FAJE – FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA

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FAJE – FACULDADE JESUÍTA DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
JOSÉ RAIMUNDO RODRIGUES
JESUS, CARNE DE DEUS!
ESTUDO TEOLÓGICO-EXEGÉTICO A PARTIR DE Jo 1,14a
Dissertação de Mestrado
Orientador: Prof. Dr. Johan Konings SJ
BELO HORIZONTE
2006
2
AGRADECIMENTO
À Congregação do Verbo Divino e à Arquidiocese de Mariana pelo incentivo ao estudo.
Ao Prof. Dr. Johan Konings pelo estímulo ao longo da pesquisa.
Aos amigos pelo apoio, cuidado, humanização que me ofertaram neste tempo.
Aos que professam “Jesus-carne”, acreditam no humano e assumem a história como momento
único e privilegiado de adesão ao Pai.
3
RESUMO
Esta dissertação tem como objeto de estudo o vocábulo “carne” aplicado à pessoa
de Jesus no Prólogo joanino. Partindo da interpretação dada ao termo por Ireneu de Lião,
Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino e Karl Rahner, é formulado o status questionis. As
perspectivas judaica e paulina são analisadas, respectivamente, como pressuposto e elemento
comparativo para uma definição do vocábulo em Jo 1,14a. Ao afirmar “a Palavra se fez
carne” (Jo 1,14a) João propõe que a existência mortal de Jesus é elemento essencial para a
manifestação da glória/amor do Pai (cristologia do envio). O estudo de outras ocorrências de
“carne” na obra de João (Evangelho e Cartas) ressalta o valor dado à humanidade de Jesus.
Por fim, são apresentadas algumas incidências de “Jesus-carne” na eclesiologia, nos diálogos
ecumênico e inter-religioso, na relação com o mundo moderno. O presente estudo teológicoexegético visa, portanto, elucidar um dos aspectos, “carne”, da profissão de fé da encarnação.
Palavras-chaves
Carne, Evangelho segundo João, humano, encarnação, cristologia (do envio).
RÉSUMÉ
Cette dissertation a pour objet l’étude du vocable “chair” appliqué à la personne
de Jésus dans le Prologue johannique. C’est à partir de l’interprétation donnée à ce terme par
Irénée de Lyon, Augustin d’Hippone, Thomas d’Aquin et Karl Rahner qu’est formulé le
status questionis. Les perspectives judaïque et paulinienne sont respectivement analysées
comme présupposés et éléments de comparaison pour la définition de ce vocable dans Jean
4
1,14a. En affirmant que “le Verbe s’est fait chair” (Jn 1,14a), Jean propose que l’existence
mortelle de Jésus est un élément essentiel pour la manifestation de la gloire/amour du Père
(christologie de l’envoi). L’étude d’autres occurrences de “chair” dans l’oeuvre de Jean
(Évangile et lettres) fait ressortir la valeur donnée à l’humanité de Jésus. Finalement sont
présentées quelques incidences de « Jésus-chair » dans l’ecclésiologie, dans les dialogues
oecuméniques et inter-religieux , dans la relation avec le monde moderne. Cette étude
théologique et exégétique vise donc à élucider un des aspects « chair » de la profession de foi
de l’incarnation.
Mots-clés
Chair, Évangile selon St Jean, humain, incarnation, christologie (de l’envoi).
5
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO ............................................................................................................... 2
RÉSUMÉ ................................................................................................................................... 3
LISTA DE ABREVIATURAS................................................................................................. 8
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I: STATUS QUAESTIONIS ............................................................................. 14
1 – O conceito de “carne” em Ireneu de Lião .................................................................. 15
1.1 – Ireneu e a Gnose ...................................................................................................... 15
1.2 – Ireneu e a salvação na “carne”: encarnação para a comunhão com Deus ............... 16
Cur Deus homo? ........................................................................................................... 17
1.3 – A leitura de Jo 1,14a por Ireneu .............................................................................. 19
2 – Agostinho de Hipona e o desafio da “carne” aplicado ao Verbo ............................. 23
2.1 – O mistério da encarnação na leitura agostiniana do Evangelho segundo João ....... 24
2.2 – Ser humano: imagem de Deus ................................................................................. 26
2.3 – O Verbo preexistente ............................................................................................... 30
2.4 – Jo 1,14a e o conceito de “carne” ............................................................................. 31
3 – Santo Tomás: “carne e espírito” unidos indissociavelmente .................................... 32
3.1 – A encarnação e o conceito de “carne” na III Parte da Suma Teológica ................. 33
3.1.1 – Conveniência e justificativa para Deus vir na “carne” ..................................... 34
3.1.2 – O problema da união hipostática ...................................................................... 37
3.1.3 – O conceito de pessoa humana e sua incidência na “carne” do Cristo .............. 38
3.1.4 – O termo “carne” associado ao v. 14a do Prólogo Joanino ............................... 40
3.2 – A “carne” de Cristo no Comentário sobre o Evangelho de João ............................ 41
6
4 – Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvação vindo na “carne” ........................ 43
4.1 – O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra ................................................... 44
4.2 – Cristologia existencial e encarnação a partir da leitura de Jo 1,14a ........................ 47
Conclusão ............................................................................................................................ 53
CAPÍTULO II: “JESUS-CARNE” EM Jo 1,14a................................................................. 55
1 – O termo “carne” no Antigo Testamento .................................................................... 56
1.1 – rf'B' .......... ............................................................................................................... 57
1.1.1 – Sentido genérico de rf'B'................................................................................... 57
1.1.2 – rf'B' – “carne animal” para alimentação .......................................................... 57
1.1.3 – rf'B' – “carne” do ser humano ........................................................................... 58
1.1.4 – rf'B'-lK' (kol- bāśār) – “toda carne” ................................................................. 60
1.1.5 – rf'B' – relação de parentesco ............................................................................. 61
1.1.6 – rf'B' – fragilidade e condição mortal do humano.............................................. 62
1.2 – raev. (sheēr) ............................................................................................................ 64
1.3 – rf'B' e raev. na interpretação da LXX ..................................................................... 65
1.4 – Conclusões ............................................................................................................... 68
2 – Carne no Corpus Paulinum ......................................................................................... 69
2.1 – Sa,rx no sentido neutro ou estrito ....................................................................... 70
2.2 – Sa,rx como parentesco ou relações de raça/etnia ............................................... 70
2.3 – Sa,rx como indicativo da totalidade do ser humano, aplicada a Jesus Cristo .... 71
2.4 – Sa,rx como antagonista de pneu/ma ................................................................. 73
2.5 – Conclusões ............................................................................................................... 75
3 – “Carne” no Evangelho segundo João ......................................................................... 76
3.1 – Um Evangelho para decisão na fé ........................................................................... 76
3.2 – Significado de sa,rx em Jo 1,14a......................................................................... 77
3.2.1 – O contexto amplo ............................................................................................. 77
3.2.2 – O contexto imediato de sa,rx em Jo 1,14 ..................................................... 78
3.2.3 – Definição de sa,rx......................................................................................... 80
3.3 – Sa,rx em outras passagens joaninas ..................................................................... 83
3.3.1 – “Jesus-carne” para a vida do mundo – Jo 6,51-56 ............................................ 84
3.3.2 – O termo sa,rx não aplicado à pessoa de Jesus .............................................. 87
3.3.2.1 – Os que não nasceram do desejo da carne – Jo 1,13 ................................... 87
3.3.2.2 – Nascimento na carne e nascimento no Espírito – Jo 3,6 ........................... 88
3.3.2.3 – A “carne” para nada serve – Jo 6,63.......................................................... 89
3.3.2.4 – O julgamento segundo a “carne” – Jo 8,15 ............................................... 90
3.3.2.5 – O poder sobre toda “carne” – Jo 17,2 ........................................................ 90
7
3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo
91
3.4.1 – Jesus e a mulher samaritana – Jo 4,1-30 ........................................................... 93
3.4.2 – Jesus e o debate sobre a filiação de Abraão – Jo 8,39-47................................. 94
3.4.3 – Jesus e a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41 ................................................ 95
3.4.4 – Jesus acusado de blasfêmia – Jo 10,22-39........................................................ 97
3.4.5 – Jesus, o sinal de Lázaro e a reação do Sinédrio – Jo 11 ................................... 98
3.4.6 – Jesus diante de Pilatos – Jo 19,1-16 ................................................................. 99
3.5 – A cristologia do envio e o termo sa,rx ................................................................ 99
3.6 – O Jesus histórico em João...................................................................................... 102
3.7 – Conclusões acerca do termo sa,rx em João ....................................................... 104
4 – “Carne” nos outros escritos joaninos........................................................................ 106
4.1 – Concupiscência da “carne” – 1Jo 2,16 .................................................................. 106
4.2 – Jesus Cristo na “carne” – 1Jo 4,2 .......................................................................... 107
4.3 – Jesus Cristo vindo na “carne” – 2Jo 7 ................................................................... 109
Conclusão .......................................................................................................................... 110
CAPÍTULO III: INCIDÊNCIAS DA LEITURA DE “JESUS-CARNE” (Jo 1,14a) ..... 113
1 – “Jesus-carne”: verdade cristã e incógnita eclesial ................................................... 114
1.1 – A redescoberta do “Jesus-carne” ........................................................................... 115
1.2 – O abismo entre as formulações teológicas e a vida eclesial .................................. 118
2 – “Jesus-carne”: possibilidade do diálogo ecumênico e inter-religioso? .................. 121
2.1 – O horizonte do diálogo ecumênico ........................................................................ 121
2.2 – O horizonte do diálogo inter-religioso .................................................................. 124
3 – “Jesus-carne”: uma referência humana para a modernidade ............................... 128
3.1 – O horizonte da razão e da cultura moderna ........................................................... 128
3.2 – O princípio da solidariedade .................................................................................. 132
Conclusão .......................................................................................................................... 136
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 139
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................. 142
a) Instrumentos ............................................................................................................... 143
b) Básica .......... .............................................................................................................. 143
c) Complementar ............................................................................................................ 147
8
LISTA DE ABREVIATURAS
AH
IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995.
AT
Antigo Testamento
cap.
capítulo
cf.
confira
CESJ
TOMÁS DE AQUINO. Commentaire sur l’évangile de Saint Jean. Paris : Cerf,
1998.
DCT
LACOSTE, Jean-Yves (dir.). Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Loyola,
2004.
DGNT
RUSCONI, Carlo. Dicionário do Grego do Novo Testamento. São Paulo: Paulus,
2003.
DITAT
HARRIS, R. Laird et al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
DITNT
COENEN, Lothar et al. Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. v. I.
DT
AUGUSTIN, Saint. De Trinitate: la Trinité. Paris: Desclée de Brouwe, 1955.
v. 1-2.
DV
Dei Verbum
9
DZ
Denzinger. El magisterio de la Iglesia: manual de los símbolos, definiciones y
declaraciones de la Iglesia en materia de fe y costumbres. Barcelona: Herder,
1961.
ed.
edição
et al.
et alii
GS
Gaudium et Spes
ibid.
ibidem
LXX
Septuaginta – “Setenta”
NT
Novo Testamento
op.cit.
opus citatum
p.
página
TDNT
FRIEDRICH, Gerhard et al. Theological Dictionary of the New Testament.
Michigan:
WMB, 1982. v. VII.
TEB
Bíblia Tradução Ecumênica. Versão integral.
Trat.
AUGUSTÍN, San. Tratados sobre el evangelio de San Juan (1-35). Madrid:
Editorial Católica, 1955.
ST I
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001. I, v. I (q. 1-43).
ST III
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2002. III, v. VIII
(q. 1-59).
UR
Unitatis Redintegratio
v., vv.
versículo, versículos
10
INTRODUÇÃO
O cristianismo professa com o Evangelho segundo João que o “o Logos se fez
carne” (Jo 1,14a). A fé em “Jesus-carne”, confessada pela comunidade joanina, é repetida há
séculos, porém nem sempre realmente assimilada pelas comunidades cristãs. Esta dissertação
tem por objeto de pesquisa o vocábulo “carne” na sua aplicação direta à pessoa de Jesus no
Prólogo joanino, procurando contribuir para uma melhor compreensão do seu significado e
ressonância para os cristãos.
O debate acerca da encarnação tem sido questionado nos últimos tempos pela
cultura moderna e pelo diálogo inter-religioso, sendo assim de grande relevância refletir sobre
o “Jesus-carne”. O cristianismo não pode ter uma falsa segurança de ser o detentor universal
da verdade, esperando que suas palavras sejam aceitas em todos os âmbitos. O caminho do
diálogo surge naturalmente como exigência que, se não respondida, descuida daquilo que é o
propósito do Evangelho, ou seja, a comunicação do amor de Deus e do seu desejo salvífico
em relação à humanidade. Portanto, é necessário, hoje, mais que em outras épocas, explicitar
o que os cristãos querem dizer ao afirmar que “o Logos se fez carne”.
Com a finalidade de se aproximar do que tem sido a reflexão em torno do termo
“carne” foram tomadas quatro leituras que formam o status questionis desta dissertação. A
pergunta que se faz diz respeito ao significado que foi dado ao vocábulo, particularmente, mas
também à sua associação com a pessoa do Filho de Deus e as conseqüências daí nascidas para
a compreensão do humano. A leitura de Ireneu traz à tona uma realidade conflitiva que exigia
respostas claras e com fundamentação teológica a fim de sanar as seqüelas que surgiam com
as heresias. Que relevância Ireneu dá ao termo “carne” na sua interpretação de Jo 1,14a?
Parece ser ele um autêntico defensor da realidade humana de Jesus, “carne”, diante das
proposições gnósticas.
11
Dentre as diversas leituras patrísticas, Agostinho foi escolhido como segunda
palavra acerca do “Jesus-carne”. Os Tratados sobre o Evangelho de São João são lidos no
desejo de haurir deles a reflexão agostiniana sobre o “homem-Deus” que veio até à
humanidade para recuperar-lhe a visão. Que concepção do humano subjaz na interpretação
que Agostinho faz do Quarto Evangelho? Em que sentido a leitura do Bispo de Hipona pode
ajudar para a percepção do “Jesus-carne”? Agostinho parece marcado por um pessimismo
diante do humano que é fruto do seu desejo de salvaguardar o mistério da graça salvífica de
Deus. Esse aparente pessimismo, sem dúvida, está refletido no seu modo de falar sobre
“Jesus-carne”.
Uma terceira leitura é feita a partir de Tomás de Aquino. Os dados apresentados
têm a finalidade de trazer à baila a recuperação do humano, embora ainda numa compreensão
bastante teórica e, marcadamente, metafísica. No Doutor Angélico foi buscado o rigor da
afirmação teológica sobre a encarnação e seu posicionamento em relação à vida terrena de
Jesus. Ao afirmar a unidade indissociável da alma ao corpo, estaria Tomás já avançando para
uma otimização do humano?
Para finalizar o primeiro capítulo é apresentado parcialmente o pensamento de
Rahner sobre a encarnação. Não se tem a pretensão de abarcar toda a sua densidade teológica,
mas sim visibilizar o humano Jesus como o revelador do Pai. A antropologia rahneriana,
essencialmente marcada pela graça, é muito próxima do pensamento dos Padres Gregos e
atualiza a valorização da condição humana tal como ela é, apresentando-a como forma
escolhida por Deus para se comunicar com os seus filhos e filhas. Sem dúvida, há grande
semelhança entre o pensamento de Rahner e aquilo que João procurou dizer no v. 14a do seu
Prólogo.
O segundo capítulo é uma reflexão bíblica em torno do vocábulo “carne”. O ponto
de partida é o significado veterotestamentário do termo, pois parece que João é grande
devedor do AT. A concepção judaica dá a impressão de que o humano encontra-se numa
esfera totalmente distinta da divina e tem como característico o fato de ser mortal, terreno.
Para o AT, rf'B' (bāśār) é a afirmação da contingência e finitude humanas. “Carne” seria
ainda a definição do ser humano na sua totalidade de existência terrena. Parecem quase que
evidentes as implicações disso na afirmação de João. Há também no segundo capítulo uma
breve reflexão sobre raev.. (sheēr), outro termo designativo de “carne”, e uma abordagem das
traduções dos dois termos hebraicos pela LXX.
12
A título de comparação, é apresentado o pensamento de Paulo sobre a “carne”. É
comum ao imaginário religioso cristão uma rejeição ao “carnal” supostamente fundamentada
no pensamento paulino. Seria ela possível? É legítima tal atitude? Ao que tudo indica, há no
Apóstolo uma continuidade do pensamento hebraico e o que ele condena não é a “carne” em
si, mas sim a pretensão humana de colocar-se como independente de Deus e, até mesmo,
resistente a Ele. Quando Paulo usa sa,rx (sárx) aplicado a Jesus deseja demonstrar a
totalidade da existência daquele que redime a humanidade.
Após as duas abordagens, judaica e paulina, como traçar o significado de “carne”
em Jo 1,14a? João estaria apenas afirmando o nascimento de Jesus ou estaria indicando algo
mais com esse vocábulo? Como dito, João demonstra total fidelidade ao pensamento hebraico
e se posiciona como um teólogo que afirma a existência terrena de Jesus na sua totalidade, ou
seja, não somente o nascimento, mas todo o seu agir até a morte na cruz. Essa condição
humana, mortal, é para João dado de fé professado comunitariamente e indissociável do Jesus
glorioso. No que concerne ao pensamento joanino, a reflexão aqui apresentada busca somente
elucidar o termo “carne”, não investigando, portanto acerca do “Logos” nem da pré-existência
e glorificação de Jesus.
O Evangelho de João já foi duramente criticado como tradutor de uma cristologia
descendente onde o humano não teria relevância. O estudo ora apresentado propõe que em
João o “Jesus-carne” é evidente a ponto de se tornar dado mais que aceito pela comunidade. A
dificuldade parece estar num outro ponto, a saber, o reconhecer que Deus se revela
plenamente neste humano. Um dado novo aqui sugerido é de que em João, mais que uma
cristologia descendente ou ascendente, há uma cristologia do envio que dá o verdadeiro
significado do “Jesus-carne” para a comunidade cristã. Além das ocorrências de “carne” no
evangelho de João e de seu possível paralelo “humano”, é explicitado também como o termo
é compreendido nas Epístolas joaninas.
Como toda teologia tem por fim servir para o crescimento, amadurecimento e
vivência da fé, o último capítulo tem como preocupação central apresentar algumas
incidências da pesquisa sobre o “Jesus-carne”. A incidência intra-eclesial aponta para a
redescoberta do “Jesus-carne” e o desafio de se transpor para a vivência da fé a formulação e
reflexão teológicas. A segunda incidência está relacionada com a necessidade de um diálogo
mais claro e corajoso com outros cristãos e com as outras religiões. Tais diálogos
encontrariam em “Jesus-carne” alguma contribuição? A última incidência toca na necessidade
de uma aproximação da afirmação cristã acerca da humanidade de Jesus com a cultura e
13
pensamento modernos. “Jesus-carne” poderia ser apresentado como uma referência humana
para a modernidade?
Em síntese, o conteúdo desta dissertação pode ser apresentado em três grandes
questões: a) como alguns teólogos interpretaram o termo “carne” aplicado a Jesus no Prólogo
joanino? b) qual o significado do vocábulo nas Escrituras e, particularmente, em Jo 1,14a?
c) quais as conseqüências da interpretação do “Jesus-carne” para o momento atual?
Por fim, há um desejo de que, ao final da leitura deste texto, a aproximação com o
“Jesus-carne” possibilite um resgate da pessoa humana como condição escolhida por Deus
para a sua melhor e mais autêntica comunicação de amor. O v. 14a do Prólogo desperta para o
mistério já abordado por muitos, mas que sempre será novo e exigirá novas interpretações. No
“Jesus-carne” joanino está presente a surpreendente ação de Deus que coloca no mais alto
lugar aquela condição considerada pela maioria das pessoas como humilhante e negativa.
Enquanto muitos buscam Deus nas alturas, ele busca o humano no terreno de cada dia. Ele
ensina que para alcançar a divindade é preciso assumir a humanidade como dom e busca de
realização à luz de seu Filho. Contra todo cristianismo superficial que rejeita a humanidade de
Jesus ou que a professa apenas formalmente, levanta-se a reflexão sobre o “Jesus-carne”
enquanto afirmação de que só se é cristão à medida que se assume como legítima a sua
condição humana.
14
CAPÍTULO I: STATUS QUAESTIONIS
O presente capítulo almeja oferecer uma posição acerca das interpretações já
dadas ao termo “carne” no v. 14a do Prólogo de João. Sendo tal versículo chave para toda a
reflexão sobre a encarnação, procura-se, então, perceber como as elaborações teológicas
dialogaram com ele e quais as suas conseqüências para a compreensão da pessoa humana e da
cristologia. Dentre as infindáveis possibilidades, optou-se por uma representatividade.
Num primeiro olhar, procura-se determinar como Ireneu de Lião – representante
de uma incipiente teologia sistemática de cunho bíblico, que é caracterizada por um apreço ao
mistagógico – leu o termo “carne” aplicado à pessoa de Jesus. Uma leitura inicial de sua obra
Contra as heresias permitiu entrever seu posicionamento, e procura-se aqui revelar um
aspecto um tanto esquecido da antropologia patrística acerca do Verbo na “carne”.
Na leitura de Agostinho, especificamente seus Tratados sobre o Evangelho de
João, manifesta-se uma definição do humano e da “carne” de Jesus bastante difundida que,
vencendo séculos, tem-se acomodado sub-repticiamente no universo mental cristão ocidental.
Aclara-se em Agostinho um complexo dilema sobre a desvalorização da carne humana.
Após as duas leituras patrísticas, faz-se uma incursão no pensamento de Tomás de
Aquino, procurando, na sua teologia da encarnação, desentranhar sua visão e compreensão da
densidade humana do Verbo de Deus. Duas referências orientaram a pesquisa nesse autor: sua
obra mais sistemática, que é a Suma Teológica, especificamente a Parte III, e seu Comentário
sobre o Evangelho de São João.
Por fim, com o objetivo de aproximação com uma representação da teologia mais
hodierna, coloca-se a reflexão do termo “carne” a partir da teologia transcendental de Karl
Rahner. Talvez, já adiantando uma conclusão final, será esta a mais próxima daquilo que João
procurou afirmar de forma concisa no Prólogo.
15
Acreditamos que, partindo dessas quatro leituras, temos então uma noção do
status quaestionis da leitura/interpretação do termo “carne”, especificamente na sua relação
com a pessoa de Jesus, na menção feita ao mesmo no v. 14a do Prólogo. Outras leituras
poderiam ser apresentadas, mas nessa escolha existem referências bastante significativas no
que diz respeito ao período histórico, à visão de Deus, à forma de elaboração teológica.
Ireneu, Agostinho, Tomás e Rahner, quatro palavras sobre o mesmo mistério que se encerrou
como “carne” humana. No mosaico das compreensões do termo “carne”, há um movimento
crescente que convida o humano a dar-se conta de si e de sua “carne” como mistério querido
por Deus.
1 – O conceito de “carne” em Ireneu de Lião
1.1 – Ireneu e a Gnose
Ireneu (+140-202) destaca-se como um defensor da fé cristã diante do perigo da
“falsa gnose”. A presente reflexão versa sobre a obra Adversus Haereses1, que tem como
subtítulo “denúncia e refutação da falsa gnose”. Os gnósticos propunham um conhecimento
perfeito, alcançável apenas por revelação e privilégio de um grupo de iniciados. A explicação
do mundo dada pela Gnose tinha pretensões de totalidade e baseava-se num princípio dualista,
apresentando uma oposição entre o mundo do bem e o mundo do mal. Para os gnósticos,
nesse contexto mundano era necessário salvar o espírito, pois o que importava era a dimensão
espiritual. Essa compreensão do homem espiritual, por sua vez, repercutia na interpretação da
pessoa, atuação e significado da pessoa de Jesus Cristo:
O ser humano é somente um campo de batalha transcendente entre o bem e o
mal, e Cristo um salvador celeste, vindo de repente a este mundo sem se
comprometer com ele, e representando essencialmente o papel de revelador
da gnose2.
Entre esse posicionamento de base docetista (Cristo: Deus em aparência humana)
e seu extremo oposto, postura adocionista (Jesus: simples homem tomado pelo Verbo eterno),
Ireneu procura oferecer respostas da mais alta qualidade teológica, com o objetivo de
explicitar os erros de seus adversários. As heresias cristológicas exigiam uma reflexão que
Cf. FANTINO, Jacques. Ireneu de Lião. In: DCT, p. 918. – Escrito em grego, o texto só subsiste completo
numa versão latina do séc. IV. Do texto grego há somente fragmentos, principalmente do livro I. Existem ainda
fragmentos em armênio e siríaco, uma tradução armênia dos livros IV e V.
2
LIÉBAERT, J. Os Padres da Igreja (séculos I-IV). São Paulo: Loyola, 2000, p. 61.
1
16
tocava nos pontos fundamentais de toda a formulação doutrinal cristã. Ireneu não se esquiva
de tal tarefa; antes procura, na fidelidade à Tradição, repassar as verdades cristãs. E o fará a
partir de uma perspectiva inusitada.
Para Ireneu, a questão do conhecimento proposta pela Gnose merece uma
resposta, e esta se encontra na chamada Verdadeira Gnose que é caracterizada pelos seguintes
elementos: o ensinamento dos apóstolos; a Igreja una, apóstólica, católica; a sucessão
ininterrupta dos bispos à frente das diferentes igrejas locais; uma conservação verdadeira das
Escrituras (integral, leitura honesta, explicação correta) e a precedência do ágape sobre todos
os outros dons3.
1.2 – Ireneu e a salvação na “carne”: encarnação para a comunhão com Deus
Em Adversus Haereses fica evidente que, para Ireneu, a salvação foi oferecida já
no ato criador de Deus, que tem em vistas a encarnação do Verbo. Se os gnósticos
prescindiam da “carne”, humanidade de Cristo, será ela, em Ireneu, o conceito-chave de sua
soteriologia que se encontra coerentemente no panorama teológico da unidade entre Deus e a
criação. Segundo Ireneu, salvação vincula-se com criação e, acidentalmente, com pecado.
González Faus argumenta que, para Ireneu, pecado e perdão fazem parte de um
momento posterior que ameaçou manchar a visibilidade da salvação. Essa ação de Deus só
pode dar-se na “carne”, e o mistério da encarnação demonstra o desejo divino de elevar a si
suas criaturas4. Nas palavras do próprio Ireneu: “Glória de Deus é o homem que vive e a vida
do homem consiste na visão de Deus”5.
Em “Jesus-carne” acontece a grande comunicação de Deus. A “carne” não é
apenas um elemento do humano, podendo ser depreciada. Ela é aquilo que realmente
distingue o humano na sua relação com Deus e na sua posição no plano salvífico. A salvação
só se dá na “carne” e não na sua negação.
Cf. ROUSSEAU, A. In: IRÉNÉE DE LYON. Contre les hérésies: Livre IV. Paris: Cerf, 1965. p. 273. –
Para Rousseau, estes elementos são o arcabouço, a referência de Ireneu para a refutação da falsa gnose. Segundo
Rousseau, há uma identificação da verdadeira gnose com a Igreja e a doutrina por ela proposta: “Pode-se dizer
que, para Ireneu, três tratados maiores constituem a fisionomia do ‘discípulo espiritual verdadeiro’: fé em Deus
todo poderoso Criador de todas as coisas – adesão ao Filho de Deus e ao mistério de sua encarnação redentora –
conhecimento do Espírito de Deus na Igreja e no desenvolvimento concreto da vida dela. Tríplice conexão: da
criação ao Pai; da redenção ao Filho; da vida eclesial ao Espírito.”
4
Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Carne de Dios, significado salvador de la Encarnación em la teologia de San
Ireneo. Barcelona: Herder, 1969. p. 26.
5
AH, IV 20,7.
3
17
Cur Deus homo?
Se o pecado não é razão primeira da encarnação, a resposta de Ireneu à questão cur
Deus homo?6 será marcada por uma valorização do ser humano concreto e de seu universo,
bem como por uma valorização do lugar do humano no plano divino e, de modo específico,
do papel da humanidade de Jesus na salvação7.
A diversidade de argumentos usados por Ireneu contra os hereges ganha coesão no
princípio da comunhão da humanidade com Deus. Como visto acima, o ser humano é criado
para Deus e para viver. No livro IV de Adversus Haereses, Ireneu menciona o ato criador de
Deus, que destina o mundo ao gênero humano, e recorda que Deus permanecia desconhecido.
Então, afirma o papel do Verbo encarnado como aquele que conduz ao verdadeiro
conhecimento8.
Há um só Deus que por sua palavra e sabedoria fez e harmonizou todas as
coisas. É ele o Criador, é ele que destinou este mundo ao gênero humano.
Pela sua grandeza é desconhecido por todos os seres criados por ele; pelo seu
amor, contudo, é conhecido, desde sempre, por aquele por quem criou todas
as coisas, e este é o seu Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, que nos últimos
tempos se fez homem entre os homens, para unir o fim ao princípio, isto é, o
homem a Deus9.
Em outra passagem, comentando os versículos 6 e 7 do Salmo 82 (“Eu disse: todos
vós sois deuses e filhos do Altíssimo; mas, como homens morrereis”), afirma Ireneu: “Este é
o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus, Filho do homem: para
que o homem, unindo-se ao Verbo de Deus e recebendo assim a adoção, se tornasse filho de
Deus”10. Mais uma vez fica explícita a idéia de comunhão realizada pela mediação do Verbo e
também a referência à imortalidade concedida em Cristo aos que progredirem na fé.
O ser humano é o destinatário do amor/salvação de Deus. Importante notar que,
em Ireneu, a salvação, já dada, não é passivamente recebida pela humanidade. Ao movimento
de descida do Verbo e sua associação à “carne” corresponde um progresso humano que
Cf. ORBE, A. Antropología de San Ireneo. Madrid: Editorial Católica, 1969, p. 501-502. – A. ORBE, ao tratar
da antropologia de Ireneu, comenta a questão do motivo da encarnação, na sua possível relação com o pecado, da
seguinte maneira: “Ocorra ou não a transgressão, a economia de Gn 1,26 anuncia a mesma fundamental história
da salvação: igual distância entre o primeiro e o segundo Adão; igual intervalo entre a encarnação do Filho e a
consumação final; a mesma relação entre a matéria e o espírito, entre a carne e a visão do Pai, entre o criado e o
ingênito. Nada muda no essencial, já que persevera o barro de origem (Gn 2,7) e o paradigma (= imagem e
semelhança divinas) a que Deus lhe destina.” [o grifo é do autor].
7
Cf. LIÉBAERT, op.cit., p. 66.
8
– Para Ireneu o tema do conhecimento faz-se extremamente necessário, posto que será a objeção explícita a
todo pensamento gnóstico de iniciação e revelação. Em Cristo o conhecimento de Deus é acessível à humanidade
e não apenas a alguns humanos espirituais.
9
AH, IV 20,4.
10
AH, III 19,1.
6
18
culmina com o tornar-se imagem e semelhança de Deus11. “[...] enquanto o Primogênito, isto
é, o Verbo desce na criatura e a assume, por sua vez a criatura se apossa do Verbo e sobe até
Deus, ultrapassando os anjos e tornando-se imagem e semelhança de Deus”12. Como se
percebe, a salvação é uma divinização13 do humano. Segundo Orbe, Ireneu propõe que o
humano será elevado ao pleno conhecimento/participação em Deus:
O homem, que não nasceu filho natural de Deus, como o Verbo, foi
destinado à sua filiação adotiva. De Deus é o fazer, e do homem o ser feito.
Deixando-se fazer, o homem se torna por obediência filho de Deus. As duas
etapas – de barro a homem, e de homem a Deus – se cumprem debaixo do
sinal da obediência14.
A criatura não pode salvar-se por si mesma, mas é associando-se, conformando-se
e incorporando-se ao Verbo que ela alcança a meta de sua existência. Salvação é, pois, a
realização do fim último do humano: conhecer a Deus, estar em Deus. “Não teríamos
absolutamente podido aprender os mistérios de Deus se o nosso Mestre, permanecendo
Verbo, não se tivesse feito homem”15. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus,
na visibilidade do Verbo feito “carne”, reconhece em si a imagem de Deus que lhe foi
plasmada. O próprio Adão foi criado à imagem do Verbo16. É vendo o Mestre que a
humanidade pode imitar suas ações e praticar suas palavras. E é isso que assegura a
comunhão17. A contemplação de Deus conduz a criatura a reconhecer e amar seu Criador18.
Existe em Ireneu uma visão otimista do ser humano, isto é: criatura, que não goza
dos atributos divinos, mas que é convidada a participar dessa divindade. Sendo assim, o ser
humano como tal, que já é criado à imagem e semelhança de Deus, é convidado a ver-se no
Cristo. González Faus aponta que a comunhão da humanidade com Deus é prolongamento da
encarnação e só pode ser pensada a partir desse mistério, movimento divino que atinge todas
Cf. ORBE, op.cit., p. 519-520. – Seguindo a corrente de São Justino, Teófilo Antioqueno, Melitão e outros,
Ireneu rejeita a visão platônica sobre o ser humano e acentua o valor da corporeidade. O barro é o substrato
material utilizado por Deus, enquanto que a forma que ele concede ao ser humano explicita o duplo sentido de
sua existência. Ireneu distingue “imagem e semelhança”: forma externa é a imagem de Deus; forma interna é a
semelhança divina.
12
AH, V 36,3. – Importa lembrar que, ao fazer-se “carne”, o Verbo não assume o pecado, já que este não é
constitutivo do humano.
13
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Jésus-Christ l´unique médiateur, essai sur la rédemption et le salut. Paris: Desclée,
1988. v. I, p. 135s; 204s. – Nessa obra, Sesboüé procura apresentar as diversas categorias utilizadas pela teologia
para abordar o tema da salvação. Ireneu é apresentado como um teólogo cuja reflexão deu bases para as
categorias soteriológicas de Divinização e Iluminação.
14
ORBE, op.cit., p. 523.
15
AH, V 1,1.
16
Cf. AH, V 16,2.
17
Cf. AH, V 1,1.
18
Cf. AH, IV 12,2.
11
19
as pessoas19. O objetivo da encarnação não é destruir o humano, mas levá-lo ao pleno
cumprimento dentro do desejo de Deus.
Chega-se, assim, à questão que aqui interessa mais particularmente: qual visão
Ireneu elabora acerca do ser humano e qual a ressonância dela na interpretação do termo
“carne” mencionado em Jo 1,14a?
1.3 – A leitura de Jo 1,14a por Ireneu
Ireneu faz inúmeras referências ao Prólogo joanino. “E o Verbo se fez carne”
(Jo 1,14a) é também muito mencionado, porém, explicitamente como citação das Escrituras,
aparece apenas quatro vezes: a) AH, I 8,5: a menção do v. 14a está numa reprodução do
pensamento dos hereges que antecede a crítica que Ireneu fará dessa distorção da fé;
b) AH, III 11,2: ao refletir sobre o evangelho de João, Ireneu fala do “Verbo que se fez carne”,
mas que existe desde sempre e que por esse mesmo Verbo é que todas as coisas foram feitas;
em 11,3, Ireneu critica os hereges que não acreditam no “Verbo feito carne” e pensam o
Cristo do alto, sem “carne” e impassível; c) AH, III 16,8: ao tratar da identificação de Jesus
com o Cristo, menciona o v. 14, ligando-o a 1Jo 4,2; d) AH, V 18,2: ao tratar da economia
humana da Trindade, afirma que Jesus é o mediador perfeito “vindo na carne”.
Coerente com a antropologia de Ireneu, o termo “carne” significa a existência
humana como tal. O ser humano não é perfeito nem imperfeito; é ser finito, posto que é
criatura, porém chamado à imortalidade num progressivo conhecimento de Deus. A “carne” é,
portanto, para Ireneu, o elemento característico do humano, que se não assumido pelo Filho
de Deus não permite ao próprio Deus alcançar seu objetivo.
Recordando que a pessoa humana foi barro modelado por Deus, que deixou o
artista agir em sua matéria, Ireneu propõe que a “carne” é apta para as ações de Deus. Embora
fraca, no sentido de sua fragilidade/finitude – aqui sem nenhuma conotação de tendência ao
pecado – a “carne” pode participar do projeto de Deus: “[...], a carne se encontrará capaz de
receber e conter o poder de Deus como no princípio recebeu a sua arte”20.
A condição humana, carnal por assim dizer, é a condição de possibilidade do mais:
Como a carne é capaz de corrupção assim o é de incorrupção; como é capaz
de morte o é também de vida. Estas coisas se excluem mutuamente e não
19
20
Cf. GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 42.
AH, V 3,2.
20
ficam juntas no mesmo indivíduo, mas uma afasta a outra, e onde há uma
não há outra. Por isso, se a morte, apoderando-se do homem, afasta-lhe a
vida e faz dele morto, com maior razão a vida, apoderando-se do homem,
afasta-lhe a morte e o restituirá vivo a Deus21.
Na concepção de Ireneu, o ser humano, animal racional ou ser psíquico pelo sopro
de vida, torna-se espiritual pela obra do Espírito vivificante que não mais abandona o ser
humano, desde que este abandone o mal e converta-se ao bem22. O Espírito pode modificar a
fraqueza/finitude da “carne”, auxiliando-a a alcançar seu destino. Há uma ressonância ética da
salvação com implicação antropológica.
Outro dado importante sobre o humano, o constituído de “carne”, é a insistência de
Ireneu acerca da bondade de Deus que queria comunicar-se com a humanidade e torná-la a
depositária de seus benefícios. O olhar de Deus sobre sua criatura é desde sempre e para
sempre marcado pela gratuidade e pelo único e exclusivo interesse divino de tornar a pessoa
humana participante de sua glória23.
Qual seria o significado do termo “carne” na compreensão de Ireneu? Há uma
série de argumentos ao longo da obra para garantir que o Cristo não veio numa aparência de
“carne”, mas que realmente assumiu a “carne humana”. González Faus, ao analisar o esquema
Verbo-carne em Ireneu, propõe que:
O termo ‘caro’ alude no esquema Verbum-caro ao ‘afora’ extratrinitário:
não existe outra possibilidade de doação do Espírito ao homem a não ser
através de uma carne (que não seja só carne naturalmente, mas seja
verdadeiramente carne): uma criatura que fosse puramente espiritual [...] é
incapaz de salvar o homem24.
“Carne” é, portanto, elemento essencial para a compreensão da comunhão de Deus
com a humanidade. O efeito da encarnação revela o que é a condição da “carne”, o
corruptível, o mortal. E é, em Jesus, Deus encarnado, que a humanidade tem acesso à
incorruptibilidade e à imortalidade. Tais atributos jamais seriam alcançados pela humanidade
a não ser pela encarnação. Diz Ireneu:
E como poderíamos realizar esta união sem que antes a incorrupção e a
imortalidade se tornassem o que somos, a fim de que o corruptível fosse
absorvido pela incorrupção e o mortal pela imortalidade, e deste modo
pudéssemos receber a adoção de filhos?25
21
AH, V 12,1.
Cf. AH, V 12,2.
23
Cf. AH, IV 14,1-3.
24
GONZÁLEZ FAUS, op.cit., p. 197 [grifo do autor].
25
AH, III 19,1.
22
21
Em outro momento, afirma Ireneu: “[...] devia tornar-se quem devia ser salvo,
para não ser o Salvador de nada”26. E no prefácio do Livro IV, Ireneu define o que considera
como ser humano: “O homem é composto de alma e de corpo, uma carne formada à imagem
de Deus e modelada pelas suas mãos”27.
A identidade humana em momento algum é violentada pela encarnação. “Carne”,
para Ireneu, é o ser humano na sua fragilidade em processo de conhecimento de Deus. O fato
de ser criatura não torna a pessoa humana algo fechado e já definido. Distinta do Criador,
mesmo tendo feito a experiência do pecado, ela é marcada por um movimento em direção a
Deus. Experiência esta que Deus permitiu por magnanimidade do seu desígnio. Ireneu
apresenta a necessidade de se ter clara a distinção entre o ser criatura diante do Criador e a
busca por assemelhar-se à pessoa do Filho. Assim o diz:
Aquele que possui, sem orgulhosa jactância, o verdadeiro conceito da
criatura e do Criador, que é Deus, superior a todos em potência, que a todos
dá a existência, e permanece no seu amor, submetido e agradecido, receberá
dele glória maior e progredirá até se tornar semelhante àquele que por ele
morreu. Com efeito, ele veio ao mundo na semelhança da carne do pecado
para condenar o pecado, e, condenado, expulsá-lo da carne, e, por outro lado,
chamar o homem a tornar-se semelhante a ele na imitação de Deus, para
elevá-lo ao reino do Pai, e torná-lo capaz de ver a Deus e conhecer o Pai.
Pois ele é o Verbo de Deus, que habitou no homem e se fez Filho do homem
para habituar o homem a conhecer Deus e habituar Deus a habitar no
homem, segundo o beneplácito do Pai28.
É necessário notar que, segundo essa passagem, a “carne” permanece valorizada e
é conservada no mistério da redenção. Ireneu, no Livro V, apresentará a ressurreição de Cristo
e a “ressurreição da carne”; “carne humana” ressuscitada pelo poder de Deus 29. O Cristo
expulsa o pecado da “carne”, mas a preserva, restaurando nela a imagem modelada na criação
e convidando a uma associação de vida na graça do Espírito30. Além disso, Ireneu afirma que
Deus também se habitua à “carne”. É um movimento de iluminação do humano e interação do
divino. Fica evidente mais uma vez a imagem positiva da humanidade, enquanto “carne”, que
é assumida pelo Verbo.
26
AH, III 22,3.
AH, IV Pr.,4. IRENEU DE LIÃO. Contra as heresias. São Paulo: Paulus, 1995. p. 367. – Helcion Ribeiro, ao
comentar essa passagem, recorda que há dificuldades na compreensão do texto por se ter perdido o original.
Existem divergências nas traduções latina e armena. A forma como foi citado é da tradução armena, que,
segundo A. Orbe, condiz mais com o pensamento de Ireneu ao usar a expressão “uma carne formada e
modelada...” em vez de “formado o homem à sua imagem e...”. Ainda segundo Ribeiro, a versão armena evita a
dicotomia de alma e corpo. O humano é uma “carne” formada de alma e corpo. Tal afirmação tem conseqüências
no nível ético posto que a “carne” é parte integrante do humano e que este não existe sem ela.
28
AH, III 20,2.
29
Cf. AH, V 7,1. – Ireneu comenta os textos de Rm 8,11 e 1Cor 15,42.36. A “carne”, condição mortal do
humano, será resgatada justamente porque foi assumida pelo Verbo, tendo tornado-se “carne” de Deus.
30
Cf. AH, IV 38. – É o Espírito que conduz o homem à perfeição da comunhão com o Pai.
27
22
Outra questão que pode ser levantada diz respeito à preexistência do Verbo.
Ireneu, em toda a sua obra, afirma que o Verbo existe desde todo o sempre e é uma das mãos
do Pai31. Por ele as coisas foram criadas e, por ele, serão levadas a bom termo. Para ele, o
v. 14a do Prólogo acaba sendo uma prova da verdadeira encarnação. É o argumento
escriturístico para refutar os hereges. Note-se como ele apresenta essa questão do Logos que
se encarna:
Demonstrado até à evidência que o Verbo existia desde o princípio junto de
Deus, que por sua obra foram feitas todas as coisas, que sempre esteve
presente ao gênero humano e que justamente ele, nestes últimos tempos,
segundo a hora estabelecida pelo Pai, se uniu à obra de suas mãos, feito
homem passível, está refutada toda afirmação contrária dos que dizem: se
nasceu nestes últimos tempos, houve um tempo em que o Cristo não
existia32.
A visibilidade do Cristo na “carne” já é caminho para a glória do humano, que é a
visão de Deus. A encarnação é o tornar possível o encontro do Criador com a criatura,
encontro este dado em “Jesus-carne”. Nele, a luz de Deus brilha e se irradia de tal maneira
que pode iluminar e recuperar a visão da humanidade cegada pela falha, que não mais se
enxergava na sua dignidade criatural. “Os homens, portanto, verão a Deus para viver,
tornando-se imortais por tal visão e alcançando a Deus”33.
Em síntese, é possível dizer que, para Ireneu, o fazer-se “carne” é o assumir por
completo a humanidade, compreendida como originalmente marcada pela graça de ser
imagem e semelhança de Deus. O “Jesus-carne” é o ser humano na plenitude do progresso a
que todos são chamados na relação de comunhão com Deus. A condição do ser mortal é a
ligação com o primeiro Adão formado do barro, insuflado pelo sopro divino. Jesus, novo
Adão, é a aquele que modelou no barro o primeiro e agora volta a tocar a humanidade. Jesus é
o artesão também feito barro que anuncia um Deus que jamais desistiu de se comunicar com
as suas criaturas. Como bem o afirma Ireneu numa síntese daquilo que é o agir do Cristo:
A mão de Deus que nos modelou no princípio e agora nos modela no seio
materno, esta mesma mão nos últimos tempos, nos procurou quando
perdidos, reencontrou a ovelha desgarrada, carregou-a aos ombros e com
alegria a reintegrou no rebanho da vida34.
31
Cf. AH, IV 20,1.
AH, III 18,1.
33
AH, IV 20,6.
34
AH, V 15, 2. – Ireneu faz um comentário sobre a cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) em que a ação do Cristo
de fazer barro com a saliva (v.6) é apresentada como a manifestação pública da mão de Deus que modelou a
humanidade. A leitura do episódio do cego de nascença se vincula ao texto da criação do humano a partir do
barro (Gn 2,7).
32
23
Os dados apresentados acerca do pensamento de Ireneu são suficientes para uma
proposição otimista do ser humano e integrada na relação de comunhão/comunicação com
Deus. A teologia da divinização do humano, bem própria dos Padres Gregos, não foi
suficientemente assimilada pela antropologia teológica do Ocidente cristão, assinalando mais
uma outra visão e interpretação do termo “carne” mencionado em Jo 1,14a. Essa outra leitura
do versículo em questão, bastante diferente da de Ireneu, é o que agora se propõe à análise.
2 – Agostinho de Hipona e o desafio da “carne” aplicado ao Verbo
Agostinho (354-431) deixou um grandioso comentário ao Evangelho segundo
João. A presente reflexão versa sobre o conceito “carne” nesta obra de Agostinho. Não se
trata de uma obra de exegese nem tampouco um tratado teológico; são suas homilias
dominicais guardadas, em parte, graças ao esforço de taquígrafos35. O gênero da obra é o dos
sermões que tinham por objetivo refutar os pensamentos hereges tão disseminados entre o
povo e apresentar com solidez os princípios da fé. Embora não seja formalmente um tratado
teológico, nesse escrito encontram-se inúmeras referências aos temas mais caros a Agostinho,
como Trindade, graça, encarnação, salvação.
