2º Trimestre de 2011 - Universidade Presbiteriana Mackenzie

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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
ALBERTO ALVES DA FONSECA
JERUSALÉM NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO
SÃO PAULO
2015
1
Dados Catalográficos
F676j Fonseca, Alberto Alves da
Jerusalém no imaginário religioso / Alberto Alves da Fonseca –
2015.
194 f.; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015.
Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
Bibliografia: f. 185-194
 Jerusalém 2. Imaginário 3. Religiosidade 4. Dispensacionalismo
5. Pentecostalismo I. Título
LC BR1644
2
3
Para a elaboração de uma boa pesquisa necessita-se de bons modelos, boas
referências, apoios e orientações. No Curso de Mestrado da Universidade
Presbiteriana Mackenzie encontrei modelos, referências e amigos que muito me
ensinaram e me inspiraram no mundo da pesquisa, especialmente o Professor Dr. João
Baptista Borges Pereira que me orientou na composição desta pesquisa no curso
mestrado em Ciências da Religião.
Sou profundamente grato a minha esposa
professora Eliana Renata Souza Alves da
Fonseca, por me apoiar no curso de
Mestrado e sugerir a elaboração desta
pesquisa, e que em todo momento me
ajudou com seu estímulo, paciência e seus
edificantes conselhos, bem como minhas
duas filhinhas, três mulheres que dão
sentido à minha vida.
Estas pessoas sempre estarão presentes
em minha lembrança, porque contribuíram
decisivamente e me honraram com seus
entusiasmos e seus estímulos, tendo suas
vidas como uma contínua inspiração.
Agradecimentos
Ao Deus ETERNO, que pela sua infinita bondade e misericórdia me amparou e
me sustentou nesta longa, agradável e abençoada jornada;
Aos meus pais, Lázaro Antonio Alves da Fonseca e Maria José de Morais
Fonseca, pais exemplares e sempre presentes;
4
À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelos excelentes e relevantes serviços
prestados que contribuíram para a realização desta pesquisa;
Ao Corpo Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie: Prof. Dr. João
Baptista Borges Pereira; Professora Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro; Prof. Dr.
Antônio Máspoli de A. Gomes; Prof. Dr. Rev. Hérmisten Maia P. da Costa; Prof.
Dr. Rodrigo Franklin Sousa; Prof. Dr. Ricardo Bitun; Prof. Dr. Jorge Luís
Gutiérrez e Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, pela contínua dedicação,
confiança e inspiração durante todo o curso;
Aos membros da Banca Examinadora: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira;
Prof. Dr. Ricardo Bitun e Prof. Dr. Valdinei Aparecido Ferreira, referências que
motivaram e abrilhantaram este trabalho;
Aos meus professores de Língua Hebraica, Língua Inglesa e Portuguesa,
Maurice Mazawi e Lúcia Kancelkis pela paciência, carinho e consideração;
Ao Pastor Esequias Soares da Silva, Pastor Presidente da Igreja Evangélica
Assembleia de Deus de Jundiaí-SP, que me inseriu no mundo acadêmico pelo
exemplo e apoio na construção do meu conhecimento religioso e secular;
A todos os meus amigos e irmãos que de maneira direta e indireta contribuíram
para a realização desta pesquisa, minha contínua e sincera gratidão.
Porém escolhi Jerusalém para que ali estivesse o
meu nome... (2 Crônicas 6.6a).
Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e
apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes
quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta
os seus pintos debaixo das asas, e não quiseste?
(Lucas 13.34).
5
Dez medidas de beleza foram concedidas ao
mundo; nove foram tomadas por Jerusalém, e uma
pelo resto do mundo (Talmude Babilônico,Tratado
Kidushin 49 b).
A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo
tempo que o Paraíso, portanto in aeternum. A
cidade de Jerusalém não era senão a reprodução
aproximativa do modelo transcendente: podia ser
maculada pelo homem, mas seu modelo era
incorruptível, porque não estava implicado no
Tempo. “A construção que atualmente se encontra
no meio de vós não é aquela que foi revelada por
Mim, a que estava pronta desde o tempo em que
me decidi a criar o Paraíso, e que mostrei a Adão
antes do seu pecado” (Apocalipse de Baruc, II, 4, 37) (ELIADE, 2012, p. 57).
...Jerusalém é uma bacia de ouro cheia de
escorpiões (AL-MUQADDASI, 1886, p. 37).
Resumo
Esta pesquisa intitulada Jerusalém no Imaginário Religioso apresenta uma
análise com caráter histórico e comparativo, de natureza ensaística, de uma das
cidades mais inspiradoras do mundo e profundamente influenciadora da
6
mentalidade ocidental, abordando os elementos históricos, religiosos, culturais,
ideológicos e teológicos que resultaram na construção dos imaginários das três
grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), passando
pela perspectiva protestante até chegar ao imaginário do pentecostalismo
clássico brasileiro, no decorrer de sua estruturação ou institucionalização neste
último século, influenciado pela teologia fundamentalista cristã norte-americana
(literalidade da Bíblia e anti-liberalismo); pelo dispensacionalismo de John
Nelson Darby (pré-milenarismo ou quiliasmo); pelo restauracionismo cristão
(sionismo cristão); pela escatologia e mercantilização da fé que fomenta essa
temática.
Palavras-chave: Jerusalém, Imaginário, Religiosidade, Dispensacionalismo,
Pentecostalismo
ABSTRACT
This research titled Jerusalem in the Religious Imaginary presents an analysis
of historical and comparative, true to essayst nature, about one of the most
inspiring cities in the world and deeply influential Western mindset, addressing
7
the historical, religious, cultural, ideological and theological elements which
resulted in the construction of the imaginary of the three great monotheistic
religions (Judaism, Christianity and Islam), through the Protestant perspective to
reach the imagination of Pentecostalism classic Brazil during its structure or
institutionalization in the last century, influenced by fundamentalist theology
American
Christian
(literalness
of
the
Bible
and
anti-liberalism);
dispensationalism by John Nelson Darby (premillennialism or chiliasm); by
Christian restorationism (Christian Zionism), and the escatology and the
commodification of faith that promotes this theme.
Key-words: Jerusalem, Imaginary, Religiosity, Dispensationalism, Pentecostalism
JERUSALÉM NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................11
1.- A questão do Imaginário............................................................................15
8
2.- Jerusalém Antiga e a Construção de sua Santidade pelo Judaísmo....21
1.1. O Altar Primordial...................................................................................29
1.2. Jerusalém a nova capital do Reino dos Hebreus...................................32
1.3. A Primeira Destruição de Jerusalém (586 a.C.).....................................40
1.4. A Segunda Destruição de Jerusalém (70 d.C.)......................................48
2.- A Construção do Imaginário Cristão sobre Jerusalém...........................53
2.1. Os Cristãos e a Destruição de Jerusalém..............................................54
2.2. O Desenvolvimento da Doutrina da Substituição...................................63
2.3. O Triunfo do Cristianismo.......................................................................69
2.4. A Derrota Cristã para os Persas.............................................................76
3.- A Jerusalém Islâmica ................................................................................81
3.1. O Domo da Rocha e a Construção do Imaginário Islâmico...................88
3.2. Os Cruzados e a Decadência da Região nos Séculos Seguintes.........94
3.3. O Domínio Otomano..............................................................................96
4.- Jerusalém na Construção do Imaginário Protestante ..........................99
4.1.- Distinção entre a percepção protestante e a católica..........................101
4.2.- O Milenarismo.......................................................................................104
4.3. O Protestantismo Evangélico nos Estados Unidos da América.............108
4.4. Os Protestantes Evangélicos Restauracionistas Britânicos..................111
4.5. O Dispensacionalismo...........................................................................113
4.6. O Sionismo Cristão................................................................................115
4.7. Lugar Santo dos Protestantes...............................................................117
4.8. A Conquista Britânica.............................................................................121
4.9. O Fim do Mandato Britânico..................................................................124
4.10.O Renascimento de Israel....................................................................125
4.10.1. Um “golpe” na “Doutrina da Substituição” e na “errância do povo
9
judeu”............................................................................................127
5.- A Construção do Imaginário Evangélico Pentecostal Sobre
Jerusalém.....................................................................................................132
5.1. O Dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield..............................139
5.1.2. Dispensacionalismo e Pentecostalismo..........................................143
5.2. O Pentecostalismo no Brasil.................................................................145
5.2.1. Congregação Cristã no Brasil (1910)..............................................146
5.2.2. Igreja Evangélica Assembleia de Deus (1911)...............................152
5.2.3. Outras fontes de divulgação do dispensacionalismo......................155
5.3. A Teologia Escatológica Pentecostal Assembleiana na contrução do
Imaginário Sobre Jerusalém..............................................................................158
5.3.1.- Outros aspectos da construção do imaginário pentecostal da
Assembleia de Deus sobre Jerusalém.....................................................172
5.3.2.- A mercantilização editorial e turística no fortalecimento do
imaginário pentecostal sobre Jerusalém................................................174
5.3.3.- Reflexos políticos do imaginário pentecostal clássico..................177
Considerações Finais......................................................................................180
Referências Bibliográficas..............................................................................185
Introdução
Jerusalém, considerada pela tradição judaica a coroa da fé monoteísta,
uma cidade ímpar, disputada e reverenciada ao longo de sua história,
atualmente é a contestada capital do moderno Estado de Israel. Ela é o tema
desta pesquisa científica, numa perspectiva analítica do imaginário religioso na
percepção monoteísta.
