LAÇOS DE SANGUE país, a doutrina dos republicanos brasileiros baseou-se “(...) no silêncio do cidadão estrangeiro, uma presunção gratuita da vontade deste em escolher a nacionalidade brasileira. Acresce ser princípio geralmente aceite pelos jurisconsultos, e consignado na legislação política e civil de quase todos os povos, que a nacionalidade somente se perde por facto positivo e voluntário e, correlativamente, que a naturalização em país estrangeiro só de acto positivo e voluntário pode resultar.”23 O carácter prepositivo e, na prática, para a maioria dos imigrantes, verdadeiramente compulsório da naturalização tácita decretada pelo Governo Provisório, confrontava com a ideia de livre escolha do indivíduo, pressuposto político no moderno Estado nacional republicano para admitir à cidadania quem não a possui em carácter originário. Apesar da previsão legal, que possibilitava ao estrangeiro recusar a naturalidade brasileira e optar pela nação do seu nascimento, sabe-se que poucos imigrantes o concretizaram. Um relatório do consulado de Portugal em Pernambuco, de meados de 1890, informava que um “número diminuto de súbditos portugueses fizeram, até Junho findo, a sua declaração de nacionalidade, representando apenas uma percentagem entre 15 e 20 por cento” dos seus conterrâneos na sua jurisdição consular.24 Na capital da República, a situação não era diferente, sugere o cônsul. E nos Estados de São Paulo e Minas Gerais, que abrigavam milhares de portugueses espalhados em fazendas e povoações das zonas cafeeiras, a proporção era possivelmente menor, ainda que não existam dados a confirmá-lo.25 Quando, enfim, a Constituição da República foi promulgada, em 24 de Fevereiro de 1891, o seu texto confirmou o decreto naturalizador de dois anos antes ao prescrever as “qualidades do cidadão brasileiro”, no seu artigo 69.º, inciso IV: Art. 69.º: São cidadãos brasileiros: (...) IV: Os estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de Novembro de 1889, não declararem, dentro de seis meses depois de entrar em 23 Idem, ibidem. 24 Ofício reservado n.º 74 de António Joaquim Barboza Vianna, encarregado do consulado de Portugal em Pernambuco, a Manoel Garcia da Rosa, encarregado de negócios de Portugal no Brasil; Recife, 11.07.1890; em LPRJ, correspondência recebida, 1890, caixa 223, maço 1, AHD-MNE. 25 A compulsoriedade de facto verificada na Grande Naturalização decretada pela República brasileira esteve presente na aplicação geral desse instituto jurídico. A sua figura histórica surgiu no acto de incorporação de povos vencidos militarmente, promovido em Roma pela Constituição do imperador Caracala, em 212 d.C., quando concedeu cidadania a todo o homem livre, natural de províncias anexadas ao Império Romano. O precedente jurisprudencial de Caracala foi a extensão do direito de cidade por Júlio César ao Lácio, identificado com Roma pela latinidade. No sentido moderno, o termo Grande Naturalização designa a adesão colectiva de uma população a uma certa naturalidade devido a origens afins, idioma comum, dominação política ou anexação territorial. Sobre o tema, ver GIARDINA, Andrea (org.). L’uomo romano. Roma: Laterza, 1989; FUNARI, Pedro Paulo. “A cidadania entre os romanos.” In: PINSKY, J. e C. Op. cit., pp. 48-79. 157