Durante o período36 em que apresentou ao seu paroquiado as reflexões sobre cada
versículo de João, Agostinho procurou tratar com o máximo de clareza a doutrina sobre o
Filho de Deus, principalmente pelas interpelações suscitadas pelo donatismo, arianismo,
maniqueísmo. O auditório de Hipona, certamente heterogêneo, marcado por essas influências
heréticas e outras superstições, foi convidado e incentivado por Agostinho a conhecer as
verdades do evangelho que, segundo ele, nasceu do peito do Mestre e foi assimilado pelo
Discípulo Amado. Agostinho afirma que João nos transmitiu apenas a palavra e que é
necessário usar agora a intelecção e ir ao encontro do próprio Jesus 37.
35
Cf. PRIETO, Teófilo. Introduccion. In: Trat., p. 34.
Cf. Ibid., p. 4-9. – Há pelo menos três opiniões sobre o período em que Agostinho proferiu seus Tratados sobre
o Quarto Evangelho. Marie Comeau determina que os Tratados foram pregados no começo de 416, estendo-se
por aproximadamente dois anos. P. Zarb divide os tratados em duas séries. A primeira, compreendendo os
tratados de 1 a 54, teria se dado no ano de 413; já a segunda (55-124) teria sido ditada, não pregada, em 418.
Dom Huyben, Dom De Bruyne e Mons. Bardy partilham dessa opinião e ainda subdividem a segunda parte em
três blocos. Le Landais, após apresentação de consideráveis argumentos, propõe os anos 414-415. Como os
sermões não foram datados, não é de todo possível definir quando foi escrito e, além disso, é preciso recordar
que após o trabalho dos taquígrafos, certamente houve alguma complementação ao texto.
37
Cf. Trat. I, 7.
36
24
Por ser uma obra da maturidade de Agostinho, reflete muito do cristão que se
dedicou a meditar a palavra de Deus e que se reconhece agora desejoso por partilhar o sabor
experimentado. Agostinho parece buscar uma plena comunhão com o autor do evangelho,
procurando ser fiel às suas palavras e desentranhando delas toda a riqueza que seria oferecida
ao seu povo. Sabe das dificuldades de seu público, mas insiste na necessidade de adentrar ao
manancial do evangelho que não pode ser saboreado com o espírito carnal38. Logo de
imediato entende-se que Agostinho irá propor um caminho de purificação do espírito para
acessar à divindade transcendente.
A leitura contínua do texto de Agostinho permite entrever como há uma constante
afirmação da grandeza e transcendência do Verbo que se fez “carne”. João ofereceu a
Agostinho material essencial e oportuno para o seu trabalho de pastor. Ao tratar do Verbo
eterno que se fez “carne”, Agostinho encontra em João elementos suficientes para distinguir
entre a divindade e a humanidade do Verbo. Tal distinção pode ainda ser associada com as
diferenças entre aqueles que afirmavam apenas a divindade e os que afirmavam a humanidade
do Verbo39. Agostinho firmará a doutrina da unidade do divino e do humano no Verbo
encarnado.
2.1 – O mistério da encarnação na leitura agostiniana do Evangelho segundo João
Duas passagens são chaves para entender o que Agostinho pensa sobre a
encarnação. Muito embora não sejam perícopes expressas sobre tal temática, de acordo com
uma exegese moderna, elas são lidas por Agostinho como princípios de interpretação do
mistério do Verbo vindo na “carne”. A primeira é sua interpretação de Jo 14,6a: “Eu sou o
Caminho, a Verdade e a Vida”. A segunda é a leitura da cura do cego de nascença (Jo 9).
Esses dois textos se complementarão no discurso de Agostinho.
O Bispo de Hipona, ao comentar Jo 3,22-30, o encontro de Jesus com João
Batista, constrói todo o seu argumento sobre Jo 14,6a:
Se vais em busca da verdade, segue o caminho, já que o caminho mesmo é a
verdade. Ele é o término aonde vais e por onde vais. Não vás por uma coisa
a outra distinta; não vás a Cristo por uma coisa distinta dele; vás a Cristo por
Cristo mesmo. Como por Cristo a Cristo? Por Cristo homem a Cristo Deus,
pelo Verbo feito carne ao Verbo que no princípio era Deus em Deus [...]40.
38
Cf. Trat. I, 1.
Cf. PRIETO, op. cit., p. 45.
40
Trat. XIII, 4.
39
25
Agostinho compreende a afirmação joanina (Jo 14,6a) como alusão ao mistério da
encarnação. O Cristo homem é quem pode conduzir ao Cristo Deus, que por sua vez introduz
o ser humano no mistério trinitário. Se Jesus é o caminho e esse caminho vai
progressivamente e pedagogicamente instruindo os que o acolhem na fé, é necessário
abandonar todo e qualquer pensamento que difira da verdade. Toda a leitura de João será feita
com essa lente de compreensão. É imprescindível buscar a verdade e é o próprio Jesus, a
Verdade, quem conduz ao Pai. Não há outro caminho.
Afirmar que Jesus é o caminho é assegurar a doutrina e, num argumento bastante
condensado, afirmar a incongruência dos hereges. Jesus é a visibilidade de Deus. Para
Agostinho, o Deus transcendente não poderia jamais ser visto ou ouvido. Por quê? Por causa
do pecado. A visão da substância de Deus, visão direta dos atributos divinos, está reservada
para a vida eterna, não sendo possível alcançá-la nesta terra41. A incomunicabilidade de Deus
não se deve a Ele, mas à estirpe de Adão manchada pela queda. Em Cristo, pelo mistério da
encarnação, a revelação é atualizada. O fazer-se “carne” é tornar possível o encontro da
criatura com o Criador por meio de Jesus, que é o caminho.
Se o mistério da encarnação constitui-se, pela humildade do Cristo, no caminho a
ser trilhado pela humanidade, o Cristo glorioso é a própria Verdade e Vida almejadas por essa
mesma humanidade. Num díptico: “Cristo homem é o Caminho, e Cristo Deus, a Verdade e a
Vida”42.
O segundo texto de Agostinho que resume o sentido da encarnação diz assim:
Nós somos agora iluminados, se é que temos o colírio da fé. Precedeu, pois a
mistura de sua saliva com a terra com a qual havia de ungir os olhos do que
nasceu cego. Nós nascemos de Adão cegos também e temos necessidade de
que Cristo nos ilumine. Fez uma mistura de saliva e terra: o Verbo se fez
carne e habitou entre nós. Misturou sua saliva com a terra43.
Nessa passagem, comentando Jo 9,6, o pensamento de Agostinho se articula a
partir da idéia de que o ser humano é pó. Adão foi feito do pó da terra, seu pecado afastou-o
de Deus e somente pela graça da humilhação do Cristo o ser humano poderá recuperar sua
visão. O tema da cegueira foi muito usado por Agostinho para mostrar que o pecado afastara a
humanidade de Deus, porém Deus não se afastou dela. A luz permanece a brilhar e nada pode
Cf. HARDY, R. P. Actualité de la Révélation Divine – Une étude dés “Tractatus in Iohannis euangelium” de
Saint Augustin. Paris: Beauchesne, 1974. p. 119.
42
PRIETO, op.cit., p. 51.
43
Trat. XXXIV, 9.
41
26
ofuscá-la, “porém os corações néscios não têm capacidade para ver esta luz; os oprime e
impede que a vejam o peso de seus pecados”44.
Assim, pois, pode-se tocar nos motivos da encarnação. Agostinho responde a essa
questão de forma envolvente: “É que foi tanto o que me amou que, para fazer-me imortal,
quis nascer ele mesmo por mim numa vida mortal”45. O Verbo encarnado é colírio que vem
em socorro da humanidade cega. É ele, somente ele, quem pode curar os olhos da
humanidade. Usa daquilo que foi a causa da cegueira, ou seja, o pó da terra, a condição de
servidão às paixões. Agostinho faz um belo axioma acerca dessa imagem: “O pó fez perder a
visão e o pó a devolverá. A carne foi a causa da tua cegueira e a carne é que vai fazê-la
desaparecer”46.
Em A Trindade, Agostinho diz também qual o sentido da encarnação, acentuando
novamente a condição pecadora da humanidade:
E a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam (Jo 1,5). As trevas
são as mentes dos homens insensatos, cegadas pelas más concupiscências e
pela infidelidade. Foi para as curar e sarar que o Verbo pelo qual tudo foi
feito, se fez carne e habitou entre nós (Jo1,14). Pois nossa iluminação é uma
participação no Verbo, isto é, àquela vida que é a luz dos homens. A
imundície de nossos pecados tornava-nos menos idôneos ou totalmente
inábeis a essa participação. Devíamos, portanto, ser purificados47.
Cristo, homem-Deus, é o médico que vem das alturas para curar a humanidade48.
Ele é o mediador entre Deus e a humanidade. Nos motivos que Agostinho apresenta há
sempre a recordação do pecado, a situação de enfermidade e a necessidade de cura e, implícita
ou explicitamente, a menção ao Pai, ou seja, o retorno à pátria49.
2.2 – Ser humano: imagem de Deus
A antropologgia cristã é profundamente marcada pela referência a Gn 1,26-27.
Sendo o ser humano aquele que ocupa lugar privilegiado na obra da criação, sua existência é
considerada de forma particular em relação às outras criaturas. Ele não é mais uma das obras
de Deus, mas sim a obra que dá significado às outras que o precederam. A teologia patrística
deu muita atenção ao fato de que o humano é a criatura central no plano da criação. Agostinho
44
Trat. I, 19.
Trat. II, 15.
46
Trat. II, 16.
47
DT, IV 2,4.
48
Cf. Trat. III, 3.
49
Cf. Trat. II, 3.
45
27
dá continuidade ao pensamento sobre a Imago Dei e leva para lugar central de sua reflexão o
tema do humano.
Já que o humano foi criado à imagem e semelhança de Deus é necessário que, na
sua condição de criatura, ele se volte sobre si mesmo e, na busca da interioridade, descubra-se
como lugar privilegiado não só da presença de si mesmo, mas também da presença de Deus
que nele se dá50. Quanto mais o ser humano se conhece mais poderá conhecer a Deus, pois a
imagem do Criador está gravada em seu interior e lhe permite existir e participar em Deus. Ao
afastar-se de si mesma, a pessoa humana afasta-se também de Deus51.
Devido ao diálogo com o mundo grego, Agostinho leva para a antropologia cristã
a compreensão do ser humano como um composto de corpo e alma52. “Corpo e alma são duas
realidades distintas: uma externa, a outra interna, são também duas realidades diversas entre
si, enquanto desempenham funções distintas. O homem não é só um ou o outro”53. Para o
Bispo de Hipona, não foi segundo a forma corpórea que a pessoa foi criada à imagem e
semelhança de Deus, mas sim segundo a sua alma racional 54; portanto, a parte mais nobre do
humano encontra-se na alma racional (mens55). É por ela que a pessoa conhece ou pode
conhecer seu Criador, descobrir que é imagem de Deus56.
De acordo com o pensamento de Agostinho, por ser imagem de Deus, o humano é
o ser que foi criado pela verdade mesma, sem necessitar de mediação de criatura alguma,
gozando do benefício de uma relação direta com o Criador. Esse composto de corpo e alma, o
humano, ao experimentar o pecado passa também a experimentar o corpo como um peso para
a sua alma57. Agostinho vê no pecado original o nascimento de todo o mal da humanidade,
trazendo como conseqüência a morte58. Por sua vez, a situação de pecado da pessoa humana
exige o nascimento de um salvador também nascido nessa humanidade.
Agostinho parece não conseguir ver o ser humano separado da idéia de pecado.
Por mais que anuncie a graça de Deus agindo no mundo e sua misericórdia que, longe de
50
Cf. PIERETTI, Antonio. Doctrina antropológica agustiniana. In: OROZ RETA, José et al. El pensamiento de
San Agustín para el hombre de hoy: la filosofía agustiniana. Valencia: EDICEP, 1998. v. 1, p. 356.
51
Cf. DT, XV 2,2.
52
Cf. DT, XV 7,11.
53
PIERETTI, op.cit., 365.
54
Cf. DT, XII 7,12.
55
Cf. DT, XV 7,11.
56
Cf. DT, XIV 14,20.
57
Cf. DT, XV 24,44b.
58
Cf. DT, XIII 12,16.
28
punir justamente o humano, manifesta-lhe amor gratuitamente59, até isso aponta para a
fraqueza e pobreza humanas. Discutindo sobre por que não existem pessoas que cumpram a
Lei, Agostinho afirma:
É que o homem nasce com o gérmen do pecado e da morte. Nascido de
Adão, arrasta consigo todo o que ali recebeu. Caiu o primeiro homem, e
todos os nascidos herdaram dele a concupiscência da carne. Era necessário,
pois que nascesse outro homem que não trouxesse consigo esta herança: um
homem e outro homem, homem que nos dá a morte e homem que nos leva a
vida60.
Para que a salvação acontecesse, era imprescindível um salvador homem. Jesus
Cristo é esse salvador, e Agostinho logo pondera que, como tal, não nasce com a marca do
pecado, ainda que revestido de uma “carne mortal”61. O Verbo, por quem tudo foi feito,
assume a condição mortal, faz isso como remédio para uma humanidade que não deseja ser
curada62 e que ama as coisas criadas e não o Criador. O pecado faz parte da condição de vida
do ser humano. Segundo Ladaria, o pensamento de Agostinho articula uma íntima ligação
entre pecado e salvação. Para que esta seja universal, é necessário que também aquele o seja,
daí sua associação de todos os seres humanos às origens de Adão63.
Hardy mostra que, no pensamento de Agostinho, o pecado coloca o homem numa
situação carnal na qual seu espírito fica aprisionado:
Escravo das realidades sensíveis pelo amor de si, o homem não retoma a
vida por seus próprios meios. Seu pecado não é somente momentâneo, mas é
a condição de toda a sua vida. Sua vida tornou-se uma enfermidade, e essa
enfermidade arraigada sempre mais no tempo numa situação de cegueira e
de surdez para um Deus que vem a ele e a ele se endereça64.
A visão negativa do humano, contaminado pelo pecado, faz com que Agostinho
afirme que toda a criação reconhece seu Criador; entretanto, o ser humano, que é imagem e
semelhança de Deus65, amando o mundo revela desconhecer o Criador e exterioriza o mal
trazido pelo pecado. Agostinho comenta o v. 10c do Prólogo joanino da seguinte forma:
Quando se diz, pois, que o mundo não o conheceu, se entende aqueles que
amam o mundo, aqueles que habitam nele com o coração. É mau o mundo
59
Cf. Trat. III, 8.
Trat. III, 3.
61
Cf. Ibid.
62
Cf. Trat. III, 14.
63
LADARIA, L. F. Antropología teológica. Madrid: UPCM; Roma: Università Gregoriana Editrice, 1983.
p. 225-226.
64
HARDY, op.cit., p. 111.
65
Cf. Trat. III, 4. – Agostinho estabelece nesse artigo a diferença entre o ser humano e o animal. O humano
carrega em si a imagem de Deus. Onde está essa imagem? Agostinho a compreende como estando na alma
humana.
60
29
porque são maus os que vivem nele, como é má a casa não por seus muros,
senão pelos que nela vivem66.
Depreende-se daí uma postura de certa desconfiança diante do humano67. O
mundo, obra do Criador, é bom; porém os homens que nele vivem e foram manchados pela
culpa original são maus. No entanto, Agostinho não pode ser simplistamente classificado
como elaborador de uma antropologia de cunho pessimista68. Ele está às voltas com
problemas muito concretos que o fazem acentuar um aspecto em detrimento de outro. Se, por
um lado, Agostinho quer afirmar a divindade de Cristo, contrapondo-se aos arianos; por outro,
afirma a necessidade de uma conversão humana, contrapondo-se ao pensamento de Pelágio69.
Para Agostinho, o humano é criatura chamada à conversão e à conformação com
Deus. O primado da graça é que realizará na pessoa humana o convite à perfeição e
possibilitará o pleno exercício da liberdade70. O ser humano, tão viciado às coisas sensíveis,
diante do Cristo é interpelado a dar uma resposta de fé. Segundo Hardy, o Cristo, em toda a
sua existência, ou seja, por palavras e atos, é reflexo do papel revelador e pedagógico da
encarnação e, ao mesmo tempo, uma interpelação:
Cada movimento do Cristo é ‘uma verdadeira palavra’: ele é uma
interpelação para o homem, um convite a recolher-se na fé de maneira a
atender através dos sinais até à realidade. Uma palavra sonora acorda a alma;
ela suscita a atividade da alma. Por sua humanidade, provoca o homem no
seu embotamento material para suscitar a resposta da fé. Em suma, tornandose homem, o Verbo torna-se na sua humanidade, uma palavra interpelante71.
Sendo assim, o Verbo encarnado é que irá inaugurar a nova humanidade e
possibilitará a adoção dos redimidos por Deus. A preocupação em mostrar a grandeza do
Verbo exige de Agostinho falar da pureza de Maria, situação prévia que assegura a total
diferença do Deus feito homem em relação à humanidade.
Todos viemos daquela semente de que fala Adão com soluços e gemidos: Eu
fui concebido na iniqüidade e em pecado minha mãe me alimentou em seu
ventre. Cordeiro, pois é somente aquele que não veio nessas condições. Não
66
Trat. III, 5.
Cf. Trat. XIV, 6: “Agora examina a natureza do humano: nasce e cresce e aprende o que todos os homens
aprendem. Que sabe ele que é da terra, senão terra? Fala do que é humano e só isto entende e saboreia; e, como
carnal que é, carnalmente julga e carnalmente pensa; isso é todo o humano”.
68
Cf. LADARIA, L. F. Introdução à antropologia teológica. São Paulo: Loyola, 1998. p. 110.
69
Cf. VANNIER, Marie-Anne. Pelagianismo. In: DCT. p. 1376-1377. – Também sobre o mesmo assunto:
LADARIA, L. F. Teología del pecado original y de la gracia. Madrid: Editorial Católica, 1993. p. 86-91.
– Pelágio propugna em suas obras a liberdade humana e a participação na graça do Criador. Assim, por suas
próprias forças, o ser humano pode tornar-se verdadeira imagem de Deus. A graça original seria a característica
do humano e não o pecado original. Essa auto-suficiência do humano, apresentada por Pelágio, é que provoca a
reação agostiniana. Tal reação do Bispo de Hipona ainda é marcada pelo desejo de defender a universalidade da
redenção em Cristo.
70
Cf. VANNIER, Marie-Anne. Agostinho de Hipona. In: DCT, p. 70-71.
71
HARDY, op. cit., p. 129.
67
30
foi concebido na iniqüidade, já que não foi concebido por obra de mortal,
nem o alimentou na iniqüidade sua mãe quando o teve em seu ventre, porque
virgem o concebeu e virgem o deu à luz. O concebeu pela fé e pela fé o
criou. Eis aqui, pois, o Cordeiro de Deus. Não há nele a semente de Adão.
Toma de Adão a carne, não o pecado. Só este, que não toma de nossa massa
o pecado, e é quem tira nossos pecados72.
Jesus é um homem que oculta a sua divindade73. Será na sua fraqueza humana e
ocultando sua divindade que o Cristo experimentará a morte. Para Agostinho, a cruz tem um
significado de sacrifício redentor74. E será por ela que toda a humanidade poderá ter acesso ao
Pai. A cruz é necessária para a redenção do gênero humano, pois nela morre pelos pecadores
aquele que não tinha motivos para experimentar a morte, pois fora concebido sem pecado 75.
Mas em sua morte se dá a vida76.
Hardy argumenta que, para Agostinho, não é a morte de Cristo que cura a
humanidade, mas aquele que morre por essa humanidade. O crucificado é aquele que cura77.
Este crucificado não surge somente no momento da paixão, mas lhe é anterior. Portanto não é
somente o crucificado que porta a salvação, mas sim o Cristo na sua existência total.
Imprescindível, então, para tal, a encarnação.
2.3 – O Verbo preexistente
Não se tocou até agora na questão da preexistência. Para Agostinho, a
interpretação do v. 14a do Prólogo é a prova de que o Deus, que habitava nas alturas e que era
inacessível comunica-se agora com a humanidade e a conduz à perfeição. Toda a sua teologia
sobre o esquema Verbo-carne se baseará na idéia de que no Verbo se encontra a perfeição a
que o humano é chamado78. No Deus-homem a humanidade encontra/vê sua enfermidade e,
também, seu destino.
Agostinho toca no problema que a encarnação suscitara e que deu margens ao
surgimento das heresias cristológicas79: como se deu a união entre o humano e o divino? Para
ele, o Verbo que habita junto do Pai desde todo o sempre e que com o Pai tudo criou adentra
72
Trat. IV, 10 [grifo do autor].
Cf. Trat. II, 5.
74
Cf. Trat. III, 4.
75
Cf. Trat. III, 13.
76
Cf. Trat. XII, 11; Trat. III, 3.
77
Cf. HARDY, op.cit., p.115-116.
78
Cf. Trat. XXIII, 6.
79
As heresias cristológicas tomavam uma parte da verdade de fé, mas prescindiam de outra que a ela estava
unida. É essa acentuação de uma polaridade da verdade que desvia do sentido original. A justa medida na
interpretação, aceitação e compreensão da fé ainda permanece um desafio.
73
31
na humanidade pela força do Espírito80. Não se deixará guiar pela sua natureza humana, mas
esta será guiada por ele, pois o Verbo é, a um só tempo, Filho de Deus e Filho do homem.
O Filho do homem tem alma e tem corpo. O Filho de Deus, que é o Verbo,
tem o homem, como a alma tem o corpo. Como a alma com o corpo não há
duas pessoas, senão um só homem, assim o Verbo com o homem não faz
duas pessoas, senão um só Cristo. Que é o homem? Uma alma racional que
tem um corpo. Que é o Cristo? O Verbo de Deus que possui o homem81.
Preocupado com as afirmações arianas acerca do Filho, Agostinho insiste que o
Verbo é eterno e que o Cristo é a visibilidade de Deus82. Enquanto Ário afirmava a condição
de simples criatura para a pessoa de Jesus, Agostinho insiste na sua divindade83. “Cristo não é
nem o Verbo nem a carne simplesmente, senão o Verbo feito carne para viver conosco”84.
2.4 – Jo 1,14a e o conceito de “carne”
No tratado sobre a Trindade, Agostinho explicita como compreende a encarnação,
tendo como argumento de autoridade o referido texto de João. A disputa com os arianos faz
Agostinho precisar o que significa tal versículo:
Afirmo que o próprio Verbo de Deus se fez carne, ou seja, se fez homem,
não porém no sentido de que se tenha transformado e mudado no que se fez,
mas de tal modo se fez, que nele se encontra não somente o Verbo de Deus e
a carne do homem, mas também a alma racional humana; e assim este todo
pode-se denominar Deus pela natureza divina e homem pela natureza
humana85.
A passagem acima já introduz a questão do significado de “carne” para Agostinho
em sua leitura de Jo 1,14a. “Carne” é sinônimo de humano, natureza humana composta por
alma e corpo. A alma racional é que permite ao ser humano conhecer a Deus. O corpo,
embora parte integrante do homem, é tido como realidade inferior a alma. O esquema CristoDeus e Cristo-homem, que reforça ainda mais a distinção entre alma e corpo, será lembrado
inclusive quando se fala da ressurreição, acentuando que por um a alma é ressuscitada e por
outro, a carne86. É apenas uma distinção formal, pois Agostinho já afirmou que as duas
naturezas estão no Verbo eterno.
80
Cf. Trat. XXIII, 12.
Trat. XIX, 16. Cf. DT, I 6,9: “Ora está escrito: Tudo foi feito por ele; portanto, é consubstancial ao Pai. Assim
não é somente Deus, mas verdadeiro Deus.”
82
Cf. Trat. III, 18.
83
Cf. Trat. XXVI, 5.
84
Trat. XVIII, 2.
85
DT, IV 21,31; II 6,11.
86
Cf. Trat. XIX, 16.
81
32
“Carne” é também a condição mortal, a finitude. Os nascidos de Adão são mortais
e o Verbo, ao se encarnar, se fez mortal87. Além disso, o tornar-se “carne” é a entrada de Deus
no tempo cronológico. O Deus que tudo fez, o Verbo existente desde o princípio, adentra na
história88. Tendo “vindo na carne”, Cristo se torna para a humanidade um referencial, ou seja,
modelo e exemplo. Novamente encontramos o sentido dado por Agostinho a Jo 14,6. O
Cristo, Verbo eterno feito homem, é o caminho. Seguindo o Cristo, Deus visível, o cristão
poderá ter a visão direta de Deus na eternidade89.
Embora Agostinho tenha uma visão do humano marcada pelo pecado, concebe o
“Jesus-carne” como aquele que veio guiar a humanidade para o que a ela está destinado, a
pátria celeste. “Carne” para Agostinho é a condição mortal e, em Jesus, comunhão de Deus
com aqueles que o desprezaram ao pecar. Como se viu, as disputas com os hereges
influenciaram sobremaneira a obra de Agostinho, fazendo-o concentrar a sua reflexão sobre a
grandeza de Deus em detrimento de qualquer grandeza do humano.
“Jesus-carne”, para Agostinho, é o Caminho que conduz à Verdade e à Vida. Na
interpretação da passagem da Samaritana (Jo 4), Agostinho mostra como Jesus experimenta o
cansaço, a fraqueza humana, não por necessidade, mas por humildade e com o objetivo de
fortalecer a humanidade90. Há uma separação bastante marcada entre a humanidade de Jesus,
assumida humildemente, e a sua divindade. Tal distinção gerou uma desconfiança em relação
à “carne”, ao ser humano, valorizando-se excessivamente o aspecto espiritual, a alma.
3 – Santo Tomás: “carne e espírito” unidos indissociavelmente
Tomás de Aquino (1224-1274) encontra-se num contexto em que, passados os
grandes debates cristológicos, fazia-se necessária uma clara doutrina cristã que, enquanto
ciência, estivesse em condições de dialogar com o mundo. Quis Tomás de Aquino oferecer
uma síntese das verdades da fé aos iniciantes em teologia que se viam às voltas com
numerosas obras cristãs, mas não conseguiam, por si mesmos, elucidar a opinião mais
87
Cf. Trat. XII, 10-11.
Cf. Trat. XXIII, 12. – DT, II 5,9: “O certo é que o próprio Verbo de Deus, que estava junto de Deus e era
Deus, isto é, a própria sabedoria de Deus que existia fora do tempo, nesse mesmo tempo, manifestou-se na carne.
O certo é que ele devia aparecer na carne, no tempo [...]”.
89
Cf. HARDY, op.cit., p. 119.
90
Cf. Trat. XV, 6.8.9.
88
33
ortodoxa a ser assumida91.
O esforço de Tomás por fidelidade à Sagrada Escritura, numa leitura literal, e à
Tradição, evitando negar qualquer resposta já dada, faz-se sentir na elaboração da Suma
Teológica. Há um princípio motivador em Tomás, que é a busca do conhecimento que, por
sua índole, quer livrar as pessoas da ignorância. Mais que um estudioso, que se dedicou a dar
cientificidade à elaboração da teologia, Tomás se mostra um místico. Repassa na sua reflexão
todos os mistérios da fé e procura elucidar questões contemporâneas e outras anteriores
resolvidas insatisfatoriamente.
Se Tomás estava livre dos debates e controvérsias promovidos pelas heresias, que
ocuparam o pensamento dos Santos Padres, não estava isento de esclarecer temas e assimilar,
de acordo com os princípios cristãos, as novidades de seu tempo. A influência da filosofia
aristotélica apresentada pelos árabes exigiu uma integração da mesma, pois as simples
condenações já não produziam o mesmo efeito do passado. Tomás de Aquino é, então, aquele
que assume a empreitada de dialogar com a filosofia de Aristóteles92. É mérito de Tomás abrir
o cristianismo ao mundo e às idéias que lhe eram contemporâneas.
Propõe-se, agora, refletir sobre o “Jesus-carne” em duas obras de Tomás de
Aquino: a) Suma Teológica: a partir da sua Terceira Parte, procura-se analisar a interpretação
de Tomás acerca do conceito “carne” em questão; b) Comentário sobre o Evangelho de João:
seguindo os passos exegéticos de Tomás e concentrando-se na sua interpretação do Prólogo,
deseja-se sintetizar os dados sobre a “carne” aplicados ao Verbo.
3.1 – A encarnação e o conceito de “carne” na III Parte da Suma Teológica
Tendo começado sua Suma pelo estudo sobre Deus e as coisas criadas, propõe,
então, o retorno a Deus pela vida nova redimida na pessoa do Verbo encarnado, dedicando a
esse tema toda a Terceira Parte. Claramente influenciado por questões filosóficas, Tomás irá
discutir as relações do mistério da encarnação no contexto de uma teologia marcada por
conceitos como substância, subsistência, natureza, pessoa, conveniência etc.
Para acessar a compreensão de Tomás sobre a encarnação, é preciso perceber sua
cristologia, pois esta dá o sentido de tudo o que ele quis dizer sobre tal mistério. A cristologia
de Tomás é resumida, por ele mesmo, no prólogo da Terceira Parte da Suma Teológica:
91
92
Cf. RUELLO, F. La Christologie de Thomas d´Aquin. Paris: Beauchesne, 1987. p. 279.
Cf. BRAGUE, Rémi. Aristotelismo cristão. In: DCT. p. 184.
34
Nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, para salvar seu povo de seus
pecados, segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si mesmo o
caminho da verdade, através do qual possamos chegar pela ressurreição à
bem-aventurança da vida imortal93.
Muito semelhante à interpretação feita por Agostinho, “Jesus, Caminho, Verdade
e Vida” (cf. Jo 14,6) é a síntese emblemática de Tomás no que tange ao Verbo feito “carne”.
Jesus é, a um só tempo, caminho, pelo qual a humanidade precisa passar para reencontrar o
Criador; e o termo do caminho, pois nele a humanidade reconhece aquilo a que foi chamada
desde a criação94. Percebe-se, pois, uma concatenação de idéias que conduz a uma
compreensão do mistério da encarnação no contexto dessa cristologia. Pela encarnação o
Caminho torna-se acessível à humanidade, e é nela que todo ser humano se reconhece filho na
visão beatífica. O “Jesus-carne”, além de comunicar a Verdade e a Vida, faz com que todo ser
humano possa nele se reconhecer como filho(a) de Deus. “Jesus-carne” é o Caminho por onde
devem passar os que desejam ver a Deus.
Fora do Cristo não haveria possibilidade de encontro com o Pai. Ele, o Cristo, é o
mediador que veio restaurar a comunhão e comunicar à humanidade todos os bens da parte do
Pai; é a Verdade, pois é Aquele que existe desde todo o sempre junto do Pai e que recebeu
deste todo o poder. Dessa forma, quem quiser conhecer toda a verdade – e em Deus jamais
existirá falsidade ou mentira – precisa aderir ao Verbo.
O Verbo encarnado lança o ser humano ao encontro da verdade sobre o divino e
sobre o humano. Ele abre-se para o mistério da divindade e da humanidade, que se revelam
por seu ser na “carne”. Daí pode-se extrair que a encarnação é justificada, de início, pela
elucidação de toda dúvida sobre Deus e sobre a criatura humana. Mas Tomás é ainda mais
explícito no que diz respeito ao objetivo da encarnação, como poderá ser verificado à frente.
Antes, importa perguntar sobre a conveniência da encarnação.
3.1.1 – Conveniência e justificativa para Deus vir na “carne”
A resposta de Tomás ao problema da conveniência da encarnação é marcada por
uma compreensão de Deus bastante legítima e cunhada na tradição neotestamentária: Deus é
amor95. Na sua resposta à pergunta: “Era necessário que o Verbo de Deus se encarnasse para a
restauração do gênero humano?”; Tomás responde que o amor justifica a encarnação e que ela
93
ST III, Pro.
Cf. RUELLO, op.cit., p. 290.
95
Cf. ST III, q. 1, a. 2.
94
35
foi o modo mais conveniente dentre os modos possíveis a Deus.
Tomás aproxima do tema da encarnação a idéia de que a humanidade tem, em si, a
capacidade de conhecer a Deus; por isso, afirma que a encarnação quer despertar uma
resposta de amor no ser humano e que a visibilidade de Deus tornada possível no Verbo feito
“carne”, além de dignificar, é capaz de atrair a humanidade para o conhecimento de Deus:
[…] deve-se dizer que se encarnando, Deus não diminuiu sua majestade: por
conseguinte, não diminui razão da reverência que lhe é devida. Ela cresce
com o aumento do conhecimento que dele podemos ter. E ao querer tornarse nosso próximo encarnando-se, tanto mais nos atraiu para conhecê-lo96.
Para Tomás, o movimento divino provoca no ser humano um desejo de
conhecimento. Na medida em que se conhece Deus, Verdade e Vida, o humano é exortado a
se tornar semelhante a “Jesus-carne”. Ele é o modelo a ser seguido por aqueles que desejam
conhecer a Deus e que têm na pessoa do Filho encarnado a graça da realização de tal anseio.
Tendo recebido da Tradição um conceito já elaborado de encarnação, foi
necessário que Tomás justificasse a encarnação frente às diferentes posições que eram
apresentadas na época. Anselmo de Cantuária, em seu Cur Deus homo?, respondeu à questão
associando a encarnação ao mistério da paixão. O imperativo de uma justiça a ser cumprida
faz com que o motivo para Deus assumir a “carne” humana seja somente o de satisfazer a esse
Deus que foi ofendido97. Ao abordar essa idéia de um Deus ofendido que precisa ser
satisfeito, o Doutor Angélico utilizou a categoria soteriológica da satisfação98, mas segundo
Nicolas, a finalidade da encarnação em Tomás pode ser compreendida como “[...] a exaltação
do universo e a divinização do homem, sua própria ressurreição e exaltação, princípio de tudo,
ST III, q. 1, a. 2. – Ver toda a resposta de Tomás que procura solucionar as seguintes questões: 1) Possibilidade
de se restaurar a natureza humana sem a encarnação; 2) A suficiente restauração da natureza humana através da
satisfação pelo pecado cometido; 3) A reverência humana em relação a Deus parece ser maior quanto mais
distante ele se apresenta ao ser humano. Como de costume nas questões propostas por Tomás, uma primeira
questão abre-se em outras que ajudam a compreender o enunciado proposto.
97
Cf. SANTO ANSELMO. Por que Deus se fez homem?. São Paulo: Novo Século, 2003. – Deus, por sua
própria divindade, merecia uma satisfação pelas ofensas recebidas. Quanto maior a dignidade e honra do
ofendido, maior a satisfação que a ele deve ser dada. A culpa só poderia ser perdoada mendiante a execução de
uma sentença que restituísse a honra do ofendido. Assim, o Cristo vem fazer isso em nome da humanidade, já
que ela na sua pequenez, diante da grandeza e divindade do agredido, não poderia justamente satisfazê-lo. Em
Jesus, Deus e homem, realiza-se a satisfação por todas as culpas da humanidade. Ele representa o ofensor, pois é
humano, e está na mesma altura do ofendido.
98
Cf. KESLLER, Hans. Cristologia. In: SCHNEIDER, Theodor (org). Manual de Dogmática. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2002. v. 1, p. 329-330. – Kesller afirma que Tomás de Aquino utiliza essa categoria soteriológica de
Anselmo, mas lhe dá outras nuances. Há uma misericórdia divina que deseja alcançar a humanidade e que é o
motor da ação realizada inicialmente pela encarnação do Verbo. Para Tomás, Cristo é o instrumento de Deus
que, na sua livre vontade, colabora para que a humanidade seja redimida. O Cristo é o instrumento auto-ativo do
amor salvífico de Deus. – Nessa mesma linha de pensamento: SESBOÜÉ, B. Jésus-Christ l´unique médiateur:
essai sur la rédemption el le salut. Paris: Desclée. 1988. v. I, p. 347. Sesboüé pondera que “a satisfação em
Tomás de Aquino é marcada por uma dupla tensão, entre justiça e amor naquele a que se deve satisfazer, e entre
justiça e misericórdia naquele que recebe a satisfação”.
96
36
passam por seu sacrifício redentor e se manifestam como o dom do amor”99. Tomás também
conferiu à encarnação uma característica de extensão trinitária que veio ao encontro da
humanidade:
A encarnação é, para Santo Tomás, ao mesmo tempo, o vértice do mistério
de Deus, pois é uma extensão até a criatura do mistério trinitário, e o vértice
do mistério do homem, pois é a ascensão deste ao cume absoluto da ordem
da criação: a natureza humana transcende-se por essa união e nessa união à
Pessoa Divina100.
Embora no pensamento de Tomás houvesse a possibilidade de o Verbo se
encarnar, mesmo que a humanidade não tivesse pecado101; ele concorda com a justificativa do
perdão dos pecados, pois afirma que a condição de “não-pecado” (pre lapsare) da
humanidade é apenas uma hipótese (afinal, existe o pecado!). Porém, na soteriologia
tomasiana, a encarnação não ocorre somente em função de uma reparação, pois há sempre a
idéia de um encaminhamento para Deus. O perdão dos pecados é mais uma expressão da
misericórdia divina que se associa ao itinerário humano.
Se, pois, se afirma a realidade de pecado, a pergunta sobre a ligação da
encarnação com a queda original torna-se inevitável. O Verbo se faz “carne” para redimir a
“carne pecadora” nascida de Adão? E os pecados do tempo presente? Seriam também eles
motivação do assumir a “carne”? Tomás mostra que se pode compreender a encarnação como
remissão dos pecados, tanto os atuais quanto o original102. Assim ele se pronuncia na sua
resposta ao art.4 da Q.1 da III parte:
É certo que Cristo veio a esse mundo não só para apagar o pecado
transmitido originalmente aos pósteros, mas também para apagar todos os
pecados que depois foram acrescentados. Não que todos efetivamente sejam
apagados, em razão da deficiência dos homens que não aderem a Cristo, [...],
mas porque ele realizou o que foi suficiente para apagar todos os pecados103.
Não haveria uma contradição no fato de que Deus, sendo bom e justo, tomasse
para si uma “carne” marcada pelo pecado? Segundo Tomás, a natureza humana está enferma e
é esta mesma natureza que o Verbo assume, mostrando assim o poder de Deus que é capaz de
vencer o antigo inimigo pela recuperação da dignidade humana em Cristo. Deus prefere usar a
linhagem ferida pelo pecado104. Tal escolha divina teve também suas conseqüências, pois será
o fato de usar dessa linhagem que ocasionará o sofrimento no Cristo. Ele sofrerá não por ser
99
NICOLAS, M-J. Introdução à Suma Teológica. In: ST I, p. 56.
Ibid., p. 55.
101
Cf. ST III, q. 1, a. 3.
102
Cf. ST III, q.1. a. 3, 4, 5.
103
ST III, q. 1, a. 4.
104
Cf. ST III, q. 4. a. 6 resp.
100
37
culpado, pois a pena da morte é conseqüência do pecado; sofrerá por escolha livre pela
miséria humana105, pois assumiu a “carne” nos seus limites e sofrimentos, ou seja, nas
conseqüências do pecado e não na condição de pecador106.
Tomás apresenta uma idéia bastante peculiar, posto que devedor de Agostinho,
quando afirma que o pecado não faz parte da condição humana e, por isso, o Verbo, ao
encarnar-se, assume tudo o que pertence a essa condição e o fato de não pecar não o torna
inabilitado para a missão que se propõe de satisfação em nome da humanidade. “O pecado
não demonstra a verdade da natureza humana que é causada por Deus e, assim, o pecado a ela
não pertence. Ao contrário, é oposto à natureza e foi introduzido pela ‘semeadura do
demônio’, como diz Damasceno”107. Além de que, segundo Tomás, o Cristo não esteve em
Adão, como os demais, pois esteve nele somente segundo a matéria108.
3.1.2 – O problema da união hipostática
Um problema que ocupará Tomás é o da união hipostática, que é a afirmação
teológica (linguagem conceitual) encimada no v.14a do Prólogo. Como explicar que duas
realidades tão díspares podem unir-se no Cristo? Deus e a humanidade podem unir-se numa
pessoa? Para Tomás, a natureza humana de Cristo (corpo e alma) está plenamente unida ao
Verbo (natureza divina).
O grande contributo de Tomás, no que concerne ao mistério trinitário, foi o de
solucionar a questão deixada por Agostinho acerca da harmonia entre as relações subsistentes
das pessoas divinas e o absoluto e a unidade da divindade. Na concepção tomasiana, em Deus
as relações subsistentes não são acidente, mas sim constitutivas de sua essência 109. A
definição de Tomás acerca da pessoa (hipóstase) será de extremo valor para sua compreensão
do ser na “carne” do Cristo.
Cf. ST III, q. 14, a. 1 resp. – Ainda nesse artigo, Tomás afirma: “Deve-se dizer que a enfermidade assumida
pelo Cristo não impediu o fim da encarnação, mas o ajudou ao máximo, como foi dito. Embora sua divindade
ficasse escondida por essas enfermidades, manifestava-se a humanidade, que é o caminho para se chegar à
divindade”.
106
Cf. ST III, q. 4. a.6.
107
ST III, q. 15, a.1 resp.
108
Cf. ST III, q.15, a. 1. resp. – Neste artigo Tomás responde à questão: “Em Cristo, houve pecado?”. No que
concerne à linhagem de Adão, a Escritura afirma que ‘nele todos pecaram’ (Rm 5,12). Diante disso, Tomás
afirma que “nós estivemos em Adão, segundo a razão seminal e segundo a substância do corpo” e que o Cristo
assume a substância visível da “carne” de modo diferente (concepção virginal).
109
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O mistério da Trindade: reflexão especulativa e elaboração da linguagem. O
“Filioque”. As relações trinitárias. In: O Deus da salvação (séculos I – VIII). São Paulo: Loyola, 2002.
p. 268-272.
105
38
A união hipostática, ou movimento descendente de Deus ao encontro da
humanidade e a ela se unindo, eleva a condição humana a um nível superior de existência.
Isso é possível porque em Cristo há uma só hipóstase com duas naturezas. “[...] a pessoa de
Cristo subsiste em duas naturezas. Portanto, embora seja um só subsistente, nele há dois
modos de subsistir. Assim, a pessoa se diz composta, na medida em que, sendo uma só,
subsiste em duas naturezas”110. Há uma preocupação em salvaguardar a imutabilidade do
divino, daí a importância de lembrar que a natureza divina não sofre nenhuma alteração em si,
porém a natureza humana torna-se melhor111. O primeiro dom concedido pela encarnação é o
próprio fato de o Verbo se fazer “carne”.
3.1.3 – O conceito de pessoa humana e sua incidência na “carne” do Cristo
A antropologia tomista também foi elaborada sobre a obra do sexto dia da criação,
porém compreendida a partir da consciência da complexidade humana112. No que diz respeito
à “carne”, como Tomás compreende o ser humano? O ser humano é como o horizonte, onde a
terra e o infinito se encontram. Uma pessoa humana é formada por uma alma racional e um
corpo. Diferentemente da postura agostiniana em que alma e corpo, pela influência platônica,
eram tidos como elementos concorrentes, Tomás afirma a indissociabilidade da alma ao
corpo/carne humana. A alma não é alguma coisa colocada sobre o corpóreo, nem tampouco o
corpóreo é um aprisionamento da alma. Um não existe independente do outro.
Tratando sobre a possibilidade de se chamar a alma de pessoa, responde Tomás:
Deve-se dizer que a alma é parte da espécie humana. Assim, pelo fato de
guardar, embora estando separada, a aptidão natural para a união, não se
pode chamá-la de substância individual, que é a hipóstase ou substância
primeira. [...] Eis por que nem a definição nem o nome de pessoa lhe
convém113.
O que constitui a pessoa humana é o fato de ser um corpo/carne, que não subsiste
por si mesmo, e ser uma alma, que, embora sendo ato, só se constitui realidade se vinculada
ao corpo. A alma é, pois, uma substância autônoma. Tomás mantém a prioridade da realidade
espiritual do humano, ou seja, a sua alma racional, que permite ao ser conhecer e encaminhar-
ST III, q. 2., a. 4. resp. – Tomás retoma um dos anátemas do Concílio de Éfeso (431). – Cf. DZ 114 e 263: “Se
alguém não confessa que o Verbo de Deus Pai se uniu à carne segundo a hipóstase e que Cristo é um com sua
própria carne, a saber, que o mesmo é Deus ao mesmo tempo que homem, seja anátema”.
111
Cf. ST III, q. 2, a. 6. resp.
112
Cf. CHÁVARRI, Eladio. La condición humana en Tomás de Aquino. Salamanca: San Esteban, 1994. p. 118.
113
ST I, q. 29, a. 1.
110
39
se para a verdade. Por outro lado, na antropologia tomasiana, o corpo não é desvalorizado, já
que está unido à alma.
No caso de Cristo, essa alma racional está ligada ao Verbo eterno, colocando-o em
íntima comunhão com Deus e recebendo dele todo o influxo de sua graça. O Verbo eterno e
preexistente desce à humanidade: “[...] o Verbo de Deus perfeito assumiu como própria a
imperfeição de nossa natureza, segundo o que diz o Evangelho de João: ‘Desci do céu’ (Jo
6,38-51)”114. O Verbo só começa a existir no mundo, enquanto exteriorização, na pessoa de
Cristo.
Enquanto verdadeira pessoa humana, o Cristo experimenta tudo dessa condição,
exceto o que se relaciona ao pecado. Tomás de Aquino dedica as questões 7 a 15 da Parte III
da Suma à natureza humana assumida, explicitando suas perfeições e suas debilidades, tendo
como referência o objetivo da encarnação: conceder a salvação à humanidade. Para Tomás,
em Cristo, existe total unidade entre o ser e o agir. O que é diferente no Cristo, em sua
humanidade, em relação a todos os outros seres humanos, é que, nele, a natureza humana
participa da vontade do agente principal (vontade divina)115. Portanto, o ser está plenamente
em comunhão com o agir.
Quanto à questão dessa natureza de Cristo absolutamente plena, apresentada por
Tomás, Nicolas afirma que:
Quando apresenta a natureza humana de Cristo, dotada já nesta terra da
plenitude absoluta, não só da graça, mas do conhecimento, não nos
esqueçamos que ela permanece, em tudo, humana e que se trata para ela,
portanto para o Filho de Deus nela, de participar no mais alto grau possível
da divindade. Para Santo Tomás, a humanidade de Jesus – ao menos quanto
à alma – desde sua vida terrestre, estava no vértice da criação, acima dos
próprios anjos116.
Percebe-se que na solução de Tomás há uma questão sempre delicada: a alma
permanece num nível espiritual sempre mais elevado que o corpo. A humanidade de Jesus,
enquanto corpo e alma, é marcada por esse diferencial da vida do Verbo, Filho de Deus, na
pessoa do Cristo. É esse diferencial que permite ao Cristo conhecer de modo distinto do
restante da humanidade; porém, apesar disso, sua humanidade não perde em semelhança com
a de toda humanidade. É no nível da alma que ele permanece num patamar ainda não atingido
pela humanidade, pois esta não é Deus.
