A mudança climática: hipóteses científicas e as - Moodle

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temas
ciência
14,8º
A mudança climática:
hipóteses científicas
e as dúvidas
por esclarecer
14,4º
14,2º
14,0º
13,8º
13,6º
13,4º
1880
1900
1920
1940
1960
1980
2000
2010
Figura 1. Temperatura média global 1880-2010, calculada a partir de observações (NASA/GISS).
Pedro M. A. Miranda
De acordo com os dados da NASA, o ano de 2010 foi o mais quente desde que
existem registos meteorológicos representativos, culminando uma série de anos
anormalmente quentes.
166 XXI, Ter Opinião
possibilidade de criar desequilíbrios
irreversíveis em componentes-chave do
sistema climático.
A dimensão dos riscos colocados
pelo aquecimento global, mas também
a enorme incerteza que está necessariamente associada a previsões desta
natureza, tornou a investigação em ciências do clima uma actividade prioritária. Na última década, em resultado
dos progressos científicos, mas também
da própria evolução observada do clima
global, aumentou significativamente a
nossa compreensão sobre os processos
do clima.
radiação e clima
O ambiente físico do planeta Terra,
caracterizado por variáveis como a temperatura, a humidade e o vento, varia razoavelmente com a localização geográfica, evolui de forma quase periódica com
os ciclos dominantes da vida planetária,
os ciclos diurno e anual do aquecimento solar, e de forma mais complexa em
outras escalas de tempo. Em cada local,
certas características médias desse ambiente físico são notavelmente estacionárias, evoluindo lentamente dentro de intervalos limitados. Estas características
médias definem o clima local, caracterizado não só pelos valores médios a longo
prazo – por exemplo, da temperatura –,
mas também por outras estatísticas – por
exemplo, as amplitudes térmicas diurna
© Jordi Burch
D
e acordo com os dados da
NASA, o ano de 2010 foi o
mais quente desde que existem registos meteorológicos representativos, culminando uma série de anos
anormalmente quentes (Figura 1). No
último século, a temperatura média
global cresceu um pouco menos de 1, de
forma algo irregular, com dois períodos
de aquecimento relativamente rápido
(1910-1945 e 1975-presente) intercalados por um período de quase estabilização. Modelos climáticos indicam que
esta evolução recente do clima global é
a primeira fase da resposta do planeta
à alteração da composição atmosférica
resultante da queima de combustíveis
fósseis, mas também da desflorestação
e de outras actividades humanas, sendo
expectável um aquecimento mais acentuado ao longo do século actual, com a
XXI, Ter Opinião 167
temas
ciência
e anual. A relativa estacionaridade (e benignidade) do clima terrestre é uma das
condições para o sucesso da vida, sendo,
por outro lado, as transições climáticas
forças poderosas do processo darwinista
de selecção natural.
A Terra é, como todos os objectos
interessantes, um planeta heterogéneo,
com continentes e oceanos cobertos
por uma atmosfera turbulenta, quimicamente activa, onde coexistem gases
e materiais líquidos e sólidos em suspensão (o aerossol atmosférico). Neste
sistema, a temperatura varia de ponto
para ponto e ao longo do tempo, acompanhando os fluxos de energia e de
massa no interior do planeta e as trocas
de energia entre o planeta e o exterior.
A dinâmica interna do planeta Terra é,
por isso, inerentemente complexa, com
destaque para a circulação atmosférica.
Se nos concentrarmos, no entanto, nos processos de interacção entre a
Terra e o exterior, o problema surge-nos como muito mais simples: em boa
aproximação a Terra limita-se a receber
radiação (solar) e a emitir radiação (terrestre). A condição de equilíbrio térmico
da Terra resulta simplesmente da condição de equilíbrio radiativo (radiação
absorvida=radiação emitida). Desde finais do século XIX sabemos relacionar
esses fluxos de radiação com a temperatura. Em 1900, Max Planck revolucionou a Física introduzindo a hipótese
quântica, exactamente com o objectivo
de estabelecer as propriedades da radiação emitida por um corpo ideal, o corpo
negro, em função da sua temperatura.
