atração de novas atividades econômicas, ou de fortalecimento do tecido produtivo existente. Esta abordagem não somente ignora o caráter multidimensional do desenvolvimento das cidades e regiões metropolitanas, mas também abre lacunas importantes na compreensão do processo mais amplo de negociação de conflitos entre os agentes públicos e privados que estão envolvidos na construção de políticas publicas de desenvolvimento econômico local. Na realidade, encontramos ainda poucos estudos empíricos sobre a dinâmica socioeconômica nas cidades que tratam, ao mesmo tempo, de fatores como a estrutura do sistema regional de inovação, o mercado de trabalho formal e informal, a dinâmica de inclusão/exclusão no mercado de habitação e de serviços urbanos, o sistema de governança regional e metropolitana e o impacto dos fluxos migratórios internacionais, entre outras dimensões. Conseqüentemente, na ausência de uma analisa multidisciplinar das dimensões institucionais, socioeconômicas, políticas e urbanas que cercam o processo de desenvolvimento econômico nas cidades, os estudos econômicos tendem a enfatizar – talvez de forma excessiva– o tema de crescimento em si, em detrimento desta compreensão mais ampla da qualidade e sustentabilidade do processo de desenvolvimento como um todo. Com base de um levantamento de alguns estudos de caso, argumentaremos que a analise econômica tradicional dos fatores que consubstanciam o crescimento estrito senso das aglomerações não é capaz de captar a natureza multidimensional da trajetória de desenvolvimento econômico das regiões metropolitanas. Na conclusão, elaboraremos um embrião de que poderia se transformar numa futura agenda de pesquisa em torno do tema de desenvolvimento econômico nas cidades-região e áreas metropolitanas. 41 PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO E LIMITES NA DESCONSIDERAÇÃO DE NEGÓCIOS JURÍDICOS Fabiana Del Padre Tomé Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP Professora da PUC/SP e do IBET No exercício da atividade de fiscalização, compete à autoridade administrativa investigar os fatos ocorridos, colhendo, com observância às regras pertinentes ao direito das provas, elementos que possibilitem a formulação de juízo quanto à incidência das normas tributárias. Ao desempenhar tal função, deve ater-se a apurar os fatos praticados, averiguando se estes preenchem as linhas definitórias circunscritas na hipótese normativa, de modo que, havendo o perfeito quadramento, nasce a obrigação tributária, mediante seu relato na linguagem prevista pelo direito positivo; existindo algum ponto dissonante, a percussão jurídica fica obstada. As considerações acima enunciadas são de extrema relevância, pois, em virtude do princípio da autonomia da vontade, que impera no âmbito do direito privado, é permitido ao particular a adoção das mais variadas estruturas negociais. Para atingir o resultado econômico pretendido, está habilitado a escolher livremente o arcabouço negocial que melhor lhe aprouver, de forma que os custos sejam reduzidos e os lucros otimizados. São, inegavelmente, lícitas as atitudes dos contribuintes que objetivem à reestruturação e reorganização de seus negócios, estando asseguradas pelo Texto Constitucional, que, em que art. 5º, XXII, prestigia o direito de propriedade, depreendendo-se também, do art. 5º, IV, IX, XIII, XV e XVII, e art. 170 e seus incisos, o pleno direito ao exercício da autonomia da vontade. Consignadas tais anotações, impõe-se o registro de que, prevendo a norma tributária, em sua hipótese, uma determinada atividade jurídica, somente poderá ser aplicada se verificada a efetiva ocorrência do negócio previsto. Tendo em vista os princípios da estrita legalidade e da tipicidade, a prática de forma negocial diversa, ainda que permita atingir o mesmo resultado econômico, não autoriza a autoridade administrativa a lavrar o ato lançamento, constituindo crédito tributário. Como já lecionava Alfredo Augusto Becker, “a doutrina da Interpretação do Direito Tributário, segundo a realidade econômica, é filha do maior equívoco que tem impedido o Direito Tributário de evoluir como ciência jurídica. Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do direito, porquanto destrói precisamente o que há de jurídico dentro do Direito Tributário”. Por outro lado, caso o particular, no desenvolvimento de suas atividades negociais, pratique atos simulados, com vistas a evitar ou mitigar a aplicação de normas tributárias, subtraindo-se ao tributo que seria devido ou reduzindo seu impacto, tem-se por preenchido requisito indispensável à desconsideração dos negócios jurídicos pelo Fisco, competindo à autoridade administrativa lavrar o lançamento tributário, nos termos dos arts. 149, VII e 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e impor as penalidades cabíveis. Para a correta aplicabilidade dos referidos dispositivos, é preciso que se faça uma distinção bem nítida entre atos simulados ou dissimulados e aqueles praticados dentro da esfera de liberdade negocial do contribuinte. Uma coisa é eleger forma menos onerosa para o desempenho, pelo particular, de suas atividades, caracterizando a figura 42 denominada elisão ou planejamento tributário. Outra, bem diferente, é agir com malícia, no intuito de prejudicar o Erário, mediante a prática de ações não autorizadas juridicamente: evasão fiscal. Enquanto na primeira hipótese tem-se ato lícito, cuja desconsideração é inconcebível, a segunda encontra-se no campo da ilicitude, sendo repudiada pelo ordenamento. Conforme consolidado na doutrina civilista, simular significa disfarçar uma realidade jurídica, encobrindo outra que é efetivamente praticada. Consiste na declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso daquele que a declaração real da vontade acarretaria. No negócio simulado, as partes fingem um negócio que na realidade não desejam. Aplicando esses conceitos ao campo do direito tributário, conclui-se que os atos tendentes a ocultar ocorrência de fato jurídico tributário configuram operações simuladas, pois, não obstante a intenção consista na prática do fato que acarretará o nascimento da obrigação de pagar tributo, este, ao ser concretizado, é mascarado para que aparente algo diverso do que realmente é. Em suma, para que haja simulação, é necessário divergência entre a real vontade das partes e o negócio por elas declarado e intenção de lograr o Fisco. Esses são pressupostos indeclináveis da desconsideração das operações jurídicas praticadas pelos contribuintes, devendo estar demonstrados por meio de provas constituídas pela Administração. 43 SISTEMAS PRODUTIVOS REGIONAIS NO BRASIL: UMA PERSPECTIVA CONTEMPORÂNEA Luis Paulo Bresciani Prof. Dr. Programa de Mestrado em Administração, Universidade Municipal de São Caetano do Sul - USCS As temáticas do desenvolvimento local e da questão regional se recolocam como questões centrais no período contemporâneo, dialogando e em alguma medida se contrapondo aos argumentos sobre os domínios avassaladores do processo de globalização Assim é que, seja nos países centrais como no caso brasileiro, amplia-se o debate sobre a relação entre os processos globais e a governança local para o desenvolvimento. Ainda no caso brasileiro, a estagnação econômica das décadas de 1980/90 e a amplificação do debate sobre as alternativas de gestão local levam ao surgimento de inovadoras políticas públicas de desenvolvimento. Da mesma forma, assistimos à formação de novos arranjos institucionais, com a criação de consórcios, fóruns ou agencias que assumem a responsabilidade de coordenar, em âmbito subnacional, ações orientadas ao desenvolvimento territorial no plano local. A apresentação busca abordar as recentes configurações de sistemas produtivos regionais presentes em territórios situados no Brasil, assim como no Mercosul, dialogando também com outros contextos internacionais. Nesse sentido, contempla uma revisão da literatura sobre essa temática, assim como busca discutir a organização dos sistemas produtivos regionais no território nacional, bem como as políticas públicas e os mecanismos de governança institucional orientados ao estímulo do desenvolvimento local. 44 LA INTERVENCIÓN ADMINISTRATIVA EN LA ECONOMÍA: LA ACTIVIDAD DE FOMENTO Alberto Biglieri. Profesor de la Universidad de Buenos Aires e de la Universidad Lomas de Zamora. La evolución de la actividad estatal y su injerencia en la vida de la sociedad civil ha mostrado un constante crecimiento desde el establecimiento de los estados nacionales hasta la actualidad, fenómeno que no presenta desaceleración que nos induzca a pensar que después de una crisis internacional como la que estamos atravesando esa omnipresencia tienda a decrecer. Es cierto que lo que ha aparecido con un rítmico vaivén ha sido la presencia administrativa en el mercado, como profundamente lo ha desarrollado en su libro “Direito Económico” el profesor Fernando Herren Aguilllar. , pero la injerencia de la administración en la vida cotidiana de los ciudadanos ha ampliado sus limites constantemente - con algunos picos en épocas de gobiernos autoritarios – excediendo la prestación de servicios públicos y el control del mercado para imponerse con sus actividades extraeconómicas como su poder de policía , su policía de seguridad y sus iniciativas de fomento. Del estado liberal al estado social. La aparición del Estado de bienestar y la concepción del Estado subsidiario se acercan a la noción del péndulo y su permanente recorrido en la faz económica, pero la Ley de pobres en Inglaterra (1834) o la Ley de Asistencia a los pobres en Prusia (1842) marcan un punto de largada para una carrera que no ha dado marcha atrás. Los fenómenos de exclusión social – a veces más creciente en épocas de desarrollo económico como la Revolución Industrial- no ha sido proporcional al incremento de la riqueza, ha avanzado permanentemente. La caracterización de la actividad de fomento como : “ la acción de la Administración encaminada a proteger o promover aquellas actividades, establecimientos o riquezas debidos a los particulares y que satisfacen necesidades públicas o se estiman de utilidad general, sin usar de la coacción ni crear servicios públicos” agranda los accesos de la administración a la actividad privada: pensiones, jubilaciones y subsidios por discapacidades no significan grandes erogaciones al compararlas con los diferimientos impositivos, los salvatajes financieros, los “hospitales de empresas”, los subsidios a las tasas y tarifas públicas o los créditos blandos de los organismos estatales e internacionales a los emprendimientos estratégicos. 1 El control a la actividad de fomento es de una severa dificultad, La creación de organismos comunitarios en el marco de institucionalización del MERCOSUR se puede ser concebir sin pecado original: El Fondo para la Convergencia Estructural del Mercosur (FOCEM) aparece como una brisa fresca en la gigantesca maraña de estados tan subsidiarios que se han transformado en actores primarios sin límite ni control alguno. NOTA 1 JORDANA de POZAS, Ensayo de una teoría del fomento en el derecho administrativo, en REP, 1949, Nº 48, ps. 41-54.- 45 PROMOTORIA COMUNITÁRIA NO JÚRI DE SANTO AMARO: SEU SURGIMENTO, SITUAÇÃO ATUAL E PERSPECTIVAS. Augusto Eduardo de Souza Rossini Arual Martins Flavio Farinazzo Lorza Ivandil Dantas da Silva Jaqueline Mara Lorenzetti Martinelli Luiz Henrique Cardoso Dal Poz Renato Fernando Casemiro Roberto Bacal Virgílio Antonio Ferraz do Amaral* INTRODUÇÃO O presente artigo se propõe precipuamente a traçar o histórico do surgimento e do início da construção da Promotoria Comunitária no Júri de Santo Amaro 1 , relatando, de forma mais detalhada, as primeiras ações desenvolvidas e os resultados alcançados. Ainda que não de forma exaustiva, apontará a situação atual de seu desenvolvimento, frente aos diversos obstáculos e dificuldades encontrados no decorrer do tempo. Finalmente, de forma breve, apresentará algumas perspectivas para a permanência e a expansão de sua atuação porque, antes de tudo, acredita-se que a Promotoria Comunitária pode trazer contribuição significativa na redução da violência e da criminalidade em nossa Nação. HISTÓRICO APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA: quando tudo começou - 2004 Instalada 2 no Foro Regional de Santo Amaro, na Av. Adolfo Pinheiro, 1992, 7º andar, São Paulo, a Promotoria de Justiça do III Tribunal do Júri da Capital era integrada por 08 (oito) Promotores de Justiça e contava com 05 (cinco) funcionários e com 04 (quatro) estagiários, com atribuição para atuar na persecução penal dos crimes dolosos contra a vida ocorridos na zona sul da Capital do Estado de São Paulo Sua área de atribuição abrangia 09 Distritos Policiais da região sul de São Paulo, pertencentes a 6ª Delegacia Seccional de Polícia, a saber: 11º DP-Sto Amaro, 47º DP-Capão Redondo, 48º DP-Cidade Dutra, 25º DP-Parelheiros, 85º DP-Jardim Mirna, 92º DP-Parque Santo Antonio, 100º DP-Jardim Herculano, 101º-Jardim das Embuias, 102º DP-Socorro. 