114
ST III, q. 33, a. 3.
Cf. RUELLO, op. cit., p. 322.
116
NICOLAS, M-J., op.cit., p. 56.
115
40
3.1.4 – O termo “carne” associado ao v. 14a do Prólogo Joanino
Cabe agora perceber em Tomás qual é a compreensão do termo “carne”. Em tudo
que já foi mencionado, implícita e explicitamente, há referências a esse termo. “Carne” é
atributo da natureza humana – nunca existindo em Deus – e caracterizada pela mutabilidade –
marca também incompatível com o divino117. A “carne” é constitutiva do humano e o Cristo,
para estar entre a humanidade, precisa dela.
“Carne, pecado e dor” formam uma tríade praticamente inseparável, pois é pela
“carne” que a humanidade transmite o pecado original (idéia da razão seminal). Há muito de
Agostinho nessa compreensão de Tomás. O Doutor Angélico discordará, inclusive, da
possibilidade da imaculada concepção de Maria118. Para ele, é impossível alguém ser
purificado do pecado na concepção, pois não há ali ainda uma alma racional capaz da graça
purificadora. O ser humano, pós-pecado original, é intrinsecamente corrompido. A “carne” de
Cristo é isenta do pecado pelo fato de que em Deus não há imperfeição. Todavia, há também
uma visão do humano como ser que, naturalmente, deseja ver a Deus. Se o pecado
impossibilita essa visão, a graça de Deus vem em auxílio da natureza humana e a torna capaz
para conhecer a Deus, pois esse é o único fim da humanidade.
Na questão 16 da Parte III da Suma, em que discute sobre o que convém a Cristo
segundo o ser e o vir-a-ser, Tomás reflete no artigo 6 a proposição “o Filho de Deus se fez
homem”. Retoma a Epístola a Epicteto de Atanásio, em que se afirma que, “ao dizer que o
Verbo se fez carne, é como se dissesse: ‘fez-se homem’”. Novamente ressalta que o fazer-se
homem ocasiona mudança no gênero humano e não em Deus119. Marie Lamy de la Chapelle
assinala que o termo homem, nesse caso, atribuído à pessoa do Cristo, necessita ser pensado
não isoladamente da divindade:
O termo homem, no sentido do que subsiste, conota no caso de Cristo não
somente o sentido que ele terá de ser humano: uma alma e um corpo então,
mas a divindade sem a qual ele não teria o supósito, pois Deus é este
homem120.
A expressão “fez-se homem” poderia incitar ao erro de se afirmar que todo ser
humano é Deus pela encarnação. Diante dessa possibilidade, Tomás de Aquino, seguindo o
pensamento de Damasceno, assevera que: “O Verbo de Deus não assumiu uma natureza
117
Cf. ST III, q.1, a. 1.
Cf. ST III, q. 27, a. 2, 2ª obj. e sol.; q. 14, a. 3.
119
Cf. ST III, q. 16, a. 6.
120
CHAPELLE, M. L. de la. Fils jusque dans la chair: le mystère de l’Incarnation dans la pensée de S. Albert le
Grand, Alexandre d’Halés, S. Bonaventure et S. Thomas d’Aquin. Doctor Communis, Cidade do Vaticano, v. 33,
n. 2, p. 159, mai/ago. 1980 [grifo do autor].
118
41
humana universal, mas individual”121. Battista Mondin comenta que, para Tomás, Jo 1,14
significa a ação com a qual a Trindade forma no ventre de Maria uma natureza humana
determinada e a une à pessoa do Verbo122. A novidade que se estabelece é que se pode
concluir que “carne” seria, então, o ser humano determinado, o Cristo no caso, como bem se
assinala na ST III, q.16,10.
3.2 – A “carne” de Cristo no Comentário sobre o Evangelho de João
Mas será no seu Comentário sobre o Evangelho de João que Tomás se deterá
mais explicitamente sobre o termo “carne”. Segundo sua compreensão, o Evangelho de João
teria por finalidade mostrar a divindade do Verbo123. Essa chave-interpretativa marcará toda a
sua leitura dos vv. 1 a 8 do Prólogo.
Ao tratar do v. 9 é que Tomás toca no tema da humanidade na sua relação com a
luz divina do Verbo que veio a encontrá-la. O ser humano, existindo nesse mundo sensível, é
iluminado pela razão natural e pela verdadeira luz de onde deriva a possibilidade do
conhecimento natural124. É um ser dotado da capacidade de conhecer, e essa capacidade o liga
ao princípio de sua existência, que é Deus. Ainda comentando o mesmo versículo, afirma
Tomás que a inteligência humana provém de uma causa extrínseca, ou seja, de Deus, e que o
ser humano é composto por uma dupla natureza:
O homem é constituído de uma dupla natureza: corporal, isto é animal ou
sensível, e intelectual. Segundo a natureza corporal ou sensível, ele é
esclarecido pela luz corporal e sensível, e segundo a alma e a natureza
intelectual, ele é esclarecido pela luz intelectual e espiritual125.
É próprio do ser humano ter a natureza corporal e a natureza intelectual ou
espiritual dada pela alma. A natureza corporal se vincula diretamente ao mundo sensível,
enquanto que a intelectual não tem a causa em si mesma nem se vincula diretamente a este
mundo.
Diante da proposição “o mundo não o conheceu” (v. 10c), evoca Tomás o motivo
para o desconhecimento humano acerca de Deus: a falta humana. Esta é definida como um
121
ST III, q. 2, a. 2.
Cf. MONDIN, Battista, Incarnazione. In: Dizionário enciclopédico del pensiero di san Tommaso d’Aquino.
Bologna: Studio Domenicano, 1991. p. 317.
123
Cf. CESJ (23), p. 65.
124
Cf. CESJ (129), p. 104.
125
CESJ (129), p.105.
122
42
amor ao mundo de maneira desordenada, sinal da ignorância em relação a Deus 126. Dessa
maneira, o Verbo, ao fazer-se “carne”, deu-se a conhecer ao mundo.
Numa elaboração mais formal, Tomás apresenta três motivos para Deus fazer-se
“carne”: 1) a perversidade da natureza humana, que, pela sua própria malícia, teria se
submetido às trevas dos vícios e da ignorância; 2) a insuficiência do testemunho dos profetas,
que, por eles mesmos, não poderiam iluminar o mundo; 3) a deficiência das criaturas,
incapazes de se conduzirem ao conhecimento do Criador127.
Tendo explicado os motivos, ele aborda a finalidade:
Assim o filho de Deus veio ao mundo e, portanto ele estaria no mundo. Na
verdade, ele ali estaria pela essência, pelo poder e pela presença, mas ele ali
veio assumindo a carne; ele estaria invisível, e veio para ali ser visível128.
Logo, conclui-se que estar na “carne” é tornar-se visível. Neste mundo sensível da
existência, onde o conhecimento humano passa pelo uso dos sentidos, Cristo inaugura a
visibilidade de Deus, e a todos que no Filho acreditarem o Pai concede a graça do Espírito
Santo. Tomás capta esse movimento trinitário na sua interpretação de duas palavras “todos
aqueles” do v. 12129. E o fruto da vinda na “carne” é a adoção filial.
No parágrafo 166, diz Tomás que “o Verbo se fez carne; isso significa que ele
assumiu a carne, e não que o Verbo, ele mesmo, seria carne, ela mesma”130. Essa afirmação de
Tomás se justifica em função da recordação que faz do eutiquismo, heresia monofisista. Além
de assegurar a verdadeira humanidade do Cristo, como na Suma Teológica, Tomás de Aquino,
de forma minuciosa, repassa possíveis erros cristológicos, recorda as heresias e seus autores
(Êutiques, Ario, Apolinário, Nestório), para numa síntese formular: “O Verbo assumiu uma
carne animada de uma alma racional”131. O “Jesus-carne” é uma alma racional.
Tomás adiciona à conclusão acima mencionada outro elemento. Debate sobre o
porquê João não menciona a alma racional no lugar de “carne”. Justifica o fato de o
evangelista dizer somente que “o Verbo se fez carne” com quatro argumentos: 1) para provar
a verdade da encarnação contra os maniqueus, que não acreditavam na união do Verbo à
carne; 2) para mostrar a grandeza da bondade divina para com a humanidade, ligando-se a ela
por amor; 3) para mostrar a verdade e característica única dessa união no Cristo, assegurando
126
Cf. CESJ (138), p.108.
Cf. CESJ (141), p.109.
128
CESJ (144), p.110 [grifo do autor].
129
Cf. CESJ (146), p. 111.
130
CESJ (166), p.117.
131
CESJ (168), p.118.
127
43
que Deus se une aos outros homens apenas pela alma; 4) para mostrar que o ser humano foi
restaurado à maneira que convinha o melhor, ou seja, a “carne” enferma é restaurada pela
“carne” do Verbo132.
A preocupação com a questão das duas naturezas e o como se deu tal união na
pessoa do Cristo remete à Suma Teológica e suas questões. “A união do Verbo à “carne” é tal
que Deus é feito homem e o homem é feito Deus; quer dizer que ele é tal que Deus seria
homem”133. Tal união implica uma nova relação entre Deus e o homem nascida do
conhecimento que teve iniciativa em Deus e se concretizou em “Jesus-carne”.
Em síntese, Tomás consegue dar um novo sentido à dimensão carnal do ser
humano ao ligá-la de modo indissociável à alma, que é a sua forma. Rompe-se, assim, com
uma desconfiança em relação ao humano e estabelece-se uma valorização do que é sensível
enquanto instrumento necessário para se chegar a Deus e participar da visão beatífica. O
Cristo, Deus e homem, concede aos humanos a possibilidade de participar da graça divina e,
por uma vida de compromisso com ele, ascender ao Deus que desceu até eles.
4 – Karl Rahner e o Portador Absoluto de Salvação vindo na “carne”
A contribuição de Rahner (1904-1984) para a reflexão acerca da encarnação está
intimamente ligada a conceitos-chaves de sua teologia transcendental. Propomo-nos agora,
tendo-os como dados essenciais, analisar suas implicações na leitura de Jo 1,14a.
Rahner captou em profundidade os apelos do homem moderno em relação à fé,
percebendo-os num quadro mais amplo que o meramente eclesial e religioso, abrindo-se para
a antropologia. Isso se deu pela sua percepção do mal-estar em que os cristãos viviam diante
de um mundo onde as ciências evoluíram, onde o mundo em si evoluiu, e as verdades da fé
permaneciam acrisoladas em formulações dogmáticas repetidas, mas incompreendidas.
Jesus, Deus-homem, é, para Rahner, o Portador Absoluto de Salvação. Sendo
assim, compreendeu ser urgente uma investida da teologia no diálogo com outras áreas e a
formulação de uma teologia de cunho ontológico, significando não só uma mudança na
132
133
Cf. CESJ (169), p.118.
CESJ (170), p.119.
44
linguagem em relação à teologia de concepções ônticas, mas, acima de tudo, uma variante na
forma de olhar e de dizer a fé no mundo, a partir do humano134.
O itinerário aqui seguido foi o de contemplar a visão rahneriana de ser humano,
basicamente uma primeira leitura de sua antropologia, e de sua cristologia, especificamente
sua interpretação do termo “homem”, compreendido como sinônimo de “carne”, no texto do
Evangelho segundo João.
4.1 – O ser humano: um misterioso ouvinte da palavra
Para Karl Rahner, o ser humano possui um a priori que lhe é característico e que
fundamenta todo o seu ser no mundo. Tal a priori é a possibilidade de conhecimento que
existe em todo ser humano e, na medida em que desenvolve o seu conhecimento do mundo
dado, na sua relação com as coisas, vai constituindo o seu a posteriori. O que torna possível o
conhecimento categorial ou a posteriori é justamente o a priori.
Ao afirmar que a pessoa humana é, a priori, capaz de conhecer, Rahner afirma
também a ligação com o mistério. O humano, nessa perspectiva, constitui-se um mistério
indefinível ou, como diz Rahner, o mistério135. Sempre haverá o que conhecer. O ser humano
conhece e é conhecido, mas permanece carente de conhecimento e de conhecer-se, por isso é
o ser que se indaga. Sempre existirá um mais a que será chamado. Daí que todo ser humano,
ao se indagar sobre as verdades últimas de sua existência, anseia por uma resposta, e somente
no abandonar-se no mistério de si pode encontrar aquele que lhe responde e é a resposta.
Em Ouvinte da Palavra136, Rahner propõe uma filosofia da religião baseada numa
antropologia, tocando no tema da transcendentalidade do conhecimento sem, porém, se
definir teologia. Propõe que uma filosofia cristã não perde sua legitimidade pelo fato de ser
cristã. O filosofar sobre o ser humano e seus anseios já é o encaminhamento para a
constatação da abertura ao mistério e da possibilidade, então, de uma eventual comunicação
de Deus. Ainda circulando no terreno da filosofia, Rahner já afirma que antropologicamente o
ser humano é abertura para o mistério.
134
Cf. RAHNER, Karl. Teologia e antropologia. São Paulo: Paulinas, 1969. p.162-163.
Cf. Ibid., p. 83.
136
RAHNER, Karl. L’homme a l’écoute du verbe: fondements d’ une philosophie de la religion. Paris: Mame,
1968.
135
45
O ser humano é um ser de transcendência, na medida em que seu conhecimento
das coisas não se confunde com as coisas em si, mas delas se abstrai e se pergunta pelo seu
próprio ser. O humano se perde no mistério de sua existência e pode-se encontrar nesse
mesmo mistério. O primeiro princípio de uma ontologia geral, para Rahner, é: “A essência do
ser do ente é conhecer e ser conhecido em uma unidade originária, que temos chamado como
o estar consigo, o estado de luminosidade do ser para consigo mesmo como
‘subjetividade’”137.
O ser humano, na contingência e finitude do seu ser, pergunta-se acerca do ser.
Essa pergunta pela quididade, pela essência, o conduz à pergunta sobre Deus. Ele descobre,
pois aí, que o Ser captado no infinito não é só luminosidade, mas também obscuridade. Deus
pode ou não se revelar. Deus é livre para se revelar como também o será o ser humano para
responder-lhe. Não é da natureza do humano o direito a uma revelação, tal pode se dar na
livre ação de Deus.
Se a relação da pessoa humana com Deus é conhecimento, tal não pode ocorrer, a
não ser na liberdade, posto que todo conhecimento não se dá pela posse do outro, mas sim
pelo encontro dialogal com o outro. Deus já se revelou na criação, e o humano, como ser
apetecível, o encontra nas coisas, na medida em que procura perceber o bem que há nelas.
Dessa forma, a pessoa humana já está em contato com o Luminoso. Mas ele, Deus, pode-se
reservar o direito de, na criatividade de seu ser, estabelecer uma outra forma de revelação. E,
para que tal seja possível, é necessário que o humano tenha a possibilidade de acolher essa
possível autocomunicação de Deus.
E se o humano é o ser capaz de ouvir a possível palavra de Deus que a ele pode
ser expressa, ele deve estar sempre atento à eventual palavra divina. “O humano é o ente que
em sua história deve pôr-se a ouvir a revelação histórica de Deus, possivelmente efetuada em
forma de palavra humana”138. A humanidade ouve e pode ouvir a Deus. E se uma palavra de
Deus lhe é dirigida, essa palavra pode encontrar resposta e eco no seu criatural. Nem Deus é
um Absoluto fechado em si, nem o humano um contingente desprovido da capacidade de agir.
A comunicação de Deus ressoa no ser humano como resposta ao seu mistério indecifrável e
convida a uma confiança inabalável naquele que o criou.
O humano, espírito e matéria que é, não é capaz de uma visão
beatífica/supramundana já neste mundo. Portanto, a possível revelação de Deus deve dar-se
137
138
RAHNER, L’homme, p. 88.
Ibid., p. 284-285.
46
no lugar histórico. É nele somente que a humanidade poderá conhecer, pois o conhecimento
humano será a pré-captação do infinito no finito de sua existência. A história é o espaço no
qual a palavra de Deus deve dar-se a conhecer. Tal revelação na história rompe com os
esquemas antagônicos em que Deus, o Absoluto, não se envolve com o mundo. Na história e
na “carne” é que Deus pode se comunicar. Rahner insiste para que se rompa esse antagonismo
entre o celeste e o terrestre e se descubra no mundo a palavra dada por Deus:
Se o homem é um espírito histórico face a um Deus livre, segue-se então,
que o homem é aberto a uma realização de sua potência obediencial, que
possui necessariamente como espírito, e que a revelação então não deve ser
uma krisis do humano, nem o transmundano que não pode fazer-se ‘carne’,
mas permanece somente um ‘espinho na carne’; de outra parte, segue-se que
o humano deve acolher a revelação livre de Deus como uma graça
imprevisível e gratuita, como ‘história’: isso não como antinatural, mas sim
como sobrenatural139.
É, na materialidade do seu ser, que o humano pode conhecer o espiritual de sua
essência. Enquanto unidade de matéria e espírito, o humano descobre em si algo de
semelhante a Deus, que permite ao primeiro conhecer o Outro. A posição de Rahner é a de um
conhecimento não a partir de categorias externas ao próprio humano, mas sim a partir deste.
Rompendo com uma tradição teológica que apresentava a graça como algo que
poderia ser ou não dado à humanidade e intrinsecamente ligado à dimensão do pecado,
Rahner, reatando com os primeiros Santos Padres, propõe que toda a história é em si marcada
pela graça, sendo uma realidade permanente do humano, e não um adicional divino que pode
lhe ser acrescentado. A graça é sobrenatural, pois não é algo que o humano adquiriu por suas
próprias forças; ao contrário, é presente gratuito de Deus, que ao criar toda pessoa a constitui
partícipe de seu ser. Essa graça acompanha o ser humano no desenvolver e desenrolar de sua
história, respeitando sempre sua liberdade140.
De acordo com o pensamento de Karl Rahner, todo o humano é marcado por um
existencial sobrenatural. A história humana não concorre com Deus, mas para ele. O ser
humano não é um pecador em sua natureza, em quem se acrescentou a graça; ele é, sim, o
portador de uma graça original que lhe possibilita estar aberto ao seu Criador e a ele, na
liberdade, responder com amor. Liberdade que Deus também respeitou, ao permitir a
desobediência. É a desobediência que, enquanto realidade vivida, mesmo sendo recusa a
Deus, leva o humano a defrontar-se com o destino último de sua existência e das
RAHNER, L’homme, p. 307-308.
Cf. RAHNER, Karl. O homem e a graça. São Paulo: Paulinas, 1970. – Esta obra apresenta de forma sucinta o
pensamento de Rahner sobre a graça.
139
140
47
possibilidades da grandeza de seu ser141. Sendo assim, mesmo passando pelo pecado, a pessoa
humana continua no influxo da graça.
O tema da encarnação é tido, por Rahner, como premente para uma teologia que
queira dialogar com o mundo e a cultura modernos; pois, para ele, parte da estranheza diante
do mistério da encarnação deve-se às formulações metafísicas do enunciado religioso142. Para
uma teologia transcendental, marcada por uma antropologia também assim adjetivada, o lugar
da encarnação é justamente o eixo no qual se articula a consolidação de uma inusitada
experiência de Deus, que é nova, tanto para o humano como para o próprio Deus, que
desejou-se e fez-se humano. Nas palavras de Rahner: “A cristologia é fim e princípio da
antropologia e esta, na sua realização mais radical – a cristologia – é eternamente teologia”143.
4.2 – Cristologia existencial e encarnação a partir da leitura de Jo 1,14a
Tudo o que foi mencionado acerca da antropologia transcendental refere-se
diretamente à interpretação feita por Rahner do mistério da encarnação e, particularmente, de
Jo 1,14a. Chega-se agora ao ponto em que se faz necessário perceber como esse teólogo,
embora não sendo exegeta, aplica à pessoa de Cristo os elementos compreendidos como
característicos do humano.
Rahner lê o v. 14a do Prólogo joanino a partir de uma visão do humano
intensamente agraciado. “O Verbo se faz carne” dessa “carne” da qual é constituída a
humanidade, que vive num existencial sobrenatural. Rahner temia um cristianismo com
feições mitológicas. Sua preocupação, no que diz respeito ao mistério da encarnação, foi a de
assegurar que a proposição feita em Calcedônia144, enquanto formulação dogmática, fosse
assimilada como realidade tangível que implica todo o humano num processo de renovação da
compreensão de si mesmo e de Deus.
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 233. – Em hipótese alguma, Rahner faz uma apologia do pecado,
mas afirma que essa realidade de recusa a Deus, caminho na direção falsa, não pode ser uma absurdidade.
Também o pecado vivido pode ter um elemento positivo e ser considerado como parte autêntica da realização do
humano, na medida em que ali se exerce a liberdade e cada ser impregna naquela realidade sua própria marca
pessoal. Em outro escrito, Rahner situa a realidade da concupiscência no âmbito da liberdade e termina por
afirmar: “Nem no bem, nem no mal, o homem jamais se possui totalmente”. – Outra referência sobre o mesmo
tema: RAHNER, O homem e a graça, p. 165.
142
Cf. RAHNER, O homem e a graça, p. 88.
143
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 78.
144
Cf. WEGER, K-H. Karl Rahner: Uma introdução ao seu pensamento teológico. São Paulo: Loyola, 1981.
p. 155. – Recorda Weger que, para Rahner, Calcedônia não pode significar o fim, mas, antes, a reivindicação de
um novo começo.
141
48
Como a formulação de Calcedônia, cunhada em parte sobre a base do Prólogo,
pode ser compreendida como mitológica? Para Rahner, a humanidade, marcada pelo
pluralismo e com acentos de secularização, ao ouvir o dogma da encarnação, não capta a
verdade nele apresentada, embora consiga até mesmo repeti-la. Todo o esforço do discurso
teológico esbarra na mentalidade moderna, com uma crítica que não consegue compreender o
afirmado a não ser como um mito. Tal compreensão de Rahner, à primeira vista estranha, fica
bem-elucidada numa comparação apresentada por ele:
Olhemos friamente a situação espiritual tal qual é em nossos dias: um
homem de hoje, sem educação cristã, ouve dizer: ‘Jesus é Deus feito
homem’; ele rejeitará de saída esta declaração porque, para ele, se refere a
um mito, que, a priori, não poderia ser tomado a sério nem discutido; e é
também o que fazemos nós quando ouvimos que o Dalai Lama se tem por
reencarnação de Buda145.
Num tempo em que os mitos são radicalmente rejeitados, o perigo de uma
afirmação cristológica ser tida como mitológica significa, na prática, a negação da fé. Importa
pois, segundo Rahner, formar uma cristologia que não fale de Deus a partir do alto, mas sim a
partir do humano; uma cristologia antropológica é a única que pode ser validamente aceita,
tanto pelo mundo moderno quanto por uma teologia que com ele queira dialogar e permanecer
fiel aos enunciados do passado.
Na compreensão de Rahner, que facilmente pode-se comprovar, as verdades da fé,
embora perfeitamente colocadas em conceitos ortodoxos, não adentraram ao catecismo do
coração dos cristãos, permanecendo apenas no catecismo impresso146. Muito do que se vive
em matéria de cristianismo revela grande distância em relação às formulações e avanços
teológicos e exegéticos.
Nesse contexto, há, sem dúvida, uma constatação de certo monofisismo cristão147,
que, de acordo com Rahner, se expressa numa incompreensão da verdade mais plena de
alegria afirmada no Evangelho. A verdade é repetida até mecanicamente, o enunciado é
decorado; no entanto, o seu significado e sua implicação para a pessoa humana nos diversos
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 33. – Ainda sobre o tema da possível compreensão da fé, pelo homem
moderno, como mitologização: WEGER, op. cit., p.155s.
146
Cf. Ibid., p. 136-137.
147
Cf. GONZÁLEZ FAUS, J. I. Acesso a Jesus: ensaio de teologia narrativa. São Paulo: Loyola, 1981, p. 9.
– Sobre o tema do “monofisismo recente” interpretado por Rahner, González Faus afirma que: “Karl Rahner
disse, em mais de uma ocasião, que nas cabeças de quase todos os cristãos havia uma espécie de ‘monofisismo
latente’. Isso significa que a maioria dos cristãos, lá no fundo de seu coração, não chega a conceber Jesus como
um homem autêntico. Talvez lhe atribuam um autêntico corpo de humano, mas não uma autêntica psicologia e
uma autêntica vida de homem. [...] Pois isso é exatamente monofisismo: crer que Jesus, para ser verdadeiramente
Deus, tinha de ser um pouco mais ou um pouco menos homem do que somos nós e, portanto, crer que Deus só
pode ser totalmente Deus se o homem for menos homem”.
145
49
contextos em que se encontra não são percebidos. Os cristãos dizem “a Palavra se fez carne”,
porém permanecem numa desconfiança em relação ao humano e a tudo que a ele está
relacionado. Numa reflexão sobre o Natal, pronuncia-se Rahner sobre tal monofisismo:
Deus se fez homem. Ah! Com que facilidade o dizemos, e com que facilidade
(ainda depois de termos entrado na exatidão das fórmulas ortodoxas) o
entendemos de maneira monofisista ou nestoriana (e não só os ascéticos e os
‘desmitologizados’). Demasiado facilmente concebemos o homem que Deus
se fez (Deus é nessa proposição sujeito e não predicado) como uma espécie de
disfarce, como uma roupa do ‘bom Deus’, de maneira que Deus, no fundo,
permanece sendo Deus, e não se sabe exatamente se ele (e não só seu signo)
está realmente aqui, onde nós estamos148 .
O risco de diluir a verdade da fé neotestamentária e transformar o Cristo num
“simulacro de humano” é imenso e perceptível. Já o era no passado e ainda assim permanece.
Rahner entende o conceito “carne” do Prólogo como sinônimo de humano. Afirma que Jesus
é um humano como todas as pessoas que pertencem a essa condição. Ele não se passou por
humano. Ele o foi em totalidade. E o fato de ser humano não diz algo novo apenas em relação
ao humano, mas também, e acima de tudo, sobre Deus. Pelo fato de tornar-se “carne”,
humano, Jesus não deixa sua divindade, mas tão pouco tem sua humanidade meramente como
um acréscimo circunstancial à sua pessoa149.
Jesus é a epifania de Deus que revela o sentido de toda antropologia. Cristo é a
experiência humana levada à plenitude, assumida até as suas últimas conseqüências,
iluminadora de todos os momentos do humano, do seu surgir ao seu findar. Dessa forma, a
cristologia transcendental impulsiona todo ser humano a mirar-se na pessoa do Deus humano
Jesus. Nele todas as dúvidas do humano são dissipadas e o mistério da humanidade abre-se
numa amplidão de plena comunhão com o Mistério.
Jesus pode ser colocado como referencial justamente porque é realização plena do
humano e é aquele que comunga com a humanidade por sua entrada na condição histórica,
espaço-temporal. É um como os outros. Sua diferença é a plenitude demonstrada a que todo
cristão vê-se nele convidado. Diferença não no que diz respeito à graça, posto que toda a
humanidade é marcada pela capacidade de ouvir uma possível revelação de Deus em palavra
humana.
A diferença se dá no fato de que o elemento igual entre Jesus e a humanidade, ou
seja, sua condição humana é nele – em Jesus – seu próprio modo de ser e dizer a palavra do
RAHNER, Karl. “Sobre la teologia dela celebraccion de la navidad” In: Escritos de Teologia. Madrid:
Taurus, 1961. v. III, p. 40. – Também: RAHNER, Teologia e antropologia, p. 80; 123.
149
Cf. RAHNER, Karl. Graça divina em abismos humanos. São Paulo: Herder, 1968. p. 22.
148
50
Pai; enquanto que no restante da humanidade é algo que não se pertence a si mesmo150. Numa
síntese de Rahner: “Todos os demais estamos mais longe de Deus, porque sempre pensamos
que nos entendemos sozinhos. Ele, contudo, sabia que somente o Pai conhece seu mistério,
concluindo daí que só ele conhece o Pai”151.
Em Jesus, Deus diz a última palavra sobre si e sobre o humano. Todo ser humano
é marcado pela graça, mas, na pessoa de Jesus, o próprio Deus vem tocar a “carne” da
humanidade de uma vez por todas, de modo irrevogável e irreversível. E fazendo de sua
natureza humana algo que lhe é próprio, torna-se para a humanidade, ele mesmo em si, um
dom, a realização da promessa de salvação. Ele vem ao encontro e, em Jesus, Deus se oferta a
toda humanidade.
Rahner quer evitar também que sua cristologia existencial seja interpretada, no
que se refere ao Cristo pleno, como uma recusa ao humano na sua finitude. Tal interpretação
poderia surgir em função da tradicional colocação do problema da relação entre Deus e o
humano a partir da idéia de distância e proximidade. Cristo é a possibilidade que a
humanidade tem de ouvir Deus na “carne”. Ela é assumida e não pode ser tida como um
estorvo a Deus, mas sim como a condictio sine qua non da comunicação de Deus na história
por uma palavra direta ao humano. Assim diz Rahner:
Cristo é o humano na sua máxima radicalidade, e sua humanidade é a mais
autônoma e a mais livre, não apesar mas porque é a humanidade que foi
estabelecida ao ser assumida, foi estabelecida como auto-expressão de
Deus152.
Comentando o v. 14a do Prólogo, ao referir-se à palavra “homem”, Rahner
considera o que o texto denomina “carne”. Deus escolhe tal condição exatamente porque
corresponde ao seu único e imutável desejo em relação ao ser humano: dar-se a conhecer. Na
feliz aventura do Deus, desejoso por comunicar-se, a encarnação é o ato maior do amor
comunicador. A encarnação não é uma resposta de Deus ao pecado da humanidade, como se
Deus precisasse encarnar-se porque o humano seria um ensaio que fracassou. Tanto a criação
quanto a encarnação fazem parte de um mesmo desejo divino. São dois momentos ou fases
em que Deus se exterioriza a si mesmo e se mostra naquilo que lhe é diferente153.
A encarnação é o acolhimento, assimilação, da parte de Deus, daquilo que é
próprio da criatura. É Deus infinito entrando nas estreitezas da humanidade. É o tomar a si o
150
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 77.
Ibid., p. 70-71.
152
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 270.
153
Cf. RAHNER, Teologia e antropologia, p. 114.
151
51
que sempre lhe pertenceu, não como objeto, mas como realidade imprescindível de uma
comunicação em que o ser todo do Cristo é a palavra dita ao humano ouvinte:
O dogma cristão da encarnação deverá, portanto, expressar o seguinte: Cristo
é verdadeiramente humano com tudo o que isto comporta, com sua finitude,
mundanidade, materialidade e com a sua participação na história deste nosso
cosmos na dimensão do espírito e da liberdade, na história que atravessa a
porta estreita da morte154.
Essa cristologia a partir de baixo radicaliza o valor da “carne” de Jesus. Ela não é
um adendo assumido; mas reiterando, ela é a realidade irrecusável na qual se opera a
comunicação divina. “Jesus-carne” é o ser humano que experimenta em si o ser aberto a Deus,
ao mesmo tempo, que o comunica pelo todo de seu ser. Essa afirmação faz-se importante,
porque, na abertura de seu ser, o Cristo, como todo ser humano (existencial sobrenatural),
passa constantemente pelo discernir cada ato a partir da referência última, que é a sua absoluta
confiança no Pai. Na pessoa de Jesus, Deus revela-se na e para a dignidade da “carne”:
Este humano é precisamente enquanto humano a auto-expressão de Deus
como expressão de si para fora de si, pois Deus expressa-se a si
precisamente quando se exterioriza, dá-se a conhecer a si mesmo como
Amor, quando esconde a majestade deste Amor e se mostra na ordinariedade
do humano155.
Ao tratar da “ressurreição da carne”, Rahner define o conceito de “carne” da
seguinte forma: “Carne significa o homem todo, em sua realidade corpórea”156. Bastante
curioso que, enquanto o ser humano procura negar sua humanidade, buscando
esquizofrenicamente assemelhar-se ao Deus das alturas, o próprio Deus escolhe ser o mais
semelhante a ela, escolhe ser humano, tornar-se humano, desenvolver-se humano numa
história. Rahner finaliza sua reflexão sobre a “ressurreição da carne” dizendo: “O que Deus
criou e foi assumido por Cristo e glorificado com sua morte e ressurreição terá também em
nós sua realização definitiva”157.
Em “Jesus-carne”, a humanidade é colocada no lugar mais excelente. O Verbo
fez-se carne-humano significa, pois, que quando Deus quis revelar-se não-deus, o humano
tornou-se justamente, além de auto-expressão de sua comunicação amorosa, participante do
mistério indecifrável da divindade. É, por assim dizer, a deificação ou divinização do humano.
E se tudo o que Deus faz é eterno, Deus mesmo é humano para todo o sempre. O Deus-amor é
154
RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 237.
Ibid., p. 267.
156
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 146.
157
Ibid., p. 153.
155
52
o Deus-homem, que mostra à humanidade que a única forma de se reencontrar é permitindose mergulhar no mistério de seu ser.
“Jesus-carne” é o mediador para a humanidade achegar-se a Deus. O ser do
cristão define-se justamente pelo passar pela humanidade de Jesus, e aceitá-la significa pôr-se
num processo em que tudo está marcado pela presença de Deus. O finito vê-se contemplado
no infinito; o pequeno participando substancialmente do grande. Os dois sujeitos do diálogo
na liberdade, Deus e a humanidade, encontram em “Jesus-carne” o elo eterno de comunicação
do amor. “O fato de que Deus mesmo seja homem é o cume e a causa última da relação de
Deus com sua criação. Nessa relação Deus e a criatura crescem na mesma medida (e não de
maneira inversa)”158.
A conclusão a que se chega é que, na “carne” de Jesus, o ser humano descobre-se
mais do que realmente pensava sobre si. Os limites que se impunham pela condição humana
foram transformados em potencialização de viva esperança contra todo pessimismo sobre o
humano. Numa reflexão sobre o Ano Novo e suas intrínsecas expectativas, convidando os
cristãos a terem em si uma amabilidade de coração, Rahner diz:
O próprio Deus experimentou com um coração assim e nos disse que era
possível. A sua experiência é mais decisiva e fidedigna do que a nossa: nós
podemos ser melhores do que julgamos. É possível fazer mais do que
suspeitamos. Nunca nos engrandecemos demais, se ao próprio Cristo
aprouve engrandecer-se em nós. Somos mais do que podemos imaginar159.
Rahner atribui uma extrema positividade em relação à vida humana e uma
esperança inabalável na entrega do ser a Deus. E, com o fato da “carne” ser assumida por
Jesus, tal confiança transforma-se no humano em direito adquirido de nunca querer ser menos
do que um irmão do Verbo eterno feito carne160. “Deus fez o mundo e o homem melhores do
que ordinariamente pensamos”161.
Para Rahner, a “carne” é elemento essencial que, no bojo do mundo, permite a
comunicação de Deus na história. “Jesus-carne” é o início e a consumação de tudo o que o ser
humano é chamado a ser. Na “carne” de Jesus, a humanidade pode desabafar o seu ser na
certeza de que Deus não é um mero espectador de sua história, mas sim um agente que, na
entrega total de si, aponta para a capacidade humana de amar e no amor realizar-se em sua
vocação transcendental. O destino do humano não é um andar em círculos sobre si mesmo,
158
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 54.
RAHNER, Graça divina em abismos humanos, p. 27-28.
160
Cf. Ibid., p. 27.
161
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 223.
159
53
mas sim um direcionar-se para aquele que, vencendo a morte, inaugura, de uma vez por todas,
o “novo céu, a nova terra” (cf. Ap 21,1a).
Rahner convida ao silêncio em que Deus pode se manifestar. Silêncio este
marcado pela densidade da abertura do humano, que transcende a si mesmo e escuta o
Criador. Ciente de que o mistério será sempre um convite ao abandonar-se confiantemente no
colo do Pai, Rahner sabe que não tem uma palavra final, mas que tem um convite à
participação naquele que abriu para a humanidade a total comunhão pela “carne”:
Mas, quando a nostalgia da absoluta proximidade de Deus que,
incompreensível em si, é a única realidade que tudo faz suportável, põe-se a
contemplar onde se personificou tal proximidade, não nos postulados do
espírito, mas na carne e nas choupanas da terra, então não se pode encontrar
outro lugar que não seja em Jesus de Nazaré. Sobre ele a estrela de Deus se
detém. Ele é a única pessoa diante da qual a gente se sente animado para
dobrar os joelhos e rezar chorando de alegria: e o Verbo se fez carne e
habitou entre nós162.
Conclusão
O caminho percorrido neste capítulo teve por objetivo aproximar algumas
interpretações do conceito “carne”. Para tanto, foram buscadas representações que captassem,
mesmo que parcialmente, o pensamento de uma época, ou melhor, de uma determinada
teologia.
Por um lado, viu-se um Ireneu com as prerrogativas da “carne”, numa visão
explicitamente valorizadora da condição humana; por outro, um Agostinho que, influenciado
pelo seu contexto, postula uma desconfiança em relação à “carne” – tida como inferior à alma
– embora acredite na plena realização da iluminação do ser humano pelo Verbo encarnado.
Duas visões patrísticas que, longe de serem simplesmente antagônicas, mostram o complexo
da verdade cristã afirmada em Jo 1,14a. Em ambos, o dito versículo foi interpretado, no que
concerne à “carne”, como visibilidade do Deus absoluto, inacessível de outra maneira, senão a
vivida por “Jesus-carne”.
Tomás de Aquino, ao lançar luzes sobre a unidade indissociável de corpo e alma,
matéria e espírito, compreende “carne” como o lugar da visibilidade de Deus e elemento que a
permite, bem como por onde se alcança o acesso a Deus. As formulações de Tomás,
162
RAHNER, Teologia e antropologia, p. 83-84 [grifo do autor].
54
extremamente coerentes com toda a Tradição, permaneceram no nível de uma metafísica, e
deram o devido lugar para a humanidade do Verbo e para a realidade da “carne”. Porém, seu
desejo de realçar a busca da visão beatífica ficou marcado por certa tendência de que somente
a “carne ressuscitada” alcançasse pleno valor.
Rahner, por sua vez, ao inverter o ponto de partida: falar de Deus não a partir dele,
que é o objeto inacessível de estudo da teologia, mas sim a partir de Jesus de Nazaré e da
condição humana como tal; construiu toda uma cristologia ascendente, em que o
conhecimento de Deus só é dado na “carne”. A postura de Rahner, sem ferir em nada o dogma
da encarnação, confere ao “Jesus-carne” a primazia de auto-expressão de Deus ao humano. E,
por ele, o pleno acesso ao Deus Absoluto, não nas alturas, mas na finitude do contingente
eterno do Filho encarnado. A dimensão do mistério afasta toda e qualquer pretensão de
solução e concede ao humano um lugar nunca dito.
Em síntese, a interpretação do conceito de “carne” foi sempre caracterizada por
elementos explícitos ou implícitos de seu período; foi sempre diferenciada, sem ser
automaticamente oposta a outros pensamentos e interpretações. Tal marca assinala o quanto
que a palavra do evangelho consegue com sua polissemia guardar o mistério e fazer saltar aos
olhos uma nova palavra, dada na limitação do humano. Após essas incursões interpretativas,
cabe, agora, analisar o termo “carne” no interior mesmo da Sagrada Escritura, explicitando
como tal conceito é apresentado no judaísmo, no helenismo-cristão e no contexto mesmo do
Evangelho segundo João.
CAPÍTULO II: “JESUS-CARNE” EM Jo 1,14a
Após apresentar o status quaestionis do termo “carne” citado em João,
procuraremos agora estudar como o mesmo é tratado nas Escrituras judaicas e cristãs. Numa
primeira seção, faz-se a análise da palavra “carne” no AT. As expressões hebraicas rf'B'
(bāśār) e raev.. (sheēr) denotam a realidade humana na sua complexidade. A compreensão
dos vocábulos em seu universo de significação tem por finalidade evidenciar quais seriam,
originalmente, os sentidos a eles atribuídos e que podem ter influenciado na compreensão do
termo “carne” em Jo 1,14a. Mostraremos, ainda, como os vocábulos hebraicos rf'B' e raev..
foram assimilados com grande liberdade no universo grego pela LXX.
Na segunda parte do capítulo, para depois relevar melhor o sentido joanino,
contemplaremos o vocábulo no Corpus Paulinum. Três tarefas foram realizadas: uma de
minimamente propor como Paulo compreendia o termo sa,rx
(sárx); a outra de
exemplificar e refletir sobre duas passagens em que Paulo menciona o termo sa,rx como
referência à pessoa de Jesus; a terceira, uma breve exposição sobre o antagonismo “carne” e
“espírito”, “viver segundo a carne” e “viver segundo o Espírito”.
A terceira parte do capítulo detém-se no v. 14a do Prólogo Joanino e procura
sondar o significado de sa,rx a partir de um estudo do termo em si, da sua significação no
conjunto do v. e na associação com outras ocorrências que se referem a Jesus (Jo 6).
Acreditamos que João compreende a realidade do termo sa,rx de maneira muito próxima
do AT e sem considerações pejorativas. As outras passagens nas quais o vocábulo ocorre e
que não se referem a Jesus também foram analisadas e servem como elemento comparativo.
Na continuidade da pesquisa sobre sa,rx no v. 14a, fizemos uma aproximação
do vocábulo com o termo “humano” mencionado algumas vezes como identificador de Jesus.
56
Juntamente com essa reflexão, procuramos ressaltar o quanto a leitura simplista que frisa a
humanidade de Jesus a partir de algumas ações (comer, beber, cansar-se, chorar, sofrer etc.)
negligencia o aspecto mais ressaltado no texto, que é o de uma resistência à divindade de
Jesus. João preocupa-se com a questão da humanidade, mas não parece fazer isso por sentir
ameaças da parte dos que pregavam apenas a divindade. Propomos, ainda, nessa terceira
parte, uma análise da teologia do envio em João e da contribuição que a afirmação de Jo
1,14a oferece para a pesquisa do Jesus histórico.
Na última parte deste capítulo, são verificadas as ocorrências do termo “carne” nas
Epístolas de João. Das três menções, duas falam do Cristo. Há de se comprovar nessas duas
menções que o termo “carne” parece ser um elemento fundamental da doutrina a ser
anunciada e confessada pela comunidade cristã. Além de princípio cristológico, o afirmar
“Jesus-carne” explicita uma incidência na ética cristã.
Não tivemos aqui a pretensão de abarcar todas as ocorrências do termo “carne” nas
Escrituras. Não abordamos as menções do termo nos sinópticos, em outras Cartas Católicas
nem no Apocalipse; contudo acreditamos que as passagens analisadas serão suficientes para a
elaboração do significado de “carne” em Jo 1,14a.
1 – O termo “carne” no Antigo Testamento
Nesta
primeira
seção
vamos
analisar
o
termo
“carne”
no
contexto
veterotestamentário, pois há uma grande incidência da compreensão judaica do vocábulo no
pensamento joanino.
No que diz respeito a este momento da pesquisa, pode-se afirmar que o contexto
amplo é todo o AT, enquanto formulação escrita de uma palavra revelada em linguagem
humana, no contexto histórico e comunitário de um povo, ao qual se pode ter acesso parcial
pela leitura da Tanak. Já o contexto imediato é a relação mais próxima do termo analisado no
conjunto que o circunscreve, ou seja, sua densidade semântica e teológica na relação com a
perícope ou versículo em particular em que se localiza.
No AT, embora se encontrem somente as expressões rf'B' e raev.., há uma
diversidade de significados para o vocábulo “carne”, alternando sempre suas implicações com
57
o ser humano e com os animais, portanto usado exclusivamente como referência à criatura,
posto que “carne” não é utilizado para se referir a divindade1.
1.1 –
rf'B'
1.1.1 – Sentido genérico de rf'B'
De acordo com Baumgärtel2, a etimologia de rf'B' liga-se a três grupos
lingüísticos, a saber: a) Árabe: basǎr, no seu sentido mais primitivo, significa pele, e, em
sentido amplo, designa o(s) homem(ns), o gênero humano; b) Acádico: bišru significa carne
e sangue; c) Ugarítico: bšr significa carne.
Segundo Oswalt3, há no texto hebraico do AT 273 ocorrências do vocábulo rf'B',
sendo que 153 apresentam-se na Torah. Daniel Lys4 complementa essa informação ao
precisar que 270 ocorrências estão em hebraico e as demais em aramaico. Hans Wolff5 ainda
afirma que 104 das 273 ocorrências de rf'B' referem-se a animais.
Enquanto designação de “carne”, ou seja, componente físico, composto de órgãos,
músculos, vísceras etc., rf'B' relaciona-se a dois pólos: o animal e o humano, exprimindo
aquilo que é comum aos dois. O sentido mais restrito do termo abre-se também, como é bem
próprio do vocabulário hebraico, para outras significações, como se verá a seguir.
1.1.2 –
rf'B' – “carne animal” para alimentação
Na vinculação ao mundo animal, rf'B' está, quase sempre, relacionado com
alimentação e práticas sacrificais, bem como a questões de pureza ou impureza. Em Ez 4,14,
ocorre a expressão lWGPi rf;B., que significa “carne abominável”. O profeta Ezequiel, por
meio de uma ação simbólica, propõe um diálogo com Deus. O contexto (todo o cap. 4 e o 5)
Cf. JÓZEFCZUK, Matias. “Conduzi-vos pelo Espírito” (Gl 5,16): Ética cristã em Gálatas. Belo Horizonte:
CES, 1999. Dissertação de Mestrado. p. 32.
2
Cf. BAUMGÄRTEL, Friedrich. Flesh in the Old Testament. In: TDNT, p. 105.
3
Cf. OSWALT, John N. rf'B'. Bāśār. Carne (r. pele, parente, corpo). In: DITAT, p. 227.
4
Cf. LYS, Daniel. L´arrière-plan et les Connotations vétérotestamentaires de sarx et de soma. Vetus
Testamentum, Leiden, v. 36, n. 2, p. 170, abr./jun. 1986 (apud JÓZEFCZUK, op.cit., p. 32).
5
Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,1975. p. 43.
1
58
fala do cerco a Jerusalém e do desespero causado pela fome e sede, ocasionando a tomada de
alimentos de forma indiscriminada, contrariando a Lei e perdendo-se a distinção entre sagrado
e profano6. O comer “carne abominável” é, nesse caso, a confirmação da falta de
discernimento do povo, um indício de sua decadência religiosa. Acerca do uso do termo em
Ez 4,14, John Taylor faz o seguinte comentário:
Os dois tipos de carne imunda mencionados no v.14, o animal morto de si
mesmo e a carne do animal dilacerado pelas feras, eram proibidos porque o
sangue não poderia ter sido drenado corretamente (ver Lv 17,11ss;
Dt 12,16). Os regulamentos acham-se em Êxodo 22,31; Lv 22,8 e Dt 14,21.