Sendo o fluxo de radiação emitido
pela Terra controlado pela sua temperatura, por intermédio da Lei de Planck,
a absorção de radiação solar depende
da reflectividade do planeta, designada
por albedo. A dificuldade está, no entanto, no facto de a Terra ser heterogénea,
apresentando uma distribuição de temperatura que depende da latitude, longitude e altitude. Esquecendo, por momentos, essa complexidade, podemos
facilmente calcular uma temperatura
característica do planeta como um todo,
a sua temperatura efectiva, que se mostra ser uma função exclusiva de dois
parâmetros: a radiação solar incidente
(constante solar , S≈1366 Wm-2) e o albedo médio global (α≈0.3): T_ef=∜(S(1-α)/
(4), em que σ é uma constante universal
168 XXI, Ter Opinião
O muito ligeiro
decréscimo da
temperatura média
global observado
entre 1945 e 1975,
num período em
que a concentração
de CO2 cresceu
monotonamente,
constitui um teste
difícil para os
modelos. Nenhum
processo simples
individual parece ser
capaz de explicar o
arrefecimento nesse
período
e o factor 4 é simplesmente a razão entre a área da esfera e a área do círculo
máximo. A temperatura efectiva da Terra é assim estimada em cerca de 255K
(-18°C). Trata-se de uma temperatura
muito inferior à temperatura média
do ar perto da superfície, próxima dos
288K (15°C), o que mostra a importância
da atmosfera, em média muito mais fria
do que a superfície, no estabelecimento
do equilíbrio radiativo do planeta.
a descoberta do efeito
de estufa
A diferença entre a temperatura média do ar junto da superfície e a temperatura efectiva, 288-255=33°C, é a medida mais simples do efeito de estufa. Jean
Baptiste Fourier, ministro de Napoleão e
autor da teoria da condução do calor, foi
o primeiro cientista a atribuir à atmosfera um papel de aquecimento da superfície, em 1824, justificando-o qualitativamente como consequência da emissão
de radiação infravermelha pelo planeta
(chaleur obscure, descoberto por William
Herschel em 1800). A demonstração
do efeito de estufa viria a ser realizada
mais tarde por John Tyndall por volta
de 1860, numa experiência em que verificou a absorção de radiação infravermelha por diversos gases atmosféricos.
No final do século XIX, em 1896, Svante Arrhenius, interessou-se pelo problema do efeito de estufa, motivado pela
procura de uma explicação para as oscilações glaciares. Num cálculo grosseiro,
concluiu que uma redução da concentração de CO2 para metade do seu valor
(então cerca de 300 ppm, partes por milhão) implicaria uma redução da temperatura da superfície em cerca de 6, valor
talvez suficiente para explicar a oscilação
glaciar. Por outro lado, Arrhenius, consciente da importância potencial da queima de combustíveis fósseis para a evolução futura da composição da atmosfera,
também estimou que uma duplicação do
CO2 se traduziria num aumento da temperatura média em cerca de 6, facto que
até lhe parecia potencialmente positivo e
que estimava só poder ocorrer ao fim de
centenas ou mesmo milhares de anos de
actividade industrial.
O mundo viria a evoluir muito mais
rapidamente do que o previsto por Arrhenius, tanto em termos populacionais
como em termos da emissão per capita
de dióxido de carbono. No entanto, o
conhecimento do problema científico
do efeito de estufa evoluiu muito lentamente durante a primeira metade do
século XX. As propostas iniciais de Arrhenius foram contestadas e teriam sido
provavelmente esquecidas, não fora Arrhenius um dos mais notáveis cientistas
mundiais, prémio Nobel em 1903. Um
argumento que parecia relevante, apresentado por Angstrom consistia no facto
de as bandas de absorção de radiação infravermelha por parte do CO2 se encontrarem saturadas com as concentrações
então existentes, fazendo muito pouca
diferença a adição de mais gás. Este
argumento estava fundamentalmente
errado: mesmo que a banda de absorção do CO2 esteja saturada, absorvendo
100% da radiação nessa zona do espectro, o aumento da concentração implica um papel acrescido para os níveis
elevados da atmosfera, mais frios, com
aumento da temperatura da superfície.
Um outro argumento, já discutido por
Arrhenius, consistia no papel do vapor
de água e das nuvens no efeito de estufa.
