Filosofia Nova9

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Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer
BARBOZA, Jair. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em
Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005. 320 P.
João Coviello1
A recepção da obra de Schopenhauer sempre foi acidentada.
Seu trabalho se tornou conhecido no final da vida e atingiu o apogeu no
final do século XIX, declinando a seguir. Na França, por exemplo, sua
obra magna – O Mundo como Vontade e como Representação – foi publicada 68 anos depois da primeira edição e 26 anos depois da morte de
seu autor. Foi a célebre tradução de A.Burdeau, utilizada até hoje. É
possível que seja a tradução usada por Machado de Assis e Jorge Luis
Borges, dois ilustres leitores de Schopenhauer. Um biógrafo recente de
Machado, Daniel Piza, escreveu que já no final da vida, seus únicos
deleites eram jogar paciência com o baralho, receber mensagens dos
amigos e ler autores como Schopenhauer (PIZA, 2005). Reza a lenda que
Borges aprendeu alemão para ler O Mundo no original.
Esta recepção de Schopenhauer entre os artistas o torna diferente de outros filósofos. Dois são os motivos desta estima: o papel da
arte em seu sistema e a prosa límpida e literária de seus escritos. Durante
muitos anos, um dos poucos textos sobre o autor de O Mundo, que
circulou em português, foi escrito por um dos maiores escritores da era
moderna: Thomas Mann. Não por acaso, esse texto é um dos mais agudos sobre o mestre de Frankfurt. Esse texto foi escrito por encomenda de
um editor americano que criou uma coleção chamada “O pensamento
vivo de...”. A coleção tinha como objetivo apresentar resumos de obras
de grandes filósofos com introduções escritas por escritores famosos.
Thomas Mann foi encarregado de escrever a introdução do volume sobre Schopenhauer. O texto foi publicado no final dos anos 30 em sua
forma reduzida e é um dos estudos mais comentados e traduzidos sobre
o filósofo. Ele é até hoje um dos mais citados e circula entre nós desde a
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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail:
[email protected]
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década de 40.2 Essa coleção representou para a cultura brasileira o que
a coleção Os Pensadores representou para a divulgação da filosofia a
partir da década de 70. O resumo de O Mundo como Vontade e como
Representação dessa coleção foi durante muito tempo um dos únicos
acessos a textos de Schopenhauer em português. Freqüentemente, editavam-se fragmentos de livros, raramente livros inteiros. Porém, a fortuna
crítica crescia. Em 1951, o Professor Anatol Rosenfeld escreveu uma longa apresentação para uma dessas edições de pequenos textos extraídos
das obras do filósofo. Para esse mestre de várias gerações de intelectuais
brasileiros, Schopenhauer ocupa um papel fundador:
Dentro da filosofia universal ocupa Arthur Schopenhauer uma posição singular e completamente original. É o primeiro entre os filósofos
de destaque, em toda a história da filosofia, a proclamar sistematicamente que o âmago do mundo é irracional, fundamentalmente oposto
à inteligência e à razão. Tal concepção representa uma verdadeira
revolução na história da filosofia (ROSENFELD, 1951, p.9).
A coleção Os Pensadores trouxe novos fragmentos durante a
década de 70 e 80. Porém, nos anos 90, esse panorama com edições
esparsas começou a mudar, culminado com o grande acontecimento que
foi a tradução completa do Tomo I de O Mundo como Vontade e como
Representação, em 2005. Essa tradução, direta do alemão, é de Jair Barboza, que também traduziu outros livros de Schopenhauer, além de publicar livros e artigos sobre o filósofo. Constam no cuidadoso volume o
Apêndice, Crítica da filosofia kantiana, um índice onomástico, um índice de assuntos, a apresentação e as notas do tradutor. Nessa apresentação, Barboza relata a transformação ocorrida nos últimos anos, a partir
da tese doutoral defendida na Alemanha, por Muriel Maia, e publicada
em 1991 pela Editora Vozes, com o título de A outra face do nada. Em
1994, Maria Lúcia Cacciola também publica sua tese doutoral defendida
no Brasil, com o nome de Schopenhauer e a questão do dogmatismo
(Editora Edusp/Fapesp). Daí em diante, uma série de livros é lançada e
colóquios são realizados.