A carne abominável (hebraico: Piggûl) refere-se, em Lv, à carne sacrificada
que se tornou imunda por causa de ter sido conservada por três dias sem ser
comida (Lv 7,18; 19,7), mas em Is 65,4 é usada em paralelo com a carne de
porco, como sendo alguma coisa inerentemente imunda7.
Oposta à “carne abominável”, em Jr 11,15, encontra-se vd<qo-rf;b., “carne
sagrada”, oferecida em sacrifício. O animal oferecido em um “sacrifício de comunhão”8 era
posteriormente consumido; tendo, além do aspecto religioso, uma conotação de banquete com
comida santa. O oferente que retornava ao seu clã, levando parte do sacrifício, propiciava aos
seus familiares e convidados uma participação (comunhão) no que foi oferecido.
Como os animais têm “carne”, o texto hebraico, algumas vezes, refere-se a eles,
como se percebe, simplesmente como “carne”, suprimindo a especificação do animal.
1.1.3 – rf'B' – “carne” do ser humano
No que se refere ao ser humano, o vocábulo é utilizado, por vezes, como sinônimo
de pele ou relacionado a ela. A forma composta Arf'B.-rA[ mencionada em Lv 13,2ss
significa “pele de carne” e o texto retrata o exame para diagnóstico da lepra. Nesse mesmo
capítulo do livro do Levítico, apresenta-se a forma composta
yx; rf'B' que pode ser
traduzida como “carne viva”. A prescrição do Lv objetiva, além do diagnóstico da doença,
6
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis; SICRE DIAZ, José Luís. Profetas. São Paulo: Paulinas, 1991. v. II, p. 716.
TAYLOR, John B. Ezequiel. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 78 [grifo do autor]. – Ao associar Ez 4,14 a
Is 65,4 (“Que habita entre as sepulturas e passa as noites junto aos lugares secretos; come carne de porco e tem
caldo de coisas abomináveis nos seus vasos.”), Taylor demonstra bem o peso que a expressão adquire e como
também se vincula aos contatos de judeus com práticas estrangeiras que demonstram a degradação religiosa.
8
Cf. MONLOUBOU, L. O Antigo Testamento à mesa. In: MARCHADOUR, Alain et al. A eucaristia na Bíblia.
2. ed. São Paulo: Paulus, 1985. p. 12-13. – Monloubou afirma que o “sacrifício de comunhão” tem por
característica, além da imolação da vítima, a partilha das partes do sacrifício entre Deus (parte queimada sobre o
altar), o sacerdote e o oferente. – Também: VAUX, Roland de. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São
Paulo: Teológica, 2003. p. 455-456. Roland de Vaux também comenta esse “sacrifício de comunhão”, mostrando
suas variações de forma e matéria, mas sempre tendo como marca o fato de se consumir em família parte do que
foi oferecido.
7
59
também determinar a condição de puro ou impuro9. Essa “carne viva” pode ser também
qualificada como uma anomalia que, quando notada, terá suas implicações religiosas. Assim,
o significado do termo ultrapassa o sentido estrito.
Outro aspecto peculiar é que, em algumas situações, as ocorrências de rf'B' estão
vinculadas à prática da circuncisão. Em Gn 17,11s, diz-se tol;r>[' rf;B., ou seja, a “carne da
incircuncisão”; esta, quando retirada, permite ao homem expressar sua pertença a Deus 10. O
elemento novo aqui é justamente o fato de que a incisão na “carne”, pele, ganha uma
dimensão de relação com Deus, pois é nela que se estabelece uma vinculação ao sagrado.
Também em Lv 12,3, aparece o vocábulo “carne” relacionado à circuncisão. Ainda em
Ez 44,7.9, há uma associação de “incircuncisão da carne” como evidência de “incircuncisão
do coração” (rf'B' lr,[, // ble lr,[,)11; dessa forma, o não ser marcado na “carne” revela
também a distância do ser humano em relação a Deus.
Alguns paralelismos de rf'B' com outros membros do corpo ampliam o sentido
primeiro do vocábulo, dando a idéia de completude, de totalidade, de integração. Ilustram
bem esse tipo de ampliação os paralelos de rf'B' com ~c,[, (ossos): Gn 2,2312; Sl 38,4; Jó
2,5; 33,21; Lm 3,4; Pr 14,30. Com esses paralelos o autor bíblico objetiva compreender e
afirmar a totalidade da pessoa. No exemplo abaixo, a totalidade é expressa pelos componentes
“carne” e “ossos” e concorda com a expressão “não existe”, que também marca totalidade.
Além disso, há uma correlação nas causas: “teu furor”// “meu pecado”13.
Ex.: Sl 38,4
yrIf'b.Bi ~tom.!yae
9
Não há parte ilesa em minha carne
Cf. BROWNE, Stanley George. Lepra na Bíblia: estigma e realidade. Viçosa, MG: Ultimato, 2003. p. 24.
Cf. KIDNER, Derek. Gênesis: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1991. p. 121. – Kidner
comenta que “a circuncisão mesma era largamente praticada no Oriente Próximo. Os filisteus do oeste eram
considerados estranhos por não praticá-la. A característica nova era seu novo significado – assinalar o limiar, não
da virilidade (como os árabes modernos), mas da aliança; daí sua precoce ministração (v.12)”.
11
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 873. – Os autores comentam que a menção a
circuncisão em Ez 44,7.9 está intimamente ligada ao exclusivismo moral e religioso do resto de Israel. Ao tratar
da incircuncisão, o profeta exclui os estrangeiros e reafirma a identidade de seu povo.
12
Cf. ADINOLFI, Marco. L’uomo e la donna in Gen 1-3. In: GENNARO, G. de (cura). L’antropologia bíblica.
Napoli: Dehoniane, 1981. p. 108-109. – Em Gn 2,23, segundo Adinolfi, o autor afirma a relação de parentela
existente entre Adão e Eva, pois os dois formam uma só carne, ou ainda uma extensão de seu ser. – Também:
LOSS, Nicolo M. La dottrina antropológica di Genesi 1-11. In: GENNARO, op.cit., p. 185. Loss interpreta a
expressão “uma só carne” de Gn 2,23 como significando “uma só pessoa”.
13
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 1-72 – Tradução, introdução e
comentário. São Paulo: Paulus, 1996. v. I, p. 549-550.
10
60
^m,[.z: ynEP.mi
por causa do teu furor;
ym;c'[]B; ~Alv'!yaee
nem há paz em meus ossos
ytiaJ''x; ynEP.mi
por causa do meu pecado.
Em determinadas passagens rf'B' significa “cadáver, corpo morto” 14. No episódio
em que se narra a maldição do filisteu Golias contra Davi (1Sm 17,44), o gigante, certo da
vitória, afirma que atirará a “carne” de Davi às aves do céu e às feras do campo. Em 2Rs 9,36,
encontra-se o comentário de Jeú ao receber a notícia de que não foi possível sepultar Jezabel.
Jeú recorda a profecia de Elias sobre Jezabel (1Rs 21,23) e diz “carne” no sentido de cadáver.
1.1.4 – rf'B'-lK' (kol- bāśār) – “toda carne”
São numerosas as citações nas quais a idéia de “toda carne” é utilizada para
significar todo ser vivente, particularmente o humano, e até mesmo a sua totalidade, enquanto
raça ou nação. Nesse sentido, Jr 25,31c apresenta rf'B'-lK' como “todos os homens” ou
“humanidade”. Em Jr 32,27, ocorre outra forma rf'B'-lK' yhel{a,, que, literalmente, seria o
“Deus de toda carne” e que quer significar o “Deus de todos os humanos”.
Em Nm 16,22; 27,16, a idéia da onipotência divina é apresentada com o acréscimo
de mais um termo. Nas duas passagens, encontra-se rf'B'-lk;'. txoWrh' yhel{a/, “Deus é o
Senhor dos espíritos de toda carne”. Reflete-se aqui a idéia do espírito insuflado no humano.
Não há uma dissociação entre “carne” e “espírito”, mas sim a afirmação de que o ser humano
é uma “carne animada”, viva, ser vivente.
Outro significado dado à expressão rf'B'-lK' é o de “população do país”, “nação”.
Em Ez 21,4.9.10, o profeta diz que Deus desembainhou sua espada contra todo mortal do Sul
ao Norte. Os pontos cardeais completam a idéia de conjunto não só geográfico, mas também
Cf. VAUX, op.cit., p. 80-86. – Roland de Vaux apresenta, de forma bastante detalhada, os cuidados com o
cadáver. Embora o tocar o cadáver fosse ato que tornava a pessoa impura (Lv 21,1-4.11; Nm 6,6; 19,11-16;
Ag 2,13), há uma preocupação com o corpo, a carne humana, por assim dizer, que sugere a importância dada à
mesma. Como a distinção entre alma e corpo é estranha à mentalidade hebraica, a morte não é compreendida
como uma separação desses elementos. O morto é considerado uma “alma morta”; assim, enquanto subsiste
parte do corpo, subsiste também parte da alma. O Antigo Testamento considera como pior maldição o deixar um
cadáver sem sepultura, permitindo que seja devorado pelos abutres e outros animais (1Rs 14,11; Jr 16,4; 22,19;
Ez 29,5). Também considera como castigo o não ser sepultado no túmulo da família (1Rs 13,21-22), o que revela
o valor da relação familiar e dos vínculos por ela estabelecidos através da “carne”.
14
61
étnico e religioso15, reforçando a idéia de totalidade.
Por fim, em Jl 3,1, rf'B'-lK' refere-se à assembléia cultual de Israel16. Numa
possível releitura de Nm 11, o profeta afirma que Deus derramará seu espírito sobre todos. O
teor da perícope é primeiramente o do contexto do próprio Israel como nação eleita, mas há
um sinal de abertura universal pela expressão “toda carne”. Será esse universalismo da
concessão do dom que permitirá à comunidade cristã utilizar o texto de Joel em At 2,17-2117.
Também no Sl 65,3 está presente a idéia de coletividade religiosa aberta à universalidade.
1.1.5 – rf'B' – relação de parentesco
Aparecem também algumas expressões nas quais rf'B' explicita o tipo de relação
de uma pessoa para com outra. Ser “carne da mesma carne” (yrIf'B.mi rf'B'), como se
encontra em Gn 2,23, estabelece vínculo e serve como elemento de identificação no contexto
do clã. Expressa ainda a idéia de participar da mesma condição, ou seja, ser da “mesma
carne”, da mesma finitude.
Quando o texto hebraico quer reforçar ainda mais um grau de parentesco adiciona
o termo sangue a rf'B'. Assim, os dois elementos asseguram o composto humano, a finitude e
a vitalidade da pessoa como o que é semelhante a outro. É o caso da expressão “do meu
sangue e da minha carne” (yrif'b.W ymic.[;) ou “é nossa carne e nosso sangue” (Wnref'B.
Wnyxia') que podem ser encontradas em: Gn 29,14; 37,27; 2 Sm 5,1; 19,13s; Jz 9,2; 1Cr
11,118. Numa sociedade como a israelita, as genealogias têm papel fundamental para a
identificação da pessoa e sua participação na história do povo. A menção aos pais, à “carne” e
ao “sangue” de origem, seja no sentido imediato, seja na vinculação mais remota, permite a
integração social e a identidade religiosa.
15
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 781.
Cf. CANIZZO, Antonio. The corporate personality. In: GENNARO, op.cit., p. 601. – Antonio Cannizzo
afirma que é comum na Bíblia uma identificação do indivíduo com o grupo, de tal forma que passa a existir uma
personalidade corporativa. Não há uma disputa de existência entre o indivíduo e o grupo, pois o primeiro sentese legitimamente representado e incluído naquele espaço corporativo. O indivíduo e o grupo passam a formar
uma só realidade.
17
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 974-975.
18
Por vezes as traduções apresentam “da minha carne e dos meus ossos”.
16
62
A forma Arf'B. raev. indica um parentesco mais próximo e é usada em Lv 18,6
para a proibição do incesto19. Já em Lv 25,49, ela indica a lei do resgate. Nas duas
ocorrências, a expressão significa parentela. Se a primeira delimita e ordena a vida familiar e
sexual, a segunda ocorrência assegura, pelo menos formalmente, a defesa do parente que se
encontra escravizado.
1.1.6 – rf'B' – fragilidade e condição mortal do humano
Após a incursão pelos diversos e possíveis significados de rf'B', resta proceder à
análise de ocorrências em que significa a condição de impotência do humano, ou seja, sua
criaturalidade finita e perecível. Importa insistir que no pensamento judaico não há cisão entre
o ser da pessoa e seus componentes, nem tampouco entre os próprios componentes. A idéia é
sempre de totalidade.
Para o judaísmo, só Deus é eterno. O humano é visto como carente de domínio até
sobre seu próprio hálito, pois é Deus quem cria a pessoa e lhe concede a cada dia o existir
(Cf. Jó 27,3; Sl 104,29; 139,13). Os autores têm consciência da fragilidade humana e a
expressam como recordação de que toda vida humana ordena-se para Deus20. Em Is 40,5-721,
encontra-se a comparação da “carne”, ser humano, com a erva que não tem domínio e
segurança sobre si mesma, podendo, a qualquer momento, experimentar o termo de sua vida.
A mesma recordação apresenta-se também no Sl 78,39, que diz que o ser humano,
“o de carne”, não passa de um alento fugaz. Esse v. do Sl 78 encontra paralelos em Ecl 3,1921, que afirma que o ser humano ao perder o alento voltará ao pó, e em Gn 6,3, que menciona
que o motivo do alento de Deus não permanecer no ser humano é justamente o fato dessa
19
Cf. HARRISON, Roland K. Levítico: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1996. p. 171-172.
Segundo Harrison, as proibições apresentadas em Lv 18,6ss abordam seis graus de parentesco de
consangüinidade (vv. 7.9.10.11.12.13) e oito de afinidade (vv. 8.14.15.16.17.18); determinam, então, que a
proximidade de parentesco é um impedimento às relações sexuais.
20
Cf. MARQUES, Valdir. “EIKÓN” em Paulo: investigação teológica e bíblica à luz da LXX. Roma: PUG,
1985. Dissertatio ad Doctoratum. v. 2, p. 638. Diz Marques: “ O gênero humano não é posto no mundo criado
sem um ponto de referência: todos os demais gêneros dos seres vivos são criados ‘segundo seus gêneros’ . E o
Gênero Humano deve ser criado segundo um gênero. E tal ‘gênero’ não se encontra no mundo criado, mas no
Criador. O Gênero Humano portanto é o único gênero terrestre que na sua definição é descrito como semelhante
com um ‘gênero’ celeste, isto é, Deus e os seres que consulta”.
21
Cf. RIDDERBOS, J. Isaías. São Paulo: Vida Nova, 1995. p. 317. – A propósito de Is 40,5-7 o autor afirma:
“O profeta tece considerações a respeito da metáfora da erva, dizendo que a erva se seca e a flor murcha e cai
quando sopra sobre elas o hálito do Senhor (cf. Sl 103,16). Esta declaração é uma referência ao vento que é,
antropomorficamente, chamado de hálito do Senhor, como algures o trovão é chamado de Sua voz; e o raio, de
Sua língua (30,27). Essas figuras pretendem especialmente expressar o poder e a majestade do Deus de Israel em
contraste com a fragilidade humana”.
63
criatura ser “carne”22. A ameaça da ira divina na narrativa do dilúvio (Cf. Gn 6,13) demonstra
que essa finitude coloca o humano em condição de igualdade com os animais; porém, ao
humano ainda é possível a conversão.
O fato de ser mortal enquadra o humano entre o nascimento, em que depende do
Criador, e sua morte, em que também é dependente de Deus. Esse arco de vida, que pode ser
estendido ou reduzido, é, no espaço e no tempo, ocasião do humano perceber-se como
limitado e que seu poder jamais pode ser comparado ao de Deus. Em 2Cr 32,8, tratando da
pretensão humana de Senaquerib, o autor hebraico coloca na boca de Ezequias a profissão de
fé no poderio de Deus. Essa confiança em Deus também gera no salmista uma certeza da
impotência humana como se percebe no Sl 56,5c, no qual o termo rf'B' é sinônimo de mortal:
“Que poderia fazer-me um mortal?” (yli rf'B' hf,[]Y:-hm;)).
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. Salmos: salmos 73-150 – Tradução, introdução e
comentário. São Paulo: Paulus, 1998. v. II, p. 1013.
22
64
A “carne”, como sinônimo de ser humano, é no Sl 56 afirmação da fraqueza, da
caducidade da criatura23. Em Jr 17,5-13, são enumeradas as ilusórias confianças humanas em
contraposição à confiança no Senhor, que é a característica do profeta. No v. 5: “Assim diz o
Senhor: ‘Maldito seja quem confia num humano e busca apoio na carne, afastando do Senhor
seu coração’”. Há, como se vê, uma constante crítica à pretensão humana de confiar na sua
condição carnal, já que essa é perecível.
Quando o texto hebraico utiliza rf'B', não pretende afirmar oposição a vp<n< ;
pelo contrário, a combinação dos dois permite compreender a totalidade da existência
humana. Aos dois pode-se, ainda, acrescentar ble e x;Wr, formando não um quadrífido, mas
sim uma unidade. Alento ou espírito, coração ou mente, carne ou corpo, necessidade ou
desejo – esse aglomerado distinto apenas didaticamente, mas pensado sempre em perfeita
harmonia e jamais em oposição – é a indicação do ser humano com tudo que lhe é possível24.
Ao falar rf'B', o autor hebraico afirma o ser humano como tal, a sua existência finita, a sua
condição mortal, o seu ser perecível, sua total distinção e dependência em relação ao Criador.
1.2 – raev. (sheēr)
Segundo Gary Cohen25, tem-se apenas 16 ocorrências dessa expressão no texto
hebraico. Sua etimologia, como em rf'B', aponta para os mesmos grupos lingüísticos: a)
árabe: ta’r = sangue, a vingança de sangue. Nesse caso, estaria mais associada à “carne
sangrenta” distinta da outra mais superficial e próxima à pele; b) acádico: širu = carne; c)
ugarítico: šurt = carne26.
No sentido próprio de “carne”, raev. não é utilizada para designar a “carne”
humana, mas somente a dos animais enquanto alimento (Ex 21,10; Sl 78,20.27). Já como
designação de relação de parentesco, encontra-se raev. em Lv 18,12s; 25,49; permanecendo o
mesmo sentido apresentado no item 1.1.5. Outra forma presente em Lv 21,2 e Nm 27,11 é:
seu parente mais próximo (wyl'ae broQ'h; Araev.).
23
Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. I, p. 742.
Cf. BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo: superação de um mal-entendido. São Paulo: Loyola,
1999. p. 233-240.
24
25
26
.
Cf. COHEN, Gary G. raev . In: DITAT, p. 1508.
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p. 107.
65
Da combinação de raev. com coração no Sl 73,26, tem-se ybib'l.W yriiaev.
(minha carne e meu coração), que dá ao vocábulo uma idéia de completude. É toda a pessoa
do orante, todo o seu ser, que proclama Deus como sua única segurança.
Num sentido figurado, pode-se tomar Mq 3,3, em que se diz que o opressor come
a “carne do povo”. Nesse v. a expressão utilizada yMi[; raev. está diretamente ligada à idéia
de descarnar (~t'Amc.[;) apresentada no v. 2. Essa expressão “carne do povo”, além do
sentido figurado, mostra também a situação do grupo ameaçado. O profeta apresenta um
quadro de violência e uma imagem canibalesca da relação do povo com suas lideranças27.
Fica evidente que raev. é uma expressão que, embora designe “carne”, não é
sinônimo de existência humana na sua totalidade e caráter perecível, como é o caso de rf'B'.
Embora de menor relevância para a compreensão de “carne” em Jo 1,14a, raev. ajuda a
compreender que a referência ao humano quase sempre passa pela designação de “ser de
carne”.
1.3 – rf'B' e raev. na interpretação da LXX
O pensamento judaico articula-se de forma distinta do grego. Sendo assim, as duas
expressões hebraicas não puderam ser traduzidas para o grego por apenas duas outras
correspondentes. A LXX, enquanto obra de tradução, revela-se uma obra muito parecida ao
Targum, pois combina a tradução com um “comentário”, caracterizado pela interferência no
texto hebraico, pela modificação de termos por outros de sentido distinto do original, por
acréscimos, glosas e omissões28. A helenização dos termos rf'B' e raev. pela LXX provoca
não somente mudanças na leitura como também na eventual interpretação dos seus
significados.
Diversos são os termos utilizados pela LXX na tradução de rf'B'. Baumgärtel
enumera quatro: a) sa,rx (ocorre 145 vezes); b) kre,aj (ocorre 79 vezes); c) sw/ma
(ocorre 23 vezes); d) crw,j (ocorre 14 vezes)29. Sendo o vocabulário grego mais elaborado
27
Cf. ALONSO SCHÖKEL & SICRE DIAZ, Profetas, v. II, p. 1083.
Cf. TREBOLLE BARRERA, Julio. A Bíblia judaica e a Bíblia cristã: introdução à história da Bíblia.
Petrópolis: Vozes, 1995. p. 521.
29
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.
28
66
pode-se ainda encontrar outros vocábulos que substituíram o termo hebraico.
Em Jó 12,10, pode-se perceber a diferença na tradução de rf'B' do texto hebraico
para a LXX:
Texto hebraico:
`vyai-rf;B.-lK' x;Wrw> yx''-lK vp,n< Ady"B. rv<a:
Em sua mão está a respiração dos viventes e o espírito de toda carne do homem.
Texto da LXX:
Eiv mh. evn ceiri. auvtou/ yuch. pa,ntwn tw/n zw,ntwn kai. pneu/ma
panto.j avnqrw,pou.
Em sua mão está a alma de todo ser vivo e o espírito de todo homem.
O termo rf'B' foi totalmente absorvido por a;nqrwpoj (pessoa humana), o que
do ponto de vista da antropologia pode ser um agravante, pois parece anular a idéia de
integração da criatura, caracterizada no v. como “espírito de carne”. A formulação grega, ao
substituir o termo “carne”, consegue traduzir, na intenção, a totalidade do humano, mas,
permite também compreender a;nqrwpoj como o humano na sua existência de oposição
entre “espírito” e “carne”.
Um outro exemplo pode ser tomado de Is 58,7 e ilustra bem a alteração de rf'B'.
Nesse v. o termo ^r>f'B.mi é traduzido por spe,rmato,j. O termo hebraico abarca a
idéia de parentela, mas também sublinha a fragilidade humana comum a todos. De maneira
diversa, o termo grego, literalmente, diz “semente”, sugerindo quase que somente a idéia de
parentela e de forma bastante imediata (laços de filiação).
Ainda como amostra da tradução grega de rf'B', pode-se tomar Pr 14,30:
“Coração sossegado é vida dos corpos, a inveja é cárie dos ossos”. O texto hebraico utiliza a
expressão ~yrIf'b. yYEx; (vida dos corpos), enquanto a LXX diz prau<qumoj avnh.r
kardi,aj (um homem de bom coração)30. O original hebraico afirma que um “coração
sossegado é vida dos corpos”, ou seja, reflete o sentido psicológico da integração, aquilo que
o ser humano sente no seu íntimo tem incidência na sua vida; afirmando, assim, a unidade do
ser contra a fragmentação gerada pela inveja. Um coração sem cobiça é garantia de vida
longa. O texto grego acaba por sugerir mais uma bondade do coração, adjetivando o
substantivo e distanciando-se do sentido de unidade.
30
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.
67
Outro elemento que parece estar subjacente na tradução é o de uma compreensão
do cosmos como construído em duas esferas, a dos “espíritos” e a da “carne”. Embora seja um
dualismo ético, pois ressalta a distinção entre o Criador e as criaturas, acarretará também uma
visão do humano como ser de “espírito” e de “carne”. Um bom exemplo disso encontra-se em
Nm 16,22 (// Nm 27,16). Observe:
Texto hebraico:
rf'B'-lk'l. txoWrh' yhel{a/
Deus dos espíritos de toda carne.
Texto da LXX:
qeo.j tw/n pneuma,twn kai. pa,shj sarko,j
Deus dos espíritos e de toda carne.
Para o autor hebraico afirmar que o Senhor é Deus de todos os viventes, usando
para isso as expressões x;Wr e rf'B', não tem por finalidade distinguir entre o que é espírito e
o que é carne; mas sim afirmar a relação que a criatura estabelece com seu Criador, que é o
Senhor de sua existência. Na tradução da LXX, há uma cisão, permitindo interpretar que Deus
é Senhor de um e de outro elemento, mas que os dois existem dissociados.
Quando se usa a distinção entre pneu/ma, sa,rx e sw/ma, característica da
filosofia e cultura helênica, a distância em relação ao universo hebraico é ainda mais
prejudicial, pois nele não há uma palavra específica para designar corpo. Mesmo quando se
fala das diversas partes do corpo, há sempre a idéia de um todo psicofísico. Como fica
evidente, o trabalho de exegese dos LXX resultou, por vezes, em alterações, não sem
conseqüências para a antropologia.
Quanto ao termo raev., as equivalências gregas são: oivkei/oj (ocorre 7
vezes); sa,rx (ocorre 5 vezes); sw/ma (ocorre 4 vezes)31. Apenas dois exemplos de
outras traduções: a) em Ex 21,10, ta.
de,onta, que significa
“o necessário”,
substituiu o vocábulo hebraico; b) no Sl 78,19, usou-se tra,pezan32, que quer dizer
“mesa” quando o texto hebraico falava de carne e remetia à história de Israel no deserto (Nm
11,5).
31
32
Cf. BAUMGÄRTEL, op.cit., p.108.
Cf. ALONSO SCHÖKEL & CARNITI, Salmos, v. II, p. 1010.
68
1.4 – Conclusões
Com esta breve reflexão sobre o termo “carne” na LXX, concluímos o estudo
proposto sobre o significado do mesmo na perspectiva judaica. Ficou evidente que a
polissemia do vocábulo “carne” permite diversas aplicações, bem como interpretações. É
irrefutável sua relação com a situação de criatura, numa posição de dependência dos “de
carne” em relação a Deus.
O ser humano estabelecido na terra é uma unidade psicofísica, não sendo a
“carne”, em hipótese alguma, considerada uma parte totalmente distinta do ser; ao contrário, o
termo “carne” é usado para designar a existência total da pessoa, o seu ser em toda a
complexidade das possibilidades do agir. A “carne” não é um mal ou um obstáculo para o ser
humano; ela é, antes de tudo, espaço sagrado, que mesmo estando numa situação distinta da
de Deus, serve para se manifestar a fé (circuncisão; pureza das carnes para alimento).
Esse território sagrado, no caso do humano, só existe graças ao “hálito” de Deus.
A idéia de que o ser humano é uma “carne animada” ajuda a compreender a totalidade do seu
ser. Talvez, aqui, nem se possa falar de indissociabilidade de seus elementos, pois o humano
só pode ser compreendido como “carne animada” e, mesmo na sua morte, estará relacionado à
esse pensamento.
“Carne”, no AT, quando aplicada ao ser humano, é a pessoa na sua inteireza,
totalidade; mas também na sua fragilidade, inconstância, mortalidade, naquilo que a iguala
com outras pessoas e, por vezes, até com os animais. É a percepção de que o ser humano é,
por ele mesmo, incapaz de sobreviver e se tornar imortal. Esse aspecto terá grande influência
sobre o pensamento joanino e na afirmação evangélica de Jo 1,14a. No que diz respeito ao
parentesco, a palavra “carne” propõe uma vinculação familiar, extensiva ao conjunto de
membros da mesma consangüinidade e, até, da mesma fé.
Quanto às ocorrências de “carne” na LXX, nota-se certa discrepância nas
traduções que, objetivando aproximar o texto hebraico aos de fala grega, terminam por
dissolver o significado da expressão. Os termos gregos utilizados são muito específicos,
quando, na verdade, o texto hebraico, nas ocorrências de “carne”, é extremamente abrangente
69
e vinculado freqüentemente ao aspecto religioso. Além disso, a LXX, permite entrever certo
antagonismo entre “carne” e “espírito” que não era presente na Escritura.
Após percorrer esse caminho, abre-se espaço, pois, para uma leitura do termo no
Novo Testamento. Para efeito de comparação, tomamos os escritos paulinos e buscamos
definir “carne” no aspecto mais geral e, especificamente, na aplicação à pessoa de Jesus.
Talvez, a definição de “carne” em Paulo, sirva para banir alguns preconceitos em relação ao
próprio termo e sua interpretação pejorativa supostamente baseada no Apóstolo.
2 – Carne no Corpus Paulinum
Em todo o NT encontram-se 147 ocorrências do vocábulo “carne”, das quais 91 no
Corpus Paulinum33. Paulo levou para o campo teológico um termo do universo antropológico,
tornando-o fundamental para a compreensão de seus escritos34. Dada a complexidade das
ocorrências de sa,rx no Corpus Paulinum, é imprescindível levar sempre em conta o
contexto imediato no qual o termo é utilizado35. Paulo o usa de forma bastante livre, de
acordo com seus destinatários e com o objetivo que deseja alcançar, oscilando entre seu
significado mais estrito e o mais amplo possível36.
Devido ao caráter bastante restrito desta dissertação – analisar o vocábulo sa,rx
na sua aplicação a Jesus (Jo 1,14a) –, não é analisado o termo sw/ma37. Embora no contexto
paulino fosse interessante a aproximação dos dois vocábulos, é possível entender o sentido do
primeiro com os dados abaixo apresentados. Como não se pretende estabelecer uma
Cf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 93. – Também: SEEBAS,
Horst. Carne. In: DITNT. v. 1, p. 277. – JÓZEFCZUK, op.cit., p. 34. Com uma pequena alteração nos dados,
Matias Józefczuk afirma 152 ocorrências de sa,rx no NT, especificamente 94 nos escritos paulinos.
34
Cf. DUNN, op.cit., p. 82. – Dunn recorda o perigo de uma conclusão precipitada a partir da constatação de
utilização de elementos antropológicos na teologia paulina. Nesse aspecto, menciona Bultmann que aplicou
categorias filosóficas modernas na interpretação de Paulo, abrindo veredas para Herbert Braun. Se no mestre
Bultmann os elementos antropológicos permitiram afirmar que “toda afirmação sobre Deus é simultaneamente
afirmação sobre o homem e vice-versa; podendo concluir, por essa razão e nesse sentido, que a teologia de Paulo
é, ao mesmo tempo, antropologia”; no discípulo, elas conduziram ao pensamento de que o elemento essencial do
NT é a ‘autocompreensão da fé’. – Também: BAUMERT, op.cit., p. 241. Baumert faz breve alusão a Bultmann
como precursor na aplicação de conceitos modernos na interpretação de textos paulinos.
35
Cf. THISELTON, Anthony C. Carne. In: DITNT, v.1, p. 281. – JEWETT, R. Paul’s antropological term: a
study of their use in conflict settings. Leiden: Brill, 1971. p. 49-166. Jewett estuda o termo sa,rx levando-se
em conta o contexto literário, a datação e as questões a que Paulo procurava responder.
36
Cf. DUNN, op.cit., p. 93.
37
Acerca do termo sw/ma nas cartas de Paulo: STRIEDER, Inácio R. Die Bewertung der Leiblichkeit in den
Hauptbriefen des Apostels Paulus und in seiner kulturwelt. Münster: Wilhelms-Universität, 1975. InauguralDissertation.
33
70
comparação entre os sentidos paulino e joanino do termo sw/ma optou-se por concentrar a
reflexão apenas em torno de sa,rx.
2.1 – Sa,rx no sentido neutro ou estrito
Paulo, fariseu por formação (Cf. Fl 3,5; At 22,3), é devedor das concepções do
AT, particularmente, na sua versão grega38. Paulo é um judeu39 e pensa como tal, o que não o
impede de ser extremamente aberto ao universo cultural helenista. Pode-se afirmar, pois, que
Paulo é influenciado pelo judaísmo como também pelo helenismo.
Paulo concebe o termo sa,rx com o mesmo sentido do hebraico rf'B', ou seja,
no seu significado básico de substância carnal comum aos seres humanos e aos animais,
portanto relativa apenas às coisas criadas. Paulo usa o vocábulo como um elemento na
percepção da totalidade do ser humano40. Apenas uma única vez a palavra sa,rx é usada
também para definir a carne dos animais (1Cor 15,39). Para se referir à “carne” dos animais
Paulo parece preferir o termo kre,aj (Rm 14,21; 1Cor 8,13)41. No que se refere ao uso de
sa,rx para designar alimento, não há nenhuma implicação negativa.
2.2 – Sa,rx como parentesco ou relações de raça/etnia
Ainda calcado no sentido hebraico de rf'B', Paulo utiliza sa,rx para designar
laços familiares ou de nacionalidade. Em Rm 1,3, Paulo diz que Cristo descende de Davi
kata. sa,rka (segundo a carne)42, associando a pessoa de Jesus aos patriarcas;
mostrando, assim, a íntima ligação do Messias com a nação e cultura israelitas (Rm 9,5).
Como idéia de parentesco, Paulo reconhece a paternidade de Abraão “segundo a carne” (Rm
4,1) e sua vinculação com a história do povo eleito. Refere-se a seu povo como o “Israel
segundo a carne” (1Cor 10,18) e coloca-se nessa mesma linhagem (Rm 9,3).
38
Cf. MARQUES, op.cit., v. 1, p. 33.
Cf. MURPHY-O’CONNOR, Jerome. Paulo: biografia crítica. São Paulo: Loyola, 2000. p. 60-63. – Também:
ROBINSON, John A.T. El cuerpo: estúdio de teologia paulina. Barcelona: Ariel, 1968. p. 27-28.
40
Cf. BAUMERT, op.cit., p. 233.
41
Cf. ROBINSON, op.cit., p. 26. – Também a LXX fazia essa opção.
42
Cf. FABRIS, Rinaldo. À Igreja de Romanos. In: ______. As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1991. v. 1,
p. 135. – Segundo Fabris, Paulo jamais aplica a Cristo a antítese “segundo a carne – segundo espírito” e em
nenhum outro texto paulino encontra-se o tema da descendência davídica de Jesus.
39
71
É evidente que, enquanto significação de parentesco, sa,rx não tem nenhum
sentido moral, mas sim religioso, pois no judaísmo os laços consangüíneos perpetuam a vida
de fé. Semelhante ao AT, o termo sa,rx ainda não figura como um termo teológico
propriamente dito; mas já se relaciona com a temática religiosa de pertença ao povo de Deus.
Nas ocorrências acima, sa,rx é apenas uma constatação de filiação no sentido amplo,
pertença e proximidade com a nação. Assim, sa,rx é termo que implica relação de um
humano com outro ou com uma coletividade.
2.3 – Sa,rx como indicativo da totalidade do ser humano, aplicada a Jesus Cristo
Paulo utiliza sa,rx, em algumas passagens, como designativo do ser humano na
sua totalidade (cf. Rm 7,18; Ef 2,15). Interessam aqui, particularmente, duas ocorrências que
dizem respeito à pessoa de Jesus. Elas traduzem com fidelidade a idéia hebraica de rf'B' ao
apresentarem o humano na sua integralidade de ser, existindo na condição mortal.
a) Rm 8,3:
To. ga.r
avdu,naton
dia.
th/j sarko,j(
O que era impossível para a lei
tou/
visto sua debilidade
o` qeo.j to.n e`autou/ ui`o.n
a`marti,aj
Deus, o
seu Filho
no,mou
pe,myaj
evn w-|
pela
hvsqe,nei
carne,
evn o`moiw,mati
sarko.j
enviado em semelhança da carne do pecado,
kai. peri. a`marti,aj kate,krinen th.n a`marti,an evn th/| sarki,(
pelo pecado condenou o
pecado
na carne;
Na primeira menção a sa,rx, Paulo aponta para a presunção dos que se
confiavam ao poder da lei e não percebiam a sua suposta confiança na força da criatura 43. A
carne humana é frágil, perecível44 e, como tal, necessita estar referenciada em Deus e não em
supostos atributos sugeridos pelo cumprimento da lei e, de modo inverso, também não pode
ser a referência para a lei. A lei não tem força contra o pecado, embora pronuncie a
43
Cf. DUNN, op.cit., p. 98.
Cf. ROBINSON, op.cit., p. 28. – O autor afirma que a “fraqueza”, o ser perecível, é qualidade inerente da
“carne”.
44
72
condenação de Deus sobre este, e está inerentemente ligada à situação resultante da queda do
ser humano45.
Na segunda menção, Paulo afirma a vinda do Filho como enviado, resgatando
então a íntima ligação do Cristo com o Pai. O Filho vem na semelhança da carne do pecado46,
ou seja, ele assume a condição humana na sua caducidade, na sua fraqueza, porém não
experimenta o pecado, como bem o diz Paulo em 2Cor 5,21. Murphy-O’Connor, após afirmar
a complexidade do termo “carne” no léxico paulino, comenta a expressão “semelhança na
carne do pecado” da seguinte maneira:
Quando Paulo diz que Jesus tinha ‘corpo de carne’, ou que ele era judeu
‘segundo a carne’, simplesmente evoca a dimensão física de sua existência.
‘Carne pecaminosa’, por outro lado, implica claramente julgamento negativo
de valor, e a ênfase de Paulo é que, embora partilhando da facticidade da
existência humana, Jesus não caiu sob o julgamento de valor ligado àquela
existência por causa do pecado humano47.
A terceira menção propõe que o lugar da vitória sobre o pecado é justamente a
“carne”, pois nela o Filho de Deus derrota definitivamente as forças do mal, dá início a uma
nova criação e o humano encontra sua libertação. De acordo com Cranfield, Paulo pensava
que toda a ira de Deus contra o pecado foi colocada sobre a carne de Jesus na cruz48.
Rompendo aquilo que separava a humanidade do Criador, é na pessoa de Jesus Cristo que
todo ser humano pode aproximar-se de Deus. Em Jesus a humanidade está representada.
Paulo demonstra um princípio de solidariedade de Deus com a condição humana, que, revoga
qualquer tentativa de aproximação de Deus por outras forças humanas além daquela que é o
Cristo. Nessa terceira menção, fica nítido que Paulo se refere à “carne” de Jesus como o todo
de sua pessoa. O v. 4 apresenta a oposição entre “viver segundo a carne” e “viver segundo o
Espírito”, a libertação oferecida por Cristo tem por objetivo permitir ao cristão “viver segundo
o Espírito”49.
45
Cf. CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 173.
Cf. Ibid., p. 172. – Cranfield menciona quatro possibilidades de interpretação do termo “semelhança”: 1)
Jesus seria semelhante à carne decaída, porém não idêntico (mas se era justamente a natureza decaída que
precisava de redenção, como compreender que o Redentor veio apenas em aparência?); 2) Paulo usou
“semelhança de” para evitar a impressão de que Cristo realmente pecou por ter-se associado à humanidade;
3) Semelhança como sinônimo de forma; 4) Paulo usa a expressão “semelhança de” para indicar que Cristo não
foi transformado em humano, mas que assumiu a natureza humana, permanecendo ainda ele mesmo, ou seja,
conservando sua divindade. Jesus assume a mesmíssima natureza humana decaída, porém nunca deixa de ser o
Filho de Deus.
47
MURPHY-O’CONNOR, Jerome. A antropologia pastoral de Paulo: tornar-se humanos juntos. São Paulo:
Paulus, 1994. p. 79.
48
Cf. CRANFIELD, op.cit., p. 173.
49
Cf. JEWETT, op.cit., p. 148.
46
73
b) Ef 2,14b:
tou/ fragmou/ lu,saj( th.n e;cqran evn th/| sarki. auvtou/(
Em sua carne, destruiu o muro de separação: a hostilidade.
Paulo aqui compreende th/| sarki, com o mesmo sentido de rf'B'. Em
Jesus, toda separação existente entre pagãos e judeus é destruída, pois nele se dá a
possibilidade de compreensão de uma nova humanidade. Carne, novamente, é sinônimo da
existência total de Jesus. A fim de mostrar o realismo da nova humanidade, Paulo remete ao
“Jesus-carne”, em quem se deu na história a unificação entre os mundos opostos50.
Conclui-se que, longe de negar a tradição recebida das Escrituras, Paulo conserva,
nos casos acima (Rm 8,3; Ef 2,14b), a idéia de existência total e “carne” não tem nenhuma
conotação pejorativa ou de tendência para o mal. “Carne” é a notação da condição escolhida
por Deus, ou seja, o Filho vir na “condição mortal”, para conduzir a humanidade até a
verdadeira liberdade. Cerfaux, analisando o tema da encarnação de Cristo nos escritos
paulinos considera que Paulo não compreende a encarnação já como um fator salvífico, ela
está ordenada para a morte e ressurreição que têm realmente a função salvífica 51. Visão
bastante diferente da leitura que os Padres Gregos fariam sobre o mistério da encarnação!
2.4 – Sa,rx como antagonista de pneu/ma
Paulo contrapõe o termo sa,rx a pneu/ma (Rm 8,9.13//Gl 6,8; Rm8,5//Gl
5,16). Os paradoxos apresentados por ele permitem entrever o valor do termo “carne” e como
o mesmo vai ganhando contornos teológicos, passando da esfera do significado restrito à
densidade de realidade compreensiva da relação do humano com Deus.
Uma primeira leitura da oposição carne/Espírito pode gerar, de imediato, um
preconceito em relação ao termo “carne”. Durante muito tempo, a pregação cristã de cunho
moralizante interpretou o vocábulo “carne” no Corpus Paulinum como referência à
sexualidade/sede dos prazeres e, por sua vez, a pecado, gerando também um menosprezo ao
corpo e a tudo que era material. Em contrapartida, os ideais espirituais eram realçados e
buscava-se uma ascese que, quase sempre, enfatizava o esforço humano. Ironicamente, essa
50
Cf. FABRIS, Rinaldo. Carta aos Efésios. In: As Cartas de Paulo. São Paulo: Loyola, 1992. v. II, p. 164.
Cf. CERFAUX, Lucien. Cristo na teologia de Paulo. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 136: “Falta em
Paulo a idéia fundamental de que a união do Verbo com a natureza humana constitui para a natureza humana em
geral um enriquecimento. Para ele, a encarnação não enriquece a carne que Cristo assume e que continua carne
na ordem da eficiência e, portanto, não introduz, na natureza humana, um princípio divino ativo. É a ressurreição
que produz a mudança na humanidade”.
51
74
pretensa confiança na ascese a fim de vencer os desejos da “carne” acabava por ferir o
pensamento paulino, que criticava o confiar-se nas próprias forças. Esse tipo de ascese, podese dizer, acabava se transformando justamente naquela “carne” tão criticada por Paulo como
orgulho humano.
Parece que Paulo contrapõe “carne” a Espírito para explicitar a limitação da
condição humana e sua incapacidade de, por si só, estabelecer verdadeira relação com Deus.
Possivelmente o que Paulo estabelece com o dualismo carne/Espírito tem por finalidade
propor uma ética cristã52. Viver de acordo com o Espírito é deixar-se conduzir segundo o
desejo de Deus; daí que toda ação contrária a isso revela resistência ao poder de Deus.
Paulo confronta “carne”, como realidade de apego à força humana, com Espírito,
princípio inaugurador dos novos tempos da salvação. A “carne” em si não é um erro nem um
mal, mas sim o “confiar na carne”53 ou o chamado “orgulho da carne”. Aquele que vive
“segundo a carne” depara-se também com outro dualismo: vida/morte, pois resistir ao Espírito
e seguir os princípios da “carne” é encaminhar-se para a morte54. Paulo não descarta o
significado e valor da “carne”, pois, ao afirmar sua possível destruição pela morte,
inversamente afirma sua real valorização se colocada sob a guia do Espírito.
O Espírito vem em socorro da fragilidade humana para evitar que a “carne”
domine todo o ser humano. Dessa forma, “carne” não teria um sentido negativo?
Aparentemente sim, mas o que Paulo deseja é mostrar que na condição mortal o ser humano
sempre se encontra numa situação de vulnerabilidade. Käsemann fala do humano na
concepção paulina como ser provocável e constantemente provocado55. É na esfera da “carne”
que o humano defronta-se com os apelos que podem conduzi-lo à vida ou à morte.
Dunn afirma que “carne” funciona como um contraponto ao qual Paulo liga outros
termos, sempre partindo da idéia de fragilidade: “É o contínuo da mortalidade humana, a
pessoa caracterizada e condicionada pela fragilidade humana, que dá à sarx seu espectro de
significado e que fornece o elo entre os diferentes usos do termo que Paulo faz”56. O pecado é
que é mal, não a carne! Mas é na esfera dela que o pecado pode agir, daí a oposição kata.
sa,rka/kata pneu/ma. Viver segundo a carne é o viver manipulado pelos desejos e
Cf. JÓZEFCZUK, op.cit. – Toda a dissertação versa sobre a proposta de elaboração de uma ética cristã em
Gálatas a partir da acolhida do Espírito.
53
Cf. SCHWEIZER, Eduard. sa,rx, sarkikovj, sa,rkino,j. In: TDNT, p. 135.
54
Cf. DUNN, op.cit., p. 96-97.
55
Cf. KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo: Paulinas, 1980. p. 13.
56
DUNN, op.cit., p. 98.
52
75
necessidades da carne57. A expressão kata. sa,rka indica a orientação para o transitório,
distinta da expressão evn sarki,, que afirma a condição inevitável do ser humano58.
2.5 – Conclusões
Embora seja necessária uma análise específica em cada ocorrência, é certo que
Paulo não usa “carne”, aplicado ao humano, no sentido pejorativo, mas sim como afirmação
da sua fugacidade. Portanto, o Apóstolo permanece vinculado ao pensamento hebraico e ao
significado dado ao termo no AT; como se afirmou anteriormente, a “carne” não é má, o que
é mal é o confiar na “carne”.
Quando Paulo aplica o termo “carne” à pessoa de Jesus, o faz de maneira bastante
sóbria, insistindo na idéia de solidariedade e igualdade com a raça humana. Demonstra
sempre uma preocupação em afirmar a historicidade do Cristo, sua vinda na “carne”, mas sua
total isenção de contato com o pecado. O fato de não partilhar com a humanidade a situação
de pecado não anula a igualdade dele com a humanidade. Em si mesmo o humano não se
compreende, mas olhando para o humano Jesus, Deus na “carne”, toda pessoa tem a
oportunidade de se conhecer e descobrir que a meta de sua vida está além daquilo que é a
condição carnal59. A antropologia paulina vincula-se, pois, à cristologia e à soteriologia! O ser
humano, criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a buscar a salvação em Jesus,
imagem de Deus que se encarnou e se tornou visível no Cristo ressuscitado60.