10
Jerusalém, uma cidade de três mil anos, edificada nas pedregosas e
quentes
colinas
da
Judeia,
distanciada
aproximadamente
a
cinquenta
quilômetros do Mar Mediterrâneo, tem sido, ao longo dos séculos, objeto focal
da criação de imaginários. A fecunda religiosidade da alma humana produziu e
interpretou muito a respeito dessa misteriosa cidade. Cada pedra dessa cidadela
está impregnada de muitas histórias, poesias, cânticos e conflitos. Jerusalém foi
continuamente citada pelos antigos monarcas, sacerdotes e profetas bíblicos e
mistificada pela liturgia monoteísta, influenciando direta e indiretamente a fé e a
esperança de mais de três bilhões de seres humanos.
Conquistada por diversos exércitos e povos, herdeira de uma milenar
religiosidade, segundo a tradição judaica foi o local primordial do culto dedicado
ao Eterno. Segundo as Escrituras Sagradas dos judeus e cristãos, ali residia o
líder tribal jebuseu de Salém, Melquisedeque, rei e sacerdote do Deus Altíssimo,
lugar do primeiro templo hebreu com práticas exclusivas do culto monoteísta,
que, transformado e mitificado pelos homens tornou-se um local sagrado para o
judaísmo, para a cristandade ocidental e oriental e todo o mundo muçulmano.
Uma cidade com história, espírito, memória e promessas, um poderoso ímã,
sempre atraindo os homens, um lugar especial, uma janela para o sagrado.
Conhecida como a cidade da paz, embora a paz interna ou externa não
faça parte do seu currículo, até 1967 uma enorme e feia muralha separava o
lado ocidental do oriental da cidade; embora a muralha não exista mais, as
velhas animosidades e os ranços antigos de vinganças persistem e infelizmente
um novo muro foi construído separando Jerusalém da Cisjordânia. Atualmente a
cidade é formada por quatro bairros, um judeu, um católico, um armênio e outro
muçulmano. As velhas ruas mantêm viva a lembrança de promessas,
esperanças escatológicas, murmúrios contínuos de incessantes e insistentes
orações e muitas tensões, muito fervor, muito comércio, muitas e estranhas
sensações e aromas da rica culinária árabe, marcas indeléveis de sua dramática
e riquíssima história e tradições.
11
Jerusalém não possui pontos militares estratégicos excepcionais, não
possui vantagens comerciais vitais nem recursos naturais abundantes, além de
uma posição geográfica nada privilegiada do ponto de vista econômico. No
entanto, ali se encontra uma persistente forma de culto monoteísta, uma
devoção de mais de três mil anos de história, com marcas vivas de várias
tradições.
Os homens medievais acreditavam que Jerusalém era o centro do
mundo, o centro do universo, o local de onde tudo havia se originado. Mesmo
não desfrutando essa realidade geográfica, sendo apenas uma cidade pequena
e distante no interior da Judeia, afetou profundamente a visão de mundo de boa
parte da humanidade.
Embora seja o centro primordial e mítico de três grandes religiões
monoteístas, sua devoção não é homogênea, pois foi construída de várias
formas e revelada de diversas maneiras. Cada religião monoteísta construiu
acerca dessa cidade um imaginário próprio, o que pode ser constatado quando
analisamos a visão do judaísmo, do cristianismo e do islamismo sobre
Jerusalém. Esse mosaico de percepção criado de cada religião é fator
fundamental que torna Jerusalém uma cidade ímpar no campo das Ciências da
Religião; as marcas do divino encontradas nas sociedades orientais foram como
fios condutores para a formação do Ocidente.
Dentro da construção do imaginário das muitas ramificações cristãs que
veneram a cidade de Jerusalém existiram e existem, ao longo dos séculos,
muitos desdobramentos e visões admiravelmente diferentes e até mesmo
opostas. Esse fenômeno de variadas visões pode ser notado com a seguinte
exemplificação: existe um imaginário próprio da velha cristandade (catolicismo),
outra da Igreja Protestante, e da visão protestante deriva a visão do
pentecostalismo clássico. O enfoque da presente obra é compreender
historicamente a construção do imaginário religioso sobre Jerusalém, iniciando
na percepção judaica e terminando num dos ramos oriundos do pentecostalismo
clássico no Brasil – a Igreja Evangélica Assembleia de Deus.
12
O primeiro capítulo apresenta a origem, o gênesis da sacralidade da
cidade de Jerusalém, como se deu a construção de sua santidade, quando
surge esse altar primordial dedicado ao Deus dos hebreus e como o imaginário
judeu é lento e sistematicamente construído.
No capítulo 2 a pesquisa mostra a construção do imaginário cristão, o
conflito que a cidade produzirá nos primeiros cristãos após a sua destruição
pelos romanos no ano 70, e as consequências desse distanciamento entre
judaísmo e o cristianismo, que paulatinamente gestará a Teologia da
Substituição, precipitando o conceito católico de que a Igreja é o Verus Israel.
O capítulo 3 relata a chegada do Islã em Jerusalém. Após analisar
historicamente a consolidação dos dois primeiros imaginários, o do judaísmo e
do cristianismo, a pesquisa avança para a percepção islâmica da cidade santa,
sua concepção apocalíptica como o local do juízo final ou “a última hora”, a
recuperação da esplanada do Templo, o monumental edifício de adoração
construído no local dos escombros do antigo Templo - o Domo da Rocha, que
será a partir de sua construção uma marca identificadora da cidade. O último
califado islâmico que dominará a região será o Império Otomano, sendo as
intervenções do sultão Suleiman, o Magnífico, especialmente a construção das
muralhas da cidade santa, a última marca islâmica que permanecerá na cidade
pela qual é conhecida hoje.
O capítulo 4 analisa a Reforma Protestante que atingiu a Europa Católica
Romana nos séculos XVI e XVII, gerando profundas repercussões no Ocidente,
especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. A pesquisa apresenta os
acontecimentos amalgamados no fervoroso caldo religioso do universo
protestante, profundamente influenciados pelo milenarismo, restauracionismo,
dispensacionalismo e sionismo cristão. Apresenta a tardia chegada dos
protestantes na terra santa e o “novo lugar” do santo sepulcro – o Jardim da
Tumba. Finalmente mostra o fim do domínio muçulmano, com a conquista dos
ingleses e o renascimento de Israel.
13
O capítulo 5 traz um histórico resumido do pentecostalismo e da doutrina
dispensacionalista
de
Cyrus
Ingerson
Scofield.
Apresenta
algumas
considerações históricas e doutrinárias das duas primeiras igrejas pentecostais
do Brasil. Finalmente analisa a teologia evangélica pentecostal da Assembleia
de Deus sobre Jerusalém, bem como os elementos fundamentais para a
gestação e o fomento desse imaginário.
A pesquisa analisa a construção histórica do imaginário sagrado sobre a
cidade de Jerusalém, apresentando a origem de cada um desses imaginários de
tradição monoteísta, do judaísmo até chegar no pentecostalismo clássico,
registrando um aspecto analítico desse fenômeno histórico, contribuindo como
instrumento de compreensão do pensamento contemporâneo sobre uma das
cidades sagradas que continua a desfrutar grande status simbólico das diversas
religiosidades monoteístas do mundo atual.
1.- A questão do Imaginário
Define-se o imaginário como um conjunto de símbolos, mitos, fantasias,
imagens, sonhos, aspirações, muitas vezes irracionais ou pré-racionais, eivado
de paixão, afetividade, construído por determinada coletividade, trata-se de um
14
conceito amplo, com grande variedade de sentido. O filósofo Gilbert Durand, em
sua obra A Imaginação Simbólica, declara:
A imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta
através de um sentido para sempre abstrato. O símbolo é, pois, uma
representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um
mistério (DURAND, 1964, p. 11-12).
Os símbolos e mitos são elementos férteis para a recepção e projeção de
vários outros elementos, entre eles estão as aspirações religiosas que norteiam
o comportamento do fiel, criando uma cosmovisão própria, extremamente
importante para o crédulo suportar as vicissitudes da vida. Fato é que não há
dúvida sobre a grande importância do imaginário sagrado, da fantasia, do mito
na sociedade e na consciência humana. Segundo Durand (1964), a consciência
humana possui duas maneiras para representar o universo, ou seja, a percepção
do mundo. A primeira maneira seria direta, onde a própria coisa estaria presente
no espírito, como uma simples percepção ou sensação. A segunda seria indireta,
quando a coisa não é perceptível, não é materializada, insensível. Nesse caso
de consciência indireta, a coisa ausente é representada na consciência humana
por uma imagem, ou imaginário, num sentido bem lato desse termo.