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O volume dedicado a Schopenhauer é o 10, e tem o título de O Pensamento Vivo de
Schopenhauer. Foi apresentado por Thomas Mann, traduzido por Pedro Ferraz do
Amaral e editado pela Livraria Martins Editora, de São Paulo.
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Juntamente com o volume de O Mundo, a editora da Unesp
publicou um livro originado da tese doutoral de Barboza: Infinitude
subjetiva e estética: natureza e arte em Schelling e Schopenhauer. Nesse
livro, o autor inaugura, entre nós, uma outra forma de interpretar Schopenhauer, buscando não apenas semelhanças, mas realizando uma leitura detalhada dos dois sistemas de pensamento, lendo os manuscritos
póstumos e examinando os exemplares de Schelling que estavam na
biblioteca do autor de O Mundo.
O próprio Schopenhauer sempre conduziu as análises posteriores ao afirmar que sua obra é devedora de Platão, Kant, o Upanixade e
da observação direta da natureza. Barboza, nesse livro, demonstra que
Schelling também tem participação neste grupo listado por Schopenhauer. O pesquisador explica seu método:
O nosso método de investigação se baseia em tomar Schopenhauer
mesmo como condutor, seja nas obras publicadas, nos cadernos de
estudo da gênese do seu sistema ou nos exemplares de mão da obra
schellinguiana presentes em sua biblioteca. Rastreamos as suas referências ao Idealista, interrogamos o seu sentido e procuramos ir além
delas no intuito de descobrir se e como os mesmos se enraízam em
sua obra. Fotocópias do Schopenhauer-Archiv em Frankfurt am Main
– algumas com material inédito – constituem-se uma fonte central de
apoio ao nosso texto (BARBOZA, 2005, p.11, grifos do autor).
Barboza trabalha com o conceito de continuidade, por
isso adverte que não pretende transformar Schopenhauer num
schellinguiano: “Trata-se aqui de compreender como certos conceitos são recebidos e transmutados pelo chamado Selbstdenker,
o pensador autônomo, de gênio” (Idem, p.13). Esta noção de continuidade permite que outros pesquisadores busquem novas perspectivas, pois nenhum filósofo abandona a herança conceitual
que tem em mãos, muito menos a aceita com passividade. Jair
Barboza se fixou na assimilação das idéias de Schelling por Schopenhauer, já que, para esse pesquisador, os dois se iluminam reciprocamente: “A tarefa de Schopenhauer, ao fim, será tanto mais
crucial porque ele, servindo-se de um caminho aberto por Schelling no idealismo transcendental, unifica ética e estética” (Idem,
p.14, grifos do autor).
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Ao unir Schelling e Schopenhauer, Barboza tem como um
dos objetivos compreender o momento em que nasce, na filosofia
ocidental, a desconfiança em relação à razão. Para o pesquisador,
foi principalmente em A essência da liberdade humana, que Schelling chega à noção de querer, de vontade, ao afirmar que há uma
Natureza em Deus que escapa a ele mesmo. Desta forma, Schelling
atravessou a fronteira do irracional, que Schopenhauer, como seu
leitor, levaria à noção de Vontade cega e irracional como origem do
mundo. A desconfiança de que há algo que escapa à razão foi desenvolvida por Schopenhauer.