Em Paulo, o ser humano torna-se ainda mais caduco à medida que ignora que a
condição “carnal” é chamada a deixar-se aperfeiçoar na ação do Espírito. A “carne” não é
suplantada, mas considerada com relatividade e, em alguns momentos, colocada como
oposição ao Espírito por ser o lugar onde o humano pode ser cooptado pelo pecado. A “carne”
é, pois, o lugar da decisão, do confronto, do embate. É nela que se verifica o quanto o mal
assedia o humano e o coloca sob o perigo da pretensão de poder salvar-se a si mesmo.
57
Cf. Ibid., p. 102.
Cf. Ibid., p. 100.
59
Cf. KAESEMANN, op.cit., p. 39-41. – Também: SCHWEIZER, E. Sa,rx, sarkikovj, sa,rkinoj:
the New Testament. In: TDNT, p. 135.
60
Cf. MARQUES, op.cit., v. 2, p. 641.
58
76
3 – “Carne” no Evangelho segundo João
3.1 – Um Evangelho para decisão na fé
O ponto de partida para uma compreensão do termo “carne” em Jo 1,14a encontrase no fato de ser o Evangelho de João um texto que objetiva despertar uma decisão diante de
Jesus: aceitá-lo ou rejeitá-lo. Em João, “fé e descrença são as alternativas decisivas da
salvação”61. Marcado por uma série de símbolos e contrastes, o Quarto Evangelho propõe
sempre ações e palavras de grupos ou pessoas como evidências da acolhida ou não do Messias
Jesus, Filho de Deus vindo na “carne” (cf. 1Jo 4,2).
A comunidade que transmite a fé no Cristo propõe um discernimento aos que nela
já ingressaram ou desejam fazê-lo. Tal discernimento contempla a liberdade humana e a
responsabilidade histórica. Jesus vem na “carne” e é também nela que a humanidade precisa
decidir-se. O confronto com o judaísmo rabínico62, os tempos de perseguição, as constantes
inquietações por parte da chamada “segunda geração dos cristãos”, os conflitos internos,
dentre outros elementos63, permitem compreender todo o processo de elaboração do texto do
Evangelho como um desejo de apresentar quem é Jesus, para que os que nele crerem, em seu
nome, tenham a vida (cf. Jo 20,31).
João quer pregar Jesus de um jeito novo, diferente dos sinóticos, embora servindose do material recebido da tradição64, mas com especial atenção à situação histórica de sua
comunidade65. João anuncia que em Cristo o Reino de Deus já acontece e que a pessoa do
“Jesus-carne” é a evidência dessa novidade. O Reino chega de modo surpreendente. Tuñí
Vancells e Blank concordam que João é marcado por uma ênfase na pessoa de Jesus, uma
61
BLANK, Josef. O evangelho segundo João. Petrópolis: Vozes, 1990. v. 4/1a, p. 56.
Cf. VITÓRIO, Jaldemir. “Vou preparar-vos um lugar”: leitura e interpretação de Jo 14 na perspectiva da
Tradição do êxodo. Rio de Janeiro: PUCRJ, 1995. Tese de doutorado. v. 2, p. 436-433.
63
Cf. BROWN, Raymond E. A comunidade do Discípulo Amado. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1983. – A obra
versa sobre a experiência eclesial que deu origem ao Quarto Evangelho, procurando salientar as fases de
desenvolvimento da mesma e como se deu a elaboração da fé em cada uma delas. – Ainda sobre o tema do
ambiente joanino: CALLE, Francisco de la. A Teologia do quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1985.
p. 15-18. La Calle relembra cinco hipóteses para explicar o mundo ambiental joanino: “Antigo Testamento,
judaísmo pós-bíblico em geral, a literatura sapiencial especialmente, Qumran e, por último, a gnose”. – BLANK,
op.cit., p.56. Blank pondera que, no que diz respeito à possível influência gnóstica, as pesquisas não chegaram a
concluir se existe em João uma tendência antignóstica ou antidocetista. – Também: MAGGIONI, Bruno. O
Evangelho de João. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1992. v. II,
p. 266-267. Maggioni pondera também que tampouco seria o Evangelho de João uma cristologia de “docetismo
ingênuo” como propôs Käsemann.
64
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. I, p. 88s. – O
autor faz análise bastante profunda acerca do possível contato de João com a tradição marcana.
65
Cf. BLANK, op.cit., p. 37.
62
77
cristologia que traz para o presente a escatologia e não permite descuidar da realidade
histórica66.
João apresenta o Jesus confessado pela comunidade67. O Evangelho não tem por
finalidade ser crônica de episódios ou compor uma biografia, mas permitir que o próprio Jesus
fale e apresente-se através de sua comunidade.
3.2 – Significado de sa,rx em Jo 1,14a
João escreve seu Evangelho em grego, porém seu pensamento e os elementos
utilizados pertencem ao contexto hebraico68. Isso exige que a leitura do texto joanino seja
feita sem um apego excessivo à língua grega. João é capaz de tomar uma palavra do AT ou,
até mesmo, do mundo não-cristão e lhe dar novo significado a partir da ótica cristã 69. As
referências veterotestamentárias, diretas ou indiretas, confirmam essa continuidade e não
rompimento com a revelação nas Escrituras judaicas. Também o termo “carne” em João é
marcado por esse bilingüismo.
3.2.1 – O contexto amplo
A palavra “carne” encontra-se no chamado Prólogo (1,1-18). Compreendendo
João, como ele encontra-se hoje e chega às mãos dos leitores (cristãos ou não), tal Prólogo é
dele uma parte inseparável! Não é uma introdução, nem um prefácio literário, nem uma
síntese de todos os temas apresentados no Evangelho70. Tomando-se a pesquisa exegética em
Cf. BLANK, op.cit., p. 36. – Blank afirma que, diferentemente dos sinóticos, “em João, [...] o centro e o
conteúdo da mensagem é o próprio Jesus, sua própria pessoa, e seu significado como revelador e Filho de Deus,
como salvador escatológico [...]. Salvação e juízo já acontecem no presente, em relação com a pessoa e a palavra
de Jesus”. – Também: TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Imagen actual del cuarto evangelio. Jesús-hombre,
revelador de Dios. Sal Terrae, Santander, v. 65, n. 2, p. 103, feb. 1975. Comparando João a Mateus que insiste
no anúncio do Reinado de Deus, Vancells diz: “O quarto evangelho não desvia a atenção da pessoa de Jesus,
porque nele – muito mais que nos sinóticos e de modo distinto – o reino é Jesus. Nele Jesus não prega o Reino,
mas se prega a si mesmo; não o explica com parábolas, mas propõe alegorias sobre o mistério de sua própria
pessoa; não fala de receber o reino, mas exorta a que se receba a ele mesmo; não se deve ir ao reino, mas sim ir a
Jesus”. Desnecessário insistir que, ao afirmar a centralidade de Jesus, os autores o compreendem como o único
revelador do Pai; sendo assim, o Cristo é caminho para o Pai e o seu agir é o agir do Pai na história humana.
67
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Josep-O. Jesus y el evangelio em la comunidad juánica: introducción a la lectura
cristiana del evangelio de Juan. Salamanca: Sigueme, 1987. p. 176.
68
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. p. 22.
69
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 264. – Também: BLANK, op.cit., p. 40s.
70
Cf. FEUILLET, A. O prólogo do quarto Evangelho: estudo de teologia joânica. São Paulo: Paulinas, 1971.
p. 178. – Acerca do caráter literário do Prólogo, Feuillet diz: “O prólogo joânico constitui a ‘introdução’ ao
66
78
torno do Prólogo joanino, nota-se uma diversidade de classificações quanto ao seu gênero
literário, porém pode-se classificá-lo como um hino71 cristológico, que permite entrever o
essencial da fé professada, ou seja, o mistério de um Deus revelado no ser humano e que,
enquanto hino, só pode ser compreendido no conjunto do Evangelho. Há no Prólogo um
convite e, ao mesmo tempo, um desafio: cantar a ação de Deus que entra na história e
reconhecer que em “Jesus-carne” ele se revela.
Aceitando-se o Prólogo como um hino de louvor que a comunidade joanina
transmite às futuras gerações de cristãos, preserva-se sua relação com o conjunto do
Evangelho e também sua dimensão comunitária. Além disso, assume-se que não se trata de
um hino com proposta de síntese doutrinária. A comunidade não pretende formular dogmas,
isso não importava para aquele contexto72. Posteriormente, é que se leu no Prólogo abertura
para o dogma de Calcedônia (431)73.
Por fim, ainda vale reafirmar que o Prólogo é parte integrante do texto evangélico,
e João não poderia ter escolhido melhor forma para iniciar sua narrativa sobre a pessoa de
Jesus. Assim, o Prólogo, juntamente com Jo 20,31, funciona também como uma certa
moldura na qual o testemunho de fé da comunidade fica evidente e apresenta-se a finalidade
da compilação do Evangelho.
3.2.2 – O contexto imediato de sa,rx em Jo 1,14
Antes de qualquer definição acerca do termo “carne”, é preciso analisar onde ele
se encontra e como dialoga com os outros elementos do mesmo versículo. Na estrutura do
v. 14 do Prólogo, nota-se uma doxologia cristã74. A comunidade proclama a vinda da Palavra
(Logos) ao mundo e a participação na glória do Filho que passa a habitar na história. O v. 14
pode ser subdividido para evidenciar ainda mais o contexto imediato em que o termo “carne”
é encontrado. Segue-se uma possível estruturação do versículo75:
Evangelho, no mesmo sentido em que se emprega a palavra ‘ouverture’ para a linguagem musical”. Segundo
esse autor, é o todo do evangelho que dá o real significado ao prólogo e não o contrário.
71
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. I, p. 40-42. –
Chega-se à conclusão que se trata de um hino, mas isso não significa o final da questão; é apenas uma etapa que
se abriu para diversas outras interpretações, já que parece impossível refazer a pré-história do Prólogo.
72
Cf. BROWN, op.cit., p. 115 [nota].
73
Cf. BRUCE, F. F. João. São Paulo: Vida Nova, 2004. p. 45.
74
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 87; 93.
75
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise lingüística e comentário exegético.
São Paulo: Paulinas, 1989. p. 57-62.
79
a
Kai. o` lo,goj sa.rx evge,neto
E a Palavra se fez carne
b
kai. evskh,nwsen evn h`mi/n(
e habitou entre nós
C
kai. evqeasa,meqa th.n do,xan auvtou/(
e nós contemplamos a sua glória
d
do,xan w`j monogenou/j para. patro,j(
glória do Filho único do Pai,
e
plh,rhj ca,ritoj kai. avlhqei,aja
cheio de graça e verdade.
As partes que compõem o v. 14 são apresentadas numa estrutura bastante
ordenada. Parece que a ênfase do versículo encontra-se em “C”, pois o fato de o Logos
habitar no meio da humanidade ainda não é garantia de vida plena para a comunidade; mas o
contemplar a glória já é a manifestação da experiência proposta por aquele que veio na
“carne” (a/b)76. As partes seguintes ao item “C” justificam-se como explicitação da origem da
glória (d) e do que ela vem a ser (e). O termo final remete ao início do versículo pela ligação
que pode ser estabelecida com Logos, pois é ele o que está pleno (adjetivo) de graça e
verdade. A glória da qual a comunidade participa é a glória que veio a este mundo na pessoa,
na “carne” de Jesus. Eis, já aqui, a teologia do envio que servirá como pano de fundo para a
análise do vocábulo “carne”.
No v. 14, os termos “a” e “b” estão ligados pela partícula kai.. O uso dessa
conjunção coordenativa remete ao Logos mencionado no v. 1 como aquele que habita junto de
Deus e participa de sua divindade, chamando agora a atenção para o fato inusitado que será
mencionado77. A menção ao Logos nos vv. 14 e 1 serve também para contrastar o ser eterno
da Palavra com o seu existir temporal78. Podendo-se afirmar, como Potterie, que no v. 14b se
trata de um kai. exegético, pois inicia e convida a compreender o sentido teológico da
encarnação79.
A novidade anunciada não se concentra tanto no fato do Logos vir ao mundo, pois
isso já foi apresentado ao longo do Prólogo, inclusive fazendo-se referência à sua acolhida ou
76
Cf. MÜLLER, Ulrich B. A encarnação do Filho de Deus: concepções da encarnação no cristianismo
incipiente e os primórdios do docetismo. São Paulo: Loyola, 2004. p. 43.
77
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 282
78
Cf. BROWN, Raymond E. El Evangelio según Juan. Madrid: Cristiandad, 1979. v. 1, pt. 1, p. 207.
79
Cf. POTTERIE, Ignace de la. Studi di cristologia giovannea. 2 ed. Genova: Marietti, 1992. p. 50.
80
rejeição (vv. 1-4; 10-12). O Logos não é um estranho a este mundo, ele participou da criação
do mundo e nele sempre esteve presente80. A ênfase está na forma como o Logos agora se
manifesta. Se antes era um Logos supratemporal, agora se tem um adentrar na história
humana81.
O verbo gi,nesqai82 é elemento que determina o tipo de novidade em relação
à comunicação do Logos. O h=n (era) presente nos vv. 1.4.9.10 do Prólogo afirmava a
existência do Logos como algo permanente. O fato de ser e estar permanentemente é
característico da dimensão divina. A contraposição com evge,neto (veio a ser) destaca a
mudança ocorrida no modo de existir do Logos. Como já havia sido usado nos vv. 3 e 10 para
insistir na participação do Logos na criação do mundo, agora evge,neto serve como prova
irrefutável de que o ocorrido com o Logos não é mera aparência ou uma criação nova que
anulasse o seu ser; ao contrário, trata-se de uma mudança radical na forma de se comunicar.
Aquele Logos permanece o mesmo, mas agora se manifesta de forma nova83. Se as
afirmações dos vv. 1.4.9.10 manifestavam uma existência celeste, totalmente distinta da
terrestre, o evge,neto (v. 14) mostra que o Logos entra realmente na realidade humana84.
3.2.3 – Definição de sa,rx
O evangelista utiliza o vocábulo “carne” (sa.rx) para se referir ao ocorrido com
o Logos. “E o Logos se fez carne” (Jo 1,14a) indica a entrada do Filho no nível da história 85.
Em hipótese alguma, sa.rx, em Jo 1,14a, associa-se com o dualismo “carne-espírito”86.
João pensa sa.rx como rf'B'. Nesse sentido, “carne” é termo mais profundo que
meramente “humano” (a;nqrwpoj). Schnackenburg, tratando sobre o porquê dessa escolha
de João, afirma o seguinte:
O sa.rx que está aqui em forma absoluta não é uma mera paráfrase em
lugar de ‘homem’ (como pasa sa.rx 17,2), é um termo que no
pensamento joanino expressa o ligado à terra (3,6), o caduco e perecedouro
80
Cf. CALLE, op.cit, p. 43-45.
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.
82
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283.
83
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 92.
84
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., p. 283. – Também: Konings, op.cit., p. 80. – OLIVEIRA, Carlos-Josaphat P.
Evangelho da unidade e do amor: texto e doutrina do Evangelho de S. João. São Paulo: Duas Cidades, 1966.
p. 38.
85
Cf. KONINGS, op.cit., p. 55.
86
Cf. BUSSCHE, Henri van den. Jean: commentaire de l’évangile spirituel. Paris : Desclée de Brower, 1967.
p. 97.
81
81
(6,63), algo assim como o típico do modo humano de existir, diferente de
todo o divino celestial, do espiritual divino87.
“Carne” é designação da natureza humana na sua totalidade e na sua situação de
fragilidade. O termo se enquadra bem no estilo joanino de apresentar oposições ou contrastes
(trevas-luz; céu-terra). “Carne” funciona como referência à condição finita e perecível do
humano, daquilo que pertence a terra em contraste com o próprio Deus, que é ser eterno e
imperecível88.
O Logos que participou da criação de tudo o que existe é o mesmo que agora se
tornou pessoa humana89. Não é alguém indeterminado, mas sim um homem chamado Jesus;
nascido num território geográfico bastante circunscrito (Galiléia); num período determinado
da história90; num contexto religioso, a saber o judaico. A presença do Logos supratemporal
no mundo não é negada, mas intensifica-se o sentido de sua presença agora na “carne”,
condição mortal própria de quem vive a história terrena.
Do ponto de vista da história humana, Jo 1,14a marca a destruição de toda barreira
que poderia afastar a humanidade de Deus. Do ponto de vista da história da salvação, na qual
a história humana é um dos momentos, a encarnação é a continuidade do movimento de vida
iniciado pelo Logos presente na criação. É momento ímpar na história da salvação, pois é a
revelação de Deus que tornará possível a participação do humano na glória divina. O “fazer-se
carne” não é ainda o fim da encarnação, o ponto mais alto se encontra na plena comunicação
da glória divina. Léon-Dufour o diz de forma bastante concreta:
Para revelar perfeitamente quem ele é e qual experiência os homens são
chamados a viver por ele, o Logos torna-se um homem que fala a nossa
língua. Se o Logos (e não Deus, o Pai) toma figura humana, é para fazer com
que os homens participem de seu próprio ser e, assim, manifestar o que um
homem autêntico é chamado a ser de acordo com o projeto de Deus91.
Ao afirmar o Logos encarnado, João está afirmando que o projeto de Deus tornouse realidade patente no meio da humanidade, fez-se realidade humana, onde, de forma
iniludível, cada pessoa será chamada a decidir-se. Conforme Mateos e Barreto, a Jo 1,14a
correspondem, no Evangelho, duas outras expressões: “o Filho do Homem” e “o Filho de
87
SCHNACKENBURG, op.cit., p. 284.
Cf. PANIMOLLE, Salvatore Alberto. L’evangelista Giovanni: pensiero e opera letteraria del quarto
evangelista. Roma: Borla, [1985 ?]. p. 106.
89
Cf. BRUCE, op.cit., p. 45.
90
Cf. THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus histórico: um manual. São Paulo: Loyola, 2002. p. 173.
91
LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 95. – BLANK, op.cit, p. 116.
88
82
Deus”. Em conjunto, essas expressões condensam aquilo que é o projeto de Deus para o ser
humano, torná-lo participante da plenitude divina92.
Qual a novidade trazida pelo Prólogo? Por certo, a idéia de uma comunicação das
divindades com os seres humanos não era algo estranho ao povo judeu. Afinal, as Escrituras
mencionavam encontros de Deus com seu povo (Gn 18 = visita do Senhor a Abraão;
Gn 28,10-22 = escada de Jacó; Gn 32,23-33 = luta de Deus com Jacó; novela de Tobias). Do
lado dos gregos, a comunicação divina com a humanidade também não seria algo
extraordinário, pois as divindades gregas vinham até a terra na “forma” de pessoas humanas
ou até de animais. Embora se tratasse de um panteão nos céus, havia um contato com os seres
humanos. Inclusive a manipulação destes últimos pelas divindades. Todavia, no helenismo
não se encontra paralelo quanto a Deus fazer-se “carne” nem quanto ao tornar-se “homem”93.
Apesar do que foi mencionado acima, o problema da encarnação colocado sob a
perspectiva judaica é inadmissível. A encarnação de Deus seria algo totalmente impensável 94.
O monoteísmo judaico concebia a vinda de um Messias, um enviado de Deus, mas nunca que
o próprio Deus se colocaria como um igual ao ser humano95. Diferente da concepção cristã
que se tem do Messias, já totalmente cunhada em cima da pessoa de Jesus e sob os moldes da
Igreja primitiva, a concepção judaica afirma que:
“Messias” é a versão da palavra judaica maschiah, que significa literalmente
“o ungido”. [...] Na tradição judaica, o rei é ungido com óleo como símbolo
de sua realeza. Havia algumas variações entre concepções judaicas do
Messias, mas a concepção tradicional do maschiah, ou messias, é a de que
ele será um rei plenamente humano que vai libertar o povo judeu de sua
servidão ou de seus problemas e introduzir uma “era messiânica”, [...] Será o
reino de Deus na terra96.
Na compreensão grega, nenhuma divindade vem a terra para salvar os seres
humanos enquanto coletividade. Na concepção judaica do Messias, este não seria nunca um
Filho de Deus, pelo menos não no sentido de participar originalmente de sua divindade, nem
teria o poder para perdoar pecados. A novidade cristã encontra-se no fato de afirmar que o
Logos eterno torna-se o Jesus terreno97. A afirmação pode soar hoje como algo pacífico, mas
92
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 57.
Cf. LÉON-DUFOUR, op.cit., p. 94. – Também: SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 284-285. – MÜLLER,
op.cit., p. 46-47. – DODD, Charles Harold. A interpretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
p. 334-337.
94
Cf. DODD, op.cit., p. 337-338.
95
Cf. BROWN, op.cit., p. 48-49.
96
FLITTER, Lance. Jesus e eu. In: BRUTEAU, Beatrice (org.). Jesus segundo o judaísmo: rabinos e estudiosos
dialogam em nova perspectiva a respeito de um antigo irmão. São Paulo: Paulus, 2003. p. 177.
97
Cf. CALLE, op.cit., p. 46.
93
83
no ambiente do Quarto Evangelho era a proclamação de uma nova fé. Não mais o Deus das
alturas, mas sim o Deus nas entranhas do humano.
O extraordinário acontecido na história humana não cabe em conceitos, nem
seriam eles comuns ao pensamento hebraico, exigindo de João uma afirmação da natureza de
Jo 1,14a. “Carne”, portanto, é a condição humana, mortal, oposta a Deus por sua fragilidade e
impotência, a existência terrestre. Em João, dizer que “o Verbo se fez carne” não é constituir
um início da história humana de Jesus aos moldes de Lucas (Lc 1,26-38; 2,1-20), pois o
evangelista não se preocupa com isso. João afirma com o termo “carne” que é o todo da
existência de Jesus que tem valor, o seu sair e voltar ao Pai, sua descida e subida98. Konings
propõe o mesmo pensamento: “Não só o Natal, mas sobretudo a Sexta-feira Santa é festa da
Encarnação. O presépio e a cruz são da mesma madeira!”99.
A afirmação joanina, ao utilizar o termo “carne” determina que a existência
histórica de Jesus é dado essencial para a fé. A glória que a Palavra veio comunicar só pode
ser alcançada na humanidade de Jesus e não fora dele. O Deus, que desde o início quis se
comunicar e foi rejeitado pela humanidade, não desiste de levar a bom termo seu desejo. Jesus
é o ato supremo de Deus para encontrar-se com a humanidade. Segundo Müller, comentando
Jo 1,14, “a Igreja cristã enaltece o mistério ao qual tem acesso: que o Logos responde à
vigente rejeição pelos seres humanos com sua dedicação definitiva”100.
Blank mostra que a incidência da afirmação de João toca diretamente a
antropologia, pois em “Jesus-carne” a humanidade é chamada a reconhecer o que
verdadeiramente significa ser humano diante de Deus. Isso tem suas conseqüências imediatas
ao nível histórico, pois enquanto a humanidade não alcançar a proposta de Jesus, a encarnação
permanece incompleta101.
3.3 – Sa,rx em outras passagens joaninas
No contexto do Quarto Evangelho, ainda se encontram outras ocorrências do
termo “carne” que merecem ser analisadas em vista de uma melhor compreensão do mesmo
em Jo 1,14a. Apenas as citadas no “discurso do pão da vida” (Jo 6,51-56) dizem respeito
diretamente a Cristo, porém também as outras ocorrências serão contempladas. Como o
98
Cf. BLANK, op.cit., p. 97.
KONINGS, op.cit., p. 80.
100
MÜLLER, op.cit., p. 44.
101
Cf. BLANK, op.cit., p. 116.
99
84
objetivo desta seção é aproximar os significados das ocorrências, não se procederá a uma
exegese formal de cada uma delas, mas procurar-se-á apontar os elementos exegéticoteológicos que se evidenciam e que já pertencem ao patrimônio da teologia bíblica.
3.3.1 – “Jesus-carne” para a vida do mundo – Jo 6,51-56
No cap. 6 do Evangelho segundo João, encontram-se 7 ocorrências de “carne”,
sendo que 6 delas estão referenciadas à idéia de alimento. O contexto do cap. é o da
multiplicação dos pães (Jo 6,1-15), aparentemente interrompido pela narração do milagre de
Jesus caminhando sobre as águas (Jo 6,16-21), que ganha um discurso explicativo no qual o
pão será a “carne” de Jesus (Jo 6,22-59). Segundo Brown, pode-se ver, no discurso de Jesus, o
tema da Eucaristia através de uma teologia sacramental102.
De acordo com Léon-Dufour, João parece usar intencionalmente o termo “carne”,
pois poderia ter usado yuch, (“vida” ou “alma”103) ou sw/ma (corpo). A justificativa
estaria no fato de “carne” expressar com mais fidelidade o pensamento semita e ser um
melhor indicativo da condição humana afirmada no termo rf'B'104. O uso de “carne” evoca o
Prólogo (Jo 1,14a). No v. 51 do discurso sobre o pão da vida, Jesus afirma que ele é o pão
descido do céu. O movimento de descida afirmado em relação ao pão é imagem do
acontecimento da encarnação105. O pão enviado do céu é “Jesus-carne”, o enviado do Pai.
O v. 51 lido na perspectiva da encarnação determina que é o todo da vida de Jesus
que será oferecido em sua “carne”. O Logos encarnado torna a humanidade participante de
sua “carne” e o faz pela entrega total de si. Além de ser presença de Deus, o “Jesus-carne”, a
sua existência terrena, é um alimento que propicia a comunhão da humanidade com Deus,
gerando vida no mundo (Jo 6,51)106. Na “carne” de Jesus, o projeto de Deus torna-se explícito
102
Cf. BROWN, Raymond E. Evangelho de João e Epístolas. São Paulo: Paulinas, 1975. p. 67-68.
Cf. RUSCONI, Carlo. Yuch,, yuciko,j. In: DGNT, p. 501-502. – O termo yuch, pode ser traduzido
como vida, no sentido de existência humana; o termo yuciko,j está relacionado com o que é naturalmente
humano, perecível e, até mesmo, oposto a espírito.
104
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. II, p. 118.
– A propósito: AUSEJO, Serafim de. El concepto de “carne” aplicado a Cristo. In: Estudios Bíblicos, Madrid,
v. 17, n. 4, p. 414, oct/dic. 1958. Segundo Serafin de Ausejo, haveria mais uma razão para o uso de sárx no lugar
de soma: o evangelista procuraria ser fiel à palavra que possivelmente Jesus utilizou em seu discurso, pois esta é
mais apropriada no vocabulário hebreu para dizer a totalidade da pessoa e, no caso específico, expressar o
próprio de Jesus na sua vida terrestre, na sua entrega e na sua morte.
105
Cf. LÉON-DUFOUR, Ibid., p. 118. – MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318-319. – PACK, Frank. O
Evangelho Segundo João. São Paulo: Vida Cristã, 1983. p. 109-110.
106
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 318.
103
85
e a comunicação de sua glória, uma realidade histórica. Sendo assim, “Jesus-carne” é o lugar
no qual se encontra Deus.
O v. 52 mostra a oposição dos judeus em relação à afirmação de Jesus. O verbo
utilizado é ma,comai, no imperfeito do indicativo, que significa combater, disputar, litigar,
lutar corpo a corpo. Ilustra que a palavra de Jesus causou transtorno entre o grupo de judeus
que se encontra agora dividido107. Junte-se a isso o fato de, novamente, aparecer uma
resistência dos meios judaicos ao “Jesus-carne”. Afinal, era inconcebível pensar a salvação
como dom que um homem, bastante conhecido em sua origem humana (v. 41), faria de si
mesmo. “Carne”, na boca de Jesus, é a sua realidade humana; se oferecida como alimento, aos
ouvidos dos judeus, é grotescamente mal-entendida. Barreto e Mateos108 vêem nesse v. uma
alusão à prática eucarística da comunidade joanina, incompreendida pelos judeus e, portanto,
motivadora de conflitos.
João continua sua homilia sacramental109 e, no v. 53, ao vocábulo “carne” é
adicionado “sangue”. Se, por um lado, a “carne” é sinal da fragilidade; por outro, o sangue110
recorda a presença da alma e, por sua vez, só pertence a Deus. “Carne e sangue” – alimento e
bebida do memorial sacramental – significam a humanidade de Jesus doada até a morte
violenta, referência também à cruz. Os vv. 53-54 formam uma unidade de sentido na qual são
apresentados os efeitos realizados em quem comer e beber “a carne e o sangue” de Jesus: terá
a vida (apresentado negativamente no v. 53 e positivamente no v. 54a); será ressuscitado no
último dia (v. 54); experimentará que “a carne e o sangue” de Jesus são verdadeiras comida e
bebida (v. 55); habitará no Cristo e será habitado por ele (v. 56). Há, ainda, um complemento
no v. 57 no qual se afirma que quem receber Jesus como alimento viverá por ele, da mesma
forma como ele vive pelo Pai.
É necessário destacar que no v. 53 Jesus fala, referindo-se a si mesmo, que “a
carne e o sangue” são do “Filho do Homem”. Se havia qualquer sinal de dúvida no malentendido do v. 52, ele é aqui eliminado. Mais ainda, Jesus afirma que ele não é simplesmente
uma criatura deste mundo, ele é o “Filho do Homem” (Dn 7,13). Esse título, usado em João,
107
Cf. BRUCE, op.cit., p. 143.
Cf. MATEOS & BARRETO, op.cit., p. 319.
109
Cf. KONINGS, op.cit., p. 163.
110
Cf. MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. Vocabulário teológico do Evangelho de São João. São Paulo:
Paulinas, 1989. p. 257. – Segundo os autores, “sangue” é símbolo de vida e, se derramado, sinal de morte
violenta. É realidade que pertence somente a Deus e daí a proibição de seu consumo (Gn 9,4; Lv 17,14). No
sangue encontra-se a sede da vida. Constata-se, pois, que, juntamente com “carne”, “sangue” equivale a dizer a
“totalidade do ser” de Jesus, que deve ser assumida por quem o aceita.
108
86
sintetiza a missão de Jesus: ele veio em nome do Pai para ser o doador de vida à humanidade
e torná-la participante de sua vida. Jesus é o promotor da comunhão111.
Os verbos “comer (mastigar)” e “beber”, respectivamente trw,gw e pi,nw,
formam uma unidade em que o que se deseja anunciar é a tomada de posse de um alimento (v.
57); o assumir, o assimilar o ser de Cristo. “Carne e sangue” expressam a realidade sacrifical,
na qual Jesus é comparado ao cordeiro pascal. A participação da humanidade na vida de Jesus
só é possível porque ele veio na “carne”, um humano concreto 112. É nítido o duplo acento
joanino no trecho (v. 51-58): Jesus é o humano selado pela força do Espírito; ou seja, Jesus é
a “carne” na sua realidade plena, pois real e conduzida pelo Espírito113. O texto tem uma
característica de discernimento na fé; afinal, quem deseja aceitar Jesus precisa acolher como
sua a realidade da “carne” e do “sangue” oferecidos.
Schnackenburg faz uma análise histórica de como a exegese interpretou o discurso
do pão, mostrando como os acentos foram colocados diversamente. Parece tratar-se de uma
leitura sacramental. Seria ela possível? João não deixou um relato da instituição da Eucaristia,
porém deixou um complexo discurso sobre a entrega de Jesus como alimento para a
humanidade. Schnackenburg une, de forma harmoniosa, a leitura sacramental com aquela
encarnacionista. Segundo ele, a “carne” e o “sangue” de Jesus, dados na Eucaristia, são um
testemunho da encarnação de Jesus, de sua paixão, de sua ressurreição e exaltação. Dessa
forma, a Eucaristia só pode ser entendida em íntima conexão com o envio do Filho de Deus,
pelo qual a existência “sárkica” de Jesus completa-se pela existência eucarística114.
Por que recordar a questão eucarística numa reflexão sobre o “Jesus-carne”?
Justifica-se porque numa análise somente sacramental de Jo 6 pode permanecer certa aura de
mistério e sacralidade, que tendem a olvidar o sentido da “carne” de Jesus oferecida. O tema
sacramental compreendido a partir da encarnação permite perceber uma presença da
comunidade no Cristo e a dele na comunidade e, para além da comunidade, no agir dos que o
seguem. Tal presença ultrapassa o meramente ritual e é expressão da memória de Cristo, de
sua vida, de seus desejos, de seus ensinamentos. Sendo assim, pode-se dizer que o “fazei isto
em memória de mim” (1 Cor 11,25c), em João, é “quem comer minha carne e beber meu
sangue habitará em mim e eu nele” (v. 56), ou seja, é ter a vida de Jesus em si, estar em
111
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 123.
Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 108.
113
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 319-320.
114
Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El evangelio Según San Juan. Barcelona: Herder, 1980. v. II, p. 109-113.
– Também: BLANK, op.cit., p. 410.
112
87
comunhão com ele115. A Eucaristia só é real à medida que se toma a realidade total da pessoa
de Jesus, Deus encarnado na história. O memorial proposto por João é o de na vida assumir o
amor com que Cristo amou a humanidade, tendo assim a vida e a glória dele
permanentemente como resposta pela aceitação de sua mensagem.
Espera-se que com essa análise de Jo 6,51-56 tenha ficado mais evidente que a
realidade da “carne” é o único e legítimo lugar por onde se dá o encontro com Jesus, o
humano verdadeiro e selado no Espírito, que doa plenamente sua vida como alimento para os
que nele têm fé. E que tal alimento, numa leitura sacramental e encarnacionista, é expressão
do desejo do “Jesus-carne” de fazer-se “carne”, realidade histórica, transformadora, nos
membros de sua comunidade.
3.3.2 – O termo sa,rx não aplicado à pessoa de Jesus
3.3.2.1 – Os que não nasceram do desejo da carne – Jo 1,13
O termo “carne” aparece no v. 13 como elemento que completa a estrutura
tripartida do nascimento humano. Por sua vez, esse nascimento humano é colocado como
oposto ou totalmente diferente do nascimento divino que se dá pela acolhida do Logos 116.
“Sangue, carne e varão” formam um conjunto que define por completo o nascimento humano,
não podendo ser vistos como separados no v. 13. Os dois elementos iniciais, comumente
encontrados juntos na perspectiva semita, informam que se trata da pessoa; embora o terceiro
dado (varão) pareça destoar da estrutura, assegura outro elemento do nascimento humano, que
é a participação do homem117.
Schnackenburg interpreta o termo “varão” como certa alusão à dimensão sexual
da “carne”: “Os três movimentos que caracterizam este nascimento [humano] destinam-se a
expressar o caráter terrestre do fato: está ligado ao sangue, ao apetite sexual em geral e ao
instinto do varão em particular”118. Essa interpretação encontra certo apoio em Sb 7,1-2,
115
Cf. KONINGS, op.cit., p. 162.
Cf. SEGALLA, Giuseppe. Volontà di Dio e dell’uomo in Giovanni. Brescia: Paideia, 1974. p. 254.
117
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 281-282. – Schnackenburg esclarece que alguns Santos Padres,
interpretando evgennh,qh, ou seja, o verbo no singular, propunham o v. 13 como alusivo à encarnação do
Verbo. Nesse caso, o mencionar “sangue, carne e varão” estaria afirmando a concepção virginal de Jesus.
Contudo, a forma no singular não encontra apoio nos códices mais antigos. Além disso, o problema dessa
possível alusão à encarnação é justamente antecipar o que é mencionado no v. 14a. E mais, faz com que o texto
entre em contradição também com o v. 12.
118
Ibid., p. 281.
116
88
quando se diz: “Também eu sou homem mortal, igual a todos, filho do primeiro homem
modelado em argila, no ventre materno foi esculpida minha carne; demorei dez meses para
coalhar, massa de sangue, de semente viril e do cúmplice prazer do sono”.
À tríplice fórmula do primeiro nascimento contrapõe-se uma fórmula única do
segundo: (nasceram) de Deus. Segalla ressalta que o nascimento divino inclui: a vontade e a
ação salvífica do Pai, de seu Filho e a ação do Espírito119. A oposição propõe que o
nascimento divino é uma radical separação deste mundo. Nasce-se pelo poder de Deus e não
simplesmente pela vontade ou desejo humanos120. A vida trazida pelo Logos independe do
desejo humano quanto à sua realização, ela é autônoma. O segundo nascimento, o de Deus,
depende somente da acolhida do Logos que o ser humano pode fazer. É um fato sobrenatural,
que permite ao humano participar da filiação divina. A oposição mundo inferior contra mundo
superior surge novamente nesta antítese entre o primeiro nascimento (sangue, carne, varão) e
o segundo121.
3.3.2.2 – Nascimento na carne e nascimento no Espírito – Jo 3,6
O quadro pedagógico do diálogo de Jesus com o fariseu Nicodemos (Jo 3,1-21)
também é marcado pelo tema do nascimento. Jesus insiste na necessidade de um novo
nascimento; enquanto Nicodemos está fixado apenas no nascimento humano. Será esse malentendido que propiciará a confirmação do valor do nascimento do alto (v. 3) através da
formulação do v. 6, em que se diz: “O que nasce da carne é carne, o que nasce do Espírito é
espírito”. “Carne” aqui significa a existência humana na sua debilidade, na sua condição
mortal. Nascer do Espírito é ter em si a plenitude da vida trazida pelo Logos encarnado. O que
Jesus propõe é o que ele mesmo já experiencia, pois sendo Deus faz-se humano e recebe a
força do Espírito122.
De um lado, a “carne”, expressão da fragilidade, da precariedade e da imperfeição
humanas; do outro, o Espírito, característica da verdadeira e eterna vida, força de Deus que
aperfeiçoa a obra criada e a conduz à plenitude. Na palavra de Jesus há certo aceno para o
problema do apego à lei, já que por ela havia uma caracterização da pertença ao Senhor, um
119
Cf. SEGALLA, op.cit., p. 255-256.
Cf. NICCACCI, Alviero; BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João. Petrópolis: Vozes,
1981. p. 40.
121
Cf. BROWN, El Evangelio, v.1, pt. 1, p. 185.
122
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 172-173.
120
89
sinal feito na “carne”. Além disso, nos vv. 10-11 há uma crítica às dúvidas de Nicodemos,
personificação dos mestres de Israel, aludindo ao desconhecimento e ao possível ensinamento
dos fariseus como algo vivido apenas na “carne”. Bruno Maggioni lê o v. 6 como uma crítica
à impotência do pretenso conhecimento atribuído a Nicodemos: “Nicodemos é o homem
culto, religioso, com uma longa prática de estudo e pesquisa religiosa e moral. Mas tudo isso
– e este o significado último do diálogo – é mera impotência: O que é gerado da carne é
carne (v. 6). Nicodemos não sabe entender”123.
Enfim, pode-se afirmar que a ocorrência de “carne” em Jo 3,6 é marcada pela
contraposição a Espírito, bem como permanece na tradição semita enquanto expressão do ser
humano na sua fragilidade. Trata-se, segundo Bonnard, de um dualismo soteriológico e não
antropológico, pois indica que o ser humano não pode salvar-se por si só124. O aspecto novo
que o texto apresenta é o fato de que o nascimento no Espírito é que permite ao ser humano,
“carne”, ver e experimentar o reinado de Deus (v. 3b). Ainda, o v. 6, ao mencionar o novo
nascimento em oposição ao de “carne”, remete ao Prólogo (v. 13), o qual, como se viu, trata
dos que nasceram da vontade de Deus e não simplesmente do desejo humano ou da
“carne”125.
3.3.2.3 – A “carne” para nada serve – Jo 6,63
Em Jo 6,63 encontra-se: “É o Espírito quem dá a vida, a carne para nada serve”.
Há, portanto, uma contraposição entre “carne” e “Espírito” (// Jo 3,6)126. Jesus faz tal assertiva
em decorrência da manifesta rejeição de alguns discípulos (v.60-62). “Carne” permanece aqui
com o mesmo sentido de debilidade humana, como já foi várias vezes reiterado; porém, na
contraposição a “Espírito”, indica o perigo da “carne” querer se bastar, ser auto-suficiente.
Pensamento este bem próximo ao de Paulo (acima item 2.4) e de Is 40,6b: “Toda carne é erva
123
MAGGIONI, op.cit., p. 310.
Cf. BONNARD, P. La chair dans le johannisme, et au-delà. In : Anamnesis – Recherches sur le Nouveau
Testament. Gèneve: La concorde, 1980. p. 189. – Também: BROWN, El Evangelio, p. 338. Brown partilha da
mesma opinião quando diz: “O contraste entre carne e Espírito não tem a ver com o que o dualismo
antropológico grego estabelece entre o corpo e a alma, nem implica uma oposição entre o material e o espiritual,
pois em João não há uma desconfiança gnóstica ante o material como tal. Carne se refere ao homem tal como
nasce neste mundo, um estado em que participa do espiritual e do material, como realça Gn 2,7. O contraste
entre carne e Espírito se refere à oposição que há entre o homem mortal (na expressão hebraica, ‘um filho de
homem’) e entre o que chegou a ser filho de Deus, entre o homem tal como é e este mesmo homem como Jesus
pode fazer que chegue a ser ao dar-lhe o dom do Espírito Santo”.
125
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. I, p. 225-226.
126
Cf. MANNUCCI, Valerio. Giovanni il Vangelo narrante: introduzione all’arte narrativa del quarto Vangelo.
Bologna: Dehoniane, 1993. p. 294.
124
90
e toda sua constância é como a flor dos campos”. A plenitude do ser humano se dá quando ele
acolhe o Espírito Santo, pois é este quem dá a vida ao ser humano e o encaminha no amor,
concedendo-lhe a possibilidade de seguir o Cristo na doação da própria vida127. É no Espírito
de Jesus que o ser humano realmente pode viver128, fazendo sua a forma de agir daquele que
se encarnou.
3.3.2.4 – O julgamento segundo a “carne” – Jo 8,15
O v. aqui em questão está em paralelo com Jo 6,63. Há, implicitamente, uma
oposição entre “carne” e “espírito”. Jesus acusa os fariseus de não enxergarem para além de
sua realidade humana a presença ativa do Espírito. Critica os julgamentos segundo a “carne”,
pois são sempre falhos, limitados, perecíveis; ficam apenas na aparência e não se dão conta da
lógica e do mistério de Deus129. Jesus ainda afirma que quem testemunha em seu favor é o
próprio Pai (vv. 16.18).
No “julgamento segundo a carne” não há, pois, uma idéia de “carne originalmente
pecaminosa”, mas sim uma nova alusão à resistência das autoridades judaicas em aceitar a
forma surpreendente com que Deus escolheu manifestar-se ao seu povo. E, novamente,
explicita-se a necessidade de se ter o Espírito de Jesus para ver além das aparências, ou seja,
enxergar Deus naquele homem galileu. A conclusão a que o evangelista conduz é a de que os
fariseus não conhecem a verdadeira personalidade de Jesus. Por isso mesmo, o julgamento
que fazem é sempre desprovido de razão, pois superficial. Em outras passagens da Escritura,
encontra-se a expressão “julgar segundo a carne”; logo, julgar segundo o pensamento humano
(1Sm 16,7; Is 11,3; Pr 28,21; Mc 12,14; Mt 22,16; Lc 20,21; Jo 7,24; 2Cor 10,7; Col 3,22).
3.3.2.5 – O poder sobre toda “carne” – Jo 17,2
No contexto da “oração sacerdotal de Jesus” (cap. 17) está a última ocorrência de
“carne” em João. Jesus afirma ter autoridade sobre “toda carne”, expressão hebraica que
significa “todo o povo” ou “toda a humanidade”130, e tem a capacidade de atrair a si todas as
pessoas (Jo 12,32), fazendo isso para conceder-lhes a vida eterna. O v. é elaborado de maneira
127
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 326-327.
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 350-351.
129
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 367.
130
Cf. HENDRIKSEN, William. O Evangelho de João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 754.
128
91
a que elementos distintos completem-se numa síntese do mistério salvífico: o Pai deu
autoridade ao Filho sobre toda a humanidade (carne); por sua vez, “Jesus-carne”, tendo
recebido autoridade do Pai, doa aos seus a vida eterna, que contrapõe-se à “carne”, existência
efêmera. Sem a vida que Cristo concede, a “carne” permanece “carne”, porém, em relação aos
que o recebem, ele tem o poder de torná-los filhos de Deus (Jo 1,12)131.
O final do v. 2 é singular ao afirmar que Jesus concederá a vida eterna aos que lhe
foram confiados pelo Pai. Jesus não pretende excluir ninguém, mas expressar a sua
competência salvífica universal. É a forma utilizada por João para referir-se àqueles que
realmente acolhem a proposta de Jesus. Embora a destinação da vida eterna fosse direcionada
a todos, João frisa que parte da humanidade é que a acolheu na pessoa de “Jesus-carne”.
Sendo assim, a liberdade do ser humano é elemento imprescindível para a ação que o Cristo
quer realizar: conceder sua própria vida, a vida divina.
O v. 2 pode ser facilmente associado ao Prólogo, pois indica a realidade de
acolhida (v. 12) ou rejeição (vv. 5.10-11) em relação ao Logos feito “carne”. Na cruz, o Cristo
entregue e elevado oferece, por sua “carne” sacrificada, a vida para toda a humanidade. A
entrega da cruz é mais um elemento no conjunto das entregas que o “Jesus-carne” realizou.
Com relação ao v. 14a do Prólogo, pode-se recordar que o que permitiu a entrega da vida na
cruz e a doação da vida eterna foi justamente o fato de Deus ter se revelado na “carne” e não
em realidades legais ou mágicas. É o fato de ser frágil, perecedouro, crucificável que permitiu
ao Filho de Deus entregar-se por completo. O “Jesus-carne” de João é o protótipo de todo ser
humano plenificado, no qual o projeto de Deus alcança o seu objetivo. Em “Jesus-carne”, o
projeto de Deus é levado a bom termo e toda a sua glória-amor132 é partilhada com a
humanidade.
3.4 – Uma possível leitura “sarcológica” do Evangelho de João: sa,rx como paradoxo
Uma pergunta que pode ser feita diante do Evangelho segundo João é a da
possibilidade de se tomar o termo “carne” como sua chave de leitura. E já que é um evangelho
centrado no Cristo, haveria a possibilidade de uma cristologia “sarcológica”? Tuñí Vancells
comenta que um dos aspectos que dificulta a compreensão cristológica em João é o fato de o
Evangelho ser usado ora para sublinhar a humanidade de Jesus, o Cristo, ora para sublinhar a
131
Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João. São Paulo: Loyola, 1996. v. III, p. 203.
– Também: PACK, op.cit., p. 265.
132
Cf. MATEOS & BARRETO, Vocabulário, p. 116-120.
92
sua divindade133. O que se pretende aqui não seria o tomar o vocábulo “carne” como
determinante da humanidade em detrimento da divindade. Mas, talvez, explicitar o que a
comunidade joanina pretendia ao aplicar a palavra “carne” à pessoa de Jesus, utilizando-o
como uma forma de aproximação à mensagem proposta no Evangelho.