340
320
300
280
260
240
200
180
2
0
-2
-4
-6
-8
-10
Variação de temperatura
CO2 (ppmv)
400
350
300
250
200
150
100
50
Hoje
Figura 2. Concentração de CO2 (partes por milhão em volume, a salmão) e anomalia de temperatura (estimado pela razão isotópica 18O/16O)
medidas em bolhas de ar em Vostok (Antárctica, dados NOAA).
observações
O problema do efeito de estufa manteve-se dormente até meados do século XX, sendo usado essencialmente no
contexto da discussão de oscilações
climáticas passadas. Em 1938, John
Callendar apresenta o primeiro estudo fundamentado em observações do
aquecimento global nas primeiras décadas do século XX, atribuindo-o à intensificação do efeito de estufa resultante
da industrialização.
Em 1957-58, iniciou-se com o Ano
Geofísico Internacional uma alteração
qualitativa da nossa observação da
Terra. Como parte do esforço internacional concertado de constituição de
um sistema de monitorização global do
planeta, Charles Keeling idealizou um
novo sistema de medida da concentração atmosférica de CO2 e realizou um
conjunto de expedições para estabelecer uma estimativa da sua concentração média global. Num dos locais escolhidos como suficientemente remotos
para não ser afectados pelo “ruído” das
emissões humanas, o observatório de
Mauna Loa no Havai, Keeling iniciou
um conjunto de medições contínuas
que se mantiveram até aos dias de hoje.
Ao fim de apenas dois anos de medição,
Keeling concluiu que a concentração de
CO2 estava em subida.
O CO2 é, depois do vapor de água, o
segundo principal gás de estufa na atmosfera da Terra. No entanto, enquanto
as concentrações de vapor de água na
atmosfera são limitadas pelo processo
de condensação e precipitação, verifi-
P 168 Temperatura média anual
18
17
16
15
1860 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000
Figura 3. Temperatura média anual 1857-2010
em Lisboa, Instituto Geofísico (Dados IDL).
cando-se que a quase totalidade do vapor se concentra na baixa troposfera, as
concentrações do CO2 (e dos outros gases de estufa não condensantes) podem
crescer sem limite mesmo na atmosfera
média e alta. Em consequência, estes
gases assumem um papel na regulação
climática global.
De facto, no período recente da história da Terra temos observações directas
da evolução da concentração de CO2, obtidas a partir de análise de bolhas de ar
aprisionadas no gelo polar. Essas medidas podem ser comparadas com estimativas da temperatura média da Terra no
mesmo período, efectuadas com base na
variação da proporção entre dois isótopos estáveis do oxigénio, quimicamente
idênticos mas com uma ligeira diferença
de massa atómica. Estes dados (Figura
2) apresentam uma elevada correlação,
sugerindo a existência de uma relação
causal entre as duas variáveis. Por outro lado, ambas as séries apresentam
um comportamento quase periódico,
com oscilações entre épocas glaciares e
interglaciares, com um período dominante da ordem dos 100.000 anos, o
que sugere que estas oscilações são controladas pelos ciclos de variação dos parâmetros orbitais da Terra, descobertos
por Milutin Milankovic em 1930.
Os gráficos apresentados na Figura 2
são baseados em observações directas no
caso das concentrações de CO2, e fortemente corroborados por fontes independentes no caso na temperatura. O gráfico
resultante das medições de Mauna Loa
é confirmado por medições em muitos
outros locais da Terra, nomeadamente
no pólo Sul, o local menos directamente
afectado pela actividade humana. A concentração actual de CO2, próxima das
390 ppm, está fora da escala da Figura
2, sugerindo que a temperatura média
actual está em desequilíbrio com a composição atmosférica. A Figura 1 mostra a
evolução recente da temperatura média
global aos 2 m, calculada a partir de observações. Nesta curva observa-se uma
tendência de aquecimento de um pouco
menos de 1°C no último século, o que é
consistente com uma situação de desequilíbrio radiativo devido ao aumento
dos gases de estufa.
Tendências de evolução também
semelhantes encontram-se em observações em muitos pontos do mundo,
nomeadamente em Portugal (Figura 3).