É através do imaginário que os adeptos das grandes religiões
monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) construíram a Jerusalém
mítica. O homem transcendeu a Jerusalém humana para uma Jerusalém
utópica, como: a Jerusalém de Paz no Judaísmo; a Jerusalém celestial no
cristianismo, a Jerusalém do “Último Dia” no islamismo. Os monoteístas
tomaram como referência uma realidade dada que passa por uma reordenação,
reestruturação e recriação, dando outros significados ao mesmo material
simbólico.
As representações simbólicas são como matérias-primas na construção
do imaginário. Ao longo da história, como se poderá verificar na pesquisa, os
monoteístas irão conceber e produzir, através do culto, da leitura de suas
15
Escrituras Sagradas, relações de fé que propiciará experiências transcendentes
em suas vidas. A mitificação da cidade de Jerusalém se dará ao longo da
história
dessas
fés
pelos
sistemas
religiosos,
socioculturais
e
pelas
reinterpretações dessas tradições, sempre coletivamente. Em sua obra Ideologia
e Utopia, Karl Mannheim (1986), declara que era incorreto afirmar que um
indivíduo isolado pudesse pensar na criação de imaginários. Seria mais correto
insistir no pensar coletivamente. O indivíduo herda padrões de pensamento
apropriando-os, tentando reelaborar os modos de reação herdados, ou
substituindo-os por outros, podendo assim lidar mais adequadamente com os
novos desafios surgidos das mudanças e variações em cada situação. Dessa
forma, cada indivíduo está predeterminado em um duplo sentido por viver em
sociedade; por uma lado, está numa situação definida e, por outro, descobre
nessa situação, padrões de pensamento e de conduta prontos, previamente
formados.
O imaginário sobre Jerusalém é lentamente construído sendo herdado de
uma coletividade religiosa pela outra, assim o imaginário desfaz as marcas do
tempo e do espaço e, em sua própria lógica, a cidade santa é construída a partir
das experiências teofânicas, revelação das qualidades que a simbolizam. Gilbert
Durand, citando Paul Ricoeur, declara:
...qualquer símbolo autêntico possui três dimensões concretas: é
simultaneamente “cósmico” (isto é, recolhe às mãos cheias a sua
figuração no mundo bem visível que nos rodeia); “onírica” (isto é,
enraíza-se nas recordações, nos gestos que emergem nos nossos
sonhos e constituem, como bem demonstrou Freud, a massa muito
concreta da nossa biografia mais íntima) e, finalmente, “poética”, isto é,
o símbolo apela igualmente à linguagem, e à linguagem que mais
brota, logo, mais concreta (DURAND, 1964, p. 12).
Jerusalém, como um poderoso e autêntico símbolo das fés monoteístas,
possui esses três elementos apontados por Ricoeur; é cósmica, onírica e
poética, nesse sentido de plenitude está classificada como mitológica. Como
16
sabemos os mitos da “geografia sagrada” expressam verdades impressas na
alma humana, da vida interior. Armstrong (2000), declara que o mito toca na
fonte obscura de dor e do desejo do ser humano, e podem provocar e
desencadear uma avalanche de emoções, profundamente passionais e intensas.
As histórias de Jerusalém no imaginário religioso não devem ser descartadas
pelo fato de serem “mitos”, pelo contrário, exatamente por serem “mitos” ou por
“não passarem de mitos”, sua importância se agiganta, torna-se explosiva,
ironicamente por adquirir o status de mito. Na história de Jerusalém, sempre que
aumentam as tensões, as desesperanças, as dificuldades e não se consegue
encontrar consolo, esperança, bom senso numa ideologia mais racional, ocorre
a recorrência imediata e instintiva ao mito. Muitas vezes, fatos externos parecem
expressar tão bem realidades interiores que rapidamente ganham status de mito
evocando uma verdadeira explosão de entusiasmo. Portanto, é muito relevante
que a mitologia de Jerusalém, ao menos para elucidar os desejos, as aspirações
e o comportamento de indivíduos e comunidades inteiras profundamente
afetadas por esse tipo de espiritualidade.
Pensar em imaginário, fantasias e mitos num tema que perpassa pela
Reforma Protestante parece contraditório e paradoxal. O protestantismo foi um
dos maiores desmistificadores da religiosidade cristã medieval. Peter Ludwing
Berger em sua obra O Dossel Sagrado, declara:
...o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais
antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério,
o milagre e a magia. Esse processo foi agudamente captado na
expressão “desencantamento do mundo”. O crente protestante já não
vive em um mundo continuamente penetrado por seres e forças
sagradas. A realidade está polarizada entre uma divindade
radicalmente transcendente e uma humanidade radicalmente “decaída”
que, ipso facto, está desprovida de qualidades sagradas (BERGER,
1985, p.124).
O protestantismo, como acertou Berger, reduziu o relacionamento do
homem com o sagrado ao canal, excessivamente estreito, que ele chamou de
17
palavra de Deus, e cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra (BERGER,
1985). A leitura radical e exclusivista da Bíblia, que gerou a desmistificação do
protestantismo frente ao mundo mágico católico, gerará novos imaginários no
decorrer de sua institucionalização, porém, diferentemente do catolicismo, que
foi baseado em tradições e experiências dos santos, o protestantismo gestará
novos imaginários baseados na interpretação da própria Sagrada Escritura
através do princípio da livre interpretação. A Bíblia claramente desempenhará
um papel importante no imaginário protestante, esse fenômeno é percebido por
vários historiadores, entre eles James Carroll e Shlomo Sand:
...puritanos ingleses entenderam seu projeto de colonização do Novo
Mundo como se fossem hebreus, fundando uma Nova Jerusalém, a
Cidade no Alto da Colina, transformando a maldição do judeu errante
na virtude da mobilidade americana (CARROLL, 2013, p. 231).
...o Livro dos Livros se tornou, por anacronismo nutrido por ardente
imaginação, uma espécie de modelo ideal para a formação de um
coletivo político-religioso moderno. Nos primórdios da colonização da
América do Norte, inúmeros puritanos estavam convencidos de que
encarnavam os filhos de Israel, para os quais a terra onde escorria o
leite e o mel havia sido prometida. Eles adentraram a oeste, com o
Antigo Testamento em mãos, e se imaginaram como os herdeiros
autênticos de Josué, o Conquistador. Esse imaginário também guiou os
colonos na África do Sul (SAND, 2012, p.227-228).
Sendo correta a afirmação que o protestantismo abriu as comportas do
secularismo, como afirmou Max Weber, Peter Berger e outros, é correta também
a hipótese que ele gerou vibrantes e místicas espiritualidades, como a corrente
experiencialista ou mística do pietismo1. Na clássica obra sobre o protestantismo
no Brasil: O Celeste Porvir, o eminente filósofo e sociólogo da religião Antonio
Gouvêa Mendonça comentando sobre o pietismo, declara:
1
Pietismo – teve início entre os luteranos da Alemanha, nos fins do século XVII, associado principalmente a
Philipp Jakob Spener... cria que a ênfase original da Reforma Protestante, sobre a conversão pessoal, a santificação e a
experiência religiosa tinha-se perdido essencialmente, o que justifica o seu protesto e o movimento que daí resultou...
Ênfases Principais: A necessidade de experiências religiosas pessoais; o valor do misticismo; a necessidade de uma
conversão que realmente mudasse a vida do indivíduo, e uma santificação que continuasse esse processo; um desprezo
relativo aos credos; a retidão pessoal; a necessidade de renunciar ao mundo e suas atrações; a fraternidade universal
dos crentes; o calor emocional na religião cristã (CHAMPLIN, BENTES, 1997, p. 272 – vol. 5).
18
A interpretação da Bíblia tem um sentido literal, espiritual e místico, o
que facilita a superação de passagens embaraçosas, principalmente do
Antigo Testamento. Em suma, o pietismo foi e é, no seu todo, uma
reação contra o racionalismo, contra as especulações teológicas
particularmente que não valia pena defender e suas consequências
sociais, como perseguições e guerras de religião. O núcleo da fé
pietista consiste na “experiência com Cristo” e no cultivo de sua
presença... (GOUVÊA, 2008, p. 111)
Considerando os devidos contextos, podemos apontar o pentecostalismo
clássico2 no Brasil como uma dessas vertentes tardias e místicas do
protestantismo3. Antonio Gouvêa Mendonça em seu artigo 4: O protestantismo
Latino-Americano entre a racionalidade e o misticismo fez a seguinte
observação:
Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a
não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecoste
que o protestantismo recusa. (GOUVÊA, 1998).
O
pentecostalismo
como
movimento
experiencialista
oriundo
da
pluralidade dos movimentos da Reforma Protestante irá reinventar o imaginário
sobre a cidade santa; insistindo na literalidade da Bíblia, com sua escatologia
pré-milenarista, conceberá a cidade de Jerusalém como a capital do Reino do
Messias na terra. Um dos principais teólogos do pentecostalismo, Stanley M.