1 A experiência inicial da Promotoria Comunitária no Júri de Santo Amaro foi apresentada no III Congresso do Ministério Público do Estado de São Paulo, realizado de 24 a 27/08/2005, cujo texto consta de seus Anais, tendo sido publicado, pela primeira vez, na revista APMP Reflexão, edição 10, ano I. 2 Até abril de 2007 46 Tal região era tida por seus moradores como uma verdadeira “Cidade de Santo Amaro”, abarcando bairros como Jardim Ângela, Capão Redondo, Grajaú, Parelheiros e Engenheiro Marsilac, este na divisa com o litorâneo município de Itanhaém - onde inclusive está localizada uma grande área indígena da Nação Guarani, com as aldeias Krukutu e Morro da Saudade, dentre outros. Na região estava fixada uma população de aproximadamente 2.000.000 (dois milhões de pessoas), com densidade demográfica de 66,00 habitantes por km2, cobrindo uma área física de aproximadamente 618,0 km2, dividida em 05 Subprefeituras: M`Boi Mirim, Parelheiros, Campo Limpo, Santo Amaro e Capela do Socorro. O quadro abaixo, elaborado com dados fornecidos pela Prefeitura do Município de São Paulo, descrevia claramente a população e a área que abrangia, à época, cada Subprefeitura, cujas circunscrições estavam afetas ao Terceiro Tribunal do Júri. QUADRO POPULACIONAL Subprefeitura População total Área (km²) (hab.) M’Boi Mirim 484.966 62,1 11.240 353,5 Campo Limpo 505.969 32,7 Santo Amaro 218.558 37,5 Capela do Socorro 563.922 132,2 1.784.655 618,0 Parelheiros Atendimento pelo III Tribunal do Júri Fonte: Prefeitura do Município de São Paulo Por ser uma região carente de infra-estrutura, Santo Amaro sempre ostentou índices alarmantes de criminalidade e violência urbana, merecendo destaque o fato de que os homicídios de forma isolada chegaram a suplantar todas as demais causas de morte. De acordo com o quadro abaixo, construído com os dados fornecidos pela Secretária Municipal de Saúde da Cidade de São Paulo, constatava-se que os pólos em que os delitos de homicídio ocorriam estavam situados nos pontos extremos da região de Santo Amaro. 47 PERCENTAGEM DE HOMICÍDIOS SOBRE OUTRAS CAUSAS DE MORTE (faixa de 15 a 39 anos) Subprefeitura Homicídios (%) Outras Causas (%) M’Boi Mirim 58 42 Parelheiros 50 50 Campo Limpo 52 48 Santo Amaro 32 68 Capela do 57 43 Socorro Fonte: Secretaria Municipal de Saúde – 2004 Além da falta de infra-estrutura, a região de Santo Amaro estava composta em sua maioria por pessoas de classe baixa, com famílias numerosas e com uma renda média de dois salários mínimos, conforme demonstra o quadro a seguir, elaborado com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. RENDIMENTO CHEFES DE FAMÍLIA (Fonte: IBGE) Subprefeitura Sem rendimento (%) Até 5 Salários-Mínimos (%) M’Boi Mirim 17,02 61,32 Parelheiros 22,74 61,12 Campo Limpo 13,94 55,96 Santo Amaro 6,32 22,52 16,09 57,01 Capela do Socorro Em grande parte, “caracteriza-se por ser uma região de população de classe baixa, com crescimento desordenado, havendo grande exclusão social, sendo carente nas áreas de saúde, educação, saneamento básico (com esgotos a céu aberto e ligações clandestinas de água), transporte coletivo, iluminação (com ligações clandestinas nas residências – gatos) e pavimentação pública, áreas de lazer, etc. As residências são em sua maioria casebres de alvenaria e sem acabamento nas paredes. Todos estes fatores de degradação física do ambiente, bem como as carências sociais de todos os tipos, inclusive ausência de políticas públicas para a diminuição das carências, provocam a sensação de impunidade e criam condições propícias à criminalidade, trazendo à 48 comunidade a “banalização da violência e da vida” 3 . Acrescente-se a todos esses fatores de degradação social, o fato de que enormes áreas da região sul eram, e ainda são, consideradas “áreas de preservação ambiental”, em razão dos mananciais existentes (represa do Guarapiranga) e que são responsáveis pelo abastecimento de boa parte da água consumida pela população de São Paulo. Não obstante, essas áreas eram objeto de constantes invasões e ocupações irregulares, fruto da deficiente política habitacional, o que apenas acentuava as chances de conflitos interpessoais e, consequentemente, o aumento de ocorrências criminais violentas, das quais o homicídio vinha sendo uma constante na vida dessa população. FORMA DE ATUAÇÃO DO PROMOTOR DO JÚRI DE SANTO AMARO: até julho de 2004 Apesar da gravidade da situação acima descrita e de sua enorme complexidade, há muito conhecida por todos os setores governamentais, até julho de 2004, a atuação de cada Promotor de Justiça do Júri de Santo Amaro era feita dentro dos moldes de atuação tradicionais no Ministério Público (manifestações processuais, participação em audiências, sessões do Tribunal do Júri e todos os incidentes processuais decorrentes). Na Promotoria tradicional trabalhava-se apenas com os efeitos dos problemas sociais já ocasionados (crimes ocorridos, por exemplo), exceção feita a algumas experiências de trabalhos junto à comunidade, mas realizados de forma individual por alguns Promotores. Muito embora, a existência desse padrão tradicional de Promotor de Justiça atendesse as exigências da Administração Superior, havia um profundo incômodo entre os integrantes da Promotoria do Júri de Santo Amaro decorrente do fato de que a imensa maioria dos homicídios, cerca de 75%, permanecia com sua autoria desconhecida, o que, indubitavelmente, significava impunidade. Somando-se esse fato (elevado índice de arquivamentos de inquéritos de homicídio por autoria desconhecida 4 ) às enormes dificuldades para se levar um réu a julgamento pelo Júri 5 , os Promotores de Justiça do Júri de Santo Amaro obrigaram-se a fazer uma reflexão: em que medida a forma padrão de trabalho, distribuição de serviços e funcionamento da Promotoria de Justiça contribuía para a repressão da criminalidade violenta? Até aquele momento, cada Promotor exercia seu trabalho de forma individual, sem ter o conhecimento das ações de seu colega de Promotoria e muito menos da realidade social da comunidade que o cercava. A distribuição meramente numérica dos serviços diluía o problema em diversos feitos criminais, dificultando o conhecimento de sua origem, seu encadeamento e 3 Citando trabalho do Capitão PM Gilberto Tardochi da Silva, Capitão PM, Comandante da 4ª Companhia do 37º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, apresentado para o Concurso Polícia Comunitária SENASP-MJ/2005, com o título “Implantação e Desenvolvimento Do Policiamento Comunitário Realizado Na Base Comunitária De Segurança Do Jardim Ranieri” 4 Dados do relatório anual de 2004 da Promotoria de Justiça do Júri de Santo Amaro, indicaram 75% de arquivamentos, contabilizando número total de arquivamentos e de denúncias oferecidas no período, o que corresponde em média a 130 arquivamentos/mês 5 Dados do relatório de junho a novembro de 2005 da PJ Júri de Santo Amaro indicaram que somente 50% em média dos julgamentos marcados eram realizados 49 possíveis desdobramentos, de modo a impedir qualquer ação preventiva para estancá-lo ou minimizá-lo. O funcionamento da Promotoria de Justiça montado exclusivamente para atender a demanda individual de cada Promotor de Justiça (no tocante a execução dos seus feitos criminais, suas audiências e júris), não levava em conta a necessidade de análise da produção global da Promotoria e os importantes dados que daí poderiam ser extraídos para aprimoramento do serviço. Nem tampouco e muito menos, considerava as rotinas e procedimentos administrativos dos funcionários e estagiários, deixando-os à margem de qualquer processo participativo da missão da Promotoria. MOMENTO DE MUDANÇA O reconhecimento da situação acima e os dados iniciais de que se dispunha permitiu concluir que o trabalho tradicional do Promotor do Júri pouco auxiliava na repressão criminal considerada em sua forma coletiva. Esse trabalho repressivo alcançava quase que exclusivamente a pessoa individual do réu que tivesse sido identificado pelo Estado, o que não ocorria com a imensa maioria dos homicidas (conforme exaustivamente os dados estatísticos revelaram). Constatou-se que o enorme esforço despendido para levar um homicida a julgamento, pouco resultado efetivo gerava para a repressão criminal e pouco contribuía para a solução e para a amenização do problema da violência da nossa região. Tal análise levou a uma segunda constatação: o aumento da quantidade de homicídios esclarecidos 6 , por si só, não alteraria o panorama da impunidade então sentida. Uma simples operação aritmética demonstrou que essa melhoria no trabalho dos Promotores de Justiça, embora importante, não era a mais urgente. Isto porque, a Promotoria do Júri, em razão de suas limitações estruturais (em especial a capacidade total para realizar júris que, na época, girava em torno de 48/mês), não conseguiria dar vazão a um número maior de processos criminais, os quais se atolariam nas prateleiras do cartório do Judiciário, aguardando anos e anos até serem concluídos e julgados. Por uma outra via, a impunidade que se pretendia combater, acabaria se agravando, levando em consideração as diversas dificuldades existentes e então enfrentadas para levar um réu a julgamento pelo plenário do Júri. Foi então que os integrantes da Promotoria de Justiça do III Tribunal do Júri concluíram que a quantidade de homicídios tinha que diminuir drasticamente. Essa conclusão exigiu uma mudança radical no foco de atuação. A Promotoria do Júri deveria empenhar-se para evitar que novos homicídios ocorressem, ou seja, investir seus esforços na prevenção do homicídio e não somente na sua repressão. Essa mudança de foco obrigou seus integrantes a um exercício de humildade: o reconhecimento de que não tinham a mínima idéia de como fazer para diminuir os índices de homicídio na região, pelo menos com as habilidades tradicionais de um Promotor de Justiça. A Promotoria do Júri decidiu, então, oferecer sua cooperação à policia civil, à polícia militar e à comunidade civil organizada da região, visando buscar junto a eles propostas que tivessem como objetivo a redução dos homicídios. E não só. Buscou-se 6 A proposta inicial era a de melhorar a investigação criminal a fim de diminuir os arquivamentos de autoria desconhecida 50 esse entrosamento inicial para desenvolver seu trabalho de acordo com as demandas da comunidade, abrindo a Promotoria para conhecê-las e colocando-a como parceira dos outros órgãos de Segurança Pública, sempre com o objetivo de encontrar as soluções dos problemas a esta relacionados, bem como dos problemas sociais e das políticas públicas que interferissem direta ou indiretamente nas questões de Segurança Pública e Justiça Criminal. Dessa mudança de perspectiva começou a surgir o que identificamos como Promotoria Comunitária. OBJETIVOS DA PROMOTORIA COMUNITÁRIA Os objetivos de uma promotoria comunitária servem, na verdade, para atingir um objetivo maior que é a melhoria da qualidade de vida da população perante a qual se atua. No caso da promotoria comunitária do Júri de Santo Amaro foram assim definidos: Principal: Contribuir para a redução do número de homicídios na região. Complementares: a) Atuar na prevenção do crime; b) Desenvolver forma de atuação na qual os Promotores de Justiça trabalhem em parceria com outros órgãos públicos e com a comunidade local; c) Promover o trabalho em equipe entre os Promotores de Justiça; d) Integrar à missão da Promotoria os seus funcionários e estagiários. AS PRIMEIRAS AÇÕES DESENVOLVIDAS E SEUS RESULTADOS Operação Bares Pouco tempo depois dos contatos iniciais entabulados pelos Promotores do Júri com a comunidade e com a polícia militar e civil, aderiu-se à proposta para implantação conjunta do projeto “operação bares” formulada pelo então tenente-coronel Renato Aldarvis, na época comandante do 1º Batalhão da Polícia Militar. O projeto “operação bares”, cujas tratativas tiveram início em outubro de 2004, consistiu em efetuar um acordo com os donos dos bares das regiões envolvidas para que fechassem voluntariamente seus estabelecimentos a partir das 22h00, visando à diminuição do número de homicídios visto que as estatísticas comprovavam que grande parte das mortes violentas ocorria após esse horário e nas proximidades de bares. A adesão voluntária fez-se necessária porque no município de São Paulo não havia lei especifica para essa finalidade 7 , ao contrário de outros municípios que a editaram 8 , e cujos resultados na diminuição dos índices criminais vinham sendo animadores e foram mesmo inspiração para a elaboração desse projeto. Esse acordo recebeu o nome oficial de “Pacto de Cidadania. Preservação da Vida e da Paz”, tendo sido criado um cartaz com o nome do Pacto, o aviso do horário limite de funcionamento do estabelecimento comercial (22h00) e o emblema de cada instituição oficial que estava apoiando a iniciativa. 