Como seria de esperar, a evolução local
é mais “ruidosa”, i.e., apresenta maior
variabilidade inter-anual mas, no caso
de Portugal, apresenta também uma
tendência para um aquecimento um
pouco mais rápido.
XXI, Ter Opinião 169
© Jordi Burch
P 169 Forçamento radioactivo
CO2
CH4
N20
CFCs
O3 (Est)
O3 (Trop)
Aerossol
Nuvens
Uso do Solo
Total Antrop.
Var. Solar
Wm-2 -1,5 -1,0 -0,5 0 0,5 1,0 1,5 2,0 2,5 3,0
Figura 4. Forçamento radiativo à superfície
devido à acção humana desde 1750. Dados
IPCC (Foster et al. 2007). Linhas horizontais
indicam uma estimativa da incerteza
associada a cada processo. As duas últimas
barras representam uma estimativa do
forçamento total devido à acção humana
(Total Antropogénico, soma das barras
anteriores) e do impacto da variação do output
do Sol no mesmo período (Variação Solar).
Qual é a sensibilidade
do clima terrestre?
Contrariamente ao que foi dito em relação às curvas da Figura 2, a evolução
recente da temperatura (Figura 1 e, mais
a ainda no caso da Figura 3) não correlaciona bem com a evolução recente da concentração de CO2. Esse facto não é surpreendente, visto que estamos a comparar
evoluções em escalas de tempo muito diferentes: da ordem dos 100.000 anos no
caso das oscilações glaciares, contra cerca
de 100 anos de história recente. Uma evolução tão rápida da composição atmosférica, com subida da concentração em 35%
ao longo de 100 anos é, provavelmente,
inédita, e implica um deslocamento do
sistema climático para fora do equilíbrio.
Por outro lado, a correlação entre a concentração de CO2 e a temperatura, implícita na Figura 2, poderia sugerir uma
170 XXI, Ter Opinião
relação linear entre essas duas variáveis,
o que não é certamente o caso, mesmo em
condições de quase equilíbrio.
A complexidade da relação entre os
gases de estufa e a temperatura poderá
ser melhor compreendida se se considerarem os processos físicos que são
iniciados pelo aumento das suas concentrações. A Figura 4 apresenta estimativas do impacto dos acréscimos dos
principais gases de estufa desde 1750
justificando um aumento da energia
disponível, e dos efeitos opostos correspondentes ao aumento paralelo das
partículas em suspensão na atmosfera
(aerossol) e às modificações da cobertura nebulosa e do uso do solo, principalmente por meio da desflorestação. Apesar do cancelamento parcial entre os
vários efeitos, o resultado global estimado traduziu-se num aumento da energia disponível em cerca de 1.6Wm-2, um
efeito que é cerca de 10 vezes superior
à variabilidade solar no mesmo período.
O gelo existente
na Gronelândia
é suficiente para
fazer subir o nível
do mar em cerca de
7 metros, e o gelo da
Antárctica é 10 vezes
mais volumoso. Em
face destes riscos,
as estimativas
divulgadas pelo IPCC
em 2007, de subida do
nível do mar inferior
a 1 m em 2100, podem
ser consideradas
modestas
A Figura 4 mostra que apesar de
existir bastante confiança na existência
de um aumento de energia disponível
devido à acção humana, mantém-se
uma razoável incerteza sobre a sua dimensão, devida principalmente ao insuficiente conhecimento sobre a física
das nuvens e do aerossol atmosférico.
Por outro lado, a tradução do aumento
de energia disponível em variação da
temperatura do ar junto da superfície
não é trivial. A dificuldade está no facto
de a energia adicional se distribuir pela
atmosfera, sistema com pouca massa
e “fácil” de aquecer ou arrefecer, mas
também por uma fracção do oceano,
com muito maior capacidade calorífica.
Como a participação do oceano no processo de aquecimento depende da circulação, a taxa de aquecimento pode ser
muito variável. Uma melhor compreensão destes processos só é possível com o
recurso a modelos de circulação global
da atmosfera e oceano.
modelos e cenários
A previsão meteorológica a curto
prazo evoluiu de forma drástica nas últimas décadas, com o desenvolvimento
de modelos físicos detalhados da atmosfera e do solo e sua resolução numérica em supercomputadores. A mesma
tecnologia, progressivamente alargada
para incluir o oceano, a biosfera (seres
vivos) e a criosfera (gelo na superfície),
tem vindo a afirmar-se como a principal ferramenta científica no estudo do
clima global. Os modelos podem ser desenvolvidos no sentido de incluir uma
representação explícita dos processos
considerados mais relevantes e, mais
importante, podem ser testados pela
sua capacidade de reproduzir o comportamento observado do planeta.