2
Pentecostalismo Clássico ou Tradicional – Denominação dada pelos estudiosos ao classificar o movimento
pentecostal brasileiro em três momentos ou ondas, como observou Paul Freston: “O pentecostalismo brasileiro pode ser
compreendido como a história de três ondas” (ANTONIAZZI (Org.), 1994, p. 70-71). A primeira onda seria os pentecostais
clássicos que chegaram entre 1910-1911: Congregação Cristã no Brasil (CCB) e Assembleia de Deus (AD).
3
Descendentes Religiosos do Pietismo – O metodismo, os menonitas, os dunkers (batistas alemães), os
shwenkfelders e os morávios devem todos alguma coisa ao pietismo. A Igreja Reformada Holandesa também teve líderes
cujos discípulos salientaram esse conceito, o que também sucedeu ao luteranismo norte-americano. A Igreja Reformada
Alemã da América do Norte exerceu uma influência pietista sobre o povo reformado alemão naquele continente. Os
Irmãos Unidos em Cristo e a Igreja Evangélica foram denominações que incorporaram (em sua história inicial pelo
menos) tendências pietistas. Talvez possamos dizer que a maioria das igrejas pentecostais da atualidade retêm tanto as
virtudes quanto os vícios desse movimento (CHAMPLIN, BENTES, 1997, p. 272 – vol. 5).
4
Trabalho apresentado na Mesa Dilemas do Protestantismo Latino-Americano – VIII Jornadas Sobre
Alternativas Religiosas na América Latina em São Paulo entre 22 a 25 de setembro de 1998.
19
Horton5, em seu artigo6, assim se expressou sobre a crença pentecostal do prémilenarismo:
Os pentecostais primitivos estavam plenamente convencidos das
verdades da teologia pré-milenarista. A renovada ênfase teológica na
significativa interpretação da Bíblia também marcou o reavivamento
pentecostal. Eles reconheceram que a escatologia apocalíptica por
meio do uso da linguagem figurativa poderia ser cumprida em eventos
reais da História. Eles foram inspirados pela bendita esperança do
retorno de Jesus Cristo e seu reino milenial. “Sinais dos tempos” que
correspondiam a eventos profetizados na Bíblia os encorajavam a
acreditar que Jesus estava vindo (HORTON, 1988).
Considerando a citação de Gilbert Durand (1964) de que o simbolismo é
também um departamento do semantismo linguístico, podemos, em parte,
compreender o quanto a Escritura Sagrada judaico-cristã pode ser um poderoso
instrumento na construção do imaginário dos monoteístas na percepção de uma
cidade santa. Finalmente Durand aponta para uma inevitável verificação:
Se o simbolólogo deve evitar as querelas das teologias não pode de
modo algum esquivar a universalidade da teofania... Finalmente, a
cidade dos homens projeta-se no céu numa imutável Cidade de Deus,
... A partir de então, o símbolo surge, por todas as suas funções, como
abertura para uma epifania do Espírito e do valor, para uma hierofania.
Por fim, como última dialética em que pela última vez a imagem, Bild,
persegue o sentido, Sinn, a epifania busca uma figuração suprema
para revestir esta mesma atividade espiritual e procura uma Mãe e um
Pai para esta vida espiritual, um Justo dos Justos, um Rei da
Jerusalém celeste,...” (DURAND, 1964, p. 106-107).
1.- Jerusalém Antiga e a Construção de sua Santidade pelo Judaísmo
5
Stanley M. Horton (1916-2014) – um dos maiores teólogos da Assembleia de Deus no mundo. Pastor norteamericano. Autor de vários livros sobre o pentecostalismo, entre eles, Teologia Sistemática, obra referencial sobre a
doutrina pentecostal. Era professor Emérito de Bíblia e Teologia do Assemblies of God Theological Seminary em
Springfield, Missouri.
6
Artigo – A Importância do Milênio de João para a Igreja de Hoje. http://ejesus.com.br/escatologia-apocalipticae-pentecostalismo/
20
A origem da antiga cidade de Jerusalém, de acordo com as raríssimas
fontes históricas e arqueológicas disponíveis7, aponta para um local de prática
funerária religiosa de tribos beduínas do interior do corredor siro palestino que
escolheram as colinas da Judeia para aninhar e sepultar seus mortos; tal prática
materializada através dos rituais religiosos levará ao surgimento dos primeiros
assentamentos populacionais em Canaã. A importância de um local para a
ligação com o divino criou os espaços sagrados e desenvolveu o sentido da vida
comunal, ou seja, o sentido existencial para o mundo mítico dos povos
cananeus, a partir desses nichos sagrados onde se colocavam os ancestrais e
onde se levantavam altares primitivos de adoração ao divino. O professor
romeno Mircea Eliade, pioneiro historiador das religiões, aponta para uma
primordial convicção religiosa na construção das sociedades:
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais
possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa
tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o
homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao
poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está
saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo
realidade, perenidade e eficácia (ELIADE, 2012, p. 18).
Fato é que o surgimento dos agrupamentos populacionais primitivos, que
darão origem às antigas cidades, estão intimamente ligados às experiências
religiosas, em especial aos cerimoniais funerários, onde os ancestrais eram
divinizados. É assim que o historiador positivista Fustel de Coulanges apresenta
a origem das cidades antigas, especialmente as das Penínsulas itálica e grega:
Os mortos eram tidos como seres sagrados. Os antigos davam-lhes os
epítetos mais respeitosos que pudessem achar; chamavam-nos bons,
santos, bem-aventurados. Tinham por eles veneração que o homem
pode ter pela divindade que ama ou teme. Em seu pensamento, cada
morto era um deus (COULANGES, 2009, p. 30).
7
MONTEFIORE, Simon Sebag. Jerusalém, a Biografia. SP. CIA das Letras. 2013, p. 47. apud Ronny Reich, Eli
Shukro e Omri Lernau, “Recent Discoveries in the City of David, Jerusalem: Findings from the Iron Age II in the Rock-Cult
Pool near the Spring”. Israel Exploration Journal, 57 (2007), pp. 153-69).
21
A comparação das crenças e das leis mostra que uma religião primitiva
constituiu a família grega e romana, estabeleceu o matrimônio e a
autoridade paternal, definiu os níveis de parentesco, consagrou o
direito e propriedade e o direito de herança. Essa mesma religião,
depois de ter ampliado e estendido a família, formou uma associação
maior, a cidade, e nela reinou como na família. Dela vieram todas as
instituições, assim como todo o direito privado dos antigos. Foi dela
que a cidade recebeu os seus princípios, as suas regras, os seus
costumes, as suas magistraturas (COULANGES, 2009, p. 17).
Tal como as cidades greco-romanas que nasceram ao redor de
monumentos funerários religiosos, esse fenômeno também está presente no
corredor siro palestino, explicitamente influenciado pelos egípcios e sumerianos,
povos com profundos pendores religiosos e obcecados por seus mortos.
Percebe-se que o monte onde a cidade de Jerusalém se desenvolveu está
umbilicalmente ligado à primitiva prática religiosa; o alto dos cumes e montanhas
foram locais escolhidos para o culto à divindade. Trata-se da “Montanha
Cósmica”, a casa dos deuses, por isso exprime uma ligação entre o Céu e a
Terra; se a montanha sagrada simboliza o local das moradas dos deuses, então
lá deve ser o local onde se encontra o Centro do Mundo.
Em inúmeras culturas a figura da montanha está presente, seja de forma
mística ou real. Em um dos salmos da Bíblia Hebraica, há um poema 8 que
exprime a crença dos povos autóctones de Canaã a respeito dos montes, nela o
salmista declara elevar seus olhos para as montanhas, e seguidamente
pergunta: De onde me virá o socorro? Sua resposta expressa sua crença
monoteísta, contrapondo com a antiga crença nas montanhas sagradas como
moradas dos deuses, onde os fiéis poderiam achar o socorro. Montanhas
Sagradas estão presentes na antiga Pérsia; na Mesopotâmia; na Grécia com
seu famoso monte Olimpo; nas culturas indígenas da América, as montanhas
sagradas estão presentes tanto no mundo místicos dos mexicas, como no dos
8
Salmo 121.1 (ARC)..
22
incas, nas Cordilheiras dos Andes. Na Palestina a montanha sagrada está
associada ao “Umbigo do Mundo”. Portanto, a montanha sagrada é um Axis
mundi que liga a Terra ao Céu, por ser o ponto mais alto, o que está mais
próximo do céu, ela toca o céu e marca o ponto de contato, resultando numa
janela entre o material e o espiritual.
Rituais funerários estão presentes em todo corredor siro palestino desde
os primórdios dos assentamentos populacionais. De acordo com os Escritos
Sagrados dos Judeus, por volta de 1880 a.C. o arameu Abraão, oriundo da
Mesopotâmia, e demais patriarcas do povo hebreu, peregrinaram em Canaã e
sepultaram e foram sepultados na cova em Macpela, em Quiriate-Arba,
posteriormente Hebron. Os patriarcas registrados na Bíblia Sagrada não são
considerados
históricos
por
muitos
historiadores9.