7 A Lei Municipal Nº 12879 de 1999, refere-se a fechamento de bares a 01h00, mas o objetivo buscado é a preservação do sossego público, pois trata do dever de dar tratamento acústico aos estabelecimentos noturnos 8 Diadema, Lei 075/2001 e Decreto 550/2002; Barueri Lei 1214/2001 e Decreto 4746/2001 51 Para a execução do projeto, a área abrangida foi dividida em três regiões – Capão Redondo, Jardim Ângela e Parque Santo Antonio, coincidentes com a área dos DP’s e das Companhias do 1º BPM respectivos (47º DP- 3ª Cia do 1º BPM; 92º DP-2ª Cia do 1º BPM; 100º DP-1ª Cia do 1º BPM) 9 . Designou-se uma reunião para cada região, e a Polícia Militar incumbiu-se de convidar cada dono de bar, motivando-os a comparecer para participarem da propositura do Pacto que seria feito na oportunidade. Cada uma das instituições oficiais participantes se fez presente (Policia Militar e Polícia Civil da área, Juízes e Promotores do Júri de Santo Amaro, Subprefeitura), além de representantes da sociedade civil (Conseg.s, Associações de bairro, ONG.s, líderes comunitários, igrejas) e o apoio da Diretoria Regional de Ensino Estadual. Nessas reuniões, os termos do acordo proposto foram apresentados, procurando convencer os proprietários dos bares a aderirem a ele e, assim, voluntariamente, comprometerem-se a fechar seus estabelecimentos às 22h00. Para esse trabalho de convencimento, todos os setores envolvidos fizeram uso da palavra, apresentando seus argumentos favoráveis àquela iniciativa e, principalmente, demonstrando os reflexos dos bares abertos nas madrugadas e o fenômeno dos crimes violentos, especialmente os homicídios. Nas três reuniões iniciais, em que houve expressivo comparecimento de donos de bares da região, foram demonstradas as estatísticas evidenciando: a) os elevados números de homicídios na região, que podiam ser comparados a lugares que estavam em plena guerra; b) o sexo e a faixa etária da maioria das vítimas (homens de 17 a 25 anos), revelando que eram os jovens que estavam morrendo, portanto deixando claro o risco que os filhos de todos os moradores da região esavam sujeitos; c) os antecedentes criminais das vítimas, na maioria sem qualquer registro, vindo a derrubar a indiferença frente à violência em razão do velho e equivocado entendimento popular de que “só está morrendo bandido mesmo”; d) o período em que os homicídios ocorriam com maior freqüência, entre 23h00 e 06h00, concentrando-se, nos fins de semana até a madrugada de 2ª feira, de modo a justificar estatisticamente a hora estipulada pelo Pacto proposto; e) a grande incidência de crimes de homicídios em bares, próximos a eles e relacionados a questões iniciadas dentro de um bar. Nessas reuniões, foi exibido também um vídeo relatando o êxito na redução dos índices criminais, em especial do número de crimes de homicídio, nos Municípios 10 que adotaram a Lei de fechamento dos bares após determinado horário, deixando evidente a relação entre a ocorrência de homicídios e os bares abertos a noite inteira. Todos os órgãos participantes da iniciativa fizeram uso da palavra, relatando suas experiências em face da violência e a razão pela qual acreditavam na iniciativa e no Pacto proposto naquela oportunidade. No final, a Promotoria do Júri manifestou-se, relatando a rotina diária dos Promotores, o número excessivo de inquéritos arquivados, o tempo e as dificuldades para levar um réu a julgamento, o custo de um preso para o Estado e, principalmente, o drama dos familiares da vítima, que toda a energia e dinheiro gasto para repressão do crime não conseguia amenizar. Ou seja, mostrando que 9 As áreas abrangidas pelas antigas 1ª e 3ª Cias. do 1º BPM, foram repassadas para 37º BPM criado em dezembro de 2004 e instalado no início do ano de 2005. As áreas do 100º DP e 47º DP foram distribuídas respectivamente para as 1ª/ 2ª Cias. e 3ª/4ª Cias. do 37º BPM, ficando o 1º BPM com três cias., para as áreas do 92ºDP e 102º DP (Socorro) 10 vide nota 8 acima 52 muito mais importante que punir o culpado de um homicídio, é poupar a vida, é evitar vítimas futuras, em sua maioria jovens moços de 17 a 25 anos, que muito bem poderiam ser filhos das pessoas que ali estavam. A adesão dos donos de bares, nessa primeira fase da operação, foi expressiva. Para cumprimento do Pacto, a Polícia Militar intensificou as rondas noturnas na região. Os bares irregulares foram orientados a regularizar sua situação administrativa, contando com o apoio da Subprefeitura local na agilização do trâmite. Em caso de omissão, o Ministério Público provocou a ação da fiscalização da Prefeitura. Para os bares regulares que não aderiram ao Pacto, o trabalho de convencimento da importância de sua adesão continuou sendo feito pelas rondas rotineiras da Polícia Militar. Os resultados iniciais da “operação bares” foram extremamente animadores, pois, em três meses de monitoramento dessa operação (período de novembro/2004 a janeiro/2005), constatou-se a redução do número de homicídios em cerca de 40% em relação ao mesmo período do ano anterior, conforme quadro abaixo 11 : nov/03 nov/04 % a jan/04 a jan/05 queda 1a. Cia (100 DP) 40 21 -47,5 2a. Cia (92 DP) 43 23 -46,5 3a. Cia (47 DP) 45 28 -37,8 Grupo Organizado Para Valorização Da Vida – G.O.V.V. Com o êxito inicial da 1ª fase da “operação bares” e conscientes de que essa operação isoladamente não poderia dar conta de manter a contínua queda dos índices de homicídios, ainda elevados na região, um novo projeto idealizado e coordenado conjuntamente pelo 1º BPM e 37º BPM 12 , foi colocado em ação, a partir de fevereiro de 2005, o qual contou também com a participação conjunta da comunidade (ONG.s, Fórum em Defesa da Vida-FDV, CDHEP, Associações de Bairro, Instituto Sou da Paz, Conseg.s), diversos órgãos públicos (Subprefeitura, Sabesp, Diretoria Estadual de Ensino), Polícia Civil (dos distritos locais, 6ª Delegacia Seccional e DHPP), entidades religiosas, Ministério Público (Promotores do Júri de Santo Amaro), Poder Judiciário (Juízes do Júri de Santo Amaro). A idéia básica do projeto reportava-se à constatação de que o crime acontece, na grande maioria das vezes, porque o seu agente encontrou a oportunidade ideal para cometê-lo. Assim sendo, para atuar na prevenção 13 , deveríamos trabalhar no sentido de retirarmos do local o que foi chamado de “a oportunidade do crime”. 11 Dados fornecidos pela Polícia Militar Vide nota 09 sobre a divisão dos batalhões 13 prevenção primária do crime – medidas de governo voltadas para educação, saúde, moradia, saneamento básico, geração de empregos, distribuição de renda, infra-estrutura urbana e rural, 12 53 E como fazer isso? Não é preciso ser nenhum grande estudioso do tema para perceber que as regiões mais violentas são também as mais degradadas, as que menos têm equipamentos urbanos, as mais necessitadas em termos de moradia, escolas, postos de saúde, transporte coletivo, lazer, entre outras carências. A partir dessa constatação, o objetivo do grupo foi escolher um local (para funcionar como projeto piloto), efetuar um diagnóstico de seus problemas urbanos e definir estratégias para resolvê-los, identificando de forma conjunta os setores responsáveis para execução das ações propostas. Ou seja, o propósito do G.O.V.V.- Grupo Organizado para Valorização da Vida, no início de sua criação, foi preparar planos de ação para intervenção concreta no ambiente, visando a redução de crimes, em especial dos homicídios, com a expectativa de que a atuação e o compromisso conjuntos dos diferentes setores da sociedade e dos órgãos públicos com a melhoria de determinado ambiente resultassem em uma pressão saudável para viabilizar a realização de ações efetivas tendentes a desenvolver e melhorar o ambiente, retirando dali a oportunidade para o crime ocorrer. O projeto-piloto transcorreu da seguinte forma. Inicialmente, o G.O.V.V.- Grupo Organizado Para Valorização da Vida reuniuse em fevereiro de 2005 14 e optou pelo Parque Novo Santo Amaro, que registrava, à época, números elevados de homicídios, além de ser região muito carente de equipamentos públicos. No mês de março de 2005, os integrantes do G.O.V.V. visitaram o local escolhido e preencheram um formulário propondo um diagnóstico e sugerindo estratégias, a serem agrupadas em diferentes programas, com indicação do objetivo e do órgão responsável. No mês de abril seguinte, de posse dos 12 programas sugeridos anteriormente, os integrantes do G.O.V.V. reuniram-se por área de interesse e de afinidade a fim de estruturar cada um dos programas inicialmente delineados com a estratégia, órgão responsável e objetivo, indicando a data de início, os equipamentos necessários, freqüência de atuação, pontos de atuação, pessoal a ser empregado, resultados esperados, medidas de apoio, autoridade responsável, programa complementar e os órgãos envolvidos, ações a serem desencadeadas pelo órgão responsável pelo programa. Em maio de 2005, o grupo novamente se reuniu para, dentre os programas sugeridos, eleger os que poderiam ser imediatamente aplicados, definindo-se ações concretas a serem desencadeadas para sua efetiva implementação. Nessa data, foram escolhidos o programa 01 (plano de polícia ostensiva para o local para atuação preventiva), o programa 08 (projeto de saneamento básico e urbanização), o programa 02 (criança e adolescente na Escola) e o programa 03 (projetos culturais e esportivos com os jovens da localidade). Embora realizado como projeto-piloto que encontrou diversos obstáculos para se desenvolver tal qual inicialmente idealizado, verificou-se que a interação promovida entre Poder Público/Comunidade, por meio do formato do G.O.V.V., apresentou resultados positivos, em especial o sentimento de confiança que a comunidade começou promulgação de leis penais e processuais, que repercutem a médio e longo prazo na redução da criminalidade e da violência 14 a partir da formação do grupo, deliberou-se que este se reunirá toda primeira 5ª feira de cada mês 54 a ter em suas autoridades públicas, até então, vistas com alguma reserva. Mesmo porque, boa parte das ações dessas autoridades, seja a Polícia, seja o Ministério Público, sejam os órgãos da Prefeitura ou do Estado, era quase sempre marcada com certa conotação repressiva. A partir da experiência do G.O.V.V., a presença do Poder Público começou a ser percebida também para intervenções positivas, que trariam melhoria de condições de vida e segurança para a população daquela região. A diminuição dos índices criminais revelou que a atuação do G.O.V.V. produziu resultados concretos, contribuindo, especialmente, para a queda do número de homicídios: 2005 37º. BPM (47o.DP e 100o.DP) 15 Fevereiro Carnaval Parque Novo Santo Amaro 16 (4a. Cia do 37o. BPM) Março Carnaval 2006 Queda % 27 8 7 1 -74,1 -87,5 12 8 1 17 0 -91,7 -100,0 Rede De Serviços De Cuidados À Pessoa Em Situação De