Uma característica da curva da Figura
1 tem merecido muita discussão: o (muito
ligeiro) decréscimo da temperatura média global observado entre 1945 e 1975,
num período em que a concentração de
CO2 cresceu monotonamente, constitui
um teste difícil para os modelos. Nenhum processo simples individual parece ser capaz de explicar o arrefecimento
nesse período. No entanto, diversos modelos climáticos globais, incorporando
uma descrição do comportamento dos
gases de estufa mas também do aerossol
atmosférico, de origem vulcânica e antropogénica, são capazes de produzir simulações qualitativamente muito semelhantes à série observada (Figura 5).
O estabelecimento de um conjunto
alargado de modelos climáticos, desenvolvidos independentemente e capazes
de passar o teste das observações, simulando adequadamente a evolução
climática desde 1850 até ao presente,
permite-nos explorar as possibilidades
de evolução próxima do clima terrestre.
É claro que não se trata exactamente de
uma previsão, pois a evolução futura
depende também de muitos factores externos ao sistema climático, nomeadamente da intensidade das emissões futuras de gases de estufa. Em vez de uma
simulação do clima futuro, precisamos
de realizar um conjunto de simulações
para cada cenário possível de evolução.
A Figura 6 mostra o conjunto de cenários estabelecido pelo IPCC em 2007.
Todos os cenários prevêem um aumento das emissões em relação aos valores
observados em 2000, a taxas diferentes e com uma estabilização seguida de
redução em diferentes momentos. A
Figura 7 mostra a evolução da temperatura média simulada em várias dezenas
de modelos, para cada um dos cenários.
Como seria de esperar, os cenários com
menores emissões (B1) traduzem-se no
menor aquecimento. A dispersão de
resultados entre os diferentes modelos
mede, de forma algo grosseira, o nível
de incerteza dos resultados. Assim, por
exemplo, no cenário B1 espera-se um
aquecimento global um pouco inferior
a 2°C, mas com modelos a prever níveis
de aquecimento global entre 1 e 3°C.
Não é possível discutir a mudança
climática sem falar de incerteza. Esta é
inerente à construção dos cenários de
emissões futuras, dependentes da evolução demográfica, económica e tecnológica. A esta enorme fonte de incerteza
soma-se o nosso ainda relativo desconhecimento de alguns processos físicos
XXI, Ter Opinião 171
P 171 Global surface warming
temas
ciência
4,0 ºC
170 Temp. Media global
180 Gigatoneladas CO2 - eq/ano
cruciais. Dentro destes destacam-se os
processos associados à física das nuvens e do gelo polar.
o problema do gelo polar
Um segundo factor de incerteza, este
associado à água sobre a superfície, é a
resposta do gelo polar ao aquecimento
global. Este gelo encontra-se na forma
de calotes polares sobre a Antárctica e
a Gronelândia, com uma profundidade
que pode atingir alguns quilómetros, e
de plataformas de gelo flutuante “per172 XXI, Ter Opinião
3,0
A1B
140
A1Fl
GHG+Asol 2
Enquanto a concentração de CO2
na atmosfera é simples, distribuindo-se este em proporções quase constantes em toda a homosfera (primeiros
100 km de atmosfera, que contém mais
de 99.9999% da massa total), o outro
elemento decisivo do equilíbrio climático, a água, apresenta uma distribuição
muito heterogénea, podendo apresentar-se na fase gasosa ou como nuvens
(de gotículas ou cristais de gelo). As
nuvens têm um papel decisivo no equilíbrio climático, afectando quer a intensidade do efeito de estufa, quer o albedo
planetário. Qualitativamente, sabemos
que as nuvens baixas contribuem para
o arrefecimento da Terra, enquanto as
nuvens altas contribuem para acentuar
o efeito de estufa.