Eles
não
negam
categoricamente que existam, dados históricos nas tradições que apontam para
os patriarcas hebreus Abraão, Isaac e Jacó. Mas pelo fato dessas tradições
estarem presentes especificamente dentro de Canaã, esses historiadores
acreditam que os acontecimentos e as formas sociais mencionados no período
patriarcal estão relacionadas originalmente as experiências posteriores,
transferidas para uma passado mítico na formação do povo hebreu. O Dr.
Norman Karol Gottwald, autor da obra As Tribos de Iahweh, declara:
Muitos destes pretensos indícios “históricos” nos relatos patriarcais,
são claramente a simples transferência para o passado de experiências
israelitas posteriores e suas formas sociais, processo que foi facilitado
pela divisão canônica israelita posterior da “história” de todo Israel em
estágios dos patriarcas, de Moisés e da instalação (GOTTWALD,
1986, p. 50-51).
A “história” dos patriarcas ou é material para a história protoisraelita, ou
são reflexões veladas, temporalmente postas fora do lugar, da história
e da experiência israelita posteriores (GOTTWALD, 1986, p. 54).
9
Muitos historiadores sobre o assunto, tais como: Norman K. Gottwald; George Mendenhall; Gósta Ahlstóm;
Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman; Niels Peter Lemche; Baruch Halpern entre outros.
23
Ainda sobre a questão da historicidade do período patriarcal lê-se, no livro
A Invenção do Povo Judeu de Shlomo Sand a seguinte consideração sobre a
Bíblia:
A abordagem dos pesquisadores da Escola de CopenhagueShefield –
Thomas Thompsom, Niels Lemche, Philip Davies e outros – é ainda
mais convincente, mesmo que não se seja obrigado a aceitar todas as
suas hipóteses e conclusões: não haveria, de fato, um livro, mas toda
uma biblioteca extraordinária que teria sido escrita, reelaborada e
revista durante mais de três séculos, do final do século VI a.C. ao início
do século II. Deve-se ler a Bíblia como um sistema multiestratificado de
debates filosófico-religiosos, ou como um complemento teológico que
às vezes fornece descrições mais ou menos históricas com objetivo
pedagógico, destinadas essencialmente às gerações futuras (o sistema
de castigo divino também funciona em relação ao futuro). Segundo
essa hipótese, autores e redatores diversos do mundo antigo
procuraram criar uma comunidade religiosa cristalizada e se inspiraram
na política do passado “glorificado” para contribuir para a construção de
um futuro estável e duradouro para um importante centro de culto em
Jerusalém (SAND, 2012, p. 225-226).
Feitas essas citações de historiadores, é conveniente voltar à análise dos
episódios patriarcais, uma vez que, independentemente da questão ser
mitológica ou histórica, esses episódios ajudam a compreender a construção do
imaginário judaico sobre a santidade de Jerusalém.
Na Bíblia percebe-se que há uma insistência dos patriarcas hebreus,
através de juramentos, para que sejam sepultados no campo de Macpela, local
adquirido por Abraão dos heteus, povo autóctone de Canaã. Tal ritual era
comum entre os habitantes dessa região antes da chegada do arameu Abraão e
parece que os patriarcas incorporaram essa prática transformando a cova de
Macpela em espaço sagrado. Há várias passagens bíblicas sobre o assunto,
mas o sepultamento de Jacó se destaca, pois foi um ritual tão grandioso e tão
elaborado que até os nativos da terra se admiraram. Segundo o relato do livro
de Gênesis,
o ritual do enterro de Jacó foi grandiosíssimo, pois subiram
muitíssimos carros, gente e cavalos do Egito para Canaã, e fizeram uma grande
e gravíssimo pranto por uma semana, esse ritual fúnebre, impressionou os
24
moradores de Canaã, levando-os a denominarem de Abel-Mizraim. Segundo o
livro de Gênesis os hebreus sepultaram seu patriarca Jacó na cova de Macpela:
E fizeram-lhe os seus filhos assim como ele lhes ordenara, pois os
seus filhos o levaram à terra de Canaã e o sepultaram na cova do
campo de Macpela, que Abraão tinha comprado com o campo, por
herança de sepultura de Efrom, o heteu, em frente de Manre (Gênesis
50:9-13 - ARC).
A cerimônia funerária prestada a Jacó impressionou os cananeus, mas
não se tratava de uma prática desconhecida, já que os cananeus também
realizavam elaboradas cerimônias funerárias em todo corredor siro palestino. As
descobertas arqueológicas sobre essa prática religiosa fúnebre entre os povos
de Canaã, especialmente as pesquisas da Dra. Katheleen Kenyon 10 se
assemelham demasiadamente com os enterros em sepultura em caverna, como
os descritos no Livro de Gênesis 23 e 35.19-20. Também o arqueólogo Dr.
Nelson Glueck11 em suas investigações arqueológicas no deserto do Neguev
revelou muitas colônias da Idade Média de Bronze do tipo patriarcal12.
Esses rituais funerários antigos paulatinamente desenvolveram-se em
práticas e devoções religiosas, criando espaços sagrados. A compreensão da
experiência religiosa como ponto inicial da construção do espaço sagrado e o
surgimento das cidades antigas, tanto no ocidente como no oriente, é
constatável pela teoria da fenomenologia verificável no surgimento da cidade de
Jerusalém e de tantas outras. Esses lugares são como um eixo, um ponto inicial,
um centro umbilicalmente ligado ao êxtase e teofanias espirituais; esses locais
se constituem em locais de culto, locus sacratus, que rompem como janelas
10
Katheleen Kenyon (1906-1978) – Foi uma experiente arqueóloga, líder de equipes arqueológicas que
pesquisaram sobre o período Neológico das antigas culturas do Oriente Médio (Fértil Crescente). Sua pesquisa
arqueológica mais conhecida foi suas escavações em Jericó. Ela foi considerada a arqueóloga mais influente do século
20.
11
Nelson Glueck (1900-1971) – Foi um rabino arqueólogo, que pesquisou vários sítios arqueológicos
relacionados com a Bíblia Hebraica.
12
JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1995, p. 23).
25
surgidas no mundo profano ligado ao divino. Podemos perceber isso no recorte
de texto do professor Mircea Eliade:
A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na
extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de
referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a
hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro” (ELIADE, 2012,
p. 25–26).
A experiência religiosa antecedendo a dogmatização ou algum conceito
sistemático de Deus foi muito bem trabalhada pelo professor e teólogo alemão
Rudolf Otto (1869-1937) e por Nathan Söderblom (1866-1931), teólogo
protestante e arcebispo sueco de Upsala:
… a experiência do sagrado antecede todo e qualquer conceito de
Deus. Ela é a experiência religiosa fundamental por excelência.
“Santidade” (Heiligkeit) é o termo determinante na religião
(SÖDERBLOM, 1913, p. 713-741 apud RUDOLF, 2011, p. 15).
Após considerar essa primordial convicção ou experiência religiosa na
construção do espaço sagrado, convém analisar a historicidade da cidade de
Jerusalém. Fragmentos de barro encontrados no crescente fértil indicam que
povos cananeus seriam os primeiros habitantes. O escritor e jornalista Montefiori
(2003), comentando sobre o surgimento de Jerusalém, relata que os cananeus
já viviam na região há 5 mil anos. Por volta de 3.200 a.C., no início da era do
Bronze, povos da região que utilizavam suas montanhas como locais funerários
construíram pequenas habitações em torno de uma fonte numa colina, com uma
pequena aldeia murada. Cerâmicas egípcias e textos sírios dizem que seu nome
original era Ursalim, Salém ou Yeruselam. Montefiori descreve o surgimento
populacional em Jerusalém da seguinte forma:
… algumas cerâmicas, cujos fragmentos foram descobertos perto de
Luxor, no Egito, mencionam uma cidade chamada Ursalim, uma versão
de Salém ou Shalem, deus da estrela Vésper. O nome pode significar
26
“Salém fundou”. Em Jerusalém, um assentamento crescera em torno
da fonte de Giom: os habitantes cananeus abriram um canal na pedra
que levava a uma poça dentro dos muros da cidadela. Uma passagem
subterrânea fortificada protegia o acesso à água. As últimas
escavações arqueológicas no sítio revelam que eles protegeram a
fonte com uma torre e um muro maciço, de sete metros de espessura,
usando pedras de três toneladas. A torre pode também ter servido
como um templo para celebrar a santidade cósmica da fonte. Em
outras partes de Canaã, reis sacerdotais construíram torres-templos
fortificados. Morro acima, restos do muro de uma cidade foram
encontrados, o mais antigo em Jerusalém (MONTEFIORE, 2013, p. 4647).