Violência Doméstica e Sexual Diante da complexidade do problema da violência doméstica e sexual, já que a experiência tem demonstrado que o tratamento compartimentado da questão pouco resolve, a Promotoria do Júri apoiou e, a partir do final do ano de 2005, teve papel de destaque na formação de um Comitê para a construção da rede de serviços para o enfrentamento da violência doméstica e sexual, na zona sul de São Paulo (Jardim Ângela, São Luiz, Campo Limpo, Capão Redondo, Vila Andrade), coordenado pela Sociedade Santos Mártires – Casa Sofia e Rede Mulher de Educação, com o objetivo de elaborar um protocolo de atendimento às vítimas, partindo de uma ação integrada e articulada entre todos os órgãos públicos envolvidos. A construção da rede, por meio de reuniões mensais durante os anos de 2005 e 2006, obteve o apoio e a adesão de setores públicos estratégicos da região para o êxito da iniciativa (hospitais, Polícia Civil, Polícia Militar, Guarda Civil Metropolitana, Promotoria de Justiça de Santo Amaro, Assistência Social do Município, Cedeca, Conselho Tutelar, Coordenadoria Municipal da Mulher entre outros), além de vários representantes da sociedade civil organizada. Essa integração tem viabilizado a troca de informações sobre os limites e as possibilidades de cada órgão público ou privado que comporá a rede, ora em construção, de modo a permitir, em futuro breve, a elaboração de um fluxo de atendimento para o município – protocolo externo -, concretizando a necessária ação articulada. Esse processo pressupõe que cada serviço integrante da rede conte com um 15 Dados fornecidos pelo Ten.Cel. Emilio na reunião do G.O.V.V. de 02/03/2006 Dados fornecidos pelo Ten. Novaes – comandante da 4ª Cia/37ºBPM 17 Até dia 29/03/2006, dados fornecidos pelo Ten. Novaes, sendo que o Parque Novo Santo Amaro até março de 2006, estava há cinco meses sem nenhum homicídio 16 55 protocolo interno – procedimentos assumidos institucionalmente que orientam os profissionais na forma do atendimento às pessoas vitimizadas. Como frutos desse trabalho em rede, foram produzidas, sob a coordenação da Promotoria do Júri de Santo Amaro, duas cartilhas: uma delas, em 2006, contendo relação dos serviços disponíveis para a vítima de violência doméstica e sexual na região sul de São Paulo. E a outra, sobre a Lei Maria da Penha, elaborada logo após a edição da Lei, e publicada em março de 2008, pela Secretaria Municipal de Participação e Parceria/Coordenadoria da Mulher-SP. O interesse na formação dessa rede e no fortalecimento das ações de todos os atores sociais e públicos envolvidos é de primeira ordem para a Promotoria do Júri, que sabe, por experiência própria advinda de casos trágicos, que conflitos familiares e afetivos não resolvidos e/ou não tratados adequadamente no tempo oportuno, redundam, não raro, em crimes de homicídios. Ações em Parelheiros, Campo Limpo e Cidade Ademar Ao tomar conhecimento das atividades e das experiências do Júri de Santo Amaro como Promotoria Comunitária, uma Comissão de moradores de Parelheiros compareceu à Promotoria do Júri de Santo Amaro em novembro de 2005 e solicitou que também fossem iniciadas ações preventivas naquela região. Inicialmente, em dezembro de 2005, diversas lideranças e entidades da região de Parelheiros reuniram-se em plenária juntamente com alguns Promotores de Justiça do Júri do Fórum de Santo Amaro, para uma conversa em torno das maiores dificuldades e sugestões de ações concretas. Dentre as demandas, uma destas lideranças propôs a realização do projeto “Orientadores Jurídicos Populares” como resposta à problemática de acesso a justiça, uma vez que já o tinha freqüentado na região do Campo Limpo 18 . Este projeto visa capacitar lideranças com conhecimentos jurídicos básicos, para que possam orientar, não formalmente, as comunidades onde vivem sobre como acessar a justiça. Destina-se, também, a qualificar a intervenção de lideranças nos espaços internos de suas comunidades, para que possam atuar como orientadores jurídicos populares. Esse curso busca igualmente propiciar uma visão mais clara do papel da justiça, sua abrangência e seus limites, oferecendo ferramentas técnicas simples de conhecimentos jurídicos. Assim, tal projeto despontou como uma primeira forma concreta de reunir as lideranças e diversas associações e movimentos locais em torno de causas comuns, para que possam assim atuar em rede potencializando suas ações. O curso foi realizado durante o primeiro semestre de 2006, em 10 encontros de 3 horas cada, onde foram ministradas noções básicas de direito e as lideranças foram incentivadas a assumirem um papel de orientadores jurídicos populares inseridos nas comunidades onde atuam. A realização contou com uma equipe de Promotores de Justiça do Júri de Santo Amaro e outros Promotores integrantes do Movimento do Ministério Público 18 Vide nota 20 abaixo 56 Democrático-MPD 19 , que se disponibilizaram, de acordo com suas áreas de atuação, a ministrarem as aulas de forma voluntária. O espaço físico foi cedido pela Escola Manaim e pelo Cedeca local, também parceiros do projeto. A coordenação e desenvolvimento do projeto ficaram sob responsabilidade de uma educadora do CDHEP 20 , juntamente com uma equipe formada por Promotores do Júri de Santo Amaro e membros da comunidade. Em razão da enorme receptividade dessa ação em Parelheiros, lideranças comunitárias de outros dois bairros solicitaram a realização desse projeto em suas respectivas regiões, sendo desenvolvidas, nos mesmos moldes, duas novas edições desse curso na região do Campo Limpo (1º semestre/2007) e da Cidade Ademar (2º semestre/2007). Tribunal Popular Aplicado pela primeira vez em 2002, com sucesso, no Jardim Ângela, Zona Sul de São Paulo, fruto da parceria do Fórum em Defesa da Vida e da Promotoria de Justiça do Júri de Santo Amaro, este instrumento segue o procedimento do Tribunal do Júri, como forma de conferir visibilidade externa e legitimidade local a demandas sociais. No Tribunal Popular, o problema social (segurança pública, saúde, educação e outros) é colocado no “banco dos réus”, a comunidade se manifesta como “testemunha”, há a participação de um promotor de justiça como “acusador” para apontar a deficiência do Poder Público e exigir providências. Em contrapartida, o representante do Poder Público atua como “defensor” e todo o procedimento é presidido por um mediador, que atua como “juiz”. Com base nas propostas apresentadas pelos debatedores, a comunidade decide, por meio de voto, as medidas que deverão ser adotadas. Essa metodologia foi apresentada em dois seminários (Forum Social BrasilRecife/PE, 22 e 23/04/2005; Seminário Tribunal Popular – Sesc Vila Mariana/SP, 09/06/2006), buscando difundir esse importante instrumento popular de conscientização política e de legítima pressão social, além de ter havido uma nova edição do Tribunal 19 O Movimento do Ministério Público Democrático-MPD é uma organização não governamental, com mais de 14 anos, que congrega membros do Ministério Público do Brasil, com o objetivo de lutar pela consolidação de um modelo de atuação democrática, independente e efetivamente comprometida com a causa social. Suas preocupações centrais relacionam-se a temas ligados à cidadania, direitos humanos e acesso à justiça. 20 CDHEP-Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo é uma associação que atua há 25 anos, investindo em ações de superação da violência e na mobilização popular e formação de sujeitos coletivos e individuais, para a realização dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. Entre os vários projetos que desenvolve está o de formação de “Orientadores Jurídicos Populares”, que já teve 16 edições anteriores na região do Capão Redondo e Campo Limpo. 57 Popular no Jardim Ângela, em São Paulo/SP, para o tema “Educação e Cultura para os Jovens”, em novembro de 2007. HABILIDADES DESENVOLVIDAS Equipe de Promotores A mudança conceitual na forma de atuação fez com que a Promotoria do Júri de Santo Amaro assumisse sua parcela de responsabilidade pela segurança pública da comunidade em que atua e, assim, passasse a também atuar na prevenção do crime. Por conseguinte, os Promotores de Justiça do Júri de Santo Amaro perceberam que não era possível dar conta de tantas e tão grandes responsabilidades se continuassem trabalhando cada qual nos seus processos isolada e individualmente. Foi intensificado o trabalho conjunto e em equipe, a troca de informações sobre os processos da Promotoria, a discussão rotineira de casos especiais ou de temas jurídicos de interesse geral, a divisão de responsabilidades para tratamento de determinadas questões, a substituição de determinado Promotor para que outro pudesse dar conta das atividades extraprocessuais que fossem surgindo em razão dos projetos junto à comunidade e de prevenção do crime (em sistema de rodízio e de acordo com as habilidades próprias de cada Promotor). Todas essas questões passaram a ser discutidas e deliberadas em reuniões semanais. Essa nova postura não foi algo simples e nem tampouco imediata, pois cada Promotor é independente e goza de ampla autonomia no seu trabalho individual. Cada passo dado exigiu muita articulação entre os menos resistentes à nova forma de trabalho para, então, discutirem as mudanças pretendidas e negociarem o que deveria e poderia ser feito e acatado por todos. Integração dos Funcionários e Estagiários Medidas simples foram adotadas pelos Promotores do Júri para integrar funcionários e estagiários na missão da Promotoria, buscando, dessa forma, a valorização desses profissionais e colaboradores, sua motivação para o trabalho e o seu comprometimento com as ações processuais e extraprocessuais desenvolvidas, sem o qual o resultado de tais ações ficaria bastante reduzido. Algumas delas: democratização da relação Promotor, funcionário e estagiário; melhor comunicação interna; compartilhamento dos êxitos obtidos; esclarecimento da importância e do significado de cada função desempenhada pelo funcionário/estagiário e seu reflexo no trabalho do Promotor. SITUAÇÃO ATUAL Animados pelos resultados promissores inicialmente obtidos (2004/2006) e fortalecidos pelo reconhecimento interno e externo recebido 21 , os Promotores do Júri 21 Reconhecimento obtido pelo projeto da Promotoria Comunitária do Tribunal do Júri de Santo Amaro: 1. vencedor do IV Prêmio Innovare, 2007, Brasília/DF, categoria Ministério Publico; 2. primeiro lugar como trabalho de conclusão de Curso de Gestão em Segurança Pública e Justiça Criminal, promovido pelo Ministério da Justiça em cooperação com a Comunidade Européia e Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), 2006; 3. Prêmio Mérito Comunitário da Polícia Militar do 58 têm buscado institucionalizar o conceito de Promotoria Comunitária, por meio de compartilhamento do conhecimento obtido dentro e fora do Ministério Público, e especialmente para que essa iniciativa não sofra solução de continuidade ou fique na dependência deste ou daquele integrante da Promotoria. No entanto, dois fatos ocorridos no início de 2007 são dignos de nota, pois demandaram esforço extra dos integrantes do Júri para que a Promotoria Comunitária continuasse ativa e atuante. Em primeiro lugar, metade de seus integrantes originais deixou a Promotoria do Júri para exercer outras funções, ainda que de forma temporária22 , sendo substituídos por outros colegas que, apesar de igualmente comprometidos, não tinham a mesma vivência e necessitavam integrar-se às novas atividades, o que não acontece de forma imediata. E em segundo lugar, circunstância talvez mais relevante, foi a transferência da Promotoria do Júri do Foro Regional de Santo Amaro para as dependências do Foro Criminal localizado na Barra Funda (abril/2007) 23 , distante mais de 25 km do local anterior, o que fez com que diminuísse drasticamente o número de atendimentos ao público em geral e de visitas dos parceiros da comunidade à Promotoria do Júri para discussão e desenvolvimento dos projetos em andamento. Apesar do abalo sofrido por esses dois fatos, a Promotoria Comunitária tem buscado se adaptar às mudanças estruturais, que demandou a intensificação do trabalho em equipe, na medida em que o colega Promotor em atividade externa, junto à