Já que o texto de Jo 1,14a não pretende formular nenhuma afirmação dogmática
acerca das naturezas humana e divina de Jesus, tem-se que o evangelho quer dar a conhecer a
pessoa de Jesus como o revelador de Deus. Segue-se ao v. em questão a afirmação de que os
humanos conheceram/viram, participaram de sua glória. Pode-se, pois, traçar uma linha de
compreensão na qual o desafio que a “carne” coloca é justamente o de se entrever nela, ou
seja, na humanidade de Jesus, a glória divina. Bultmann parece ver nessa revelação
justamente um desafio para o conhecimento de Deus, pois o escândalo da “carne” acabou por
cegar aqueles que pensavam ver. Apesar de público, permanece oculto; apesar de revelado,
permanece misterioso. Para Bultmann, a revelação na “carne” não impede a abscondidade de
Deus134.
Tradicionalmente, a afirmação da encarnação é interpretada como elemento
facilitador do encontro da humanidade com Deus. Como dado elaborado da fé e da teologia
cristãs, sem dúvida que não há outra manifestação mais forte de um Deus que desejou se
comunicar às suas criaturas; porém, na interpretação do texto de João e na sua coerência
interna, descobre-se que a “carne” pode ter sido realmente um desafio para os
contemporâneos de Jesus.
As pesquisas em torno do Evangelho segundo João sugeriam ser ele um escrito
antidocetista que ao pregar o Logos vindo na “carne”, estabelecia definitivamente que não
houve em Jesus Cristo apenas uma aparência de humano, mas que realmente foi um ser
humano135. Assim, o hino cristológico do Prólogo teria como claro objetivo combater os
pensamentos heréticos. Todavia, uma leitura atenta do conjunto do Evangelho faz notar que
há constantemente uma referência à humanidade de Jesus. Referência esta que sempre se
vincula ao papel redentor. Por várias vezes, Jesus é chamado de humano; para somente depois
ser reconhecido como Cristo.
Embora, como foi mencionado anteriormente, o termo “carne” não encontre um
equivalente imediato em “humano”, nas passagens que se propõe agora analisar o segundo
133
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 69-70.
Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2004. p. 479.
135
Cf. SCHNACKENBURG, op.cit., v. I, p. 284.
134
93
termo é justamente um indicativo da “carne” de Jesus, sua condição mortal, e do malentendido que causa o fato de Deus escolher tal forma para se manifestar. Parece, portanto,
que não havia uma dificuldade em se aceitar a humanidade de Jesus, mas sim de se aceitar
que nela deu-se plenamente a revelação de Deus.
Da mesma forma como se interpretou João como o evangelho da humanidade,
houve também quem visse nele sinais claros de docetismo. Käsemann136 repara como em João
há uma série de passagens em que Jesus parece ser apenas Deus que se passa por humano:
antes de se encontrar com Natanael já o havia visto (Jo 1,48); conhece as pessoas por dentro
(Jo 2,24-25); diante da multidão faminta sabe o que fazer, mas pergunta aos discípulos só para
prová-los (Jo, 6,6); sabe que será traído por Judas (Jo 6,64); sabe da morte de Lázaro antes de
chegar a Betânia (Jo 11,14). Considerando o cap. 17 de João, Käsemann propõe que o único
interesse do evangelista é anunciar a glória do Logos preexistente137. Segundo Käsemann,
João reinterpretou a vida de Jesus para significar que realmente Deus andou na terra, sendo
um evangelho marcado por um “docetismo ingênuo”. No evangelho já se apresentaria uma
teologia dogmática, em que a questão da natureza de Jesus é evidenciada, portanto abrindo
caminho para a Patrística138.
Uma leitura imediatista e popular que desejasse falar da humanidade de Jesus,
insistiria nos aspectos físicos mencionados no texto como sede, cansaço, tristeza. Parece que
João vai além disso. Apresenta-se agora alguns textos joaninos em que o termo “humano”
aplicado à pessoa de Jesus permite uma aproximação com o termo “carne”.
3.4.1 – Jesus e a mulher samaritana – Jo 4,1-30
A narrativa do encontro de Jesus com a samaritana é marcada por várias
polissemias, os símbolos se abrem em significados sempre mais profundos. Há no episódio
um Jesus sedento (Jo 4,7). A cena bastante plástica é facilmente imaginável, um galileu com
sede, mas num território inimigo e encontrando-se com uma mulher.
O aspecto da sede é quase irrelevante, ele é apenas o motivo inicial da conversa,
pois, em seguida, Jesus afirma que a mulher é quem deveria lhe pedir água (Jo 4,10). O
136
Cf. KÄSEMANN, Ernst. El Testamiento de Jesus el lugar histórico del Evangelio de Juan. Salamanca:
Sígueme, 1983.
137
Cf. COTHENET, E. O Evangelho segundo São João. In: Os escritos de São João e a Epístola aos Hebreus.
São Paulo: Paulinas, 1988. p. 93.
138
Cf. BROWN, Raymond E. Jésus dans les quatre évangiles : introduction à la christologie du Nouveau
Testament. Paris : Cerf, 1996. p. 282-285.
94
contraponto à humanidade de Jesus é dado pela afirmação de que ele é portador de uma fonte
de água, água viva (Jo 4,13s)139. A partir do elemento acima (sede), pouco se pode falar da
humanidade de Jesus, mas há um indicativo mais exemplar.
No v. 29, a mulher samaritana anuncia aos de sua cidade que encontrou um
“humano” que lhe disse tudo o que fizera. O termo “humano” designa aquilo que é a primeira
percepção da Samaritana. “Alguém”, semelhante a ela, um “humano” e não um anjo foi quem
desvelou a sua vida. “Não seria ele o Messias?”140, ela pergunta. A Samaritana não chega com
uma afirmação de fé num Deus encarnado, ela parte da mais pura constatação de que havia
conversado com um “humano”, sem dúvida, especial. Talvez aqui, pode-se falar de uma fé na
humanidade de Jesus que é caminho para a proclamação de sua messianidade. Esse
permanece o grande desafio cristão, partir da humanidade para reconhecê-lo como Messias.
Há um movimento em que do humano chega-se ao caráter salvífico/redentor.
Comparado com o v. 14a do Prólogo, há quase o mesmo movimento. O Logos
feito carne tornou sua glória visível à humanidade; o “humano” Jesus tornou visível sua glória
à samaritana. A mulher reconhece em “Jesus-carne” o Messias e, por isso, sai e anuncia a fé.
No texto, o acento parece colocado na constatação de que Jesus é uma pessoa humana141 que
revela-se como Messias. Não há nenhum esforço do evangelista para provar a humanidade de
Jesus, mas sim uma insistência de que uma samaritana reconheceu naquele homem o
salvador.
3.4.2 – Jesus e o debate sobre a filiação de Abraão – Jo 8,39-47
Em João, há um movimento de tensão entre a revelação de Deus em “Jesus-carne”
e a incompreensão humana142. No contexto do debate entre Jesus e as autoridades judaicas
sobre o tema da filiação de Abraão, há um indicativo da humanidade colocado nos lábios de
Jesus. Diz o v. 40 “Mas agora procurais matar-me, a mim, ‘humano’ que vos tem dito a
139
Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 26.
Cf. BROWN, A comunidade, p. 46. – Acerca da compreensão messiânica dos samaritanos: Brown tece o
seguinte comentário: “É muito improvável que um samaritano crente aclamasse Jesus como o Messias, no
sentido davídico, pois toda a teologia samaritana era orientada contra as pretensões da dinastia davídica e de
Jerusalém, a cidade de Davi. De fato, o termo ‘Messias’, é de consenso geral, não aparece em escrito samaritano
antes do século XVI. Com efeito, os samaritanos esperavam um Taheb (aquele que volta, o restaurador), um
mestre e um revelador; e pode ter sido nesse sentido que os samaritanos aceitaram Jesus como o ‘Messias’ –
note-se que a samaritana diz em 4,25: ‘Sei que o Messias (que se chama Cristo) está para vir. Quando ele vier,
nos anunciará tudo’”. – Também: MAGGIONI, op.cit., p. 317.
141
Cf. TUÑÍ VANCELLS, J.-O. El testimonio del evangelio de Juan: Introducción al estúdio del cuarto
evangelio. Salamanca: Sigueme, 1983. p. 109.
142
Cf. MAGGIONI, op.cit., p. 315.
140
95
verdade que de Deus tem ouvido; Abraão não fez isto”143. Não se pretende aqui discutir se
Jesus tinha ou não consciência de sua divindade, mas faz-se necessário assinalar o quanto o
texto evangélico insistiu nessa humanidade, a ponto de chegar a proclamá-la como identidade
supostamente dita pelo próprio de Jesus.
Novamente, o aspecto constrangedor é que as autoridades não conseguem ver
nessa humanidade de Jesus a glória que Deus quer revelar. O texto termina com uma
acusação, feita por Jesus, de que as autoridades não o escutam porque elas não são de
Deus (v. 47) e também não são ovelhas de seu rebanho (Jo 10,2-6).
Jesus é o humano que diz a verdade do Pai, justamente porque dela participa
(v. 40; 46). A idéia de participação na vida de Deus está presente durante todo o texto,
afirmando que a palavra de Jesus deveria ser acolhida como verdade vinda de Deus. Pode-se
concluir que a comunidade joanina tinha como assegurado o valor da humanidade de Jesus e o
proclamava como elemento de sua fé. Não isolado, mas em harmonia com a revelação da
glória divina. Ademais, a imagem apresentada de Jesus é a do humano obediente ao Pai e a
rejeição a este enviado prova que a pretensa filiação a Abraão nada mais significa144.
Adicione-se a tudo isso a ironia presente no texto, pois se Abraão foi sensível e escutou a voz
de Deus (Gn 12,1-9 = busca de uma nova terra; Gn 15,1-6 = promessa de descendência
numerosa; Gn 22,1-19 = sacrifício de Isaac), seus filhos (judeus) deveriam também fazê-lo. A
situação das autoridades judaicas, no texto acima, enquadra-se perfeitamente no v. 11 do
Prólogo.
3.4.3 – Jesus e a cura do cego de nascença – Jo 9,1-41
O episódio da cura do cego de nascença é exemplar, pois internamente há uma
construção do processo de conhecimento vivido pelo cego que culmina com uma profissão de
fé na pessoa de Jesus. Depois da cura, o que fora cego é questionado por seus vizinhos sobre o
como teria recuperado a visão. A resposta dele (v. 11) constata a realidade imediata da pessoa
As traduções tendem a suprimir anthropos porque parece ter apenas o valor do pronome indefinido tíj. A
citação acima foi feita a partir da tradução de João Ferreira de Almeida que é mais literal. Assim diz o texto
grego: “nu/n de. zhtei/te, me avpoktei/nai a;nqrwpon o]j th.n avlh,qeian
u`mi/n lela,lhka h]n h;kousa para. tou/ qeou/\ tou/to VAbraa.m ouvk
evpoi,hsen”. – BROWN, El Evangelio, v.1, pt. 2, p. 596. De acordo com Brown, o termo “humano” no v. 40
é apenas um semitismo com o significado de “alguém”. Apesar do mencionado acima, achou-se por bem refletir
essa passagem pela relação do termo com a questão da humanidade. Tão humano a ponto de ser apenas
“alguém”, mais um dentre outros frágeis e impotentes diante das ações de uma religião desvinculada da vida e
submissa ao poder romano.
144
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 206-207.
143
96
que o curou. Diz o cego: “O humano, chamado Jesus, fez lodo, e untou-me os olhos, e disseme: ‘Vai ao tanque de Siloé, e lava-te’. Então fui, e lavei-me, e vi.” Na primeira parte da
narrativa, não há alusão ao poder de Jesus como sendo o Messias, mas sim uma constatação
da sua existência humana145. Mateos e Barreto comentam Jo 9,11 assim:
A resposta do que fora cego, que volta a enumerar as ações de Jesus (cf. 9,6),
evidencia a importância do relato de cura. O curado considera Jesus homem
como ele (9,1: um homem; 9,11: este homem). Sabe que se chama Jesus, que
no contexto poderia aludir ao seu significado etimológico, “Deus salva”, mas
não o conhece. O certo é que, seguindo as suas instruções, obteve a vista146.
A aproximação que Mateos e Barreto fazem das duas menções do termo “homem”
(na verdade, a;nqrwpoj, portanto “humano”) é bastante justa. De acordo com ela, pode-se
concluir que realmente a utilização do vocábulo “humano” indica a condição humana de Jesus
e a identificação com a humanidade. A partir do ponto de vista dos que não crêem em Jesus
como o Messias, ele não passa de mais um ser humano.
No v. 16 os fariseus referem-se a Jesus como “esse homem” e criticam sua nãoobservância do sábado. Parece haver certa intenção do evangelista em mostrar que tanto o
cego como os fariseus apenas percebem a humanidade de Jesus. Porém, diferentemente, o
cego concluirá o processo de conhecimento, afirmando primeiramente que Jesus é um profeta
(v. 17) e, em seguida, proclamando-o como Senhor (v. 36); enquanto os fariseus
permanecerão numa cegueira produzida pelo pecado e pela persistência em não acolher o
Messias no “homem Jesus” (v. 41). É válido ressaltar que o evangelista coloca no passado os
conflitos que sua comunidade tinha com a sinagoga e o judaísmo formativo147.
Outra referência ao título “humano”, aplicado a Jesus, encontra-se no v. 24. Os
fariseus aproximaram-se do curado da cegueira e exigiram dele uma proclamação de fé em
Deus. No pensamento farisaico, somente o Deus Único poderia ser adorado e não admitiam
que Jesus fosse considerado o “Cristo” (v. 22). Os fariseus acusam o “humano” (Jesus) de ser
um pecador (v. 24), ao que o homem curado responde reafirmando a cura (v. 25). É em
“Jesus-carne” que, ironicamente, o cego vê a presença de Deus; enquanto que os que
pretensiosamente dizem enxergar vêem apenas um ser humano. Cristo é o “humano” que
torna o outro mais humano, à medida que este último segue suas orientações e consegue
enxergar a ação de Deus nas ações de “Jesus-carne”.
145
Cf. BROWN, Evangelho de João, p. 85-86.
MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 413 [grifo dos autores].
147
Cf. LÉON-DUFOUR, Leitura do Evangelho segundo João, v. II, p. 236-237.
146
97
Mais uma vez, tem-se a impressão de que o evangelista insiste não em afirmar uma
humanidade em oposição a pensamentos docetistas, mas sim como sinal da dificuldade que a
comunidade judaica experimentou diante de uma manifestação divina imprevista e
surpreendente: o Altíssimo revelado no humano. O anacronismo usado para apresentar o
conflito da Igreja com a sinagoga é meio hábil para mostrar que o discípulo precisa escolher
entre o ensinamento da sinagoga ou a fidelidade a Cristo148.
3.4.4 – Jesus acusado de blasfêmia – Jo 10,22-39
O contexto da perícope é o de uma interrogação dos judeus acerca da real
messianidade de Jesus (v. 24). Diante da resposta de Jesus na qual se afirma a sua unidade
com o Pai (v. 30) no agir, os judeus reagem acusando-o de ser apenas um “humano” com
pretensão de Deus (v. 33). A ironia de João joga na fala dos judeus aquilo que é afirmação
cristã, descrevendo quem, na verdade, é Jesus. A dita blasfêmia da fala de Jesus só pode ser
compreendida como tal pela incapacidade de se ver em “Jesus-carne” o mensageiro de Deus.
De modo inverso, o evangelista apresenta Jesus numa réplica em que acusa os judeus de
serem blasfemos por não reconhecerem o que a própria Escritura afirma: “Eu declaro: embora
sejais deuses e todos filhos do Altíssimo” (Sl 82,6).
Na realidade, o problema apresentado pelo evangelista, no argumento dos judeus,
é o de que o “humano” Jesus faz-se Deus, acusação também presente em Jo 5,18. Os judeus
pensam que Jesus se coloca como Deus. Jesus, o enviado de Deus, porém não afirma ser
Deus, mas sim “Filho de Deus” (Jo 5,19s; 10,36). A expressão “Filho de Deus”, em João,
reveste-se de importância, particularmente nesse caso, por dois motivos: a) por afirmar a
unidade de Jesus com o Pai e o caráter próprio da personalidade de Jesus como enviado;
b) por afirmar que é somente na realidade histórica de Jesus que se tem acesso ao amor de
Deus; ou seja, a vida histórica de Jesus é a atuação do amor existente entre o Filho e o Pai149.
Apesar de Jesus responder, inicialmente buscando o argumento da Escritura e só
posteriormente afirmando sua filiação divina, o v. 32 já tinha afirmado que o seu agir era o
agir do Pai (sinais). Se os judeus viam em Jesus apenas um “humano” que pecou por levar
outros a acreditarem que ele era Deus, os cristãos da comunidade joanina viam em “Jesus-
148
149
Cf. Ibid., p. 238.
Cf. DODD, op.cit., p. 349-350.
98
carne” a única possibilidade de se participar do amor do Pai. No texto, os judeus concentramse no discurso, enquanto Jesus aponta para as obras que são a expressão do amor do Pai150.
3.4.5 – Jesus, o sinal de Lázaro e a reação do Sinédrio – Jo 11
Todo o capítulo 11 é uma grande introdução ao mistério da paixão. Nesse
contexto, após a divulgação do sinal realizado por Jesus de revivificar o amigo Lázaro, o
evangelista fala da reunião do Sinédrio que tramará contra Jesus.
Um aspecto da humanidade de Jesus que costuma ser realçado na leitura deste
texto é o da sua tristeza diante da morte do amigo. João, num clima de suspense que segura o
leitor, apresenta um Jesus que chora, que partilha da dor da família enlutada (v. 35). É um
Jesus humano, que sente, que expressa seus sentimentos, que se expõe. Será mesmo? Brown
vê no sinal da ressurreição de Lázaro justamente o oposto, pois, segundo ele, ali se apresenta
uma relativização da humanidade de Jesus. Brown pronuncia-se da seguinte forma:
Ele [Jesus] ama Lázaro mas com um amor estranhamente privado de
compaixão humana, porque ele não vai procurá-lo quando ele está doente
(11,5-6), e a morte de Lázaro se torna um momento feliz para instruir sobre a
fé (11,11-15). A vista da irmã de Lázaro chorando parece irritá-lo (11,33), e
não está claro se suas lágrimas (11,35) são de tristeza por causa do amigo ou
por causa da falta de fé151.
Adicione-se aos elementos de Brown o fato de que nos vv. 41-42 enfatiza-se a
intimidade de Jesus com o Pai. Sua oração é plena de confiança, e o sinal é colocado como
elemento que ajudará a comunidade a crer na missão de Jesus como enviado. A construção
narrativa aponta para a ressurreição de Jesus, que, diferentemente de Lázaro, se libertará das
amarras da morte definitivamente. Novamente, como no texto da Samaritana, o que parecia
ser indício de humanidade de Jesus (tristeza) acaba por ser rechaçado.
O grupo de fariseus reunido, tramando a morte de Jesus, é o retrato da rejeição à
revelação de Deus. Diante dos sinais realizados por Jesus, os fariseus deveriam reconhecê-lo
como o Messias, porém só o vêem como um humano (v. 47). Dentro da perspectiva do duplo
pano de fundo (o tempo de Jesus e o tempo da comunidade), o evangelista apresenta, numa
“profecia pós-evento”, que um dos motivos que levam os judeus a recusar Jesus seria o de
evitar a catástrofe da destruição do santuário e da nação pelo Império Romano (v. 48).
Utilizam o bem-estar nacional como justificativa para a recusa em acolher Jesus. O
150
151
Cf. MATEOS & BARRETO, O Evangelho, p. 454-455.
BROWN, A comunidade, p. 119-120.
99
movimento messiânico esperado pela ortodoxia judaica contava com um libertador do povo,
não com um agitador, pois era assim que consideravam o movimento de Jesus152. Parece que
o vir na “carne” não facilitou o encontro de Deus com o seu “povo eleito”.
3.4.6 – Jesus diante de Pilatos – Jo 19,1-16
Resta uma menção do termo “humano” na cena de Jesus com Pilatos. Depois de
mandar açoitar Jesus, Pilatos o apresenta simplesmente como “o humano” (v. 5). Há certo
desprezo na palavra de Pilatos153. Tal atitude parece ser uma manobra do evangelista com
duplo propósito: Pilatos constata a humanidade de Jesus e a comunidade de fé a professa
como realização da salvação. Colocada no discurso dos adversários (ironia joanina 154), a
afirmação de que Jesus se fez filho de Deus (v. 7), é a proclamação de fé no “homem Jesus”
como enviado e revelador do Pai.
O termo “humano” na boca de Pilatos tem o sentido depreciativo de “acusado”,
com acentuação na sua fraqueza e impossibilidade de fazer o mal. Porém, para o evangelista
evoca o título de “Filho do Homem”, que no Quarto Evangelho exprime o mistério cristão 155.
Há, possivelmente, um desejo do evangelista de afirmar a humanidade de Jesus como lugar
único de manifestação do sagrado. Para a comunidade cristã, o dito “Eis o humano” (v. 5) soa
como sinônimo de “o Logos fez-se carne”.
Na pessoa de Jesus, despojado de toda a “realeza do mundo”, vislumbra-se o
verdadeiro ser humano, aquele que é livre para se entregar até o fim num gesto pleno de
amor156. Novamente, o que está em jogo não é uma dificuldade em se aceitar a humanidade de
Jesus. Pelo contrário, ela é um dado plenamente aceito e inequívoco. Como diz Panimolle: “O
Cristo joanino não é um Deus que caminha sobre a terra, mas o Verbo que se fez carne, feito
nosso irmão, em tudo semelhante a nós”157. O que importa não é pregar a humanidade sofrida
do “Jesus-carne”, mas sim o êxito final de sua missão que se dará pela entrega na cruz.
3.5 – A cristologia do envio e o termo sa,rx
152
Cf. BUSSCHE, op.cit., p. 353.
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 72.
154
Cf. BROWN, Evangelho, p. 16.
155
Cf. NICCACCI & BATTAGLIA, op. cit., p. 247.
156
Cf. MATEOS & BARRETO, O evangelho, p. 755.
157
PANIMOLLE, op.cit., p. 114.
153
100
Há certo consenso de que é difícil delimitar a cristologia joanina158 devido as
inúmeras possibilidades que o texto permite, desde partir de um título aplicado à pessoa de
Jesus até tomar parte ou todo o Evangelho (atos, palavras, relações, festas, topografia etc.). É
evidente que se encontra em João uma concentração cristológica. Parece que o objetivo do
evangelista era responder à questão “quem é Jesus?”159. Todavia, ele não dá a resposta
imediatamente; pelo contrário, vai elaborando uma rede de sinais, palavras e ações de Jesus
que permitem ao leitor fazer seu próprio caminho de conhecimento cristológico. Tal
pedagogia é totalmente coerente com o propósito do Evangelho de ser um testemunho acerca
de Jesus, que leva à vida oferecida por ele, o Messias160.
A cristologia joanina é, segundo Müller, uma cristologia do envio marcada pelo
esquema do caminho de descida e subida do Redentor, originária do tráfego de mensageiros
no antigo Oriente e adotada para retratar mensageiros religiosos 161. Alonso Schökel, tratando
da linguagem nas Escrituras recorda três tipos de mensageiros que eram comuns na
antiguidade: a) o entregador de cartas escritas; b) o que dizia a mensagem em alta voz e tinha
o escrito como sua confirmação; c) o mensageiro categorizado, que recebia o assunto para
expô-lo e desenvolvê-lo segundo as circunstâncias162. “Jesus-carne” é aquele que, não faz a
sua própria vontade nem diz a sua própria palavra, somente faz e anuncia a vontade Pai que o
enviou (Jo 7,16ss; 12,44ss); na condição mortal e no pleno exercício de sua liberdade, ele é
aquele mensageiro categorizado que na história realiza o agir de Deus 163. O agir e o ser de
Jesus são condizentes com a incumbência que ele tem de revelar o Pai. “Jesus-carne”, na sua
existência na provisoriedade terrestre, é o mensageiro elevado ao grau máximo, pois ele
mesmo já é a mensagem do Pai.
Essa cristologia do envio não se apega nem ao pensamento de uma cristologia do
alto, da qual se pudesse afirmar que em João só se trata da divindade de Jesus, nem se fixa no
outro extremo, na chamada cristologia de baixo. A cristologia do envio está ordenada em
158
Cf. FERRANDO, M. A. Ver Jesús, un aspecto fundamental de la Cristología del Cuarto Evangelio. Teología
y vida, Chile, v.22, n. 3, p. 203, abr./jun. 1982.
159
Cf. PANIMOLLE, op.cit., p. 98.
160
Cf. KONINGS, op.cit., p. 51.
161
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 60.
162
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L. A Palavra Inspirada. São Paulo: Loyola, 1992. p. 51. – Também: RAD,
Gerhard von. Sabiduria en Israel: Proverbios, Job, Eclesiasteés, Eclesiástico, Sabiduría. Madrid: Cristiandad,
1985. p. 30.
163
Cf. VITÓRIO, op.cit., p. 439. – O autor valoriza a idéia de movimento, de êxodo, em direção ao Pai. Jesus
tem papel fundamental nesse movimento e age em nome daquele que o enviou, não é um mero mediador, mas
sim um agente legítimo do Pai.
101
vistas de uma incumbência que é revelar o Pai e sua glória164. A idéia do envio é retomada
diversas vezes: Jesus foi enviado para salvar (Jo 3,17); não veio por si mesmo, pois procede
daquele que é a Verdade (Jo 7,28s); os que o rejeitam não sabem de onde ele veio nem para
onde ele vai (Jo 8,14); foi o Pai quem o enviou (Jo 8,16.42). Müller define a incumbência de
Jesus, como enviado, da seguinte forma:
A incumbência do único Filho gerado de Deus consiste em transmitir vida
divina ao mundo, que não conhece a vida verdadeira. Para isso ele, a quem o
Pai enviou do mundo celestial, tem de tornar-se humano. É com isso que
inicia a execução de sua tarefa165.
O amor de Deus para com a humanidade é revelado no ato de enviar seu Filho,
pois o “Jesus-carne” joanino é o revelador. Não veio trazer uma outra mensagem a não ser a
de que em sua pessoa e por sua pessoa o ser humano tem acesso a Deus, antes longínquo e
inacessível. A encarnação é um dos momentos do esquema do envio166 e por ela, o “Jesuscarne” torna-se caminho para o Pai (Jo 14,6). O Cristo joanino é a abertura para o mistério de
Deus. Nas imagens do próprio Evangelho: Jesus é o caminho (Jo 14,6) 167, a porta (Jo 10,9), a
visibilidade do Pai (Jo 14,9)168, é uno com o Pai (Jo 17,22). A pessoa de Jesus é a via para se
chegar à plenitude do próprio Deus169.
O termo “carne” em João situa-se nesse contexto da cristologia do envio. Deus não
se faria conhecer realmente aos humanos senão se fizesse “carne”. Ao romper com todas as
outras imagens de Deus, o Verbo encarnado mostra a face de um Deus até então
desconhecida. Um Deus que para falar aos seus e comunicar-lhes a salvação é capaz de
assumir a condição de fragilidade, própria da humanidade. O Deus onipotente fez-se frágil.
Numa meditação, Von Balthasar diz:
O Verbo veio, pois, ao mundo. A vida eterna tomou o lugar dum coração
humano. Resolveu habitar nessa frágil morada e, aí, deixar-se atingir. Logo,
a sua morte era coisa assente. Porque a origem da vida é indefesa170.
Em “Jesus-carne”, a condição mortal, é fator determinante para a plena realização
do projeto de Deus de tornar a humanidade participante de sua vida eterna, que é conhecê-lo
164
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 61.
Ibid., p. 68.
166
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 67.
167
Cf. VITÓRIO, Jaldemir. op.cit., v. 1, p. 124. – Segundo o autor, a metáfora utilizada por Jesus, “caminho”, dá
à experiência humana de relação com Deus um dinamismo que supõe ruptura com determinada situação e
colocar-se em marcha na direção do objetivo a ser alcançado.
168
Cf. Ibid., p. 252-255. Segundo Vitório, o Pai pode ser visto nas obras realizadas por Jesus. Enquanto a
teofania veterotestamentária afirmava a impossibilidade de se ver Deus, o evangelho de João apresenta o ser e o
agir de Jesus como a realização dessa visão.
169
Cf. TUÑÍ VANCELLS, Jesús, p. 101.
170
BALTHASAR, H. U. von. O coração do mundo. Porto: Tavares Martins, 1959. p. 47.
165
102
(Jo 17,3). Na “carne” de Jesus, a “carne” de cada pessoa, ou seja, sua existência, é
contemplada e convocada ao seu destino último: participar da glória de Deus, o Deus que foi
glorificado pelo agir de “Jesus-carne” (Jo 17,4).
A cruz é, para João, uma exaltação que se insere na missão de Jesus. Importante
recordar como o relato da paixão em João é marcado por um Jesus que tem controle absoluto
sobre a situação, ele é que está decidido a dar a sua vida (Jo 10,11), ele é o grão caído na terra
que produzirá muito fruto (Jo 12,24). A existência na “carne” não é a definitiva, mas é real,
não podendo ser amenizada. Verdadeiramente Jesus toca a realidade humana171. E a morte de
Jesus é passagem, saída do mundo, para retornar Àquele que o enviou. Da mesma forma que
ele veio, ele deve voltar e só pode fazê-lo após cumprir com êxito sua missão172. Na morte
irrompe definitivamente a revelação de Deus à humanidade. A ressurreição é a ocasião, em
que o Pai revela a íntima ligação existente com o Filho, que não se rompeu pela encarnação
nem pela morte de cruz.
Segundo Müller, na concepção da cristologia do envio, o nascimento e a morte de
Jesus são momentos na existência do enviado. Sendo assim, mais que a humanidade de Jesus,
o predominante em João seriam os aspectos celestiais do enviado, que precisavam ser
realçados já que a condição do “Jesus-carne” era patente naquele momento histórico173.
3.6 – O Jesus histórico em João
Ao falar da humanidade de Jesus, pode-se inquirir sobre o chamado “Jesus
histórico”. Theissen e Merz apontam cinco elementos em João que divergem dos sinóticos e
remetem ao Jesus histórico: a) ligação dos discípulos de Jesus com o Batista; b) Betsaida
como origem de Pedro, André e Filipe; c) melhor explicitação das expectativas despertadas
por Jesus e dos motivos que levam à sua condenação; d) narração de um interrogatório do
sinédrio no lugar de um processo judaico contra Jesus; e) morte de Jesus antes da Páscoa174.
Pode-se associar tudo isso ao fato de que a afirmação de Jo 1,14a torna indubitável a realidade
histórica de “Jesus-carne”. Realidade esta lida corretamente pelo evangelista ao produzir a
partir da mesma uma teologia narrativa. Ainda pode-se comparar que, embora tido como
Evangelho teológico ou espiritual, João é o que apresenta Jesus de forma mais humana: não é
Cf. KONINGS, op.cit., p. 314. – O esquema ilustrativo usado pelo autor é bastante didático e ajuda a
compreender a cristologia do envio.
172
Cf. MÜLLER, op.cit., p. 68.
173
Cf. Ibid., p. 72-73.
174
Cf. THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 56-57.
171
103
um milagreiro, faz sinais que exigem uma tomada de decisão; sua transfiguração dá-se na
cruz; foi um pregador incompreendido e, por isso mesmo, não aceito; guardava em sua
“carne” o segredo de que é no humano, na história, que Deus revela-se; desafiou a
humanidade a aceitá-lo como enviado do Pai.
Toda a pesquisa em relação ao Jesus histórico, amplamente desenvolvida e
bastante divulgada, diante do Evangelho segundo João e, especificamente, diante do termo
“carne” (expressão de fragilidade humana na história) traz à superfície algumas questões. O
que (fatos, palavras) da história de Jesus pode ser reconstituído a partir do conjunto do Quarto
Evangelho? Como (pergunta pelo método) desentranhar do texto de João elementos que
pudessem contribuir para uma visão do Jesus histórico? Qual a melhor maneira para se pensar
o “Jesus-carne” sem cair numa recriação das “vidas de Jesus”175 a partir da história, conceitos
e subjetividade de quem a pensa?
Um Deus que entra na história (“Jesus-carne”), mas que tem sua história narrada a
partir do ponto de vista teológico: um escrito sem preocupação com datas; contendo algumas
incongruências topográficas; marcado por personagens e diálogos ficcionais; silencioso em
relação a alguns episódios dos sinópticos e original na narração de outros não-mencionados
por eles176. Assim é João, quanto à sua forma de apresentar Jesus. Porém, pode-se ver no texto
uma história implícita que fala tanto da comunidade quanto da realidade vivida por Jesus, ou
seja, o duplo pano de fundo. Tal tarefa não é tão simples, mas intenta elucidar o que seria de
um ou outro momento histórico (de Jesus ou da comunidade) ou dos dois tempos. O que se
pretende aqui não é realizar tal empreitada, mas apenas sinalizar o valor histórico do Quarto
Evangelho. Um dos problemas que pode surgir é o de se fazer perguntas ao texto que o seu
autor não se fazia no momento de sua compilação. Ou ainda, o de ver no texto questões que
são da atualidade dos leitores.
Para a comunidade joanina, a afirmação apresentada em Jo 1,14a expressa a
consistência da verdade que será anunciada pelos cristãos e que veio ao mundo na pessoa de
Jesus. Ou, em outra formulação, a verdade de Deus, que, no mundo, é “Jesus-carne”. João faz
Cf. MURPHY-O’CONNOR, A antropologia, p. 33. – Comentando acerca da aplicação do conceito de
humano à pessoa de Jesus no contexto das cartas paulinas, Murphy-O’Connor diz: “[...] nas cerca de 60.000
biografias de Jesus escritas durante os séc. XVIII e XIX, o retrato de Jesus que emerge está condicionado
principalmente pela subjetividade do autor que cria um herói em conformidade com suas próprias aspirações.
Em conseqüência, Jesus surge de várias maneiras como idealista, racionalista, romântico, socialista etc”. –
Também: THEISSEN & MERZ, op.cit., p. 24. Os autores recordam a afirmação de A. Schweitzer de que “cada
imagem de Jesus da teologia liberal revelava a estrutura de personalidade que, aos olhos do autor, valia como o
ideal ético mais digno de almejar”.
176
Cf. BLANK, op.cit, p. 30-37.
175
104
história no sentido mais próprio da palavra, ele não é um cronista, mas sim um intérprete dos
fatos, que procura organizá-los de modo inteligível com vistas a um objetivo177. João rompe,
já no passado, com o mito de uma história isenta de influências.
Se é fato inquestionável que João é uma obra teológica, é também inquestionável
que a afirmação de Jo 1,14a tem por objetivo um sentido histórico178. O evangelista não quis
apresentar a vida, paixão, morte e ressurreição da mesma forma que os sinópticos, sua
composição insiste no lugar histórico, essencial para a realização da missão de “Jesus-carne”.
“O Logos se fez carne” (Jo 1,14a) propõe que o Jesus confessado pela comunidade joanina
realmente existiu e o que importa para ela é resgatar o sentido de sua vida.
3.7 – Conclusões acerca do termo sa,rx em João
A afirmação de Jo 1,14a: “E o Logos se fez carne” insere-se perfeitamente na
compreensão hebraica de “carne”. No Prólogo, nessa aplicação à pessoa de Jesus, “carne”
significa a condição humana, frágil, perecível, mortal, crucificável de Jesus. É a manifestação
da nova forma de Deus comunicar-se com a humanidade, não mais nas alturas, mas na
história humana com tudo o que ela permite. João assegura a realidade histórica da existência
de Jesus pela declaração de que o Logos preexistente faz-se ser humano e estabelece morada
na terra.
Dizer que o Logos fez-se “carne” não significa em João um deixar de ser Deus,
pois ele permanece o mesmo e agora adquire algo novo, ou seja, a participação na condição
mortal dos humanos; e, ao mesmo tempo, revela outra novidade, Deus faz-se igual aos
humanos, “fala a mesma língua”. “Carne” no v. 14a do Prólogo também não se relaciona com
pecado, ela é sinônimo de enriquecimento da humanidade, chamada a reconhecer no “Jesuscarne” aquilo a que todo ser humano é convidado a participar, a saber, a glória divina. O fato
de se encarnar é justamente o que possibilita ao Logos manifestar, na doação irrestrita de si na
cruz, todo o amor que Deus tem pelos seus. Não só a cruz salva, mas a encarnação já é a
possibilidade de encontro com a salvação que é “Jesus-carne”. Ele não veio para condenar o
mundo, mas sim para salvá-lo (cf. Jo 3,17).
Outro aspecto que se evidenciou foi o da visibilidade. O ser na “carne” permite
também ao Logos tornar-se visível. O agir na história não é uma elucubração, mas sim algo
177
178
Cf. DODD, op.cit., p. 589.
Cf. Ibid., p. 587-588.
105
real, concreto, palpável. Foi nessa condição que o “Jesus-carne” deixou-se conhecer e revelou
o rosto de Deus. Porém, o desafio, principalmente para os judeus, foi aceitar que na “carne de
Jesus” Deus revelava-se por completo e inesgotavelmente. A ocorrência de “carne” em
Jo 1,14a pode ser associada às do cap. 6. A encarnação é também o que permite ao Cristo
entregar seu próprio ser como alimento e bebida para a humanidade. E neste cap. 6 se
explicita claramente a resistência dos judeus à humanidade de Jesus.
As outras ocorrências de “carne” em João não dizem respeito ao Cristo e oscilam
de significado de acordo com o contexto em que se encontram. Certo é que, para João, não há
uma disputa entre “carne” e “espírito”; nele o dualismo é mais a manifestação das esferas
distintas, a da humanidade e a de Deus. E quem desejar experimentar por completo a
participação na salvação oferecida pelo “Jesus-carne” deve nascer na força do Espírito.
Quando João critica o termo “carne”, critica, na verdade, a pretensão humana de se dar por
satisfeita apenas na condição terrestre, esquecendo que o projeto de Deus é o de uma
verdadeira comunhão com ele.
Embora não se tratando de um sinônimo, como se mencionou, foram analisadas as
passagens nas quais o termo “humano”, evidente referência à humanidade de Jesus, dizia
respeito diretamente à sua pessoa. “Jesus-carne” é realidade pacificamente aceita no processo
de elaboração do Quarto Evangelho. Os judeus não tinham problemas em aceitar que Jesus
fosse ser humano; ao contrário, só viam nele o ser humano, portanto, não havia uma
preocupação com o docetismo. No diálogo com os da sinagoga, a comunidade joanina
enfrentou o desafio de convencê-los acerca da missão de “Jesus-carne” como Filho de Deus e
partícipe de sua divindade. João não tinha a pretensão de distinguir em Jesus o que era
humano e o que era divino. O anúncio do Evangelho era justamente o de que naquele ser
humano Deus manifestava-se. João não escreve um Evangelho a partir do alto; se fala do
Logos preexistente, é porque o enviado na “carne” permitiu conhecer o alcance do mistério de
Deus. Para João, falar de “Jesus-carne” é falar de Jesus por completo, ou seja, a preexistência
do Logos, a sua existência terrena e, também, a sua exaltação na cruz e ressurreição. Tuñí
Vancells o diz da seguinte maneira:
A humanidade de Jesus não é, portanto, para a comunidade joânica um
aspecto historicamente relevante do passado. É precisamente na confissão
onde se recorda a realidade humana de Jesus como algo que pertence
indissoluvelmente ao objeto da mesma confissão. A comunidade do
Evangelho de João não está apresentando a realidade terrena de Jesus como
106
algo que aconteceu. A realidade terrena de Jesus segue sendo um aspecto
central da confissão atual da comunidade179.
Na perspectiva joanina, o “humano Jesus” é o revelador que supera todas as
expectativas oficiais de messianismo e traz a novidade que o cristianismo persiste em
anunciar: “O Logos se fez carne!” (Jo 1,14a). O círculo hermenêutico que o termo “carne”
propõe faz uma evolução ao longo do Evangelho, partindo da referência da encarnação até a
alusão da paixão (Jo 19,5). O projeto de Deus feito “carne” revela-se em plenitude na
glorificação de Jesus pendente na cruz. O círculo não se fecha, abre-se novamente quando a
comunidade reconhece que é na vida humana que o “Jesus-carne” continua a manifestar-se e
que, somente acreditando, o ser humano descobre o sentido de sua existência e o alcance da
graça que Deus comunicou na pessoa de seu Filho.
4 – “Carne” nos outros escritos joaninos
Como derradeiro passo do estudo semântico de “carne”, serão apresentadas as três
ocorrências do termo nas cartas de João. Pretende-se, com isso, comparar e confirmar alguns
elementos já elucidados na reflexão sobre João.
4.1 – Concupiscência da “carne” – 1Jo 2,16
Em 1Jo 2,16, tratando sobre o agir do cristão no mundo, o autor da carta escreve:
“Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a
soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo”. A expressão “concupiscência da carne”
apresenta o termo evpiqumi,a. O substantivo evpiqume,w, no NT,
tem várias
possibilidades de tradução, girando sempre em torno da idéia de desejo, cobiça. Segundo
Schönweiss, nos escritos joaninos, o desejo tem sempre uma fonte mais antiga; não tendo sua
origem no humano, mas sim no mundo180. Pode-se compreender evpiqumi,a como um
desejo ardente, tão desenfreado a ponto de gerar preocupações, concupiscência. Pois bem,
ligado ao substantivo sarkój, a expressão completa indica “todo desejo desordenado ligado
à carne”.
179
180
TUÑÍ VANCELLS, Jesus, p. 92.
Cf. SCHÖNWEISS, Hans. evpiqumi,a. In: DITNT. v. 1, p. 525.
107
Na verdade, “carne”, nesse caso então, seria a oposição ao mundo de Deus181 e a
explicitação de toda pretensão humana de se auto-sustentar. “Carne” no contexto joanino é o
ser humano na sua fugacidade, na sua precariedade de mortal (Jo 1,14), na sua totalidade
terrestre, na sua necessidade de aperfeiçoamento; sendo assim, o que é condenado na epístola
é o apegar-se a essa condição terrestre, o ser conquistado e aprisionado pelos sentidos. Podese chegar a essa conclusão pela indicação dos v. 15 e 17. Em ambos, a oposição entre mundo
e Deus, ou entre amor ao mundo e o amor a Deus, ou ainda, entre mundo (realidade dominada
pelo Maligno – 1Jo 5,19) perecível/transitório e o Deus imperecível/eterno182; evidencia que o
deixar-se levar pela cobiça da “carne” terá como conseqüência o herdar o que é próprio da
“carne”, ou seja, a extinção, a corrupção total. Ao contrário, aqueles que se apegam ao amor
de
Deus e se recusam a seguir a “concupiscência da carne” estão assegurando sua
perenização (1Jo 2,17). O autor exorta a que os cristãos vençam o que é característico da
sociedade pagã e firmem-se no seguimento de Jesus183.
4.2 – Jesus Cristo na “carne” – 1Jo 4,2
Ainda na Primeira Epístola de João, ao tratar da necessidade de discernimento dos
espíritos diante do surgimento de doutrinas que não professavam a totalidade da fé cristã,
encontra-se a expressão VIhsou/n Cristo.n evn sarki, (1Jo 4,2). O critério
cristológico é aqui imprescindível para o discernimento dos espíritos184. O autor adjetiva os
cismáticos de diferentes formas, o que demonstra o teor de sua oposição e o desejo de
realmente ajudar a comunidade cristã a fazer seu discernimento. O autor os chama de
mentirosos (1Jo 2,4.22a), enganadores (1Jo 2,26), anticristos (1Jo 2,18.22b),
(1Jo 3,10b),
falsos
impostores
profetas (1Jo 4,1c), perecíveis/sem vida (1Jo 5,12); sedutores,
pertencentes ao mundo e pecadores (1Jo 3,8), alheios à comunidade (1Jo 2,19).
181
Cf. TILBORG, Sjef van. A Primeira Carta de João. In: THEVISSEN, G. et al. As Cartas de Pedro, João e
Judas. São Paulo: Loyola, 1999. p. 215. – Também: FLEINERT-JENSEN, Flemming. Commentaire de la
Première Épître de Jean. Paris: Cerf, 1982. p. 49.
182
Cf. FORT, P. Le. As Epístolas. In: COTHENET, op.cit., p. 181-184. – Tratando do dualismo em João, o autor
afirma que, tal antítese, além de manifestar a oposição entre as esferas do poder de Deus e do poder do maligno,
obriga o cristão a tomar uma decisão. Há um imperativo prático, no qual se transfere para a vida comunitária o
mesmo dualismo. Segundo Le Fort, não se trata de um dualismo estático, em 1Jo 2,18 o autor afirma que já se
encontram na hora em que a confusão entre crentes fiéis e pessoas das trevas chegará ao fim; nesta hora o
império de Deus triunfará.
183
Cf. BROWN, Evangelho, p. 188.
184
Cf. BONNARD, op.cit., p. 187.
108
Possivelmente, a comunidade, à qual a carta destina-se, defrontava-se com
afirmações frontalmente opostas ao que a fé cristã tinha como essencial185. O distintivo cristão
é a afirmação da encarnação do Filho de Deus; decorre dela o imperativo ético proposto à
comunidade de seguir Jesus até o fim, imitando suas atitudes (1Jo 3,16-18.23-24; 5,18)186. O
vocábulo “carne” em 1Jo 4,2 tem o mesmo significado de Jo 1,14a, pois uma das
características da pregação sobre Jesus na Epístola é justamente o anúncio de sua condição
mortal187. O Messias, humano como toda humanidade (“carne”), é aquele que doou sua vida
de forma voluntária e como vítima expiatória188.
Le Fort ainda diz que: “No plano doutrinal, a Epístola combate certa insipidez do
cristianismo que anula a existência física de Jesus e descura a exigência do amor fraterno”189.
Morgen também concorda com esse pensamento e alerta sobre o perigo de uma identificação
muito imediata dos falsos profetas da epístola com a corrente docetista; pois parece que o
problema era o não aceitar a unidade joanina que valoriza a “carne” de Jesus. Segundo
Morgen, os falsos profetas de 1 Jo “[...] não negavam a encarnação, nem a realidade física da
humanidade de Jesus; por outro lado, para eles, o que Jesus foi ou fez-se ‘carne’ não tinha
incidência em sua salvação”190. No pensamento joanino, “Jesus-carne” é quem conseguiu
convocar o ser humano à condição de “carne” vivificada pelo Espírito.
Chama atenção o fato de, no “prólogo” da Epístola, o autor afirmar que a
revelação por ele recebida é atestada pelos verbos ouvir (avkou,w), ver (o`ra,w) e apalpar
(yhlafa,w). O conjunto desses verbos confirma que o “Jesus-carne” (1Jo 4,2) não foi uma
ilusão, mas sim uma realidade histórica audível, visível e palpável que manifestou Deus191.