A escritora britânica Karen Armstrong aponta o monte Ofel, onde ainda se
encontra a nascente de Giom, marco inicial da formação da cidade de
Jerusalém. Neste caso a fonte de água passa a dar santidade ao local como a
fonte da vida, o gênesis, o eixo inicial:
O povoamento do monte Ofel ocorreu provavelmente por causa de sua
localização, nas proximidades da fonte de Gion. Além disso, existiam
vantagens estratégicas, por se localizar no ponto em que o contraforte
das montanhas dá lugar ao deserto da Judeia. O Ofel não podia abrigar
uma população numerosa – a cidade ocupava uma área pouco
superior a 3,6 hectares; porém, três vales íngremes proporcionavam
uma proteção extraordinária: o Cedron, a leste, o Hinom (ou Geena),
ao sul, e o Central, a oeste; este último, que hoje está em grande parte
coberto de detritos, recebeu do historiador judeu Flávio Josefo o nome
de Tiropeon. Embora a cidade não estivesse entre as mais importantes
de Canaã, ela parece ter atraído a atenção dos egípcios. Em 1925,
foram comprados em Lúxor fragmentos que, uma vez reunidos,
resultaram em cerca de oitenta pratos e vasos com inscrições na antiga
escrita hierática. Decifrada essa escrita, constatou-se que os textos
continham os nomes de países, cidades e governantes considerados
inimigos do Egito. Os vasos deviam ser despedaçados num rito de
magia simpática que visava provocar a ruína dos vassalos
recalcitrantes. Remontam ao reinado do faraó Sesóstris III (1878-42
a.C.) e mencionam dezenove cidades cananeias, entre as quais
“Rushalimum”. Trata-se da primeira menção a essa cidade, governada,
segundo as inscrições, por dois príncipes: Yq’rm e Shashan. Em outro
dos chamados Textos de Execração, cuja inscrição é estimada em um
século depois, “Rushalimum” novamente é amaldiçoada, mas ao que
tudo indica dessa vez um só homem a governa. A partir desse pequeno
indício alguns estudiosos inferiram que durante o século XVIII a.C.
Jerusalém, bem como o restante de Canaã, deixou de ser uma
sociedade tribal, com vários chefes, para tornar-se um núcleo urbano,
sob o comando de um único rei (ARMSTRONG, 2000, p. 26-27).
27
Na Bíblia Hebraica, a primeira referência à cidade de Jerusalém é
mencionada no livro do Gênesis, com a denominação de Salém 13, quando o
patriarca Abraão14
se
encontra
com
o
monoteísta
jebuseu
chamado
Melquisedeque15, rei sacerdote de Salém:
E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e este era
sacerdote do Deus Altíssimo. E abençoou-o e disse: Bendito seja Abrão
do Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o
Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E deulhe o dízimo de tudo. (Gênesis 14.18-20 - ARC).
Melquisedeque é rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo (El Elyon).
Com base nesta passagem da Escritura Hebraica inferimos que antes de Abraão
se fixar na terra de Canaã já existia uma cidade-estado que possuía um culto
monoteísta ou que ao menos era governada por um monoteísta, e Abraão o
reconhece como sendo um servidor do seu Deus, o Todo-Poderoso (El-Shaday).
Isso sugestiona que Jerusalém era um santuário cananeu administrado por reis
sacerdotes na época de Abraão. O encontro emblemático de dois monoteístas,
um cananeu Melquisedeque e outro arameu Abraão, é o início da história de
Salém nas Sagradas Escrituras hebraicas. O nome Salém pode significar
“Salém fundou”; outra possibilidade é que Shalem seja um deus sírio
relacionado ao sol ou à estrela vespertina.
13
Salém (Shalém), segundo a tradição judaico-cristã é Jerusalém, também denominada de Jebus segundo
informação presente no livro bíblico de Josué, capítulo 18 e versículo 28: “...e Jebus (esta é Jerusalém)...”. Em 2010 a
arqueóloga Dra. Eilat Mazar do Instituto de Arqueologia da Universidade Hebraica de Jerusalém concluiu seu trabalho
arqueológico do sistema de fortificações em Jerusalém, entre as descobertas encontrou-se uma placa que parece ser
uma cópia de uma carta do rei de Jerusalém da época, Eved Haba ao rei do Egito. Uma cópia desta carta foi preservada
como o arquivo da cidade de Salém. Trata-se de uma prova confiável de que Salém é Jerusalém e do status da cidade
como uma cidade-estado importante em Canaã, sob proteção do Império Egípcio.
14
Patriarca Abraão – “PERÍODO DOS PATRIARCAS”, devido à organização patriarcal que vigorava então;
costuma-se colocar essa época entre os séculos XX – XVII a.C., isto é, aproximadamente de 2000 a.C. a 1600 a.C.
Nesse período, a tradição judaica coloca as figuras dos três “Avot”, cuja história é narrada no livro do Gênesis (BEREZIN
(Org.), 2000, p. 22 – vol. 1).
15
Do hebraico malkei-tsédek "rei da justiça”, era sacerdote de El-Elyon (Deus Altíssimo), segundo a tradição
judaica é Shem (Sem) um dos filhos de Noé.
28
1.1.- O Altar Primordial
O primeiro altar de sacrifício para o serviço sagrado feito pelo patriarca
Abraão na terra de Canaã foi na cidade de Siquém, conforme registrado na
Bíblia Hebraica no Livro de Gênesis 12.6-7. Essa cidade fica atualmente próxima
de Nablus, um nome derivado da cidade de Neopolis, construída pelo imperador
Vespasiano no ano 72, após a destruição de Jerusalém e a conquista de toda
Palestina.
Foi na cidade de Siquém que posteriormente ocorreu o trágico
episódio envolvendo a filha de Jacó com o heveu Siquém, príncipe daquela terra
(Gênesis 33:18-19; 34:2). A identificação desse sítio arqueológica atualmente, foi
possível, graças a referência feita por Flávio Josefo em sua monumental obra
História dos Hebreus, escrita no ano 90 e por Eusébio, o grande historiador
cristão, que escreveu História Eclesiástica em 340, ambos localizam Siquém nos
subúrbios de Neapolis, perto do poço de Jacó.
Siquém, portanto, foi o local do altar primordial feito por Abraão em Canaã
dedicado ao El-Shadday, após sua saída de Harã na Síria (Gênesis 12:6-7).
A segunda menção na Bíblia Hebraica da cidade de Jerusalém, ainda no
período patriarcal, é quando Deus manda Abraão para a região de Moriá, que
seria o monte santo de Jerusalém (Gênesis 22:2). Quando Isaac está prestes a
ser sacrificado por seu pai, o anjo o avisa que ele não deve sacrificá-lo. Nesse
monte, Abraão tem uma experiência religiosa teofânica (Gênesis 22.10):
E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas,
e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre uma das
montanhas, que eu te direi (Gênesis 22:2,9-18 - ARC).
O local onde Isaac seria sacrificado tornou-se sagrado para todas as
religiões monoteístas posteriores; trata-se de um outro altar primordial. Embora
não haja qualquer prova arqueológica sobre onde seria esse altar do sacrifício
29
de Abraão, o local exato dessa pedra primordial, as referências bíblicas indicam
que esse é o embrião da devoção por essa cidade, por esse lugar, por essa
pedra, e a criação da geografia sagrada.
Karen Armstrong (2000), nos leva a compreender a contínua crença de
que existem lugares mais sagrados que outros, o que permite a percepção de
que sejam locais mais adequados a habitação humana. Essa crença,
obviamente não se baseia em critérios investigativos, análise intelectual ou em
conjecturas metafísicas sobre a natureza do mundo, pelo contrário, o homem
antigo compreendia o mundo a seu redor eivado de mistérios e forças
sobrenaturais,
e
sentiam
irresistível
atração
por
algumas
lugares,
completamente diferentes dos outros, e que parecia trazer-lhes alguma
segurança, proteção, conforto, algo divino, que ligasse a terra ao céu, há nas
culturas antigas verdadeira fixação e obsessão pelo céu, pelos astros, pela
plano celestial. Na verdade, temos grande dificuldade para compreendermos
intelectualmente a percepção de geografia sagrada dos antigos. Antigas visões
de mundo sagrado afetam profundamente a história de Jerusalém e têm sido
aceitas por muitas pessoas, até mesmo aqueles que não se consideram
religiosas.
Ao examinar a longa história da cidade de Jerusalém, perceber-se que
desde o limiar da história, homens e mulheres têm formulado de muitas e
variáveis maneiras percepções que ela é um espaço sagrado, ele foi edificada
num montanha cósmica, e esse imaginário tenderá a repetir-se de maneira tão
insistente e contínua que aponta para uma necessidade humana interna
fundamental na busca do sagrado.
O professor Mircea Eliade, escrevendo sobre o espaço sagrado, cita
Rudolf Otto sobre a impactante experiência religiosa em um lugar primordial,
algo presente no relato do livro de Gênesis da Bíblia Hebraica, referente à
experiência teofânica sentida por Abraão no episódio do sacrifício de Isaac na
montanha santa de Moriá, posteriormente, recuperada na tradição religiosa dos
hebreus, para o serviço religioso:
30
Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse
mysterium tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade
esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium
fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser. R. Otto
designa todas essas experiências como numinosas (do latim numen,
“deus”) porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do
poder divino. O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz
andere (*) radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de
humano ou de cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o
sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do
que uma criatura”, ou seja - segundo os termos com que Abraão se
dirigiu ao Senhor - , de não ser “senão cinza e pó” (Gênesis, 18:27) *
Em alemão no texto original (N.T.) (ELIADE, 2012, p. 15-16).