comunidade, teria menos condições de retornar ao gabinete, dadas as enormes distâncias a serem vencidas em um trânsito como o de São Paulo, sob pena de permanecer, não raro, três horas dentro do carro em um simples trajeto. O Grupo Organizado de Valorização da Vida-G.O.V.V. permanece ativo e suas reuniões acontecem mensalmente. Têm-se firmado como um trabalho em rede formada por diferentes órgãos públicos locais (Ministério Público, Polícia Civil, Policia Militar, Subprefeitura, Diretoria Regional de Ensino) e comunidade (comerciantes, associações de moradores, lideranças locais, conselhos municipais de segurança e outros), o que tem permitido conhecer a realidade local e a verdadeira dimensão da criminalidade da região, propiciando a realização de ações que contribuam para a redução e prevenção da violência e do crime. Há que se destacar o intenso debate que se seguiu à Operação Bares, resultando no Seminário Controle Social do Álcool, realizado em quatro etapas sobre os reflexos negativos do álcool nas áreas da Sáude, Educação, Economia e Segurança Pública (novembro de 2006 a maio de 2007), que obteve intensa participação da comunidade, recebendo apoio da Fundação Getúlio Vargas, Escola Paulista de Estado de São Paulo, Divisão Polícia Comunitária, 2006; 4. Homenagens dos Conselhos Comunitários de Segurança Pública do Jardim Ângela e Capão Redondo-São Paulo/SP, 2005 e 2007; 5. Homenagem do Centro da Cidadania da Mulher de Santo Amaro/SP, 2007; Homenagem da Sociedade Santos Mártires, Jardim Ângela, São Paulo/SP, 2007 22 Atualmente, dois colegas Promotores, titulares do cargo, encontram-se na assessoria da CorregedoriaGeral e na Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo 23 O reconhecimento do trabalho exercido pela Promotoria Comunitária do Júri ensejou a propositura por parte de 09 (nove) entidades da sociedade civil atuantes na região de Santo Amaro/SP, do Procedimento de Controle Administrativo n. 472/2007 perante o Conselho Nacional de Justiça-CNJ, buscando revogar decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que determinou a mudança. O CNJ negou provimento ao pedido, destacando-se que tal decisão foi concretizada pelo voto de qualidade de seu Presidente, em face do empate na deliberação do colegiado. 59 Medicina, Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo e Diretoria Regional de Ensino. O Comitê para a Construção da Rede de Serviços de Cuidados à Pessoa em Situação de Violência aguarda a aprovação pela Prefeitura Municipal do projeto de capacitação em violência doméstica e sexual apresentado em meados de 2007, para que tenha início a implementação da primeira fase do Protocolo de Atendimento da Rede. A ação em Parelheiros resultou na criação do Fórum Permanente em Defesa da Vida da Região de Parelheiros e Marsilac, como movimento que aglutina várias lideranças locais, estruturado em comissões (executiva, saúde, educação, segurança pública, e infraestrutura), que se reúnem em plenária mensalmente, para prestar contas das ações executadas e decidir os próximos passos, garantindo importantes conquistas na região. Integrante da Promotoria do Júri faz parte da comissão executiva e coordena as reuniões plenárias mensais. Com a contínua queda do número de homicídios na região, a atenção dos Promotores do Júri, a partir deste ano de 2008, tem podido se voltar mais intensamente para a melhoria da produção da prova penal, agora com o objetivo de aumentar não só o número de autorias de crime esclarecidas, mas também fortalecer o trabalho da acusação nos julgamentos perante o Tribunal do Júri. Em razão da integração e articulação cultivadas pela Promotoria do Júri com a Polícia Militar e Polícia Civil desde 2004, nos trabalhos de cooperação para a prevenção e redução dos crimes de homicídio, essa nova iniciativa foi bem recebida pelos respectivos comandos da área, estando já em andamento algumas ações nesse sentido, com a participação ativa dos novos Promotores que vieram integrar o Júri de Santo Amaro. PERSPECTIVAS Quando se pensa nas perspectivas para a Promotoria Comunitária, surgem algumas questões fundamentais: Há sustentabilidade para o projeto? Quais os recursos necessários para a superação dos obstáculos e sua expansão? Que mecanismos serão adotados para medição dos resultados? Sustentabilidade para o projeto Embora não se possa ser categórico, o projeto da Promotoria Comunitária mostrou-se sustentável. E sua sustentação vem da integração da Promotoria do Júri com os diferentes órgãos públicos, especialmente a Polícia Civil e Militar, e com a comunidade para ações em conjunto de caráter preventivo. Até porque, as ações de prevenção da criminalidade não podem ser executadas por um único órgão, na medida em que demandam a intervenção em diferentes áreas sociais (educação, saúde, infra-estrutura, segurança, assistência social, e outras), nunca prescindindo da participação e controle da própria comunidade local. Nesse diálogo entre poderes públicos e comunidade, o Promotor de Justiça revelou-se importante fio condutor das demandas sociais. Constatou-se também que a presença constante do Promotor de Justiça na comunidade contribui para inibir a ofensa dos direitos humanos e gera, quando estas ofensas ocorrem, a sua imediata comunicação e conseqüente apuração para as providências cabíveis. 60 Recursos necessários para a superação dos obstáculos e expansão do projeto Para que o projeto de Promotoria Comunitária possa se expandir e se tornar independente da boa vontade e disposição dos seus integrantes de momento, é preciso que a Procuradoria Geral de Justiça sinalize concretamente sua aprovação, viabilizando a estruturação metodológica e organizacional desse projeto para que ele tenha condições de ser replicado em outros locais e possa ser continuado apesar das trocas inevitáveis de seus integrantes no decorrer do tempo. Nesse sentido, entende-se que a elaboração de manual de funcionamento e atuação da Promotoria Comunitária, a exemplo do que existe nos Estados Unidos da América, pode ser um importante instrumento para propagação dessa forma de trabalho. Além disso, a Procuradoria Geral deve montar e coordenar Fórum permanente de discussão sobre as atividades das Promotorias Comunitárias já existentes e em construção, possibilitando a troca de experiências e incentivando a continuidade das ações. Nesse passo, destaca-se o relevante papel a ser desempenhado pela Associação Paulista do Ministério Público 24 na viabilização desse Fórum, seja por meio de seus canais de divulgação e comunicação com os integrantes da carreira, seja através das discussões a serem fomentadas nos grupos de estudos, cuja natural independência frente à Administração Superior e à política institucional do Ministério Público, é fonte rica e legítima para a propositura de soluções criativas para velhos e novos problemas. Há, ainda, que se apontar a importância do apoio a ser recebido de todos os órgãos da Administração Superior para iniciativas dessa natureza 25 . Fundamental também o papel a ser assumido pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, na capacitação dos Promotores e funcionários para exercer as atividades próprias da Promotoria Comunitária, que demandam a presença de habilidades a serem adquiridas e desenvolvidas, visto que pertencem a outras áreas do conhecimento (técnicas de gestão, mediação, negociação, elaboração de projetos, análise de resultados, entre outros). Por fim, diante da política adotada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de centralizar os tribunais do júri num único fórum criminal, situado na Barra Funda, em São Paulo-SP, o que tem invibializado o acesso da comunidade a seus Promotores de Justiça, a Promotoria Comunitária do Júri de Santo Amaro, sem prejuízo de suas atribuições normais, entende imprescindível e urgente a criação de um posto avançado localizado nas proximidades da região abrangida pelo projeto, a fim de que, em sistema de rodízio, haja sempre Promotores de Justiça ao alcance da comunidade a que servem. 24 Registre-se que o apoio recebido da Associação Paulista do Ministério Público, materializado inicialmente com a publicação em primeira mão da experiência da Promotoria Comunitária (2005) , foi fundamental para que a Promotoria do Júri de Santo Amaro fosse convidada a partilhar sua experiência em diversos eventos dos grupos de estudos durante todo o ano de 2006, o que fortaleceu e aprimorou os seus trabalhos, motivando seus integrantes a persistir nos seus objetivos. 25 O reconhecimento expresso da relevância dos trabalhos desenvolvidos pela Promotoria Comunitária do Júri de Santo Amaro, recebido da Corregedoria Geral, Conselho Superior e Órgão Especial do Ministério Público de São Paulo, gerou estímulo para que seus integrantes permanecessem firmes no projeto, buscando sempre sua evolução. 61 Mecanismos adotados para medição dos resultados A adoção de critérios objetivos de medição de resultados é absolutamente necessária, a fim de que seja diminuída a subjetividade da avaliação dos trabalhos desenvolvidos, para que seja justificada a aplicação de recursos nas atividades da Promotoria Comunitária, e, sobretudo, para motivar outros Promotores a se engajarem nessa causa. A seguir, indicamos exemplos de instrumentos de medição de resultados, sendo que alguns deles já foram adotados pela Promotoria Comunitária do Júri de Santo Amaro: a) medições estatísticas temporais: redução dos índices criminais, aumento do IDH, redução da mortalidade infantil, diminuição da evasão escolar, redução no número de distribuições de processos criminais, entre outros dependendo da natureza e dos objetivos da ação comunitária desenvolvida. b) criação de organizações populares: Fóruns Permanentes, Associações de Moradores, Organizações não Governamentais, Movimentos Populares, entre outras formas de aglutinação de lideranças locais em torno de causas de interesse comum a partir da atuação da Promotoria Comunitária. c) reconhecimento social e da comunidade local: prêmios, homenagens, menções honrosas, participação em eventos comunitários com presença destacada. d) formação de líderes comunitários. e) registros de demandas e prioridades coletadas diretamente da comunidade: audiências públicas, encontros com lideranças comunitárias locais, atas de reuniões. CONCLUSÃO: A PROMOTORIA COMUNITÁRIA COMO MANDAMENTO CONSTITUCIONAL Nossa Constituição incumbiu o Ministério Público da defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Foi o Ministério Público, portanto, elevado à condição de defensor do povo. Parece-nos cristalino que para o exercício de tão nobre missão, devem os integrantes do Ministério Público, em primeiro lugar, estar próximos daqueles que pretende defender, presentes na comunidade em que atuam. Devem saber que comunidade é essa, onde se situa, o que pensa, quais são suas necessidades, devem estar sempre dispostos a ouvi-la. E mais importante, a comunidade deve saber quem é o Ministério Público, quem é o seu representante, quem é o seu Promotor ou a sua Promotora. Ou alguém acha razoável o defendido desconhecer quem é o seu defensor? O Ministério Público tem que ter um rosto, um endereço, um telefone. E para isso, precisa interagir com a comunidade, conquistando, assim, a legitimidade de suas ações. A comunidade não precisa mais, ou precisa muito pouco, de Promotores e Procuradores que apenas permanecem em seus gabinetes aguardando os processos encaminhados pelo Judiciário. A comunidade precisa e deseja um Ministério Público formado de agentes políticos, que interfiram na realidade social, transformando-a para que todos tenham vida e vida em plenitude. Afinal, esse é o comando constitucional para o Ministério Público. A Promotoria Comunitária, que tem como fundamento para sua construção, a abertura e a aproximação de seus Promotores para a comunidade e também para outros órgãos públicos, e como prioridade de atuação, as ações preventivas, é o modelo de Ministério Público que mais atende a esse mandamento constitucional. 