Ainda em A essência da liberdade humana, Schelling demonstra que
não há outro ser senão o querer, um querer originário, sem fundamento e independente do tempo. No entanto, Schelling é ambíguo:
ora a razão é o princípio do mundo, ora é o irracional. A postura de
Schopenhauer é mais clara: a Vontade (o puro irracional) é primária,
a razão é secundária. Este é o princípio explicativo do mundo. A
única atividade é a Vontade, e, além do mais, autodiscordante. Não
há a ambigüidade de Schelling, que considera o querer como ser
originário, mas sem conseguir transformar esse querer abissal em
princípio irracional do mundo, apesar das tentativas. Segundo Barboza,
Schelling chega a enfraquecer o racional como princípio do mundo, indicando que o absoluto, o próprio Deus possui algo nele
‘que não é ele mesmo’, um ‘fundamento’ (Grund) de sua existência que ‘não é Deus considerado absolutamente’, mas a ‘natureza
– em Deus’. Trata-se de um ‘ser diferente’, um ‘fundamento originário’ (Urgrund), no entanto ‘infundado’ (Ungrund) e anterior a
toda oposição (BARBOZA, p.138).
Apesar disso, Schelling retoma e tenta salvar o princípio
racional do mundo, pois “nunca assumiu o irracional como princípio do mundo e conceito operador de sua filosofia. A aproximação
do abismo de modo algum agradou a Schelling. Era preciso urgentemente voltar para o regaço protetor da razão” (Idem, p.97). Para Jair
Barboza, reside aí a originalidade de Schopenhauer, que foi além da
filosofia de Schelling: “Esta, apesar de cruzar a fronteira do racional
postulando o lado obscuro de Deus, uma natureza que o faz ser
estranho a si, em momento algum deixa de privilegiar um princípio
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racional do mundo” (Idem, p.141). Schopenhauer, por sua vez, assume todas as conseqüências de sua crítica à razão. Barboza demonstra, com as anotações de Schopenhauer no livro de Schelling,
que esse leitor atento acompanhou com cuidado a argumentação do
autor de A essência da liberdade humana. Os grifos estão em “seroriginário”, em “ausência-de-fundamento, eternidade, independência do tempo, auto-afirmação”. Barboza anexou as fotocópias das
páginas do exemplar de Schopenhauer em seu livro. Este achado
possibilita acompanhar os argumentos do pesquisador:
Schopenhauer, contudo, observando a inconstância conceitual do
autor, acusa as suas rápidas oscilações com o intuito de encontrar
uma justificativa para a bondade e a racionalidade de Deus. Assim, quando Schelling indica o que em Deus não é ele mesmo,
sem conseguir admitir a preponderância do seu lado irracional,
Schopenhauer observa marginalmente: “courage”, coragem. É
como se ali estivesse expressa a possibilidade de o autor assumir
em definitivo o princípio obscuro e mau das criaturas em sua
filosofia, porém faltando-lhe a coragem suficiente (BARBOZA,
p.142).
Barboza conclui que a tarefa de Schopenhauer se concentrará em aproveitar o estímulo de Schelling, e “assumir o lado obscuro do mundo enquanto princípio irracional, sem nunca realocar
nele o entendimento ou a razão” (Idem, p.143). O irracional é o
princípio do mundo, separado completamente do intelecto. Schopenhauer nunca abandonará tal posição. Assim, a rede conceitual
produzida pelo autor de O Mundo é diferente do que foi fornecido
anteriormente por Schelling. Schopenhauer faz uso de conceitos schellinguianos, mas depois os transforma. O trabalho de identificar um
campo teórico em seu sistema é útil não só para a compreensão das
relações intelectuais entre os dois mestres, mas para a compreensão
da “posição singular e completamente original” que Schopenhauer
ocupa na tradição filosófica, como disse o Professor Rosenfeld. Mais
que isso, Jair Barboza nos ajuda a compreender a gênese das idéias
schopenhauerianas. Apesar de não ter sido nomeado explicitamente, Schelling, depois de Kant, foi o filósofo que mais impacto exerceu em Schopenhauer.
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Referências
BARBOZA, Jair. Infinitude subjetiva e estética: natureza e arte em
Schelling e Schopenhauer. São Paulo: Ed. Unesp, 2005.
PIZA, Daniel. Machado de Assis: um gênio brasileiro. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2005.
Recebido em/Received in: 21/02/2006
Aprovado em/Approved in: 04/03/2006
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