Essa dramática experiência espiritual de Abraão na montanha cósmica de
Moriá, marcará a alma do judaísmo, as teofania, ou seja, a aparição de Deus,
permitindo profunda e impactante experiência ao homem, estará sempre
presente no imaginário do povo judeu, este local será posteriormente
recuperado como o centro do culto monoteísta na construção do Templo de
Salomão. Podemos afirmar que a partir desse evento teofânico de Abraão com
esse altar primordial onde sacrificou ao Deus Todo-Poderoso, o embrião da
santidade da cidade estará em gestação, chegando ao seu clímax com a própria
declaração do Eterno de que escolhera Jerusalém para que ali estivesse
eternamente seu santo nome.
No entanto, a primeira menção bíblica explicitamente usando o nome
Jerusalém está no livro de Josué16, quando os hebreus fazem guerra a cinco reis
cananeus, liderados por Adoni-Zedeque, que é derrotado e morto (Josué 10 e
12:10). Ainda no período das conquistas dos hebreus da terra de Canaã, eles
derrotaram o rei de Jerusalém, chamado de Adoni-Bezeque (Juízes 1:1-7).
16
No livro bíblico de Josué há mais duas referências sobre a cidade: uma em Josué 15:8: E este termo passará
pelo vale do Filho de Hinom, da banda dos jebuseus do sul (esta é Jerusalém)... e outra em Josué 18:28: ...e Jebus (esta
é Jerusalém), .... A cidade também aparece em Juízes 1.21: Porém os filhos de Benjamim não expeliram os jebuseus
que habitavam em Jerusalém; antes, os jebuseus habitaram com os filhos de Benjamin em Jerusalém até ao dia de hoje.
31
1.2.- Jerusalém a nova capital do Reino dos Hebreus
Por volta do ano 1.000 a.C, Jerusalém volta a ser o centro espiritual do
povo judeu, com a política do rei Davi, de primeiro conquistá-la e transformá-la
em sua capital, tirando a sede do governo israelita de Hebron, onde repousavam
os seus ancestrais na Cova de Macpela, para o local do altar primordial de
Abraão, Moriá.
Essa mudança para Jerusalém mudará totalmente e para
sempre a história da cidade.
Poucos são os materiais arqueológicos sobre esse inspirador rei judeu –
Davi. Em 1993 o arqueólogo e professor Avraham Biram, então diretor da
Faculdade de Arqueologia Bíblica Nélson Glueck da Hebrew Union College,
descobriu num sítio no norte de Israel, em Tel Dã, uma estela com a inscrição
“Casa de Davi”. Segundo o arqueólogo Randall Prince, a data do achado está
entre o fim do século IX e começo do século VIII a.C.; o fragmento está escrito
em aramaico. Nesse fragmento há referência de guerra entre o reino de Israel e
o rei arameu Ben-Hadade de Damasco, que derrota o “rei de Israel da Casa de
Davi”17.
A Bíblia Hebraica é a fonte mais antiga que apresenta o episódio da
conquista de Jebus por Davi. O historiador judeu Flávio Josefo, em sua obra
História dos Hebreus, descreveu o episódio da conquista de Jebus por Davi
parafraseando Bíblia Hebraica. Todos de comum acordo, declaram a Davi, rei.
Depois de terem passado três dias em festas e banquetes públicos, marchou
com todas as suas forças, para Jerusalém (JOSEFO, 1990).
As cidades dos cananeus, eram fortificadas e normalmente edificadas em
montanhas cósmicas. Os jebuseus, povo autóctone, da etnia dos cananeus,
enfrentaram os israelitas, e fecharam as portas da sua cidade, e para
demonstrar total desprezo aos israelitas, colocaram sobre a inexpugnável
17
PRICE, Randall. Pedras Que Clamam. RJ: CPAD, 1997. p.148.
32
muralha as pessoas com deficiências físicas, tal o grau de segurança e
confiança que tinham em sua fortaleza. Davi sentiu-se ofendido, e desafiado ao
extremo, resolveu atacá-los com todas as suas forças e estratégias militares
possíveis. Mas, conseguiu apenas apoderar-se da cidade baixa, não havia como
conquistar a fortaleza jebuseia. Davi resolveu então apresentar um desafio as
suas tropas, prometendo recompensas e honrarias, aos que se desatacassem
pelo valor e coragem nessa empreitada, prometeu ainda o cargo de general
comandante de seu exército, ao que primeiro entrasse na fortaleza de Jebus.
Esse desafio, trouxe bons resultados, seus soldados desafiados e motivados
adentraram na fortaleza pelo encanamento da cidade. Os hebreus liderados por
Davi tomaram a fortaleza e expulsaram seus moradores jebuseus.
Davi consertou as brechas das muralhas, habitou com sua corte na
cidade e deu seu nome para ela. De Jerusalém unificou e governou sobre as
tribos de Israel, embelezou Jerusalém e tornando-a capital sagrada do povo de
Israel.
Se o rei Davi é um personagem histórico ou um mito, como acreditam
alguns historiadores e arqueólogos18, isso não interfere na busca da
compreensão da construção do imaginário sagrado de Jerusalém para os fiéis
monoteístas. A perspectiva não é desconstruir mitos ou revisar a história, mas
apresentar a construção do imaginário religioso sobre a cidade de Jerusalém na
acomodação das fés monoteísta até a evangélica pentecostal.
Independentemente das provas materiais históricas, a literatura sagrada
aponta Davi como o maior rei judeu de todos os tempos, inclusive os profetas
hebreus apresentam-no como genitor do Messias. Essa perspectiva sagrada,
que embebeda as esperanças de milhões de almas, que criará o sagrado, é o
que nos interessa na descrição dos acontecimentos nesta obra. Davi, ao
conquistar Jerusalém, de imediato quis trazer os objetos sagrados para sua nova
capital.
18
FINKELSTEIN, I e SILBERMAN,Neil A. Davi and Salomon: In Search of the Bible's Sacred Kings and the
Roots of the Western Tradition. New York: Free Press, 2006.
33
É possível que Davi não tenha decidido escolher uma cidade israelita já
bem estabelecida para ser a sede do seu reino, para evitar conflitos internos, por
isso escolheu uma cidade neutra. Jerusalém era uma cidade cananeia19 que não
pertencia a nenhuma das tribos hebraicas, não tendo problemas políticos para
fazer dela sua nova capital para o jovem reino de Israel. Com objetivo de levar
os símbolos divinos para sua nova cidade, Davi congregou todas as tribos de
Israel em Jerusalém a fim de fazer uma longa procissão de translado da Arca da
Aliança do Senhor (1º Crônicas 15:3).
Segundo registro bíblico, Davi abrigou a Arca da Aliança numa tenda
enquanto ampliava e fazia novas construções em sua cidade. Naquela época a
cidade localizava-se ao sul da cidade antiga de Jerusalém. De acordo com
informações de Armstrong (2000), sua extensão era de seis hectares na encosta
sul do monte Moriá e era o lar de mais de duas mil pessoas.
O rei Davi unificou o reino dos hebreus, estabeleceu a nova capital em
Jerusalém, organizou o exército, a economia e o mais importante para os
hebreus, organizou a forma de culto monoteísta, compôs Salmos e comprou o
monte sagrado de Moriá, local do altar primordial de Abraão.
Davi após consolidar seu poder se ocupou demasiadamente com
assuntos militares e o Deus dos hebreus ficou descontente. Segundo a Bíblia,
Seu castigo foi enviar uma terrível peste, então um ser angelical surgiu num
ponto específico do monte Moriá. Naquele local Davi construiu um altar, após
comprar o terreno, segundo documento de compra e venda registrado no
primeiro livro das Crônicas da Bíblia:
E disse Davi a Ornã: Dá-me este lugar da eira, para edificar nele um
altar ao SENHOR; dá-mo pelo seu valor, para que cesse este castigo
sobre o povo. Então, disse Ornã a Davi: Toma-a para ti, e faça o rei,
meu senhor, dela o que parecer bem aos seus olhos; eis que dou os
bois para holocaustos, e os trilhos para lenha, e o trigo para oferta de
manjares; tudo dou. E disse o rei Davi a Ornã: Não! Antes, pelo seu
19
Segundo o livro do Profeta Ezequiel a origem de Jerusalém é: E dize: Assim diz o Senhor Jeová a Jerusalém:
A tua origem e o teu nascimento procedem da terra dos cananeus; teu pai era amorreu, e a tua mãe; heteia (Ez 16.3).
...vossa mãe foi heteia, e vosso pai, amorreu (Ez 16.43b).
34
valor a quero comprar; porque não tomarei o que é teu, para o
SENHOR, para que não ofereça holocausto sem custo. E Davi deu a
Ornã, por aquele lugar o peso de seiscentos siclos de ouro. Então, Davi
edificou ali um altar ao SENHOR, e ofereceu nele holocaustos e
sacrifícios pacíficos, e invocou o SENHOR, o qual lhe respondeu com
fogo do céu sobre o altar do holocausto (1º Crônicas 21:22-26 - ARC).