62 Além de todos os benefícios que a Promotoria Comunitária pode trazer em sua atuação diferenciada, ela permite à comunidade um controle social mais direto sobre os representantes do Ministério Público, viabilizando, ainda, a medição dos resultados sociais de suas atividades. Embora não seja fácil construir uma Promotoria Comunitária, o esforço vale a pena. A Promotoria Comunitária não é apenas um novo método de trabalho. É uma filosofia de ser Ministério Público: comprometido com a comunidade a que serve, e em busca de resultados efetivos para a melhoria da qualidade de vida de seus cidadãos. *Os autores são Promotores de Justiça em São Paulo do III Tribunal do Júri da Capital – Santo Amaro 63 ATUAÇÃO DO ESTADO NO DOMÍNIO ECONÔMICO E SUAS CONTRAPARTIDAS TRIBUTÁRIAS E NÃO TRIBUTÁRIAS Tácio Lacerda Gama Mestre, doutor em direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da PUC-SP e advogado. Para analisar a finalidade que enseja a instituição das contribuições interventivas, é necessário voltar a atenção para os enunciados contidos no Título VII da Constituição Federal. Em especial devem-se analisar aqueles que prescrevem “os princípios gerais da atividade econômica”. Sua interpretação será o ponto de partida para responder às seguintes questões: que é “domínio econômico”? Que é “ordem econômica”? Que se deve entender por intervenção do Estado no domínio econômico? Qual das formas de ação do Estado, relacionadas ao domínio econômico, enseja a criação de contribuições interventivas? Que critérios para aferição da validade deste tributo podem servir à análise da atuação estatal na economia? Com estas indagações, busca-se alcançar três objetivos: i. não incorrer no vício de interpretação consistente na prática de interpretar as normas do Sistema Constitucional Tributário como se não guardassem relação com outros Capítulos ou Títulos da Constituição; ii. analisar com maior riqueza de detalhes o elemento que permite separar as contribuições de intervenção no domínio econômico das demais espécies e subespécies tributárias e iii. identificar outros critérios úteis à aferição da validade destes tributos. Passando a delimitar os conceitos fundamentais para o tema, percebe-se que “domínio econômico” é expressão destinada a nomear o plano da linguagem social, consiste no conjunto das atividades de produção, circulação de riqueza e prestação de serviços. Já o conceito de “ordem econômica” designa o conjunto de normas jurídicas que regula as relações humanas no domínio econômico. Nesse conjunto de normas jurídicas, identificam-se diversas formas de atuação. De fato, analisando o conjunto de enunciados que forma a “ordem econômica”, percebe-se diversas competências atribuídas ao Estado no plano das relações sociais que visam a produção de riquezas. São permissões para atuar, com vista à implementação dos princípios que integram a “ordem constitucional econômica”. Diversos critérios de classificação podem ser utilizados para sistematizar as competências econômicas do Estado. A escolha desses critérios, tal qual sustentado em relação à classificação das espécies tributárias, deve levar em conta a separacão dos regimes jurídicos. Com efeito, é com base na diferença de regime jurídico que será possível classificar as formas de atuação do Estado na economia. Não se deve perder de vista, porém, o propósito que anima essa classificação. Separar as várias formas de atuação do Estado no domínio econômico, no âmbito desse trabalho, serve para identificar em que hipóteses é possível instituir contribuições interventivas. Uma primeira distinção entre as competências do Estado segundo a ordem econômica é a que separa ação participativa, onde o Estado desenvolve diretamente um setor da economia (art. 173 da CF), da ação normativa, na qual o Estado emite normas 64 para regular o processo econômico (art. 174 da CF). Na primeira, o Estado participa das regras do jogo econômico, produzindo ou circulando bens e prestando serviços. Na segunda, o Estado edita normas e fiscaliza o seu cumprimento. Cada uma dessas modalidades comporta, por sua vez, algumas subdivisões. Para melhor compreensão do tema, não será adotada a divisão entre setor público e privado do domínio econômico. Os serviços prestados pelo Estado em regime de direito público serão considerados entre as competências conferidas pela ordem econômica. Por isso, fala-se aqui em “domínio econômico” em sua acepção lata. Com isso, é possível perceber que na ação participativa o Estado explora diretamente a atividade econômica (exploração direta, art. 173, §§ 1º, 2º e 4º) ou presta serviços (prestação de serviços, art. 175). Essa prestação de serviços, quando desempenhada pelo próprio Estado em caráter compulsório, submete-se a regime jurídico diverso de quando é prestada por terceiros, em caráter negocial. No primeiro caso, haverá serviços privativos e no segundo serviços delegáveis. Já na ação normativa, a competência estatal tanto exerce o poder de polícia, fiscalizando a adequação dos comportamentos ao que prescrevem as normas (fiscalização), quando disciplina o fomento da atividade econômica (fomento, art. 174). Ao fomentar, por sua vez, a ação tanto pode ser de planejamento, quando edita normas gerais, planos econômicos, benefícios fiscais ou financeiros (planejamento, art. 174); quanto incentiva, atuando positivamente, por meio de um órgão, para implementar o planejamento em favor de um determinando segmento da economia (incentivo, art. 174). Dessa forma, ficam indicados os meios que o Estado dispõe para influenciar as relações econômicas, segundo valores prestigiados pela ordem econômica vigente. De todas as formas identificadas, apenas uma configura a “intervenção do Estad no domínio econômico”, tal qual prescrita pelo artigo 149 da Constituição. Em todas as demais, há outras contrapartidas que podem ser exigidas, impedindo a instituição das contribuições interventivas. Com base na classificação esboçada, vejamos que tipos de contrapartida podem ser exigidos pela Estado, em função do desempenho de cada uma das suas competências: Tipo de atuação Estatal Contraprestação pela atuação do Estado na Economia Exploração direta Preço do bem ou serviço comercializado. Serviço público compulsório Taxa pela prestação de serviços públicos. Serviço público facultativo Preço público. Fiscalização Taxa pelo exercício do poder de polícia. Planejamento Não há contrapartida específica. Incentivo Contribuições de intervenção no domínio econômico. Com essa ilustração, fica evidente que apenas a modalidade “incentivo” dá ensejo à edição de contribuições interventivas. Vale dizer, para edição de contribuiçõs de intervenção no domínio econômico é necessário que exista lei, determinando atuação 65 positiva do Estado, do tipo incentivo, em favor de um setor específico da atividade econômica. Delimitado o tipo de atuação do Estado no domínio econômico que enseja a instituição de contribuições interventivas, é possível estabelecer outros critérios para aferição da validade desses tributos: i. toda intervenção do Estado no domínio econômico deve ser prevista em lei ordinária; ii. é necessária a identificação de um setor, atividade ou grupo específico, pois a atuação difusa na sociedade não permite configurar um verdadeiro incentivo; iii. o produto da arrecadação das contribuições deve ser integralmente destinado ao custeio da intervenção; iv. somente a intervenção no domínio econômico pela União, ou quem lhe faça as vezes, dá ensejo à criação de contribuições interventivas; v. toda intervenção do Estado no domínio econômico deve estar orientada à implementação dos valores positivados como “princípios gerais da ordem econômica”, previstos no artigo 170 da Constituição Federal. Qualquer contribuição que contrarie os critérios de validade indicados será incompatível com a competência outorgada para sua criação, ficando, assim, passível de ser declarada inconstitucional. 66 A RECUPERAÇÃO DAS EMPRESAS EM CRISE: UM ENFOQUE PRÁTICO * Alexandre Alves Lazzarini Juiz de Direito Titular da 1ª Vara de Falência e Recuperação Judicial de São Paulo, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Professor na Escola Paulista da Magistratura, Mestre em Direito pela PUC/SP, Associado Colaborador do Instituto dos Advogados de São Paulo e Membro do Instituto Brasileiro de Recuperação de Empresas-IBR. A Lei n. 11.101/05 introduziu um novo instituto no nosso sistema jurídico que é a recuperação judicial de empresas, em duas modalidades: a recuperação judicial comum, que pode ser utilizada por qualquer empresa, e a recuperação judicial especial, destinada as micro e pequenas empresas (art. 70). Na primeira, abrangem-se os créditos de naturezas trabalhistas, com garantias reais e os quirografários, que por força da classificação legal (art. 41) passaram a ser denominados de credores das classes I, II e III, sendo que há deliberação dos credores a respeito do plano de recuperação judicial, em assembléia geral de credores; na segunda forma, somente os credores quirografários estão a ela sujeitos, não havendo previsão para a realização da assembléia de credores. O que se verifica nas recuperações judiciais, como acontecia anteriormente com as concordatas, é que a empresa (devedora) na maioria das vezes deixa para a requerer quando a situação ultrapassou a condição de crise e chegou ao estado de insolvência real, perdendo a possibilidade de negociar com os seus credores de maneira cordial. Para isso, interessante a verificação do quadro ilustrativo do “Ciclo de Vida da Empresa”, pois como qualquer pessoa natural, a pessoa jurídica também nasce, cresce, atinge a maturidade e passa a envelhecer, sendo que se não rejuvenecer morrerá com a falência, por exemplo. Empresa: C + T (conceito inerente ao capitalismo) A “vida” da empresa: Verifica-se aí o momento extremo para se buscar a recuperação judicial da empresa, sob pena de chegar a falência. Aliás, aí está outro aspecto importante incluído no sistema legal: a possibilidade de que o devedor procure o seu credor para negociar a dívida, sem que isso caracterize, como ocorria na vigência do Decreto-lei n. 7.661/45, ato de falência. Tanto é assim, que ao lado da recuperação judicial também temos a recuperação extrajudicial (Lei n. 11.101/05, art. 161). Outra questão importante na recuperação judicial e que não pode ser descuidada é a adequada instrução da petição inicial da recuperação judicial, com os 67 documentos previstos no art. 51 da Lei n. 11.101/05, pois é com as informações contidas nesses documentos que os credores poderão verificar se o plano de recuperação judicial, em qualquer de suas formas, tem consistência, considerando que confrontarão as informações contábeis, da natureza dos credores e do patrimônio, por exemplo, com aquilo que é proposto no plano. Essas informações são relevantes, eis que com ela podemos chegar a conclusões quanto as eficiências daquilo que é proposto e para tanto, elenco seis eficiências que me foram mostradas por Enrico Fabietti: 1) eficiência financeira; 2) eficiência no marketing; 3) eficiência nos suprimentos; 4) eficiência na produção; 5) eficiência na logística; 6) eficiência nos recursos humanos. A falha de qualquer dessa eficiências pode inviabilizar as demais e, conseqüentemente, impor a convolação da recuperação judicial em falência. Outra questão de relevo na recuperação judicial e diretamente voltado a questão econômica, consistente na manutenção da unidade produtiva, dos empregos e da fonte produtora, muito questionado, em especial na Justiça do Trabalho, diz respeito a sucessão trabalhista na hipótese de venda de unidade produtiva da empresa em recuperação judicial, que, em recente julgado o Supremo Tribunal Federal (ADIN n. 3.934-2/DF) afirmou a constitucionalidade do art. 60, parágrafo único, e art. 140, II, da Lei n. 11.101/05, que tratam, respectivamente, das sucessões trabalhistas e fiscais na recuperação judicial e na falência. A competência para determinar o pagamento dos credores das empresas em recuperação judicial ou falidas também é fonte de “discórdia” entre o juízo coletivo (da recuperação judicial ou da falência) e o juízo individual (trabalhista, por exemplo), com inúmeros conflitos positivos de competência, sendo que tal questão também foi objeto de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, no RE n. 583.955/RJ, com o reconhecimento da existência de repercussão geral da questão, fixando-se o entendimento da competência do juízo coletivo. Por fim, com relação a falência, uma modificação substancial ocorreu em relação ao regime do Decreto-lei n. 7.661/45. Este autorizava, salvo nos casos de risco de perecimento, a realização do ativo, ou seja, a liquidação dos bens, da massa falida, somente após o relatório final do síndico (atual administrador judicial). No atual sistema, a Lei n. 11.101/05 (art. 139) autoriza a realização desse ativo independentemente de relatório ou investigação criminal, bastando, por óbvio a arrecadação e a avaliação dos bens, de modo a evitar a desvalorização ou o perecimento desses bens, viabilizando a finalidade preconizada no art. 75 da Lei n. 11.101/05. Assim, temos uma breve abordagem de aspectos práticos da recuperação das empresas em crise. 