A interacção entre as nuvens e o
efeito de estufa é um tema de investigação actual. As simulações recentes com
modelos climáticos indicam que elas
não contribuem para alterar o sinal da
resposta planetária, i.e., num mundo
com mais CO2 (e outros gases de estufa não condensantes) não se prevê um
aumento da nebulosidade baixa que
compense a intensificação do efeito de
estufa. No entanto, o assunto não está
encerrado e a Figura 4 sugere que as
nuvens atenuaram o aquecimento global já realizado.
Post-SRES range (max)
160
0,8 ºC
o papel das nuvens
A2
0,6
2,0
120
100
Parker/Jones
0,4
1,0
80
GHG+Asol 3
A1B
A1T
60
0,2
B2
B1
40
Ano 2000
Concentrações constantes
0
Post-SRES range (80%)
0
Século XX
20
Control
GHG+Asol 1
-0,2
1900
B1
A2
1910
1920
1930
1940
1950
1960
1970
1980 1990
Figura 5. Temperatura média global no século XX (Boer et al 2000). A curva Parker/Jones
(preto) representa as observações. A curva Control (verde) representa uma simulação sem
aumento da concentração de CO2, as outras curvas são resultado de diferentes modelos.
Não é possível
discutir a mudança
climática sem falar
de incerteza. Esta é
inerente à construção
dos cenários de
emissões futuras,
dependentes da
evolução demográfica,
económica e
tecnológica. A esta
enorme fonte de
incerteza soma-se o
nosso ainda relativo
desconhecimento
de alguns processos
físicos cruciais
Post-SRES range (min)
0
manente”, com poucos metros de espessura, no oceano Árctico. A presença
deste gelo é um factor crucial do actual
equilíbrio climático, uma vez que ele
reflecte radiação solar nas latitudes elevadas contribuindo para arrefecer o planeta. Não menos importante, as calotes
polares constituem um enorme reservatório de água, sendo claro que a sua redução teria consequências drásticas no
nível do mar.
No momento actual, o gelo flutuante
do Árctico apresenta grande vulnerabilidade ao aquecimento, tendo sofrido uma evolução muito mais rápida
do que era esperado há pouco mais de
uma década. Em 2007 foi atingido um
mínimo histórico da área gelada no
final do Verão, com a abertura à navegação da mítica passagem do Nordeste. Em anos sucessivos as observações
não apontam no sentido da sua recuperação (Figura 8), sendo expectável uma
redução drástica do gelo de Verão nas
próximas décadas.
A evolução previsível do gelo continental, na Antárctica e na Gronelândia,
2000
2020
2040
2060
2080
2100
Figura 6. Emissões de gases de estufa em diferentes cenários climáticos
(B1, A1T, etc). Figura do relatório síntese do IPCC (2007, www.ipcc.ch).
é muito mais incerta. Os modelos climáticos actualmente validados não representam de forma detalhada a evolução
destes sistemas criosféricos, não sendo
possível pôr de parte a possibilidade
de uma evolução rápida, em décadas
ou poucas centenas de anos. Os riscos
envolvidos numa evolução desse tipo
são extremamente elevados, visto que
o gelo existente na Gronelândia é suficiente para fazer subir o nível do mar
em cerca de sete metros e o gelo da Antárctica é 10 vezes mais volumoso. Em
face destes riscos, as estimativas divulgadas pelo IPCC em 2007, de subida do
nível do mar inferior a 1 metro em 2100,
podem ser consideradas modestas.
As preocupações com a estabilidade
do gelo na Gronelândia, unanimemente considerada como mais vulnerável
ao aquecimento global, estiveram por
detrás do estabelecimento de um objectivo climático pela União Europeia,
aceite por muitos outros parceiros, de
limitar o aquecimento global a um valor inferior a 2°C, considerado nalguns
estudos como o limite superior para a
manutenção de uma Gronelândia gela-
-1,0
1900
2000
2100
Figura 7. Evolução da temperatura média global no século XXI em
diferentes cenários climáticos (B1, A1T, etc). Figura do relatório
síntese do IPCC (2007, www.ipcc.ch).
da. De acordo com os modelos actualmente disponíveis, tal objectivo exigiria
que a concentração atmosférica de CO2
não ultrapassasse as 450 ppm (com
280 ppm em 1800, 390 ppm em 2010),
valor que neste momento se presenta
como praticamente irrealista.