Além de garantir a humanidade de Jesus, sua existência histórica e sua morte; os três verbos
ligam-se à experiência pascal dos discípulos192, quando compreendem o que Jesus havia dito
(Jo 2,22) e o que tinha acontecido (Jo 12,16).
185
Cf. FLEINERT-JENSEN, op.cit., p. 85-87.
Cf. BONNARD, op.cit., p. 193.
187
Cf. TILBORG, op.cit., p. 247.
188
Cf. FORT, op.cit., p. 173.
189
Ibid., p. 173.
190
MORGEN, Michèle. As Epístolas de João. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 70.
191
Cf. TILBORG, op.cit., p. 194.
192
Cf. MORGEN, op.cit., p. 13. Michèle Morgen propõe interpretar o Prólogo da Epístola justamente em chave
pascal, apontando para a relação do verbo “ver” com as experiências do discípulo amado (Jo 20,8), de Madalena
(Jo 20,18), dos discípulos (Jo 20,25) e de Tomé (Jo 20,29); do verbo “apalpar” com as evocações de toques no
corpo de Jesus por Madalena (Jo 20,17) e Tomé (Jo 20,27). Embora Morgen não associe o verbo ouvir a
nenhuma passagem, pode-se facilmente constatar que em todas as experiências que a comunidade faz do
Ressuscitado-crucificado acontecem diálogos que também frisam o aspecto real da ressurreição.
186
109
4.3 – Jesus Cristo vindo na “carne” – 2Jo 7
O autor não tem pretensão de ensinar um preceito novo, mas sim recordar o
mandamento já anunciado do amor mútuo (2Jo 5). Reconhece que alguns permanecem no
caminho da verdade (2Jo 4) e alerta para o perigo da pregação dos impostores (2Jo 7). Qual
seria o erro doutrinal presente na pregação dos que são o Anticristo? O v. 7 explicita que se
trata da negação da humanidade de Jesus. O mistério cristão proclamava a “carne mortal” de
Cristo como dado essencial para a fé. Fica novamente muito evidente que nessa ocorrência do
termo “carne” seu significado é o mesmo já apresentado da finitude e fragilidade humanas.
Para Tilborg, “o uso do tempo presente [evn sarki,] significa que também agora importa
vencer o escândalo da dimensão sárquica. Jesus é homem como nós, mas é ele que devemos
confessar”193.
Mais uma vez, parece que o autor da Epístola quis insistir na ética cristã. Ele
associou o v. 7 ao conjunto que falava do caminho da verdade e da prática do amor
mútuo (vv. 4-6). Os vv. 8-11 continuam denunciando o perigo da pregação do Anticristo, na
qual, em nome de certo desenvolvimento espiritual, acaba-se chegando a excessos e
afastando-se do ensinamento autêntico. Quem é da luz deve rejeitar os que são das trevas e
suas ações. Mas, na prática, o que significa confessar que “Jesus veio na carne”? Confessar o
Cristo com a Igreja, permanecendo no caminho da verdade, é traduzir em obras o seu jeito de
agir. Morgen vê na expressão “Jesus veio na carne” o nexo entre amor ao irmão e cristologia,
acentuando que:
Uma vez que Cristo respondeu ao amor do Pai pelos homens, tornando-se
carne, a nossa resposta ao amor de Deus só será verdadeira e adequada se,
por nossa vez, inventarmos a encarnação do amor de Deus, e isso tanto em
palavras (liturgia, confissões de fé etc.) como em nossas obras (amar ao
próximo)194.
Conclui-se que, com relação ao termo “carne”, a Segunda Epístola reforça a
prática do amor já anunciada na Primeira Epístola. A realidade reveladora do amor de Deus
para com a humanidade está em “Jesus-carne” e, em conseqüência dessa assunção do gênero
humano, todo amor a Deus será verificável na prática do amor aos irmãos (1Jo 4,7-21).
193
194
TILBORG, op.cit., p. 282-283.
MORGEN, op.cit., p. 93 [grifo da autora].
110
Conclusão
A análise do termo “carne” no AT permitiu resgatar a dimensão da humanidade
enquanto criação de Deus e a ele referenciada. A pesquisa demonstrou que “carne” liga-se ao
sentido mais específico de formação de órgãos ou músculos, servindo como designação tanto
humana quanto animal; relacionada ao ser humano tem seu sentido ampliado, denotando
desde o grau de parentesco, a pertença a um grupo de origem ou religioso, até o de igualdade
entre todos os seres humanos. O termo “carne” não tem sentido negativo ou pejorativo,
apenas explicita a totalidade do humano e o que é próprio daqueles que vivem na esfera das
criaturas e, por isso mesmo, são decadentes, perecíveis, mortais. Ao afirmar isso, os autores
do AT depositam radicalmente a vida humana nas mãos de Deus. Em relação ao v. 14a do
Prólogo, a análise do AT assegura uma aproximação desprovida de preconceitos e
julgamentos morais, permitindo um contato com o que o evangelista e sua comunidade
transmitiram.
A leitura do vocábulo “carne” em Paulo surpreende pela proximidade que ainda
cultiva em relação ao AT. A novidade é que Paulo vai, progressivamente, transportando para
o universo teológico um termo que, a princípio, lhe era estranho. Embora no AT o vocábulo
tivesse uma incidência na elaboração e reflexão da fé, em Paulo “carne” passa a ocupar lugar
privilegiado, que explicita os desejos egoístas e de pretensão à salvação, bem como a ocasião
para a plena realização do ser à medida que se deixa guiar pelo Espírito.
Quanto à aplicação do termo à pessoa de Jesus, como se viu, Paulo faz um uso
moderado, insistindo sempre na condição de igualdade com os seres humanos e ressaltando
sua isenção de pecado. Paulo credita à “carne” de Jesus uma missão de redenção. O mistério
da encarnação não é ainda a ação salvífica, ela se dá na paixão e ressurreição. No sacrifício de
“Jesus-carne”, o pecado é derrotado e o ser humano pode dar um novo sentido à sua condição
de criatura. Quando usa “carne” para referir-se a Jesus, Paulo não quer afirmar parte ou
componente do ser do Filho de Deus, ele está apontando para o todo de sua vida, a totalidade
de sua existência que se revela plenamente na cruz.
O estudo teológico-exegético de Jo 1,14a recuperou a ressonância hebraica do
termo grego usado por João. No Quarto Evangelho, o anúncio dá-se a partir da afirmação de
que Deus rompeu todas as barreiras que poderiam impedir uma verdadeira comunicação com
o ser humano e fez-se humano para falar sua palavra. O Logos encarnado é uma realidade
irrefutável que assegura à comunidade cristã a salvação trazida por Cristo, que revela a glória
111
do Pai. A humanidade precisa ver para além das aparências de Jesus e aceitar que o lugar de
Deus é junto com os seus e que seu agir demonstra qual deve ser o agir daqueles que o
seguem. A dificuldade dos contemporâneos de Jesus foi justamente a de ficarem estagnados
diante do humano e não conseguirem aceitar que nele Deus manifestava-se.
Afirmar que em João existe apenas uma cristologia descendente é não reconhecer
que no seu evangelho há um forte indício de que a humanidade de Jesus era dado pacífico e
que o desafio foi afirmar a sua participação na divindade. Mais que isso, em João, há uma
cristologia do envio, que contempla o terreno, pois é justamente na esfera do efêmero, do
transitório, do perecível, do carnal, do mortal que Deus se revela em Jesus. A redenção que o
Cristo comunica só pode ser vislumbrada na existência histórica de Jesus. Sendo assim, a vida
terrena de Jesus é essencial para a compreensão que se tem dele na fé.
O estudo das outras ocorrências da palavra “carne”, não aplicadas a Jesus, em João
assinalou que há mais de um sentido, bem semelhante ao AT, e que a ênfase encontra-se
sempre numa crítica ao apego às coisas terrestres. “Carne” é usado justamente para
demonstrar que a vida humana diante de “Jesus-carne” é um lugar de escolhas, de decisão. A
oposição joanina é um convite a perceber que o humano não tem o pleno domínio sobre si; no
Cristo, ele pode encontrar a verdade e a liberdade. A análise do conceito “humano” propôs
uma aproximação com “carne” e ajudou a demonstrar o quanto para a comunidade joanina a
confissão de fé na humanidade de Jesus era algo determinante, mostrando que é no Cristo
total que se encontra a plena realização do projeto criador de Deus.
Ainda sobre Jo 1,14a, ficou patente que não há nenhuma intenção do evangelista
de formular um princípio doutrinal acerca das duas naturezas de Jesus. Como se disse há
pouco, para João só é possível anunciar Jesus, o Cristo, como aquele que na “carne” revelou a
glória de Deus. É o Jesus terrestre que, compreendido pela comunidade à luz da Páscoa,
permite a essa mesma comunidade confessar num hino que o Cristo existe desde todo o
sempre. Ao dizer Jesus, João quer dizer aquele que, existindo desde sempre veio a este
mundo, nele viveu provisoriamente e agiu pela força do próprio Pai e, após cumprir sua
missão, a ele retornou e foi exaltado.
As ocorrências de “carne” nas Epístolas de João insistem na necessidade de se
viver a fé no Cristo “vindo na carne”. A ética que brota das passagens epistolares é a do amor
verdadeiro que se verifica na encarnação das mesmas atitudes de Jesus. Afirmar sua vinda na
“carne” é critério inalienável para o discernimento da comunidade e para resguardar o
específico cristão contra toda pretensão de conhecimento. Conhece-se a Deus por Jesus vindo
112
na “carne” e tal conhecimento só pode ser comprovado na prática do amor. As Epístolas
demonstram preocupação com os impostores que diziam viver a fé, mas se recusavam a
aceitar o “Jesus como o Filho de Deus vindo na carne” (1Jo 4,2).
As duas passagens das Epístolas que se referem a Jesus são declarações que
compõem o credo comunitário cristão e ligam-se ao mistério da redenção. Em ambas, há uma
crítica a todo descuido em relação à humanidade de Jesus. Mais que em Jo 1,14a, as duas
referências das cartas apontam explicitamente que aceitar o Cristo na “carne” é dado
fundamental da fé. No Evangelho, a menção à “carne” alude mais ao fato de Deus comunicarse na história e assumir de uma vez por todas a humanidade como lugar transitório de sua
revelação.
Após toda esta reflexão em torno do “Jesus-carne” a partir de Jo 1,14a, é preciso
ainda se perguntar sobre as conseqüências da mesma no nível eclesial, na dimensão do
diálogo ecumênico e inter-religioso e no diálogo com o mundo e a cultura modernas.
CAPÍTULO III: INCIDÊNCIAS DA LEITURA DE
“JESUS-CARNE” (Jo 1,14a)
Após a análise do significado do termo “carne” em Jo 1,14a, desejamos agora
explicitar algumas incidências de tal leitura através de questões que estão, direta ou
indiretamente, relacionadas ao vocábulo “carne” na sua aplicação joanina à pessoa de Jesus,
como também ao tema da encarnação. Seis proposições, divididas em três grupos, serão
apresentadas e comentadas. Divisão esta apenas didática, pois as questões estão intimamente
relacionadas e quase que se exigem mutuamente.
A primeira incidência diz respeito ao universo intra-eclesial. Nela demonstra-se
que o tema do “Jesus-carne” permanece uma verdade cristã a ser anunciada, mas, ao mesmo
tempo, uma incógnita. Não se trata aqui de mistério, mas sim de uma incógnita devido à
utilização de uma linguagem que já não responde aos interlocutores modernos. Esta
incidência reflete diretamente na teologia e suas dificuldades para tratar de Deus de forma
mais condizente com a chamada virada antropológica (GS 12). Posteriormente, aponta para a
relação abissal entre teologia, fé pensada e catequese e liturgia, fé experimentada.
A segunda incidência do “Jesus-carne” toca o tema do diálogo ecumênico e interreligioso. Nos dois diálogos é ressaltada a exigência que a humanidade de Jesus efetua em
relação a qualquer proposta religiosa, a saber, o colocar o humano como centro. O
ecumenismo circula em torno da proposta amorosa de “Jesus-carne”. Tal proposta tem suas
exigências éticas, e o diálogo ecumênico pode dar-se a partir daí. Quanto ao diálogo interreligioso, buscamos responder à questão do contributo do “Jesus-carne” diante do pluralismo
religioso e das pretensões cristãs de reconhecer em Jesus a revelação definitiva de Deus e de
sua relação com outras religiões também a partir do humano.
Por fim, uma última incidência diz respeito à importância de “Jesus-carne” para o
114
diálogo com o mundo moderno1, tentando elucidar a questão da relação entre Deus e o
humano não como díspares, mas sim como parceiros que em Jesus encontram-se e vinculamse. “Jesus-carne” revela o quanto Deus pode surpreender o humano e como o ser humano só
pode entender-se no voltar-se para Deus. Ainda na relação com a modernidade, buscamos
refletir sobre o valor do “Jesus-carne” para o tema tão candente da solidariedade. Ela
ultrapassa os limites religiosos e surge como uma proposta secularizada, que pode receber do
“Jesus-carne” um complemento significativo.
1 – “Jesus-carne”: verdade cristã e incógnita eclesial
O estudo de Jo 1,14a abre perspectivas para uma reflexão sobre a atual concepção
eclesial acerca da imagem e pessoa de Jesus. A leitura do “Jesus-carne” de João é um apelo
para voltar-se ao início do cristianismo e perceber que a fé na pessoa de Jesus é, inicialmente,
um ato de adesão a um ser humano que re-significou as relações da humanidade com Deus,
manifestando-se como o revelador do Pai. Os primeiros cristãos só puderam elaborar a
releitura de Jesus após o evento pascal, porque esse galileu não era fantasiosamente
imaginado por um grupo, mas um humano que existiu, agiu e pregou em meio à história de
homens e mulheres também reais.
A perspectiva joanina, ao propor “Jesus-carne”, assegura e dá como elemento
indiscutível a humanidade redentora do homem que, posteriormente, foi compreendido e
interpretado (cristologia) como Filho de Deus2, no sentido de participante da mesma natureza
de Deus. Como se viu, ao longo do capítulo anterior, no Evangelho de João não havia uma
distinção inicial entre divindade e humanidade de Jesus. Tal distinção culmina por criar certa
cisão, que impede ao cristão contemplar Jesus, o Cristo, como um todo, com o todo do seu
ser, da sua existência.
O desafio lançado aos primeiros ouvintes de Jesus e de João permanece atual: ver
naquele ser humano a revelação plena e definitiva de Deus e o único acesso ao Pai. A reflexão
teológica está muito além da compreensão da fé vivida, celebrada e ensinada pelos cristãos. O
Jesus, tantas vezes propagado pelo cristianismo, está muito aquém da pessoa do “JesusConsidera-se aqui como “mundo moderno” o advento, concretização e expressão da autonomia da razão,
englobando seus momentos ou nuances, tais como “pré-modernidade” e “pós-modernidade”.
2
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. História humana: revelação de Deus. São Paulo: Paulus, 1994. p. 216-217.
1
115
carne”, que habitou em meio à humanidade (Jo 1,14), e de sua densidade salvífica. “Jesuscarne” permanece como verdade anunciada pelo cristianismo, mas também como uma grande
incógnita que desafia o fiel, a liturgia e a catequese.
Já distantes dos debates cristológicos, o cristianismo vê-se às voltas com o desafio
de dar o real significado a fórmulas que, na sua origem, tinham sentido muito claro e exato e,
hoje, revelam-se, por vezes, ininteligíveis. Já distante das conversões, compreendidas como
processo pessoal de adesão ao Cristo, o cristianismo depara-se com a urgente necessidade de
apresentar as razões de sua fé àqueles que o receberam como herança.
1.1 – A redescoberta do “Jesus-carne”
Proposição: A compreensão de “Jesus-carne” exige da teologia moderna um repensar as
afirmações da fé, na fidelidade ao que o evangelho de Jesus ensina, procurando desvelar o
que as primeiras comunidades cristãs quiseram afirmar sobre sua pessoa; consciente de que
sua palavra teológica não pode reproduzir conceitos abstratos de Deus, mas apenas inferir
algo sobre Deus a partir do que foi sua manifestação na história concreta de Jesus.
A cristologia tradicional, procurando na Escritura argumentos que confirmassem
as afirmações e definições dogmáticas3, encontrou em Jo 1,14a a prova bíblica que validava a
sua teologia da encarnação. Num contexto histórico distinto e, sendo também uma elaboração
marcadamente histórica, posto que é uma interpretação4, a teologia afirmou a preexistência do
Verbo, pensou sua natureza, definiu o conceito de pessoa, assegurou a humanidade de Jesus,
sem o pecado. Sem dúvida, questões verdadeiras e incorporadas pela Tradição, mas que
diante de uma releitura de Jo 1,14a podem parecer incômodas e exigir nova orientação.
Constata-se que a elaboração teológica nem sempre se encontra numa linguagem inteligível
ao homem e mulher contemporâneos. Uma primeira interpelação oriunda da mudança da
teologia tradicional5, que não mais dialogava com o mundo e contentava-se em repetir as
afirmações da fé, para a teologia moderna encontra-se no problema da linguagem.
Toda linguagem acerca do mistério é sempre analógica, contudo necessita ter
arrazoados claros. Os interlocutores não são mais atingidos pela cristologia tradicional. A
3
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luís. A Palavra Inspirada: a Bíblia à luz da ciência da linguagem. São Paulo:
Loyola, 1992. p. 224.
4
Cf. GEFFRÉ, Claude. Como fazer teologia hoje: hermenêutica teológica. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 83-85.
5
Cf. LIBANIO, João Batista; MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo:
Loyola, 1996. p. 137
116
palavra sobre a encarnação está visivelmente encoberta por uma série de conceitos e
preconceitos que não permitem uma leitura de Jo 1,14a como novidade de fé. Sendo assim,
uma nova cristologia não pode fugir à tarefa de dizer, em conformidade com a Tradição, a
verdade cristã acerca do Enviado pelo Pai. Entretanto, depois do advento da razão moderna, a
cristologia não pode se permitir apenas afirmar algo, mas deve sim explicitar racionalmente,
com direito ao uso de todos os elementos necessários, o que o cristianismo propõe.
A questão da linguagem está intimamente ligada ao ponto de partida da reflexão
cristológica. Diferentemente da teologia tradicional, a moderna, no desejo de dialogar com o
mundo, tem revelado uma preocupação em retornar humildemente à reflexão bíblica como
sua verdadeira fonte (DV 24) e, particularmente, aos evangelhos, como mensagem a ser
urgentemente anunciada. Nesse caminho, a teologia moderna, procurou refazer a história
vivida pela comunidade na exposição de sua fé. Daí surge a ênfase numa cristologia
histórica6, mais condizente com os enunciados dos evangelhos e não como reflexão e
reprodução sistemática do que os concílios e manuais teológicos haviam afirmado. Essa
mudança de ponto de partida fez com que a cristologia apontasse para o ser humano Jesus de
Nazaré, o Cristo, afirmado pela comunidade como Filho de Deus. A teologia assumiu que só
no diálogo com a exegese pode-se ser fiel à sua identidade de fala humana acerca de Deus7.
A experiência do anúncio do humano Jesus que revela em plenitude a face divina,
exige ainda a humildade teológica de reconhecer que do Deus, anunciado pelo cristianismo,
só se poderá dizer algo a partir de Jesus. E que de Jesus só se pode falar a partir de seu
ingresso na história humana, como agente do Pai. E, somente depois de compreender o
“Jesus-carne” revelador do Pai, reconhecendo o extraordinário da novidade trazida por ele, é
que se pode chegar como João a afirmar a sua preexistência8.
A cristologia histórica não pretende acentuar a humanidade de Jesus em
detrimento de sua divindade, mas proclamar que em “Jesus-carne” tem-se o legítimo acesso a
Deus e confessar esse Jesus como o Cristo9. Um Deus que resgata a transitoriedade da história
e a transforma em lugar para dizer o máximo de si; que se mostra fraco e perecível para,
paradoxalmente, revelar-se glorioso. “Jesus-carne” é palavra primeira que se pode falar sobre
6
Cf. QUEIRUGA, Andrés Torres. Repensar a Cristologia: sondagens para um novo paradigma. São Paulo:
Paulinas, 1999. p. 311.
7
Cf. GILBERT, Pierre. Pequena história da exegese bíblica. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 197. 201.
8
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. Pedagogia do Cristo: elementos de cristologia fundamental. São Paulo: Paulinas,
1997. p. 71.
9
Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 333.
117
o Cristo10. O restante é, por assim dizer, palavra segunda ou interpretativa. Entretanto, a
palavra primeira indissoluvelmente unida à segunda é que permite afirmar a fé cristã.
O desafio que “Jesus-carne” propõe à cristologia em geral é o de retornar à índole
própria de João não como anúncio de um Deus preexistente que se encarna, mas como
testemunho que almeja renovar a fé daqueles que conseguem olhar para a humanidade de
Jesus e enxergar para além dela. A leitura de João utilizada como argumento para se asseverar
a divindade de Cristo11 ou, na terminologia corrente, a cristologia descendente em oposição à
ascendente, parece carecer de fundamento. O Evangelho de João não pretende mostrar um
Jesus tão divinizado como se lhe escapasse o ser humano ou isso lhe fosse algo suprimível;
tão pouco deseja ser uma história sobre a vida do Jesus terreno. Em João, “Jesus-carne” é
sinônimo da atuação de Deus na história. Não que Deus não agisse antes, mas, pela
proclamação do Prólogo, Deus é aquele que se deixa conhecer da forma como um humano
poderia conhecer.
Há, em João uma cristologia que concilia o agir terrestre de Jesus com o
significado último de sua exaltação. Não poderia ser glorificado aquele que não assumiu a
humanidade. Longe de ser um argumento para justificar a preexistência do Filho de Deus,
Jo 1,14a é o anúncio da missão de Jesus, ou seja, o vir na carne para comunicar-se à
humanidade em nome do Pai. A encarnação como a paixão são momentos extremos da vida
de “Jesus-carne”, elas não são em si a definição do seu ser e agir, elas enquadram-se no arco
da existência da pessoa humana Jesus que cumpre sua missão, chegando ao limite da morte.
Falar do “Jesus-carne” apresentado em João é tratar do Jesus humano que, viveu
em tudo a vida dos humanos, se desenvolveu como ser humano, passou pelas angústias e
alegrias, se reconheceu como pessoa e descobriu no Pai o sentido último de sua existência.
Por isso mesmo, anunciou o amor do Pai pelo seu agir, falar, enfim viver. Têm sido de grande
ajuda as análises feitas por judeus acerca de um Jesus mais real12. Nessas obras, procurando
10
Cf. DUPUIS, Jacques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999.
p. 409.
11
Cf. HAIGHT, Roger. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 210-211.
12
Destacam-se, sobretudo, nessas pesquisas as obras do professor Geza Vermes. Cf. VERMES, Geza. Jesus, o
judeu. São Paulo: Loyola, 1990; A religião de Jesus e o cristianismo. São Paulo: Imago, 1995; Jesus e o mundo
do judaísmo. São Paulo: Loyola, 1996. – Também: MEIER, J. P. Um judeu marginal: repensando o Jesus
histórico. Essa obra, publicada pela Imago, está organizada em dois volumes, sendo o segundo dividido em três
livros. – Ainda sobre pesquisas judaicas: LAPIDE, Pinchas. Filho de José?: Jesus no Judaísmo de hoje e de
ontem. São Paulo: Loyola, 1993. – CHARLESWORTH, James H. Jesus dentro do Judaísmo: novas revelações a
partir de estimulantes descobertas arqueológicas. Rio de Janeiro: Imago, 1992. – Na perspectiva do diálogo interreligioso é clássico: MUSSNER, Franz. Tratado sobre los judíos: para el diálogo judeu-cristiano. Salamanca:
Sígueme, 1983.
118
uma aproximação isenta da confissão de fé cristã, revela-se com grande naturalidade como
Jesus foi um judeu comum. “Jesus-carne” é um judeu insatisfeito com as barreiras impostas
aos que desejam conhecer Deus. São também de grande utilidade as pesquisas em torno das
literaturas circunvizinhas aos evangelhos, revelando o valor do gênero literário, dos esquemas
mentais comuns ao Oriente e da semântica utilizada na composição da boa-nova13.
As fórmulas dogmáticas podem, no máximo, afirmar que Jo 1,14a é a declaração
de que Jesus realmente foi uma pessoa humana como as outras, estabelecido na intempérie da
terra, passível de sofrimento e de morte. Deus fez morada no meio da humanidade. Quanto a
falar sobre sua preexistência, como se costumava no passado pelo tratado De Verbo
Encarnato, ou de dizer algo sobre a vida do Logos antes de sua encarnação, Jo 1,14a não é
argumento válido.
Outra questão que se verifica é a da tensão entre o Jesus histórico e o Cristo da fé.
Jo 1,14a não permite essa dissociação. O Evangelho de João compreende o Jesus histórico, ou
seja, a sua existência terrestre, enquanto momento daquele que será proclamado na fé como
Cristo. Jesus(-carne) é o Cristo, o enviado, e foi isto que João procurou transmitir à sua
comunidade.
Fica evidente, portanto que não se pode mais elaborar uma cristologia que
prescinda do “Jesus-carne” proposto em Jo 1,14a como revelador e aquele que atua no mundo
em íntima consonância com o Pai. “Jesus-carne” é a afirmação de que em Jesus o ser criatura
perecível foi elemento insubstituível para o anúncio do amor do Pai para com a humanidade.
1.2 – O abismo entre as formulações teológicas e a vida eclesial
Proposição: A teologia, enquanto ciência, tem feito enormes avanços na reflexão acerca da
pessoa de Jesus e de sua humanidade, contudo há um abismo entre essa reflexão teológica e
o substrato que dela chega até os fiéis, manifestando suas ressonâncias na vida cotidiana. Há
um cristianismo infantil coexistente com o cristianismo oficial e formal. Essa disparidade no
nível do conhecimento da fé tem-se revelado prejudicial ao anúncio do evangelho.
São inegáveis os avanços exegético-teológicos acerca da compreensão do Jesus
humano. Do ponto de vista eclesial católico, o que se vê, porém, é um abismo entre a fé
Cf. BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. – Relacionado ao
mesmo tema: MAIER, Johann. Entre os dois Testamentos: história e religião na época do segundo Templo. São
Paulo: Loyola, 2005.
13
119
pensada, elaborada teologicamente, e a fé professada, vivida pela maioria dos fiéis14. Esse
fosso pode ser reconhecido na liturgia, na catequese e nas manifestações mais populares de
religiosidade cristã. A bem da verdade, várias questões teológicas intimamente ligadas ao
mundo bíblico são de total desconhecimento do grande público, o que causa determinados
constrangimentos quando os meios de comunicação anunciam como extraordinárias
novidades conclusões e descobertas que pertencem ao domínio de teólogos e exegetas há mais
de duas décadas15. A impressão passada com essa realidade é a de que, por vezes, subestimase a capacidade intelectual dos cristãos.
Não raro, embora se afirme que “o Logos fez-se carne”, encontra-se na
mentalidade de muitos cristãos católicos uma visão distorcida do que significou para Deus
revelar-se humano e do que isso significou e ainda significa para a humanidade. O “Jesuscarne” permanece como um incômodo; e proliferam ainda, desde os meios mais populares e
de pouca erudição até as classes mais abastadas e capacitadas academicamente, idéias sobre a
humanidade de Jesus, que ora beiram o mágico, ora o pieguismo. Basta lembrar como os
Evangelhos Apócrifos caem no gosto popular e confirmam esse posicionamento, tornando-se
também uma empresa lucrativa a despeito de um sério retorno à leitura dos evangelhos
canônicos.
A visão de um Jesus glorioso, que tudo pode e tudo sabe, fortemente introjetada
nos cristãos, demonstra certa dificuldade para se aceitar um “Jesus-carne”, tão humano a
ponto de revelar realmente o rosto de Deus. Talvez, o aspecto mais aceito da humanidade de
Jesus encontra-se na extrema valorização dada pelos cristãos, principalmente pela devoção
popular, ao seu sofrimento e à sua morte16. Nem mesmo esse viés permanece isento de
exageros, basta recordar uma obra cinematográfica recente sobre a paixão de Cristo17 na qual
se apresentava Jesus como homem dotado de um poder extraordinário, excepcional, para
suportar o sofrimento.
14
Cf. CALVANI, Carlos Eduardo B. Desafios para o ensino da Teologia Latino-americana em nossos dias. In:
Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 354-356, abr. 2005.
15
Cf. QUEIRUGA, Repensar, p. 311, nota 32.
16
Cf. COMISSÃO TEOLÓGICO-HISTÓRICA DO GRANDE JUBILEU DO ANO 2000. Jesus Cristo: ontem,
hoje e sempre. São Paulo: Paulinas, 1996. p. 44-48.
17
Cf. LISBOA, Walter Eduardo. A Paixão de Cristo segundo Mel Gibson: uma história bem contada?. São
Paulo: Paulinas, 2005. p. 15. – Segundo Lisboa, no filme Paixão de Cristo, co-produção EUA/Itália, apresentada
em 2004, seu diretor Mel Gibson para “completar” os evangelhos sinóticos, privilegia um escrito de inícios do
século XIX, a saber, as visões de Anne Emmerich (1774-1824). Essa alemã, mística estigmatizada, foi bem
conhecida e reverenciada em círculos católicos nas décadas de 1940-1950 e por ocasião do lançamento do filme
foi publicada no Brasil a tradução de seu livro: EMMERICH, Anna. Vida, paixão e glória do Cordeiro de Deus:
as meditações de Anna Emmerich. São Paulo: MIR, 2004.
120
O discurso litúrgico e celebrativo cristão enfrenta, apesar de ter se incrementado
com os resultados das últimas décadas, tanto teológicos quanto exegéticos, o desafio de
propor ao homem e mulher hodiernos uma mistagogia do “Jesus-carne”. A dificuldade para se
transpor ao universo litúrgico os avanços bíblico-teológicos revela muito do que está
sedimentado até mesmo no pensamento clerical. Com freqüência, a presidência e a pregação
litúrgicas denunciam uma atmosfera de desconfiança em relação ao humano em geral, daí
certo moralismo subliminar, e ao “Jesus-carne” em particular, uma constante insistência no
aspecto da sua divindade, beirando a um monofisismo. Curiosamente, é notável o apego ao
“corpo de Cristo”, a Eucaristia, deixando entrever um pouco de magia, de devocionismo e de
compreensão falsamente concreta e imediata do sacramento, sem reconhecer o apelo feito por
“Jesus-carne” aos que rememoram sua vida, paixão, morte e ressurreição, de que é necessário
ser no mundo a extensão de sua “carne” e de seu “sangue” (cf. 1Jo 4,17).
A catequese cristã católica, comumente de cunho mais doutrinal que bíblico, não
conduz o iniciando a uma verdadeira compreensão da fé. O Deus ensinado na catequese,
apesar das inovações metodológicas, continua praticamente o mesmo: um Deus que não é, em
hipótese alguma, aquele que “Jesus-carne” quis dar a conhecer. As imagens de Deus
transmitidas pela catequese cristã católica enquadram-se entre aquelas das chamadas “etapas
pré-cristãs da compreensão de Deus”18.
Ademais, uma visão distorcida do “Jesus-carne”, Deus na história, significa ao
final uma desvalorização da história e da vida humana como bem natural a ser respeitado. Ao
se privilegiar a natureza divina de Jesus, reforça-se a idéia de que apenas importa o mundo
vindouro, o reino dos céus, e que este mundo passageiro deve ser experimentado com certas
reservas. Schillebeeckx propõe a história como componente essencial de uma nova sentença
“doutrinal” em que salvação e história estão relacionadas:
O mundo e a história dos homens, em que Deus quer realizar a salvação, são
a base de toda realidade salvífica: é aí que primordialmente se realiza a
salvação... ou se recusa e se realiza a não-salvação. Neste sentido, vale:
“extra mundum nulla salus”, fora do mundo dos homens não há salvação19.
Exegese e teologia, por um lado, e liturgia e catequese, por outro, sinalizam o
quanto é urgente uma reflexão sobre a humanidade de Jesus e o acreditar na capacidade de
18
Cf. SEGUNDO, J. L.; SANCHIS, J. P. As etapas pré-cristãs da descoberta de Deus: uma chave para a análise
do cristianismo (latino-americano). Petrópolis: Vozes, 1968. – Os autores mostram como as imagens de Deus
presentes no Antigo Testamento permanecem nas concepções atuais. O Deus apresentado por Jesus é
praticamente um desconhecido.
19
SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 29-30.
121
assimilação dos cristãos20. O cristianismo urge por partilhar o conhecimento e começar a criar
acesso ao que a exegese e teologia elaboram, a fim de que o “Jesus-carne” joanino possa
ajudar o humano contemporâneo a reconhecer-se na sua condição de privilegiado interlocutor
de Deus. Isso permitiria uma leitura da história humana marcada pela graça universal da
salvação, compreendida como momento dentro da história de Deus, evitando um desejo de
nova fuga mundi, que é sintoma de uma incompreensão do humano que em “Jesus-carne”
recebeu prerrogativa de comunhão com o divino.
2 – “Jesus-carne”: possibilidade do diálogo ecumênico e inter-religioso?
Após as proposições acima, relacionadas ao intra-eclesial, apresentamos agora
outras duas que dizem respeito aos que, diferentemente do catolicismo, professam a fé. Todo
o movimento ecumênico iniciado no século passado tem oferecido seus frutos ao cristianismo,
possibilitando uma nova relação entre aqueles que seguem o mesmo Senhor. O diálogo interreligioso também tem alcançado um nível de relação que interpela o cristianismo quanto à
verdade dita acerca do “Jesus-carne”. Ponderamos aqui a respeito desses diálogos e suas
relações, explícitas (no ecumenismo) e implícitas (no inter-religioso), com “Jesus-carne” de
Jo 1,14a.
2.1 – O horizonte do diálogo ecumênico
Proposição: Os cristãos, nas suas mais diversas denominações eclesiais, têm no “Jesuscarne” o apelo irrecusável para que na unidade em torno da defesa do humano se dê a
experiência da verdadeira comunhão e o testemunho irrefutável da compreensão, aceitação e
vivência do evangelho como prática do amor.
Não mais vivendo em tempos nos quais se afirmava Extra Ecclesiam nulla
salus21, a Igreja Católica defronta-se com o desafio do diálogo ecumênico. Qual a incidência
20
Cf. CNBB. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003. n. 22, p. 25.
Cf. DZ 714. – O Concílio de Florença (1442), afirmava: “Firmemente crê, professa e proclama que ninguém
fora da Igreja Católica, não só pagãos, senão também judeus, hereges ou cismáticos, participará da vida eterna,
mas cairá no fogo eterno que está preparado para o diabo e seus anjos (Mt 25,41), a não ser que antes de sua
morte se unir a ela”. – Acerca da expressão em questão: LIBANIO, João Batista. “Extra Ecclesiam nulla salus”.
In: Perspectiva Teológica, São Leopoldo, v. 1, n. 8, p. 21-49, jan./jun. 1973. Libanio comenta que a expressão
Extra Ecclesiam nulla salus surgiu no séc. III num contexto apologético e intra-eclesial, não se tratando portanto
da problemática da salvação de toda a humanidade. Cipriano de Cartago tinha diante de si a problemática dos
movimentos cismáticos. A intenção era guardar a unidade da Igreja sob a autoridade do bispo e impedir assim a
21
122
do “Jesus-carne” para o diálogo ecumênico? O cristianismo encontra-se mais que nunca
diante do paradoxo da profissão do nome cristão, pois atualmente existem mais de uma forma
de cristianismo. Embora o anúncio eclesial, por mais diversificado que seja, proponha a BoaNova, atribuindo-a à pessoa de Jesus, o que se nota é uma disparidade que ultrapassa o
meramente ritual e o estritamente doutrinal, chegando a questionar se realmente há uma
fidelidade à proposta de Cristo. Nominalmente se confessa o mesmo Cristo, mas nem sempre
ele é compreendido a partir dos mesmos elementos.
A pessoa do “Jesus-carne” pode ser, no diálogo ecumênico22, um ponto de
discórdia ou de unidade. Discórdia devido às divergentes formas de compreender sua
existência histórica, por vezes, muito idealizada e alienada, baseando-se numa imagem de
Deus que trai o original cristão. O problema acima apresentado, da discrepância entre a fé
pensada e a experimentada, também se repete em outros grupos cristãos, não sendo algo
exclusivo do catolicismo. Discórdia também pelo fato de que muitas denominações cristãs
exploram o nome de Jesus com outros interesses, beirando a uma religiosidade primitiva,
mágica, infantilizante e, até, comercial.
Particularmente na América Latina, o esforço para proteger a vida encontra-se
hoje também ameaçado por grupos que se intitulam cristãos, mas que não almejam
salvaguardar a pessoa humana. Alguns grupos pentecostais e neopentecostais surgidos nas
últimas duas décadas têm revelado-se não como lugar de experiência do sagrado, mas sim
como uma deturpação e até, em alguns casos, exploração do humano naquilo que lhe é mais
específico, a dimensão religiosa.
O diálogo ecumênico deve ser também espaço propício para questionamentos em
torno desse abuso do evangelho e do ser de Jesus por grupos que estão intrinsecamente
vinculados ao projeto capitalista neoliberal. Tais grupos são realmente cristãos? 23 Sem dúvida
existem grupos religiosos pentecostais e neopentecostais que revelam, principalmente pela
atuação de suas lideranças, um comprometimento com o anúncio do evangelho enquanto
libertação do humano24.
ruptura dentro da comunidade. Libanio ainda traça o desenvolvimento histórico da expressão e reflete sobre a
possível atualidade teológica da mesma.
22
Cf. NASCIMENTO, Claudemiro Godoy do; ALBUQUERQUE, Klaus Paz de. A experiência de macrooikoumene em tempos incertos: desafios e utopias. In: Revista Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258,
p. 317-322, abr. 2005. – Os autores abordam parte da história do movimento ecumênico.
23
Cf. TIMM, Albert R. Teologia da Prosperidade: Breve Análise Crítica. In: Parousia, São Paulo, v. 1, n. 1,
p. 55-56, jan./jun. 2000.
24
Cf. ALTMANN, Walter. O pluralismo religioso desafio ao ecumenismo na América Latina. In: SUSIN, Luiz
Carlos (org.). Sarça ardente: teologia na América Latina: prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2000. p. 399.
123
Segundo dados do IBGE a partir do censo de 2000, o número de cristãos
protestantes tradicionais no Brasil é de apenas 5% (8.477.068 pessoas de 169.870.803
brasileiros), ou seja, metade do número de evangélicos pentecostais e neopentecostais que se
dividem em médios, pequenos e minúsculos grupos25. É notório que inúmeras disparidades
existem não só entre católicos, de um lado, e protestantes tradicionais e evangélicos, de outro,
mas também entre esses dois últimos grupos.
Não há que se pensar em discutir dogmas ou formulações doutrinais entre aqueles
que se propõem dialogar ecumenicamente e colocar em comum as suas experiências de
encontro com o “Jesus-carne”, mas será sempre primordial discutir sobre o seguimento ao
projeto desse mesmo Revelador do Pai. “Jesus-carne” é elemento de unidade desde que
compreendido como inaugurador do ser humano na sua condição de plenitude e convite à
comunhão com Deus.
Olhando para o texto joanino (Jo 1,14a), os participantes do diálogo ecumênico
podem vislumbrar nele o verdadeiro encontro e comunhão. Cristo é o mediador26. Sem dúvida
que é extremamente desafiador propor uma prática ecumênica com grupos que nem sempre
têm a compreensão de “Jesus-carne” como aquele que traz o humano para o centro da
religião, para que a partir dele se encontre com Deus. As diferenças poderão silenciar-se
quando se aceitar que o grande ensinamento de “Jesus-carne”, na sua existência histórica, é a
afirmação de uma escolha incondicional de Deus pela humanidade e a apresentação dessa
humanidade como espaço inteiramente sagrado desde o seu início.
O diálogo ecumênico deve focalizar as angústias do ser humano e procurar
respondê-las de forma a ser no mundo um testemunho irrefutável do evangelho da
encarnação. A comunhão pode ser plenamente alcançada em torno do humano e de ações que
procurem beneficiá-lo27. O mosaico religioso cristão, em que de distintas maneiras elabora-se
e valoriza-se um dado do cristianismo, deve ser no mundo a expressão do rosto de “Jesuscarne”. Nesta história, o ser humano é chamado a fazer experiência de sua vida como
sacralidade que jamais deveria ser desrespeitada.
É o ser humano, concretamente falando, quem sofre as conseqüências da injustiça,
da ganância, da violência; e é, este mesmo ser humano, quem necessita ser recolocado no
25
Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto?. 2. ed. São Paulo: Paulus,
2005. p.12; 37-38.
26
Cf. RIBEIRO, Cláudio de Oliveira. Perspectivas teológicas para o combate à idolatria. In: Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 65, n. 258, p. 281, abr. 2005.
27
A propósito, referindo-se ao contexto latino-americano e caribenho: ALTMANN, op.cit., p. 412.
124
centro do diálogo como existência a ser preservada e amparada. Um passo significativo para o
diálogo ecumênico pode ser dado quando se opta por menos discurso e por mais ações em
torno da salvaguarda do humano. O Concílio Vaticano II preconizava essa postura há mais de
quarenta anos como se pode ver no Decreto sobre o Ecumenismo:
A cooperação de todos os cristãos exprime, de modo vivo, os laços que já os
unem entre si e faz resplandecer mais plenamente a face de Cristo Servo. [...]
Ela contribuirá assim para avaliar devidamente a dignidade da pessoa
humana, promover o bem da paz, prosseguir na aplicação social do
Evangelho, incentivar o espírito cristão nas ciências e nas artes e aplicar todo
gênero de remédios aos males de nossa época, tais como: a fome e as
calamidades, o analfabetismo e a pobreza, a falta de habitações e a
distribuição não justa dos bens (UR 12).
Nenhum grupo cristão deve objetivar propor “conversões”, mas sim a verdadeira
conversão em torno do que o “Jesus-carne” propôs como maior e verdadeiro mandamento:
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12). O amor ensinado pelo Cristo não foi
nada romântico, alienado ou retórico, mas sim uma entrega plena da vida; entrega esta já
sinalizada pelo lava-pés como exemplo a ser seguido pelos que a ele aderissem (Jo 13, 12-17).
O princípio de todo verdadeiro cristianismo está no reconhecer no próximo, de modo especial
no mais necessitado, a pessoa do próprio “Jesus-carne”, que continua a solicitar da
humanidade uma adesão. Os cristãos podem acolher o pedido da oração de Jesus, “Que todos
sejam um, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17,21), como verdadeiro convite à
martyria (testemunho) e à diakonia (serviço)28.
O diálogo ou a prática ecumênica entre cristãos tradicionais, membros das Igrejas
históricas, é mais viável, porém isso não impede que se façam tentativas de aproximação com
os grupos evangélicos pentecostais e neopentecostais. A recusa pelo discurso religioso,
propriamente dito, não significa uma renúncia aos princípios e características específicas da
fé, mas sim uma estratégia que permite dialogar e agir a partir do comum, neste caso, a pessoa
humana que, implicitamente, tem sua referência em “Jesus-carne”.
2.2 – O horizonte do diálogo inter-religioso
Proposição: O cristianismo deve colocar-se o problema do fenômeno religioso sem descuidar
de sua especificidade, que é a encarnação, ousando afirmar o paradoxo que os primeiros
cristãos já proclamavam, ou seja, na plenitude dos tempos Deus veio à humanidade na
28
Cf. SPINSANTI, Sandro. Ecumenismo espiritual. In: Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulus, 1993.
p. 314.
125
“carne”, em Jesus. Tal mensagem não é, para o cristão, um privilégio nem lhe confere um
grau de superioridade, mas é uma proposta para conhecer Deus a partir do que ele quis
revelar, dizer de si mesmo, no humano Jesus.
Tendo sido considerado, no Ocidente, durante séculos como a única resposta
religiosa ao ser humano, o cristianismo experimenta, atualmente, o confronto com as mais
diversas tradições religiosas. O processo de aceleração do diálogo entre as culturas, produzido
pela globalização, aproximou do Ocidente culturas alheias à idéia da encarnação proposta
pelo cristianismo. Esse fato, para uma proposta de diálogo, exige da teologia cristã uma séria
reflexão sobre sua contribuição a partir do “Jesus-carne”.
O cristianismo não pode fugir ao diálogo e a tudo o que esse termo significa, ou
seja, partilha, posicionamentos, confrontos, comunhão, busca da verdade, humildade para
reconhecer que nenhum grupo possui a totalidade da verdade sobre Deus 29. O fenômeno da
multiplicidade religiosa leva o cristianismo a rever coerentemente o que diz sobre si mesmo e
como vê as outras religiões. Como em todo diálogo, os parceiros não podem descuidar-se de
seus elementos característicos e pontos essenciais; ao mesmo tempo em que buscam acolher a
contribuição oriunda de cada participante30. Marcelo Azevedo faz a seguinte indicação:
O diálogo supõe que cada um dos parceiros seja ele mesmo e como tal se
manifeste e seja acolhido. Seu fruto principal é a percepção da diferença
entre ambos e, por conseguinte, a intuição mais aguda das respectivas
identidades. Ao conhecer melhor o outro, cada um se conhece melhor a si. O
que poderia parecer um fator que aprofunda a discrepância e alarga a
distância torna-se caminho privilegiado de uma nova perspectiva31.
No que tange ao diálogo inter-religioso, o cristianismo enfrenta duas objeções por
parte dos que propõem o pluralismo religioso:
a) A pretensão do cristianismo de ser a revelação definitiva de Deus faria dele uma
religião superiora a outras32. A fim de rejeitar tal afirmação, alguns autores cristãos
excluem a idéia de encarnação e procuram transformá-la em mero símbolo, metáfora33
de uma ação de Deus. Jesus torna-se um modelo, um ideal do ser humano, mas não
compreendido como aquele que em sua “carne” desentranhou a misericórdia de Deus
29
Cf. DUPUIS, op.cit., p. 517.
Cf. Ibid., p. 516.
31
AZEVEDO, Marcelo. Prólogo. In: TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto (org.). Diálogo dos pássaros: nos
caminhos do diálogo inter-religioso. São Paulo: Paulinas, 1993. p. 18. – Faz afirmação semelhante: KONINGS,
Johan. Ser cristiano: fe y práctica. México: Buena Prensa, 2005. p. 7.
32
Cf. HICK, John. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 187; 217.