68 A CRISE ECONÔNICA MUNDIAL E SEUS IMPACTOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO NO BRASIL Otavio Pinto e Silva Advogado Coordenador do Setor Trabalhista de São Paulo do Siqueira Castro Advogados, Professor Doutor do Departamento de Direito do Trabalho e Seguridade Social da Faculdade de Direito da USP Em relatório anual divulgado em 28/01/2009, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) trouxe dados sombrios: “A crise econômica mundial poderá deixar sem emprego até o final de 2009 cerca de 51 milhões de pessoas no mundo, caso as condições econômicas mundiais continuem a se deteriorar. A taxa de desemprego mundial, por sua vez, pode chegar a 7,1% neste cenário, contra os 6% de estimativa anterior”. Segundo os dados divulgados, a alta no número de desempregados é a maior desde que a OIT iniciou a contagem da situação dos trabalhadores, em 1991. Isso elevaria para cerca de 230 milhões as pessoas que não terão emprego até o final do ano no mundo, ante 179 milhões em 2007 e 190 milhões em 2008. Se considerada apenas a América Latina, até 23 milhões de pessoas viverão sem emprego até o fim de 2009, ante 19 milhões em 2007. Foi sob esse cenário que iniciamos o ano de 2009, ressabiados com as incertezas para o mercado de trabalho no Brasil decorrentes do atual período de turbulência enfrentado pela economia mundial. Os números do Ministério do Trabalho assustaram: saldos negativos de menos 654.946 empregos formais em dezembro e menos 101.748 em janeiro, explicados entre outros motivos por conta do forte impacto da retração da atividade industrial. Acordos e convenções coletivas de trabalho já foram celebrados, com a adoção de medidas que visam enfrentar o atual período de turbulência enfrentado pelas empresas e pelos trabalhadores. Proliferam medidas negociadas entre os trabalhadores e as empresas, como redução da jornada de trabalho e redução de salários, férias coletivas, suspensão de contratos de trabalho, planos de desligamentos voluntários. Constata-se assim uma das importantes funções da negociação coletiva: a composição dos conflitos de trabalho, com a autorregulamentação das condições laborais em tempos de crise. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) preconiza na Convenção nº 98 a adoção, pelos Estados, de medidas apropriadas às condições nacionais para estimular e promover o pleno desenvolvimento e utilização de mecanismos de negociação voluntária entre empregadores e trabalhadores, com o objetivo de regulamentar termos e condições de trabalho. À luz das normas internacionais percebe-se a responsabilidade do Estado brasileiro pela sustentação da atividade negocial: a ele cabe não somente permitir, mas 69 também, se necessário, incentivar e promover o pleno desenvolvimento da negociação coletiva. Nesse sentido, então, interessante observar a “manifestação oficial do Ministério Público do Trabalho sobre flexibilização”, divulgada em 04-02-2009 pela Procuradoria Regional do Trabalho da 2ª Região – São Paulo, em que a instituição reconhece expressamente que as entidades sindicais podem ajustar medidas emergenciais, de comum acordo com as empresas, que visem à preservação dos empregos, sempre fundadas em critérios objetivos e visando o menor impacto social, recomendando que nas negociações coletivas que envolvam redução da jornada de trabalho, com redução de salários, as partes observem os direitos trabalhistas mínimos, chamando atenção especial aos seguintes aspectos: a) os acordos ou convenções coletivas que prevejam a redução de jornada e consequente redução salarial devem ser, necessariamente, frutos de negociação coletiva, com a participação da categoria interessada, por meio de assembléia geral, em que seus termos sejam aprovados por maioria de votos dos empregados interessados, sindicalizados ou não; b) a redução salarial deve ocorrer pelo prazo máximo de três meses, prorrogável nas mesmas condições (e se ainda indispensável, em face do estado financeiro emergencial da empresa); c) as remunerações, pro labore e gratificações de gerentes e diretores devem ser reduzidas na mesma proporção aplicada aos empregados; d) a celebração dessas normas coletivas deve submeter-se à comprovação documental, por parte das empresas interessadas, da sua situação econômica emergencial; e) deve ser vedado o trabalho em sobrejornada decorrente de incremento de produção, enquanto vigentes as normas coletivas de crise; f) as situações emergenciais que impliquem acréscimos da jornada, assim como as decorrentes de força maior, deverão ser objeto de negociação; g) as normas coletivas firmadas deverão ser depositadas no Ministério do Trabalho e Emprego. Percebe-se, assim, a importância que assume a questão da proteção da boa-fé na atividade de negociação coletiva, pois é um requisito fundamental para que as partes possam legitimamente criar normas jurídicas trabalhistas. A boa-fé objetiva pressupõe uma concepção ética, que impõe uma regra de conduta aos contratantes. Exemplo é o artigo 422 do CC, quando prevê que os contratantes são obrigados a guardar os princípios da probidade e da boa-fé na conclusão e na execução do contrato. Já a boa-fé subjetiva está ligada a uma concepção psicológica, que se baseia na proteção da confiança. Cite-se como exemplos as normas dos artigos 112 do CC (quando dispõe que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem) e 113 do CC (quando assevera que os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração). Esses conceitos se aplicam à negociação coletiva de trabalho, pois para a criação de normas jurídicas trabalhistas pela autonomia privada coletiva é preciso observar os mesmos parâmetros exigidos na celebração dos demais negócios jurídicos. 70 Com efeito, não basta a imposição do dever de negociar (prevista no artigo 616 da CLT e no artigo 114 da Constituição) para que se possa afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro assegura a autonomia privada coletiva. A credibilidade do sistema depende diretamente da presença da boa-fé nos entendimentos mantidos entre os representantes de trabalhadores e empresários, para a criação de normas jurídicas autônomas, autênticas e representativas da vontade conjunta de superar a crise. 71 TESES A ATUAL DIMENSÃO DO DEBATE SOBRE O AJUIZAMENTO DO DISSÍDIO COLETIVO DE COMUM ACORDO: A TESE DA INCONSTITUCIONALIDADE DA EXIGÊNCIA DO IMPULSO BILATERAL. Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho - Mestre e doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na graduação da Universidade Cruzeiro do Sul e nas pósgraduações da Escola Superior de Advocacia de São Paulo e de Santos. Advogado trabalhista. Decorridos mais de três anos da promulgação e do início da vigência da Emenda Constitucional n. 45, as discussões acerca da constitucionalidade da exigência de comum acordo para o ajuizamento de dissídio coletivo remanescem na doutrina e na jurisprudência. O principal argumento apresentado pelos que defendem a inconstitucionalidade da exigência em questão é o de que ela deixaria os empregados a mercê dos empregadores, restringindo o seu acesso à Justiça sem qualquer fundamento razoável. Haveria, outrossim, violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição consubstanciado no artigo 5º, XXXV da CF. Analisando-se o trâmite da Emenda Constitucional n. 45 e as razões políticas que levaram à alteração do artigo 114 da Carta Magna neste ponto, não há como concordar com essa afirmação. O texto que tramitou durante a maior parte do processo legislativo que culminou com a edição da Emenda Constitucional em questão previa a completa extirpação da prerrogativa de edição normas pelo Poder Judiciário. Apenas no derradeiro momento do trâmite legislativo é que se alterou o projeto para possibilitar o ajuizamento do dissídio coletivo de comum acordo. A idéia, que na maior parte do tempo foi de acabar com o Poder Normativo da Justiça do Trabalho, passou a ser restringi-lo ao máximo para privilegiar a autocomposição entre a representação patronal e a empregatícia. 72 Esta evolução no pensamento do legislador no curso do processo legislativo acompanhou os debates feitos no Fórum Nacional do Trabalho, ocorrido concomitantemente aos trâmites finais do Projeto de Emenda Constitucional, no ano de 2004. Nele patrões e trabalhadores defenderam, inicialmente, a idéia de que o Poder Normativo deveria ser extinto, justificando que a intervenção da Justiça do Trabalho nas negociações coletivas impedia o amadurecimento da relação capital e trabalho. Somente após a intervenção do Juiz do Trabalho Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, representante do TST, optou-se pela extinção parcial do poder normativo, ficando condicionado o seu exercício à solicitação conjunta das partes em conflito 26 . Razão assiste, portanto, a Alexandre Agra Belmonte, segundo quem a partir do momento em que o princípio que informa o Estado é o da mínima interferência do Judiciário na autonomia privada coletiva, visando com isso privilegiar a negociação, tem-se que a restrição está perfeitamente de acordo com os princípios que informam a Constituição de 1988 27 . Ora, se a intenção do legislador com a alteração constitucional foi justamente restringir a possibilidade de utilização de dissídio coletivo para incentivar as partes a buscar cada vez mais a solução negociada, interpretar o dispositivo de forma a manter o status quo resulta em flagrante desrespeito à soberania popular. Considerar a norma inconstitucional porque ela restringe o acesso à Jurisdição, justamente o que o legislador buscou nesta hipótese, consiste em desconsiderar todo o processo legislativo e o que os representantes populares buscaram com a reforma. O controle de constitucionalidade, tanto o difuso quanto o concentrado, tem por escopo assegurar a soberania da constituição retirando efeito à normas que violem seus preceitos. Ele não se presta a substituir a vontade do legislador sempre que não se concorde com a norma por ele criada. Em outras palavras, deve-se fazer uso dos mecanismos de controle de constitucionalidade 26 apenas nos casos de normas efetivamente Cf. FERREIRA, Mônica Brandão. O dissídio coletivo na Justiça do Trabalho: da necessidade do comum acordo para o seu ajuizamento. In: Revista LTr, volume 71, n 01, Janeiro de 2007, p. 33. 27 BELMONTE, Alexandre Agra. Mútuo consentimento como condição da ação no dissídio coletivo. In: Revista LTr, volume 71, n 06, Junho de 2007, p. 682. 