Variabilidade, forçamento
e predictabilidade
Existe ainda uma dificuldade mais
fundamental da discussão climática,
que resulta da complexidade. Aprendemos com os trabalhos de Lorenz, na
Meteorologia, e de outros, que os sistemas complexos tendem a apresentar
comportamentos não lineares, caracterizados por oscilações livres caóticas, não previsíveis a longo prazo. Tal
comportamento limita, por exemplo, a
nossa capacidade de previsão meteorológica útil a pouco mais de uma semana.
Uma análise superficial das consequências da não linearidade poderia
convencer-nos de que a previsão climática é um objectivo inatingível, e que
estaríamos condenados a discutir toda
a evolução climática de uma forma algo
confusa, como um resultado de oscilações próprias de um sistema mal compreendido. Felizmente, essa conclusão
não é correcta. De facto, a Figura 2,
mostra que, pelo menos na escala temporal dos milhares de anos, existe predictabilidade para o clima médio.
Do ponto de vista matemático, a previsão meteorológica e a previsão climática, são problemas distintos. A primeira é
um problema dominado pelas condições
iniciais, sabendo-se que as incertezas
inevitáveis nessas condições se traduzem num crescimento exponencial do
erro de previsão. Para a segunda, as condições iniciais têm um papel secundário,
sendo mais importante a definição das
outras “condições fronteira” (radiação
incidente, composição atmosférica).
Na simulação climática estamos interessados em prever o estado médio do
sistema e não sucessões particulares de
XXI, Ter Opinião 173
© Augusto Brázio
temas
ciência
Agradecimentos:
O presente texto inclui algum material
escrito para um artigo recentemente
publicado pelo mesmo autor (Miranda,
2011, “Compreender a Mudança Climática”,
Razão activa, Fev. 2011, 47-59).
estados instantâneos. O estado médio
ajusta-se ao forçamento externo (radiação, gases de estufa), com um tempo de
resposta que pode ser alargado. Resulta
deste facto o ser em geral não científico, ou
até demagógico, utilizar acontecimentos
pontuais particulares, por exemplo uma
onda de calor ou um inverno anómalo,
como confirmação ou infirmação de uma
teoria particular da evolução climática.
A complexidade do sistema climático pode ser “dissecada” com identificação de diferentes processos distintos de
feedback (realimentação), um conceito
desenvolvido em especial pela engenharia no estudo de sistemas de controlo.
Processos de feedback negativo são, por
exemplo, a base dos termostatos presentes em todos os frigoríficos. Pelo
contrário, os processos de feedback positivo são a receita certa para respostas catastróficas em muitos sistemas.
Consideremos de novo as oscilações
glaciares representadas na Figura 4.
Tudo indica que essas oscilações são
controladas por variações diminutas
da radiação solar devidas aos ciclos de
Milankovic, fortemente amplificadas
por um feedback positivo resultante do
aumento da concentração de CO2 e de
outros gases de estufa. Na evolução
recente, a concentração de CO2 é o resultado directo da actividade humana,
actuando a uma taxa muito mais rápida
do que as variações naturais registadas.
Leituras sugeridas:
O American Institute of Physics
disponibiliza informação detalhada,
cuidadosamente referenciada, da história
das teorias da mudança climática em www.
aip.org/history/climate/co2.htm
Os documentos do IPCC
(Intergovernmental Pannel for Climate
Change) estão integralmente disponíveis
em www.ipcc.ch. O relatório do Working
Group 1 contém uma review, actualizada
em 2007, do estado da arte da ciência do
clima.
O primeiro estudo da mudança climática
em Portugal foi publicado pela Gradiva:
Santos FD, Miranda PMA (eds.), 2006,
Alterações climáticas em Portugal: cenários,
impactos e medidas de adpatação (Projecto
SIAM II), Gradiva, 506 pp.
Os modelos climáticos existentes estão longe de representar toda a complexidade da Terra
Milhões de km2
Ideologia, política e ciência
Certas áreas de ciência estimulam
inevitavelmente apreciações ideológicas e políticas. Em parte, isso resulta
da relevância dessas áreas para a vida
humana. A mudança climática tem
essas características.