33
Cf. DUPUIS, op.cit., p. 410. – Dupuis afirma que os pluralistas, principalmente Hick, consideram o termo
‘encarnação’ apenas como expressão mítica e metafórica. Essa atitude se justifica em função da rejeição a todo
cristocentrismo e cristologias inclusivistas. Para os pluralistas a única perspectiva possível é a teocêntrica.
30
126
e a fez conhecida. Alguns sugerem que não é possível propor o diálogo inter-religioso
quando se leva para o mesmo a pessoa de Jesus. Sugerem que tal diálogo gire apenas
em torno do teocentrismo. O problema é pensar que o cristianismo pode dizer algo
sobre Deus sem tocar em “Jesus-carne” como revelador de Deus. Uma cristologia que
parta do “Jesus-carne” como momento de uma economia mais ampla que é a do Verbo
eterno permite um legítimo diálogo inter-religioso34. O cristianismo posiciona-se para
o diálogo consciente de sua fé em Jesus como a plena e definitiva revelação de Deus;
contudo, não se sente superior a nenhum outro grupo religioso; nem se outorga a si
mesmo o papel de juiz das outras religiões ou de exclusivo portador da salvação.
b) O caráter singular e único de Jesus, relacionado com a eleição do povo de Israel e
com a experiência cristã, como exclusão de outras religiões35. Compreende-se, por
vezes, o conceito de eleição como uma apropriação egoísta de Deus, que excluiria as
outras religiões. Na linguagem bíblica, a eleição sempre se dá em função de todos. A
escolha de um, por parte de Deus, é a garantia de sua real comunicação. Um deus que
se comunicasse diversamente em cada um e em cada grupo religioso e que o fizesse ao
mesmo tempo na história não poderia jamais ser conhecido!
O específico cristão é aceitar que em “Jesus-carne” Deus comunicou-se
totalmente ao ser humano. Isso não significa que os cristãos possuam a totalidade do
que “Jesus-carne” revelou sobre Deus, nem que as igrejas cristãs detenham toda a
densidade da vida de Jesus. O termo “eleição” é termo-chave da Tradição bíblica
cristã, a qual sem esse se tornaria inarticulável. O conceito de encarnação ligado ao de
eleição é elemento fundamental para o diálogo e aponta para a progressiva
manifestação de Deus à humanidade. Sem dúvida, como bem o lembra Queiruga, o
conceito de eleição permite, às vezes, conclusões precipitadas:
[...] a “eleição” é uma necessidade histórica que não consiste em privilegiar
para separar, e sim em “intensificar” a uns para chegar melhor a todos. Aqui
o esquema subconsciente a eliminar é o de “nós sim”/“os outros não”,
normalmente traduzido em “nós verdadeiros”/“os outros falsos”36.
Cf. GEFFRÉ, Claude. Théologie chrétienne et dialogue interreligieux. In: Revue de l’Institut Catholique de
Paris, Paris, v. 38, n. 2, p. 72, 1991 (Apud DUPUIS, op.cit., 517).
35
Cf. HICK, op.cit., p. 212-213; 217.
36
QUEIRUGA, Andrés Torres. O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997 (Comunidade e missão). p. 60
[grifo do autor].
34
127
O cristianismo não pode excluir nenhum outro grupo como se detivesse a
salvação37, mas pode afirmar, tranqüilamente, que acredita estar próximo da imagem
que Deus permitiu-se revelar aos seres humanos na pessoa do “Jesus-carne”, não como
detentor dessa revelação, mas como anunciador dessa novidade. A diversidade
religiosa pode ser respeitada e o cristianismo não deve esperar adesão ou rejeição,
deve apenas colocar-se no diálogo como grupo que faz a experiência de uma ação
inovadora de Deus, que tocou o humano definitivamente e o constituiu como sinal de
seu ser e de seu agir na pessoa de Jesus. Eleição é categoria essencial.
Após apresentar as duas objeções mais comuns e a possível resposta cristã a elas,
cabe ressaltar que o “Jesus-carne” é, em si mesmo, a possibilidade de diálogo inter-religioso,
pois nele o ser humano encontra-se plenamente valorizado. Mais que discutir formulações
doutrinais e religiosas, às vezes infrutíferas, o diálogo inter-religioso deve esforçar-se por ser
instância em que o ser humano, como criatura única que pode dialogar com o Criador pela
religião, encontra-se no centro. Longe do centro dos diálogos e dos interesses, o ser humano
permanece como vítima de uma sociedade que o trata de forma oposta ao que ele é. A
Declaração do Parlamento das Religiões Mundiais formulou esse pensamento assim:
Todos sabemos: em toda parte no mundo, hoje como ontem, seres humanos
são tratados de forma desumana. São privados de suas chances de vida e de
sua liberdade, seus direitos humanos são pisoteados, desconsidera-se sua
dignidade humana. Mas poder não é o mesmo que Direito! Diante de toda
desumanidade, nossas convicções religiosas e éticas exigem: todo ser
humano tem de ser tratado de forma humana!38
A pessoa de “Jesus-carne” deve ser um reforço para a percepção de que toda
forma de religiosidade torna-se legítima à medida que visa ao bem, a realização, à dignidade
do humano39. O contributo cristão dá-se pela partilha de uma experiência em que o “Jesuscarne” mostra que o caminho para o encontro com Deus não se dá num vazio abstrato, mas no
Cf. GEFFRÉ, Como fazer, p. 224. – O autor evidencia aquilo que se pode chamar de universalismo cristão da
seguinte maneira: “É enquanto Universal concreto, isto é, enquanto Deus feito homem, que Jesus é universal.
Cremos que Cristo não é uma manifestação entre outras do Absoluto que é Deus. Ele mesmo é Deus tornado
histórico. Mas o que dizemos do Cristo como mediação de Deus não podemos dizer do cristianismo histórico.
Por outro lado, a missão universal da Igreja não depende do caráter absoluto do cristianismo como religião
histórica. O cristianismo não tem o monopólio da ação salutar de Deus: a graça é oferecida a todos os homens
segundo vias conhecidas só de Deus. A Igreja, como realidade histórica, não tem o monopólio dos sinais do
reino; Deus é mais do que os sinais históricos pelos quais ele manifestou sua presença”.
38
CONSELHO DO PARLAMENTO DAS RELIGIÕES DO MUNDO. A Declaração do Parlamento das
Religiões do Mundo. In: KÜNG, Hans; SCHMIDT, Helmut. Uma ética mundial e responsabilidade globais:
duas declarações. São Paulo: Loyola, 2001. p. 74-75 [grifo do autor].
39
Cf. GEFFRÉ, Claude. Le dialogue des religions défi pour un monde divisé. Le Supplement, Paris, n. 156,
p. 118, abr. 1986. – Diz Geffré: “Eu creio poder dizer que todas as religiões que são inumanas estão condenadas
a morrer. O futuro das grandes tradições religiosas passa pelo rosto do homem”.
37
128
descobrir-se como próximo do outro, da mesma natureza humana. Nos diversos seguimentos
religiosos encontra-se a chamada “Regra de Ouro”, em que se fundamenta o agir humano e
apresenta um princípio de eqüidade nas relações sempre postulado na relação com o
semelhante40. O “Jesus-carne” pode ser compreendido como mais um que soma a tantos
outros no desejo de se respeitar o próximo, afinal também é característico do cristianismo
aquilo que Hans Küng apresenta como o elemento de validade e aceitação: “as religiões que
não concretizam em si mesmas os direitos humanos não são hoje mais dignas de fé” 41. Por
fim, qualquer forma religiosa que aviltar o ser humano rompe com a imagem de Deus
proposta por “Jesus-carne” e com o sentido último da religião enquanto experiência de
encontro com o Criador.
3 – “Jesus-carne”: uma referência humana para a modernidade
Instalado num contexto plural, em que elementos modernos misturam-se
facilmente com outros pré e pós-modernos, o cristianismo precisa responder a novos apelos,
caso contrário pode transformar-se numa mera formalidade religiosa. Duas questões da
modernidade colocam-se diante do “Jesus-carne”. A primeira diz respeito aos conceitos de
Deus e ser humano apresentados pela razão e cultura modernas. A segunda trata da urgente
defesa do ser humano, que, apesar de todo crescimento tecnológico, permanece vítima de
outros humanos.
3.1 – O horizonte da razão e da cultura moderna
Proposição: “Jesus-carne” coloca em questão os conceitos tradicionais de Deus e do ser
humano apresentados pela cultura moderna como antagônicos e em constante rivalidade,
40
Cf. KÜNG, Hans. História, importância e método da Declaração para uma Ética Global. In: op.cit., p. 74-75.
– Hans Küng lista algumas formulações da Regra de Ouro nos diversos textos sagrados, revelando o quanto há
de semelhanças entre as religiões quando se coloca o humano como referência para o diálogo. Eis as
formulações: Confúcio (c. 551-489 a.C.): “O que tu mesmo não queres, não faças a outra pessoa” (Ditos 15.23);
Rabi Hillel (60 a.C. a 10 d.C.): “Não faças aos outros o que não queres que eles façam a ti” (Shabbat 31a); Jesus
de Nazaré: “Tudo aquilo que quereis que os homens façam a vós, fazei-o vós mesmos a eles” (Mt 7,12; Lc 6,31);
Islã: “Ninguém é crente enquanto não desejar a seu irmão o que deseja para si mesmo” (Quarenta Hadith de
an-Nawawi, 13); Jainismo: “Os seres humanos deveriam ser indiferentes às coisas mundanas e tratar todas as
criaturas do mundo como eles mesmos desejariam ser tratados” (Sutrakritanga I, II, 33); Budismo: “Um estado
que não é agradável ou aprazível para mim também não será para ele; e como posso impor ao outro um estado
que não é agradável ou aprazível para mim?” (Samyutta Nikaya V, 353.3-342.2); Hinduísmo: “Não se deve agir
em relação ao outro de modo desagradável para si mesmo: é esta a essência da moralidade” (Mahabharata XIII
114,8).
41
Ibid., Em busca de um “ethos” mundial das religiões universais. In: Concilium, Petrópolis, v. 2, n. 228, p.132,
abr./mai.1990.
129
pois a encarnação afirma que Deus pode mais do que se consegue imaginar acerca de sua
pessoa; afirma também que o ser humano foi resgatado em sua dignidade e que é capaz de
acolher o ser de Deus em sua vida e história. “Jesus-carne” sugere que o ser humano só
pode ser compreendido no humano Jesus e que também Deus só pode ser compreendido a
partir dessa mesma revelação.
A filosofia moderna entende o conceito de Deus como alteridade radical e
absoluta, isso implica um total distanciamento entre o ser humano e o “ser supremo”.
Aplicando a Deus atributos contrários ao ser humano, tais como: eterno, imenso, imutável,
onipotente, perfeitíssimo, distinto do mundo, realidade pura; pode-se conceber o “Jesuscarne” como uma limitação de Deus. Porém, em Cristo, Deus não nega o humano; ao
contrário, o tem como afirmação de si mesmo, explicitação de seu desejo de comunicar-se. A
força da concepção filosófica sobre Deus chegou a se impor nos manuais teológicos, neles os
atributos divinos tinham comprovação bíblica a posteriori e eram inicialmente derivados de
um conceito filosófico42.
Como Deus pode relacionar-se com a humanidade? A resposta panteísta
compreende que tudo é Deus. Deus e o mundo seriam idênticos. O mundo não seria uma
criatura de Deus, mas sim o modo necessário de Deus existir43. A resposta cristã vai mais
longe e afirma a radical escolha, livre e gratuita de Deus por comunicar-se com o humano a
partir do humano. Deus deixa-se conhecer no ser humano “Jesus-carne”. O conceito de Deus
como Absoluto, totalmente Outro, radicalmente oposto à contingência humana, diante da
encarnação é totalmente questionado. “Jesus-carne” é o conceito de um Deus que é frágil,
limitado, condicionado historicamente, escandalosamente semelhante à humanidade, vindo na
condição de enviado e servo. O conceito tradicional de Deus que se fixava em atributos extramundanos é questionado radicalmente. O Deus antes imutável pode ser visto como um Deus
também em processo. Claude Geffré propõe uma conciliação da realidade de Deus com a
realidade do homem a partir do Cristo como universal concreto:
Se formos até o fim no realismo da encarnação como tornar-se-homem de
Deus e como tornar-se-Deus do homem, deveríamos poder compreender
como a realidade de Deus se mostra como realidade do homem e
42
Cf. SATTLER, Dorothea; SCHNEIDER, Theodor. Doutrina sobre Deus. In: SCHNEIDER, Theodor. Manual
de Dogmática, v. 1, p. 101.
43
Cf. BOFF, Leonardo. Dignitas Terrae. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1999.
p. 234-237. – Após criticar a postura panteísta, Boff apresenta o conceito de “pan-enteísmo” (em grego:
pan = tudo; en = em; theós = Deus), ou seja, tudo em Deus e Deus em tudo. – Tal distinção encontra-se mais
resumidamente em: BOFF, Leonardo. Ecologia, mundialização, espiritualidade. A emergência de um novo
paradigma. São Paulo: Ática, 1993. p. 52.
130
inversamente. Desde que Deus se fez homem em Jesus, Deus e a realidade
estão misteriosamente unidos – sem estarem identificados – no ser de Cristo.
Falar a Deus sem falar do real é que seria alienação, porque é impossível
falar do real em sua profundeza sem falar a Deus44.
Na cultura moderna, o conceito de humano que se tem não permite acolher o
“Jesus-carne”, pois nele revelam-se conciliadas duas realidades tidas como díspares. O ser
humano é, na cultura moderna, sempre apresentado como rival de Deus. Teme-se o conceito
de Deus como ameaça à liberdade humana. Deus e ser humano são apresentados como
realidades mutuamente excludentes. Para a modernidade, é a razão humana que tudo controla
e não há mais espaço para Deus como aquele que dá sentido à história e como explicação para
o funcionamento do universo45. Assim, o ser humano seria a resposta para si mesmo, se
bastaria a si próprio e poderia se compreender. Geffré sintetiza o desafio na atualidade da
designação de Deus em relação ao humano:
Em nosso desejo de designar Deus hoje, estamos expostos a dois perigos. Ou
nos contentamos com um conceito metafísico de um Deus além do mundo,
fora da realidade, Deus esse que é estranho ao que os homens vivem. Ou, no
desejo de atingir melhor o homem, não ousamos mais falar de Deus e
guardamos do cristianismo só sua dimensão ética de serviço aos homens. E
se ainda falamos de Deus, é um discurso antropológico, isto é, um discurso
indireto sobre o homem46.
Geffré deixa claro que, para a modernidade, a realidade de Deus e a do homem
parecem inconciliáveis. O problema desse pensamento, no que tange diretamente ao humano,
é o fato de privá-lo da dimensão transcendental, que é também constitutiva do seu ser 47. Por
mais que o humano avance no processo do autoconhecimento, nunca se conhecerá por
completo. Enquanto ser transcendente, o ser humano também é ilimitado, imensurável. O ser
humano é bem mais que aquilo que a cultura moderna consegue formular em seus esquemas.
Diante dessas imagens errôneas, tanto de Deus quanto do ser humano, o “Jesuscarne” é um convite a repensar a existência, a relação, a previsibilidade, tanto do Criador
quanto da criatura. O cristianismo, ao propor que num ser humano concreto Deus deu-se a
conhecer, afirma que todo ser humano é legítimo e válido em sua própria existência. O fato de
ser humano, o seu existir, sem nada fazer, já tem em si o seu valor. A vida humana em todas
as suas formas é tida como sagrada e, no ambiente secularizado, deve ser tida como realidade
a ser respeitada justamente por não ser totalmente compreendida.
44
GEFFRÉ, Como fazer, p. 159.
Cf. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O Projeto da Modernidade: autonomia, secularização e novas
perspectivas. Brasília: Liber Livro, 2005. p. 55; 59.
46
GEFFRÉ, Como fazer, p. 158.
47
Cf. MARTINI, Antonio. O provisório e o transcendente. In: _____, et al. O humano, lugar do sagrado. 6. ed.
São Paulo: Olho d’Água, 2001. p. 36.
45
131
As afirmações acima podem levar a um ateísmo, no qual o ser humano encontra
seu lugar, vê-se contemplado em “Jesus-carne”, mas prescinde de qualquer esfera
confessional. Todavia, o cristianismo aponta para o além, presente no ser humano, o
indecifrável, o incógnito. A contribuição cristã para a cultura moderna pode ser dada pela
valorização da vida não como existência a ser sofrida no mundo, mas como história que se
constrói na liberdade pessoal, que é inteiramente respeitada pelo Criador. O ser humano é
senhor, e tal senhorio não permite a nenhum igual achar-se em superioridade. O respeito pelo
humano nasce do reconhecimento de que há uma igualdade de base que prescinde de critérios
de raça, cultura, religiosidade, condição econômica. O anúncio cristão é o anúncio de que no
outro, semelhante a si, o ser humano é convocado à retidão do agir.
Além do dito acima, o cristianismo pode ser um provocador das ciências
humanas, particularmente filosofia e psicologia, quanto aos conceitos de Deus e pessoa,
permitindo romper com imagens míticas do sagrado, evitando negar a dimensão transcendente
do humano48 e realizando uma aproximação entre saberes que têm como único fim ajudar a
humanidade a ter uma vida com dignidade. Ênio Brito formula a relação entre Ciências
Humanas e Teologia desta forma:
Da aproximação entre Ciências Humanas e Teologia resulta a formulação da
questão fundamental: “Como explicar o mistério do ser humano?” A
progressiva compreensão do homem alcança um horizonte surpreendente a
partir da fé de que o Verbo divino se fez carne. O lugar adequado para uma
relação mais frutuosa entre Teologia e Ciências Humanas é a pessoa de Jesus
Cristo. O relato de sua Ressurreição tem o seguinte significado: a intenção
de Deus para a humanidade, e para cada um de nós, é que a última palavra
da nossa existência seja a plenitude (“novos céus e nova terra”), superando o
impasse, a morte. Só uma reflexão teológica capaz de explicitar a sabedoria
do amor de Deus pela humanidade atual, estará em condições de dialogar
com a Modernidade49.
A teologia aproximou-se bastante da sociologia (Teologia da Libertação, por
exemplo), mas carece ainda aproximar-se da psicologia, pois essa ciência aborda a liberdade
humana como âmbito inalienável, e o “Jesus-carne” é a referência cristã do humano livre por
excelência, a ponto de entregar-se por completo. Na análise psicológica, na qual o analisando
é o protagonista do processo, muitas vezes se demonstra certa pretensão de a pessoa humana
bastar-se a si mesma e poder ter o acesso à compreensão total de si. A psicologia ajudou em
muito para uma visão mais humana da pessoa de Jesus e, conseqüentemente do humano em
48
Cf. ECO, Umberto; MARTINI, C. M. Em que crêem os que não crêem?. Rio de Janeiro: Record, 2001. p. 75.
– Numa resposta a Umberto Eco, o cardeal Martini afirma que o que constitui a dignidade humana é o fato de
que cada ser humano é uma pessoa aberta para algo mais alto e maior que ela própria.
49
BRITO, Ênio. O diálogo pelo avesso. In: MARTINI, Antonio et al., op.cit., p. 61.
132
geral. Algumas correntes psicológicas, como a Logoterapia, têm procurado implementar em
suas ações a questão religiosa, já que essa é uma das dimensões do humano50.
Carece aproximar-se ainda mais da filosofia, ciência que ajuda o humano a
posicionar-se no mundo como agente e sujeito e não como meramente uma marionete nas
mãos de um desconhecido. O contributo da filosofia para a interpretação de “Jesus-carne” foi
bastante enfatizado por Hünermann e ajudou na passagem de uma cristologia ontoteológica
para uma cristologia histórica51. Uma filosofia que se aproxima do “Jesus-carne” é, antes de
mais nada, uma antropologia, uma palavra a favor do humano e do seu agir responsável na
história; ao mesmo tempo em que uma filosofia inspirada no humano pode trazer em si os
elementos e valores anunciados pelo “Jesus-carne”.
Indubitável é o fato de que o cristão não pode mais agir no mundo como se dele
não fizesse parte ou não fosse por ele interpelado. A cultura moderna atribui ao humano um
lugar inigualável, mas nem sempre consegue vislumbrar a construção de uma história mais
justa. A autonomia da razão e o mito da cientificidade acabam por tornar o ser humano vítima
de suas próprias pretensões, pois arrisca negar a sua dimensão religiosa.
3.2 – O princípio da solidariedade
Proposição: A afirmação cristã do “Jesus-carne” revela uma solidariedade divina que,
respeitando e valorizando o agir humano, convida a descobrir o bem intrínseco a todo ser
humano. A solidariedade humana, independente de credos, pode na cultura moderna ser
expressão legítima do testemunho deixado pelo “Jesus-carne”. Sendo assim, a experiência
cristã pode contribuir ao defender a vida e pode enxergar sinais cristãos nos que defendem a
vida.
Para o cristão, o reinado de Deus não se confunde com nenhuma forma de poder
neste mundo, mas uma determinada forma de poder permite, por vezes, manifestar
Cf. PETER, Ricardo. Viktor Frankl: a antropologia como terapia. São Paulo: Paulus, 1999. p. 82-98. – Sobre a
relação psicologia e religião: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.). Espiritualidade e prática
clínica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2004. – DOMÍNGUEZ MORANO, Carlos. Crer depois de
Freud. São Paulo: Loyola, 2003. – ALMEIDA, Dalton Barros. Psicologia e fé, uma relação possível?. Rhema,
Juiz de Fora, v. 6, n. 23, p.62-87, set./dez. 2000.
51
A propósito: HÜNERMANN, P. Cristología. Barcelona: Herder, 1997.
50
133
parcialmente aquilo a que o humano é chamado na sua essência, ou seja, encaminhar-se para a
plenitude no respeito de sua dignidade e capacidade de interlocutor do mistério52.
“Jesus-carne” pode ser interpretado, no âmbito cristão, a partir da categoria
soteriológica da solidariedade53. Um Deus que deseja encontrar-se com o humano e, para isso,
torna-se da mesma condição desse ser, assumindo a história com sua morada, demonstra-se
solidário no seu agir. Não é um Deus que se humilha, mas sim que se comunica e deseja
mostrar-se solidário. A experiência bíblica veterotestamentária apontava para um Deus atento
ao clamor do seu povo (Ex 3,7). “Jesus-carne” é a resposta de Deus não só a um clamor
específico, mas a todos os clamores que qualquer ser humano possa manifestar. É o Deus que
também clama e inspira ao ser humano a plena confiança no amor.
A categoria soteriológica da solidariedade54 pode estimular os cristãos a assumir a
virtude da solidariedade como possibilidade de revelar-se ao mundo o “Jesus-carne”. No
contexto moderno, a vida humana, apesar de todos os avanços, permanece ameaçada devido a
interesses escusos. O fato de se olhar para o humano vendo apenas o que ele produz
(cf. GS 35), e não o que ele é, gera uma busca insana pelo lucro; matando o humano de
diversas formas. O cristianismo pode dialogar com esse mundo moderno neoliberal a partir de
uma proposta de solidariedade entre os seres humanos. Cresce, atualmente, o número de
organizações que objetivam defender a vida. A verdade cristã do “Jesus-carne” pode ser
apresentada como referência para esse agir humano. Não é o caso de se propor uma
“sociedade cristã”, afinal isso no passado não significou uma salvação e defesa de todos; mas
sim o perceber que o cristão pode agir no mundo de forma a integrar-se como parceiro de
outros em um agir solidário.
A solidariedade cristã, inspirada em “Jesus-carne”, propõe o despojamento do
egoísmo, tão comum aos tempos modernos, e o lançar-se ao encontro do outro para auxiliá-lo
e resgatar-lhe a dignidade. Mo Sung comenta que as religiões têm o papel de ensinar
sabedorias de vida e apresenta a solidariedade como uma delas:
Cf. SUNG, Jung Mo. Deus numa economia sem coração: pobreza e neoliberalismo – um desafio a
evangelização. São Paulo: Paulinas, 1992. p. 124. – Sung assim se pronuncia acerca de uma escatologia intrahistórica: “A sacralização ou a absolutização de um sistema, seja capitalista ou socialista, significa a gestação de
um totalitarismo. A distinção entre o projeto histórico e a utopia transcendental (ou, na linguagem de Dussel, a
utopia histórica e a utopia escatológica) é fundamental na luta por uma sociedade mais humana. A utopia
transcendental, não factível historicamente, deve acompanhar o projeto histórico, sendo uma fonte de inspiração
e o fim a ser aproximado, mas não atingido; e, ao mesmo tempo, fonte de crítica ao projeto e às estratégias
históricos”.
53
Cf. SCHILLEBEECKX, op.cit, p. 300. – O autor comenta o uso inicial do termo secular “solidariedade” como
designativo do cristão “amor ao próximo”.
54
Cf. SESBOÜÉ, Jésus-Christ, p. 367-375.
52
134
E uma sabedoria que está precisando ser ensinada e aprendida em todo
mundo é a que nos ensina que não se pode ser feliz e amar a si próprio de
verdade se não é capaz de se abrir ao sofrimento de outras pessoas, se não é
capaz de ter uma sensibilidade solidária. E que não se pode realmente viver a
sensibilidade solidária se não for capaz de aceitar, assumir e amar a si
próprio, na sua condição humana e não em uma falsa auto-imagem de um ser
supra ou infra-humano55.
A vida humana é o elemento primordial a ser defendido em todas as
circunstâncias, daí que toda atitude liderada por particulares, entidades públicas e líderes de
nações deve ser constantemente vigiada, evitando, assim, que firam o humano ou o tratem
aquém do que sua condição exige e dá-lhe direito.
Algumas atitudes laicas, melhor dizendo, secularizadas, propostas pelos mais
diversos grupos e organizações, podem receber a contribuição cristã:
a) Busca da paz: os interesses das grandes nações têm produzido um sem fim de
conflitos armados, tendo como mais prejudicados não os líderes nacionais, mas sim as
camadas populares, os mais sofridos entre os humanos. A paz cristã, que não se
confunde com a Pax Romana nem com a ausência de guerras, é apelo à proteção da
integridade pessoal e ao diálogo como meio unicamente válido para se construir uma
sociedade mais justa. Justiça esta que produzirá a verdadeira paz. O cristão é, pela sua
matriz geradora, um fomentador da paz nascida da justiça. Ele vê em toda forma de
violência contra o ser humano um risco e uma ameaça à paz. O sacrifício do “Jesuscarne” repete-se no sacrifício de todos os homens e mulheres que são vitimados pela
violência e é um clamor aos que consideram o humano como realidade a ser priorizada
em todas as circunstâncias. O cristão não professa um deus sacrificado, mas sim um
Jesus que na sua “carne” recebeu do mundo uma resposta negativa às suas propostas.
O sacrifício da cruz, longe de ser um incentivo à submissão diante do sofrimento, é um
clamor para que não se repita com ninguém nenhuma forma de violência.
b) Garantia dos direitos humanos: inúmeros grupos, organizados cada qual em torno
de um objetivo particular, buscam defender os direitos inalienáveis dos seres humanos.
A disparidade econômica entre países superdesenvolvidos e aqueles marcadamente
empobrecidos exige do cristão um engajamento, para que todos tenham o necessário à
sua subsistência. “Jesus-carne”, que se deu como verdadeiro alimento para os seus
seguidores, exige dos mesmos o assumir sua forma de agir no mundo e todos os
55
SUNG, Jung Mo. Solidariedade e condição humana. In: Convergência, São Paulo, v. 36, n. 340, p. 100, mar.
2001.
135
esforços possíveis para sanar as deficiências sociais. “Jesus-carne”, que viveu e
assumiu a história humana como espaço de anúncio daquilo a que todo humano é
chamado a ser, exige do cristão uma postura de compromisso diante da história como
espaço em que se dão as verdadeiras escolhas da fé e no qual se explicita a vitalidade
do evangelho. Na luta em defesa do ser humano não importam os credos, mas a
legitimidade da ação que se realiza. Aí o cristão pode descobrir outros cristãos que não
professam por palavras o evangelho, mas o vivem na intensidade da prática da
solidariedade.
c) Proteção do mundo: é a partir da catástrofe humana que a teologia, particularmente a
da libertação, compreende a questão ecológica56 como lugar excelente para a prática
da solidariedade extra-eclesial. O paradigma ecológico tem gerado uma nova
consciência sobre o valor do planeta e de tudo aquilo que nele encontra-se como
biodiversidade ou que a permite existir. Sem nenhuma ingenuidade, o cristão é
também exortado a posicionar-se no mundo como quem conscientemente está
comprometido com a vida, a ponto de lutar ecologicamente com vistas no humano. A
defesa do planeta sem a referência da defesa do humano é alienação e inversão de
lugares. O mundo criado é dado ao humano como lugar de sua existência, está em
função do humano, e é nesse aspecto que toda luta ecológica precisa ter como
princípio uma ecologia humana, ou seja, o que se quer preservar, acima de tudo, é o
ser humano e, para tal, a conservação do mundo é um urgente enunciado, pois dentro
de uma visão holística há uma interdependência entre humanidade e mundo.
A solidariedade oriunda do “Jesus-carne” e orientada pelo seu jeito de agir não é
uma opção abstrata, mas sim a realização na história da perene revelação da glória de
Deus que o mesmo Jesus manifestou ao habitar no seio da humanidade. A história é o
palco onde os solidários reúnem-se em torno do humano e procuram os meios e formas de
favorecer sua vida. Para o cristão, tal história humana será sempre o lugar da ação de
Deus, que deseja salvar toda a sua criação, como bem o afirma Schillebeeckx:
No agir e pelo agir dos homens é preciso ficar claro que Deus, ajudado pelo
homem, quer a salvação para sua criação inteira. Para a Bíblia, “o homem” é
o representante de Deus na terra: para a salvação do homem, da natureza e
da história do mundo. E por mais que pareça que o homem, em sua tarefa de
criatura, falha mais do que tem sucesso, essa percepção de fato abre espaço
para uma ética verdadeiramente humana regulando nossa atitude e
56
Cf. BOFF, Leonardo. Da libertação e ecologia: desdobramento de um mesmo paradigma. In: ANJOS, Márcio
Fabri dos. Teologia e novos paradigmas. São Paulo: Loyola, 1996. p. 86.
136
comportamento para com o mundo e a natureza. Deus convida e dá forças:
“Vamos, homem amado, tu não estás só!”57.
Diante do tema da solidariedade a questão que pode surgir é, se realmente pode-se
valorizar e amar o ser humano sem se ter uma referência confessional ou não em Deus. Mais
uma vez é preciso acreditar que o que move o humano não é simplesmente um emaranhado de
interesses egoístas, mas sim um autêntico apelo que lhe ressoa constantemente a dar um
sentido para sua existência e a prática solidária acaba por responder esse chamado. Nenhuma
pessoa necessita confessar “Jesus-carne” como Cristo para daí fazer sua opção solidária.
Entretanto, pode ver em sua prática um modo bastante concreto de se respeitar o próximo. O
princípio da solidariedade pode capacitar a humanidade para responder de forma diferente às
interpelações de uma sociedade pluricultural e marcadamente financista e mercantilista.
Conclusão
Três incidências do “Jesus-carne”, bastante concretas, foram apresentadas. Não se
tem nenhuma pretensão de completude no tratamento do tema, mas pensa-se ter aberto
horizontes de compreensão nem sempre tão relacionados a uma leitura do termo “carne” de
Jo 1,14a. A importância dessas incidências encontra-se no fato de que não permitem também
um distanciamento da reflexão bíblico-teológica em relação à humanidade.
Há muito que se percorrer para que a teologia contemporânea consiga realmente
falar aos ouvidos dos atuais interlocutores. A cristologia, enquanto interpretação do “Jesuscarne”, especificamente relacionada a João, ainda pode desenvolver-se sobremaneira. A
cristologia do Logos encarnado pode dar lugar à sarcologia joanina aplicada a Jesus e, como
tal, sinalizadora de uma real humanidade que possibilita um acesso inovador ao Deus já
conhecido como onipotente. “Jesus-carne” é consubstancial a todo o gênero humano.
A tarefa do diálogo ecumênico e inter-religioso tem efetuado transformações, mas
está longe de uma relação madura e saudável. Há desconfianças de quase todos os grupos
diante de uma manifestação cristã de exclusivismo da revelação. Certamente, o lugar ético é
onde melhor se dá a prática ecumênica e inter-religiosa. Não desprovida de discurso, afinal
toda práxis já carrega em si o seu discurso. Entretanto, os debates só terão sentido se girarem
57
SCHILLEBEECKX, op.cit., p. 311-312.
137
em torno do “Jesus-carne”, pois nele visualiza-se o valor do humano para Deus. Em torno do
humano, Deus e os humanos encontram-se e podem re-significar suas relações.
Se a cultura moderna desafia a teologia cristã, o faz porque os cristãos já não
conseguem expressar com clareza as razões de sua fé e nem sempre proclamam o mistério do
humano enquanto interlocutores do divino. Somente revendo a forma de pensar Deus e de
pensar o humano, e conseguindo legitimá-las, é que a teologia poderá aproximar-se daqueles
que pensam Deus e o humano como antagonistas. Sem dúvida alguma, o “Jesus-carne”
propõe ao humano uma nova relação com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o
mundo. A prática da solidariedade, que já tem sua tônica acentuada no agir ético cristão e
inter-religioso, é na sociedade atual convite irrecusável a todo cristão para se incorporar na
luta pela construção da paz, defesa da humanidade e do mundo.
Isso exige daqueles que crêem em “Jesus-carne” reconhecer que onde se encontra
um ser humano ali se encontra novamente o apelo da encarnação. Exige, ainda, reconhecer
que toda prática secular que visa à dignidade humana é, em si mesma, testemunho do que o
“Jesus-carne” propõe e espera de seu “corpo místico”. Num mundo moderno, as parcerias são
imprescindíveis e podem ser espaço para novos conhecimentos, revisão de antigos conceitos e
preconceitos, tentativa de responder a tantas inquietações que afligem os que são humanos e
têm o ser humano como referência máxima para o seu agir. O cristão é parceiro, na sua
própria identidade, de todos aqueles que evitam que mais uma vez o sacrifício da cruz impere
sobre a vida.
O estudo de “Jesus-carne” permite entrever que, em João, a humanidade ocupa
lugar central e, portanto, não se pode falar dele sem se desejar ardentemente falar do humano
com todas as suas complexidades. É salutar pensar que o Deus que se professa é o mesmo que
escolheu fazer-se um com a humanidade, para que não mais o buscassem nas alturas, mas sim
o reconhecessem desde então na imagem de todo ser humano e de tudo aquilo que lhe diz
respeito. Como diz Comblin:
[...] a novidade do cristianismo não é o desejo do infinito, é o amor das
coisas finitas, o amor das coisas que passam. O homem foi criado,
precisamente, para viver o eterno, para amar a Deus, na dimensão do tempo,
passando e deixando-se passar, e forçando a passagem. O homem foi feito
para viver o eterno na sucessão e no instante que passa. Não é se afastando
das coisas que passam que ele se reúne a Deus. Pelo contrário, é
mergulhando nelas, captando-as, abraçando-as inteiramente. A salvação não
vem transformar essa vocação. Vem salvá-la58.
58
COMBLIN, José. O provisório e o definitivo. São Paulo: Herder, 1968. p. 72.
138
“Jesus-carne” é a afirmação do gênero humano e a revelação da meta a que cada
pessoa é chamada a atingir. Não heroicamente pela negação ou superação de suas limitações,
fragilidades e fraquezas, mas sim pela acolhida de sua condição humana como realidade que é
constantemente desafiada pelo mistério que lhe constitui a essência. Aceitar a condição
humana como o perecível chamado ao eterno, somente possível pela entrega e pelo agir
condizentes com o que é próprio do humano e que se evidenciou de forma inelutável em
“Jesus-carne”.
O “Jesus-carne” apresentado no Prólogo joanino também afirma que somente na
história humana, com todos os seus revezes, pode-se vislumbrar o rosto de Deus. Longe do
mundo não se chega a Deus e longe do humano distancia-se do semelhante. A história é,
então, instância na qual se decide por Deus e pelo próximo ou se os recusa ou rejeita. O
Evangelho de João dá um passo grandioso ao recuperar a terminologia veterotestamentária e
aplicá-la a Jesus, posteriormente compreendido pela comunidade como Filho de Deus.
O novo de João é a proclamação de que Deus adentrou a fronteira última que lhe
impedia tocar o humano, ele mesmo fez-se humano e deixou-se conhecer em Jesus como
Deus frágil, humilde, perecedouro, companheiro até o fim naquilo que é a trajetória humana.
Um Deus que em “Jesus-carne” revelou que sua glória é o amor, que seu encontro com a
humanidade dá-se para salvá-la, que sua entrega é resposta inequívoca à vocação plantada
pelo Pai em seu ser, a saber: a capacidade de doar-se no amor.
139
CONCLUSÃO
As Escrituras trazem em si uma reserva semântica que, como numa espiral, faz
com que uma só palavra abra uma série de perspectivas, significados e, conseqüentemente,
remeta a outras tantas palavras. A partir do termo “carne”, o estudo aqui realizado tinha como
proposta inicial ver o seu significado aplicado à pessoa de Jesus (Jo 1,14a). Diante de mistério
tão grandioso e fascinante que é a encarnação, a elucidação de um vocábulo a ele relacionado
é sempre um exercício atual e com implicações bastante concretas para o cristianismo.
No status questionis ficou evidente como o contexto sócio-religioso influenciou as
leituras do termo “carne” mencionado por João. Ireneu eleva “carne” à linguagem teológica e
lhe dá um significado essencial para a compreensão da pessoa de Jesus. Para Ireneu, sem a
afirmação da condição terrena do Verbo nada é modificado na condição humana. A
comunhão proposta por Deus em seu Filho é um resgate e divinização da pessoa humana.
Contra os gnósticos a palavra de Ireneu serviu como defesa de um elemento fundamental;
hoje uma leitura de Ireneu pode ajudar a vencer alguns pseudo-gnosticismos que têm
distorcido a verdade cristã e impedido uma valorização da vida na sua realidade perecedoura.
Num afã de salvaguardar a divindade do Verbo, Agostinho praticamente rompeu
com a dimensão humana de Jesus e, por sua vez, essa desvalorização da “carne” foi estendida
a todos os mortais. O espírito ficou em evidência, o humano não tinha sentido e era sempre
associado ao pecado. O Bispo de Hipona propõe que o Verbo vem como o médico que
devolverá a visão à humanidade. Existe aí certa semelhança com a idéia de envio, porém a
motivação pensada por Agostinho destoa por completo daquela apresentada por João como
comunicação da glória de Deus. João não propõe a missão de Cristo como motivada pelo
pecado, mas sim por um desejo divino de revelar o seu amor.
Tomás de Aquino utiliza como chave-de-leitura para o mistério da encarnação a
afirmação contida em Jo 14,6: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Essa chave é
140
bastante coerente com o sentido apresentado por João ao afirmar que “o Logos se fez
carne” (Jo 1,14a). O Doutor Angélico afirma a missão do Cristo como salvador da
humanidade, como o caminho e a meta a ser alcançada. Tomás assegura a unidade de corpo e
alma, permitindo uma valorização do terreno como mediação necessária para o encontro com
Deus. “Jesus-carne”, em Tomás, é a possibilidade de ascensão do humano até Deus. Este
acontecimento só foi possível por iniciativa de Deus.
Mais próxima do pensamento e linguagem modernos está a reflexão de Karl
Rahner. Esse teólogo rompe com um pessimismo em relação ao ser humano e interpreta a
encarnação como desejo de Deus de falar ao ser humano. Tal só pode acontecer em “Jesuscarne”. A pessoa é em si um grande valor e Deus escolheu comunicar a ela todo o seu amor.
Na fragilidade do humano é que Deus revelou toda a sua magnitude. Rahner demonstra
acuidade ao pensamento joanino quando insiste na humanidade de Jesus como participação
plena e total na condição de todas as pessoas. A afirmação de João de que não há mais
barreiras a impedir a comunicação divina é legitimamente interpretada na proposta de Rahner
de que tudo está marcado pela graça de Deus. A realidade humana está imersa no mistério
divino.
Com relação à pesquisa bíblica, ficou evidente que o termo “carne” no AT é,
fundamentalmente, a condição humana na sua mortalidade, fragilidade e limitação. O humano
é uma “carne animada” que não tem todo o domínio sobre si mesma. A referência ao Criador
como o único imortal e eterno reforça que a pessoa na sua vida terrestre sempre será marcada
pela finitude e limitação espaço-temporal. Como vimos, a importância do estudo de “carne”
no AT está no fato de permitir uma real aproximação daquilo que o evangelista quis afirmar
no Prólogo. No AT, as duas esferas, a divina e a humana, são distintas, mas em constante
comunicação, pois é na “carne” que a existência humana se dá e nela se reflete o ser e o agir
de Deus. Importante notar como para o AT a categoria de história tem valor e como ela só é
possível a partir da existência concreta da humanidade.
Paulo não rompe com o pensamento hebraico sobre o vocábulo “carne”, porém
percebe as ameaças ao agir de Deus quando o humano tem a pretensão de se salvar pelas suas
próprias forças, não colocando mais a sua vida em referência ao Criador. A “carne” do pecado
é o orgulho humano, a vaidade da auto-suficiência que gera a ilusão de bastar-se a si mesmo.
Paulo levou o termo “carne” para o âmbito religioso e deu a ele um caráter teológico,
tornando quase impossível pensar sua teologia sem alusão ao mesmo. No que diz respeito à
141
pessoa de Jesus, o uso que Paulo faz de “carne” indica a existência de Jesus, a sua condição
humana, a totalidade de sua vida.
O estudo do Evangelho de João evidenciou que a palavra “carne” no Prólogo está
vinculada à realidade histórica da vida de Jesus. O “fazer-se carne” é o assumir a condição
humana com todas as suas características, mas particularmente com a realidade de
mortalidade. O todo da vida, palavra e ação de Jesus no mundo está condensado na afirmação
joanina de “carne”. A encarnação não é um acontecimento isolado, mas é o início de um
movimento muito mais amplo da revelação de Deus. “Carne” é, portanto, para João elemento
fundamental para a compreensão da fé cristã, pois sua cristologia é marcada pela idéia de
envio. Sendo assim, o “Jesus-carne” é a possibilidade única, verdadeira e insuperável do agir
de Deus no mundo.
O conjunto da obra de João deixa claro que não há um desprezo em relação à
“carne” nem uma vinculação ao pecado. “Carne” é a expressão da condição mortal escolhida
por Deus para se comunicar. É necessário ressaltar que, para João, não há necessidade de uma
defesa da humanidade de Jesus, pois isso já é dado pacífico; o paradoxo está em perceber
nessa humanidade a manifestação de Deus. Uma leitura da humanidade de Jesus em João não
pode se deter aos elementos meramente emocionais ou fisiológicos, mas deve sim atentar para
o fato de que o evangelista quis afirmar radicalmente que um “humano” como tantos outros se
distinguia por revelar o rosto do Pai. A profissão de fé da comunidade joanina assegura o
“Cristo total”, ou seja, a sua vida terrena, a sua glorificação após ter cumprido a missão para a
qual foi enviado e a sua pré-existência.
Não há no Evangelho de João interesse em se contrapor a um possível docetismo,
nem tampouco ele é fruto de um “docetismo ingênuo”. O Cristo joanino só pode ser
compreendido a partir do seu agir terreno, nem a glória nem a pré-existência isoladas
permitem ao humano decidir-se por ele. Na função de enviado, “Jesus-carne” é a realização
histórica do plano de Deus, o início de um novo tempo onde a glória divina já foi comunicada
e aguarda uma resposta humana. Impossível ficar indiferente ao “Jesus-carne”, ou se está ao
seu lado ou se estará do lado das “trevas”, a realidade distante de Deus.
No último capítulo foram apresentadas algumas incidências do “Jesus-carne”,
cabendo aqui somente afirmar que o atual momento vivido pelo cristianismo exige séria e
profunda reflexão acerca da humanidade de Jesus. Sem isso parece inevitável o movimento
massivo de adesão a um Deus distante da realidade, ora mágico, ora salvador, ora estranho e
incomunicável. Uma imagem de Deus, extremamente puritano, presente no cristianismo ou o
142
pseudo-cristianismo, em que a realidade terrena é negada em função do divino, leva a teologia
a repensar o seu lugar de fala sobre Deus e fala com Deus. O Deus apresentado por “Jesuscarne” permanece, para muitos, um desconhecido. Na oficialidade dos catecismos, manuais,
escritos, há uma afirmação de que “o Logos se fez carne”, porém a forma como isso é
compreendido, principalmente a nível pastoral, desvia-se bastante daquilo que João propunha.
Afirmar a encarnação pode soar como afirmar uma história improvável ou
meramente fantasiosa de um Deus que se veste de humano, mas que verdadeiramente
permanece somente Deus e nunca efetivamente viveu a condição mortal. Por uma fidelidade
ao cristianismo primitivo importa resgatar que a humanidade de Jesus é dado essencial e que
em nada se diminui Deus ao pensá-lo como aquele que se fez criatura, viveu e morreu como
todo e qualquer humano. O desafio permanece: assumir que em “Jesus-carne” o cristianismo
vê a irrepetível e completa revelação de Deus, somente compreensível parcialmente, dada a
profundidade do seu ser.
Ao final desta pesquisa cabe reconhecer o quanto os cristãos precisam se apropriar
das suas verdades de fé, não como palavras mas como realidades que possam impeli-los a um
agir mais condizente com o do Mestre. “Jesus-carne” é o reconhecimento da história como
lugar imprescindível para o ser cristão. Não há outro Deus a ser buscado senão aquele que se
fez pequeno para revelar-se infinito, mortal para mostrar-se eterno, terreno para divina e
amorosamente surpreender a humanidade. Um Deus que coloca o humano no centro do seu
íntimo e que solicita do humano “amar como ele amou”.
A pesquisa em torno do “Jesus-carne”, ao propor uma “cristologia do envio”, abre
perspectivas para uma inovação no pensamento cristológico, evitando as propostas
descendente e ascendente, propondo uma integração entre o que foi a vida de Jesus e a
interpretação que dela fez a comunidade de fé. No campo da soteriologia ressoa o apelo por
uma interpretação da realidade humana nas suas várias dimensões e por um assumir a causa
do Reino não como realidade distante e futura, mas como ação cotidiana. Para isso a categoria
de “solidariedade” merece ainda maior aprofundamento. Um antropologia cristã à luz do
“Jesus-carne” pode ser instrumento elementar para um resgate do humano com tudo o que lhe
pertence e compõe como criatura aberta ao mistério.
Jesus, carne de Deus, estudo teológico-exegético a partir de Jo 1,14a, é mais um
esforço por explicitar uma compreensão do que há de mais sagrado no cristianismo e
contribuir para uma nova sensibilidade em relação ao humano Jesus e tudo o que ele significa
para a humanidade, bem como tudo o que a pessoa humana significa para Deus.
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