73 inconstitucionais e não em quaisquer situações em que não se concorde com a mens legislatoris. Há normas equivocadas que não são inconstitucionais e que, por conseguinte, não devem ser combatidas através dos mecanismos de controle de constitucionalidade, mas de novo processo legislativo. Se não se concorda com as medidas adotadas pelo legislador, deve-se substituí-lo na próxima eleição e não buscar de qualquer maneira enquadrar a norma por ele criada em uma situação de violação reflexa à constituição para deixar de aplicá-la. 74 AS AÇÕES COLETIVAS NA JUSTIÇA DO TRABALHO: PROPOSTAS PARA ATUALIZAÇÃO DA LEI BRASILEIRA Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho - Mestre e doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na graduação da Universidade Cruzeiro do Sul e nas pósgraduações da Escola Superior de Advocacia de São Paulo e de Santos. Advogado trabalhista. A tutela coletiva apresenta as seguintes vantagens em relação à tutela individual: redução dos custos materiais e econômicos na prestação jurisdicional; uniformização dos julgamentos, com a conseqüente harmonização social; redução do número de decisões contraditórias e conseqüente aumento de credibilidade dos órgãos jurisdicionais e do próprio Poder Judiciário como instituição republicana e maior previsibilidade e segurança jurídica. Não fosse isto o bastante, há que se destacar que a jurisdição metaindividual propicia ainda que interesses que de outra forma quedariam sem proteção efetiva sejam submetidos ao judiciário, como é o caso da tutela ao meio ambiente do trabalho. Os empregados, individualmente considerados, não ingressam com ações judiciais para que o empregador as cumpra - embora nada os impeça de fazê-lo - por recear represálias. No Brasil não se tem ainda um Código de Processo Coletivo, mas um micro-sistema de tutela dos interesses coletivos lato sensu consolidado com a integração das normas da Constituição da República, da Lei da Ação Civil Pública e do Título III do Código de Defesa do Consumidor, admitindo-se apenas subsidiariamente a aplicação do Código de Processo Civil. Esta fórmula deixa muito espaço para interpretações e, por conseguinte, apresenta grande insegurança. Atualmente há pelo menos dois projetos de lei que tratam especificamente do processo coletivo trabalhista. O mais simples deles, proposto pelo Deputado Federal Efraim Filho, limita-se a alterar a redação de dispositivos da Lei n. 7.347/85. Segundo a justificativa apresentada, os seus objetivos são explicitar a destinação da ação civil pública para reparação dos 75 danos e prejuízos ocorrentes no âmbito das relações de trabalho e a possibilidade de antecipação de tutela nestes feitos e criar medidas para estreitar a colaboração entre o Poder Judiciário e o Ministério Público na promoção do inquérito civil para proteção dos direitos transindividuais dos trabalhadores. Como se vê, ele pouco traz de novo. Bem mais ousado mostrase o projeto elaborado pelo Fórum Nacional do Trabalho que além de confirmar a competência do foro de primeira instância (Varas do Trabalho) para apreciar as ações civis públicas e a competência espargida para a liquidação e execução de sentenças genéricas, apresenta uma série de inovações. Ele fixa o prazo de defesa expressamente em quinze dias e reduz a autorização para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais (homogêneos ou heterogêneos) apenas ao Ministério Público do Trabalho e ao Sindicato, o que seguramente aumentará a importância destes em termos processuais. O projeto ainda se dedica a explicitar o efeito interruptivo da prescrição pela mera propositura da ação coletiva, a elencar um rol de direitos individuais estritos, dito heterogêneos, que poderão, uma vez aprovado o projeto, ser objeto de ação civil pública e a criar uma ação mandamental de pronta execução para combater as condutas anti-sindicais. Contudo, ele também se mostra omisso por não detalhar o rito da ACP trabalhista, deixando de esclarecer pontos que comumente são objeto de discussões perante o judiciário trabalhista como as hipóteses de litisconsórcio passivo necessário e o prazo recursal do Ministério Público do Trabalho. Discussões como estas serão facilmente solucionadas se a atualização da legislação brasileira de processo coletivo detalhar o procedimento a ser seguido nas ações coletivas. As normas processuais, como é bem sabido, devem se dedicar a operacionalizar os processos e a melhor forma de fazê-lo é pondo termo às discussões percebidas nos casos práticos atualmente em trâmite. 76 Reforma trabalhista durante a crise econômica Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho - Mestre e doutorando em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho na graduação da Universidade Cruzeiro do Sul e nas pósgraduações da Escola Superior de Advocacia de São Paulo e de Santos. Advogado trabalhista. Como é corriqueiro durante crises econômicas, muitos vêm clamando por uma reforma trabalhista que flexibilize as regras atuais e melhore a competitividade das empresas nacionais. Para muitos economistas e para a esmagadora maioria dos empresários a nossa legislação trabalhista é retrógrada e representa um dos principais entraves ao desenvolvimento do país. Razão lhes assiste em parte. Não restam dúvidas de que em muitos pontos a nossa legislação está ultrapassada e precisa ser adequada a uma nova realidade. Todavia, não se deve implementar estas mudanças em momentos de crise. A angústia e a ansiedade que predominam nessas épocas bloqueiam a razão e podem conduzir a decisões precipitadas. Suprimir ou reduzir direitos trabalhistas em momentos como o em que vivemos pode representar “um tiro no próprio pé”. Não se pode esquecer que o maior contingente de consumidores do Brasil ainda é composto por empregados ou por seus dependentes. Por esta razão, modificações que resultem direta ou indiretamente na redução de seus ganhos, sejam salários ou outros benefícios, implicará em uma significativa redução no consumo, o que trará consequencias catastróficas para a economia nacional. Mesmo produtos que estão fora do padrão de compra do proletariado acabam afetados pela redução do poder aquisitivo dos empregados. Embora a grande massa de trabalhadores não tenha condições de adquirir veículo de luxo, eles acabam contribuindo para a sua produção quando consumem em mercados cujos proprietários são o público alvo desses meios de transporte. É o bastante para demonstrar que toda a cadeia produtiva acabaria afetada por uma redução drástica no poder aquisitivo dos trabalhadores. 77 Reformas que visem a aumentar direitos trabalhistas também não devem ser implementadas durante crises econômicas. Elas implicam, direta ou indiretamente, em aumento nos custos do empreendimento. Chega a ser surpreendente, portanto, que justamente agora estejam sendo apresentados ou tendo regular trâmite no Congresso Nacional diversos projetos de lei que restringem o poder diretivo dos empregadores. Apenas para citar alguns, há um projeto lei visando o fim da demissão sem justa causa e outro buscando a concessão de estabilidade de um ano no emprego para maridos de mulheres grávidas. Sem entrar no mérito das garantias por eles buscadas, o certo é que não vivemos o cenário socioeconômico adequado para este tipo de deliberação. Mecanismos de proteção contra dispensa abusiva são muito interessantes para coibir dispensas que visam apenas aumentar o lucro do empreendimento. As que são realizadas nos momentos de crise, contudo, em geral são imprescindíveis para a própria viabilidade do empreendimento. Restringi-las para proteger determinados grupos de empregados ou supostamente tutelar a totalidade deles pode ter efeitos trágicos para a empresa e, por conseguinte, para os próprios trabalhadores. Em um regime democrático é importantíssimo que propostas desta natureza sejam apresentadas e deliberadas. Elas devem ser objeto de ampla discussão - se possível através de um pacto social envolvendo representantes do governo, dos empregados e dos empregadores -, mas não durante uma crise tão avassaladora. Seria mais prudente aguardar o fim da tempestade, sob pena de se correr o risco de elas serem rejeitadas com base em argumentos econômicos passageiros, ou serem aprovadas e acarretarem significativos malefícios para o setor econômico. A solução para o enfrentamento da crise atual está em mecanismos que já encontram previsão na legislação nacional. Foi justamente para combater o desemprego que o legislador constituinte previu a possibilidade de redução dos salários e da jornada através de negociação coletiva. O seu objetivo foi justamente permitir que em situações em que a contenção de despesas é inevitável, os representantes dos trabalhadores e dos empregadores pudessem optar pela redução de salários em detrimento de dispensas em massa. Medidas como esta possibilitam uma maior solidariedade nas relações econômicas, pois preservam a atividade econômica e os postos 78 de trabalho através da distribuição dos ônus da crise entre os diversos atores envolvidos. Com a vantagem de que, por serem medidas de urgências, seus efeitos deverão cessar após o término da crise. Diferentemente do que ocorre com as reformas legislativas. 79 A Lei de Inovação Tecnológica no Direito Administrativo: o Estado como agente inovador Patrícia Pereira Tedeschi - Mestranda da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Desde a fase pré-capitalista as invenções eram estimuladas, a fim de tornar os meios de produção e comercialização de produtos mais eficientes, otimizando a infra-estrutura comercial e reduzindo os custos de produção. O papel do Estado, nesse sentido, foi o de garantir os direitos de propriedade intelectual aos titulares e não atuar diretamente como agente inovador. No Brasil, devido à necessidade de elevados investimentos para a construção de infra-estrutura para pesquisa e desenvolvimento, ela é resultado do aporte financeiro do Estado nas universidades e centros de pesquisas públicos. Portanto, essas instituições se tornam grandes geradoras de tecnologia, invertendo a ordem natural do processo de pesquisa e desenvolvimento, que é a iniciativa privada e não o poder público, por natureza, agente de inovação. Esse fenômeno estimula a existência de contratações tecnológicas entre as instituições públicas com a iniciativa privada. Dessa forma, é essencial a existência de instrumentos jurídicos adequados para fazer face às novas demandas no campo da propriedade intelectual e da transferência de tecnologia, no que diz respeito aos projetos científicos e tecnológicos em associação com a iniciativa privada.1 Até 2004, existia um quadro normativo difuso ou, em certos casos, uma lacuna quanto ao regime jurídico a ser aplicado à contratação tecnológica2 envolvendo instituições públicas de pesquisa. A Lei 8.666/93 era o diploma legal utilizado em conjunto com resoluções das instituições que tentavam preencher as lacunas que a Lei de Licitações e Contratos Públicos não era específica o suficiente para resolver. Em virtude dessa insuficiência, encontrávamos um quadro incerto sobre o papel do Estado no desenvolvimento tecnológico, o que gerava uma grande insegurança jurídica, sobretudo às empresas interessadas em investir em pesquisas nas universidades. A solução encontrada para esse problema e para estimular o desenvolvimento tecnológico do país se deu através do marco normativo. A Lei de Inovação (10.973/04) buscou resolver as seguintes questões, entre outras: (i) necessidade de licitação para a alienação de patentes de titularidade de instituições públicas; (ii) estabelecimento de regras para a titularidade desenvolvidas em conjunto com empresas; de invenções (iii) participação do inventor funcionário público nos resultados financeiros da propriedade intelectual desenvolvida na universidade. A Lei 10.973 de 02 de dezembro de 2004 (Lei de Inovação Tecnológica) foi criada com o objetivo de aumentar a capacitação tecnológica do país, a partir 80 da criação de estímulos à atividade de inovação através de incentivos fiscais ou da geração de um ambiente cooperativo e empreendedor entre instituições públicas de ensino e pesquisa e a iniciativa privada. Assim, o tema da inovação tecnológica, que sempre foi tratado com fundamentos no direito privado, na propriedade intelectual, na liberdade de contratar, passa a envolver alguns aspectos de direito administrativo, na medida em que se estimula a contratação entre instituições públicas científicas e tecnológicas e empresas, sejam essas públicas ou privadas, com o objetivo de estreitar a relação técnica profissional entre as partes. Ou seja, realizar licenciamento de tecnologia, parceria tecnológica, prestação de serviços, por exemplo. O desenvolvimento de tais atividades pelo Estado leva a que ele, além de suas atividades clássicas de serviço público, atividade econômica, poder de polícia, fomento e regulação, desenvolva uma nova atividade, intervindo na economia através da atuação como agente de inovação tecnológica. 1 Simone Scholze, Instituições públicas de pesquisa e o setor empresarial: o papel da inovação e da propriedade industrial. 2 Por contratação tecnológica entende-se: contratos de parceria tecnológica, prestação de serviços tecnológicos, licenciamento de tecnologia.