De facto, as ideias actualmente dominantes na comunidade das ciências
do clima, aqui expostas, no sentido de
acreditar que a alteração da composição atmosférica já em curso se traduzirá num reforço do efeito de estufa,
com subida da temperatura média do
planeta, eram minoritárias até à década de 1980. Os mecanismos básicos já
eram bem conhecidos, mas faltavam
174 XXI, Ter Opinião
12
Média 1979 - 2000
10
Desvio padrão
2010
8
2011
6
2008
2007
4
2
Jun
Jul
Ago
Set
Out
Nov
Figura 8. Evolução do gelo flutuante no Árctico (2011, National Snow
and Ice Data Center, nsidc.org).
dois ingredientes essenciais para a aceitação dessas ideias: modelos climáticos
credíveis, capazes de suportar uma confrontação com os dados experimentais,
e observações claras de aquecimento
global observado. Estas duas condições
foram, pelo menos parcialmente, satisfeitas nas últimas décadas, tornando a
proposta avançada por Arrhenius há
mais de um século num modelo conceptual credível para a actual evolução do
clima global.
A incerteza, é claro, não deixou de
existir. Os modelos climáticos actualmente existentes estão longe de representar toda a complexidade do planeta
Terra (e sua interacção com o Sol), sendo
necessário um grande esforço de investigação no seu desenvolvimento e validação. A relevância económica e social
das questões em jogo justifica claramente esse esforço. A médio prazo, talvez em
20 ou 30 anos, as observações vão também encarregar-se de esclarecer muitas
das dúvidas actualmente existentes.
Entretanto é preciso ir tomando
decisões. O bom senso indica-nos que
devemos apoiar decisões graduais, que
ampliem a nossa capacidade de adaptação futura e que tenham justificações
múltiplas. Por exemplo apostar na independência energética (de Portugal, da
Europa), baseada em energia renovável,
é sempre uma boa decisão, mesmo que a
mudança climática seja mais moderada
do que os nossos modelos indicam.
O objectivo da ciência é explicar o
mundo. Não basta descrever. A explicação requer uma teoria verificável, isto é
que faça previsões passíveis de comparação com resultados experimentais. Os
actuais modelos físicos do sistema climático, com todas as suas imperfeições, enquadram-se, pelo menos genericamente,
nessa definição. Pelo contrário, atribuir
a evolução climática recente a variabilidade inexplicada (e portanto não verificável) é muito menos satisfatório.
Alguns documentos históricos muito
interessantes, disponíveis online:
Arrhenius, Svante (1896). “On the Influence
of Carbonic Acid in the Air Upon the
Temperature of the Ground”, Philosophical
Magazine 41: 237-76. http://wiki.nsdl.
org/index.php/PALE:ClassicArticles/
GlobalWarming/Article4
Ekholm, Nils (1901). “On the Variations of
the Climate of the Geological and Historical
Past and Their Causes”, Quarterly J. Royal
Meteorological Society, 27: 1-61. http://wiki.
nsdl.org/index.php/PALE:ClassicArticles/
GlobalWarming/Article5
Callendar, G.S. (1938). “The Artificial
Production of Carbon Dioxide and
Its Influence on Climate”, Quarterly J.
Royal Meteorological Society, 64: 22340. http://wiki.nsdl.org/index.php/
PALE:ClassicArticles/GlobalWarming/
Article6
Fourier, Joseph (1824). “Remarques
Générales sur les Températures du Globe
Terrestre et des Espaces Planétaires.”
Annales de Chemie et de Physique, 27: 136-67,
Translation by Ebeneser Burgess, “General
Remarks on the Temperature of the Earth
and Outer Space”, American Journal of
Science, 32: 1-20 (1837). http://wiki.nsdl.
org/index.php/PALE:ClassicArticles/
GlobalWarming/Article1
Tyndall, John (1861). “On the Absorption
and Radiation of Heat by Gases and
Vapours”, Philosophical Magazine, 4
(22): 169-94, 273-85. http://wiki.nsdl.
org/index.php/PALE:ClassicArticles/
GlobalWarming/Article3
XXI, Ter Opinião 175
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