Essa experiência teofânica de Davi, no mesmo local onde Abraão também
experimentou extasiado o contato teofânico do Eterno, levou a construção do
imaginário sagrado da cidade ao ápice. Jerusalém passou a ser vista, a partir
daí, como um local sagrado, uma janela para o divino.
O
professor
Mircea
Eliade
(2012)
apresenta
esse
fenômeno
transcendente quando cita o exemplo da pedra sagrada, não como uma
veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A
perspectiva da pedra sagrada, não tem haver com uma adoração a pedra em si,
mas são hierofanias, porque “revelam” algo transcendente, que já não é mais
pedra, mas o sagrado. Uma pedra sagrada, não deixa de ser uma pedra, nada a
difere de todas as demais pedras. No entanto, para quem cujos olhos uma pedra
se reveste de sacralidade, sua realidade imediata se transforma numa realidade
sobrenatural. Para os que tem uma experiência religiosa cósmica, tudo o que
existe no universo é suscetível de revelar-se como sagrado. O mundo inteiro
pode tornar-se numa hierofania cósmica.
O monte de Jerusalém é importante porque aponta para a construção da
geografia sagrada, o local da pedra primordial, o mesmo local onde
aproximadamente mil anos antes o patriarca Abraão havia levado para sacrificar
seu filho Isaac (Gênesis 22:10). Davi contemplou esse misterioso ser angelical
em Jerusalém, no Monte Moriá, para deter a praga, ordenando a construção de
um altar, esse é o local onde posteriormente será construído o primeiro Templo
dedicado ao Deus Único:
Então o Anjo do SENHOR disse a Gade que dissesse a Davi para que
subisse Davi para levantar um altar ao SENHOR na eira de Ornã, o
jebuseu (1º Crônicas 21.18).
35
Posteriormente, Davi preparou o material necessário para a construção de
uma Casa para a Arca da Aliança, porém foi seu filho Salomão que construiu o
primeiro templo sagrado dedicado ao Eterno. O Professor Mircea Eliade,
escrevendo sobre o espaço sagrado, diz:
A descoberta ou projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à
Criação do Mundo, e não tardaremos a citar exemplos que mostrarão,
de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico da orientação
ritual e da construção do espaço sagrado (ELIADE, 2012, p. 26).
O Templo de Salomão foi construído por volta de 950 a.C., possuía
degraus para a entrada, portas trabalhadas e duas suntuosas colunas na frente;
dentro do templo ficava o lugar mais sagrado de todos, o santo dos santos, onde
só o sumo sacerdote podia adentrar, local da Arca da Aliança, que continha as
duas tábuas da lei, o vaso com maná colhido no deserto e a vara do sacerdote
Arão que florescera.
O Templo era uma cópia do modelo celestial dado pelo Eterno. Segundo
Eliade (2012), na crença israelita os modelos do tabernáculo, de todos os
utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Deus desde a eternidade, e
foi o Ele que revelou ao seu povo eleito, para que fossem reproduzidos na terra
com precisão.
O Templo construído por Salomão tinha por finalidade o serviço sagrado.
Era um lugar de sacerdotes e sacrifícios, onde repousava a Arca da Aliança dos
israelitas. O santuário era único do gênero, dedicado a uma divindade invisível,
num mundo de representações visíveis, totalmente politeísta e idolátrico. O que
surpreende a respeito dessa construção não eram as madeiras importadas, os
cedros do Líbano, nem os detalhes de ouro feitos por peritos artesãos e ourives,
mas um pequeno recinto fechado e sem janelas, chamado de “o mais sagrado
entre o sagrado” ou de “o santo dos santos” (2º Crônicas 3:8). Esse era o local
36
mais importante, onde não deveria haver nenhuma imagem de Deus, pois
segundo a tradição israelita Deus é irretratável, demasiadamente grandioso e
não poderia ser representado por imagens advindas do imaginário humano. O
silêncio e a ausência de imagens são os grandes diferenciais da religião
israelita. Ali repousava apenas a Arca da Aliança e ninguém podia entrar. Essa
simplicidade misteriosa de culto e essa crença de santidade do local serão
elementos responsáveis pela santificação de toda a terra de Israel.
A Bíblia Hebraica declara que após Salomão sacrificar a Deus e fazer sua
oração, fogo celestial caiu e consumiu o holocausto e os sacrifícios e o
Shekinah20 do Eterno encheu o Templo (2º Crônicas 7:1-3). O rei Salomão teve
uma experiência teofânica com Deus, em uma visão noturna, onde o Eterno
declara ter ouvido sua oração e escolhido aquele lugar para o culto divino:
E o SENHOR apareceu de noite a Salomão, e disse-lhe: Ouvi a tua
oração e escolhi para mim este lugar para casa de sacrifício. Se eu
cerrar os céus, e não houver chuva; ou se ordenar aos gafanhotos que
consumam a terra, ou se enviar a peste entre o meu povo; e se o meu
povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar, e buscar a
minha face, e se converter dos seus maus caminhos, então eu ouvirei
dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra. Agora,
estarão abertos os meus olhos e atentos os meus ouvidos à oração
deste lugar. Porque, agora, escolhi e santifiquei esta casa, para que o
meu nome esteja nela perpetuamente; e nela estarão fixos os meus
olhos e o meu coração todos os dias (2º Crônicas 7:12-16 - ARC).
A construção do Templo de Salomão coroou a cidade de Jerusalém como
o espaço sagrado pleno. Estava criada definitivamente a geografia sagrada para
a cidade de Jerusalém. Segundo Eliade (2012), o Templo dedicado ao Eterno
em Jerusalém era uma imago mundi: estava situado no “Centro do Mundo”. De
Jerusalém a santificação abrangia não somente o Cosmos, mas também a “vida”
cósmica, ou seja, o tempo. Essa ideia
apresentada
por
simbólica de ação santificadora é
Josefo (1990) da seguinte maneira: o pátio do Templo
20
Shekinah é uma palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a
tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”.
37
simbolizava o Mar (as regiões inferiores); o santuário representava a Terra, e o
Santo dos Santos, o Céu.
Segundo Eliade (2012) esse simbolismo do Templo se projeta para o
interior do mundo habitado. Assim a terra de Canaã (Palestina), a cidade de
Jerusalém e o Templo do Eterno simbolizavam e representavam cada um e ao
mesmo tempo a imagem do Cosmo e o Centro do Universo. Essa pluralidade de
“Centros” e essa contínua referência a imagem do mundo passando por escalas
cada vez menores constituíam na própria cosmovisão dos povos antigos, das
sociedades tradicionais.
No entanto, essa extraordinária expressão de fé monoteísta dos hebreus,
eivada de simbolismos, não teve força suficiente e não foi páreo frente ao
politeísmo pragmático e muito mais atraente, que seduziria a maioria dos
israelitas às práticas culturais e religiosas mais sofisticadas dos antigos povos
de Canaã, em especial ao fascinante culto a Baal, o senhor, o dono, o marido da
mãe terra, que com seu abençoado sêmen, fecundava com copiosas chuvas a
mãe terra, produzindo vida, o alimento para todos os seres humanos; este culto
autóctone cananeu fascinava os israelitas, que negligenciaram o culto do Eterno.
Segundo a teologia hebraica, a desobediência e a persistência na prática do
velho politeísmo levaram à destruição dos reinos de Judá e de Israel:
E o SENHOR, Deus de seus pais, lhes enviou a sua palavra pelos seus
mensageiros, madrugando, e enviando-lhos; porque se compadeceu
do seu povo e da sua habitação. Porém zombaram dos mensageiros
de Deus, e desprezaram as suas palavras e escarneceram dos seus
profetas, até que o furor do SENHOR subiu tanto, contra o seu povo,
que mais nenhum remédio houve (2º Crônicas 30.15-16 - ARC).
A primeira grande ameaça vinda de um povo estrangeiro ocorreu séculos
depois da morte dos reis Davi e Salomão, momento em que o reino já estava
enfraquecido e dividido em duas partes; no sul o Reino de Judá com capital
Jerusalém e no Norte o Reino de Israel com capital Samaria. Em 722 a.C. o
38
Império Assírio destruiu o Reino do Norte, levando ao exílio seus habitantes e
136 anos depois, o poderoso Império Babilônico destruiria Jerusalém.
Jerusalém e o Templo sagrado foram alvos de invasões sucessivas de
muitos povos, foi notória por um magnetismo especial que atraiu sobre si vários
ataques hostis. Analisando os aspectos geopolíticos, essa região estava
assentada sobre o corredor siro palestino, região que sempre foi alvo das
potências militares da época, pois era a ponte natural de ligação terrestre entre a
África, Ásia e Europa; quem dominava essa ponte terrestre dominaria as rotas
comerciais que abasteciam o mundo antigo, certamente, quem dominasse essa
região estratégica dominaria todo o mundo.
Canaã, ou o corredor siro palestino, onde ficava o Reino de Judá, estava
entre o Egito no sul e a Babilônia no Norte, era a ligação terrestre entre os dois
grandes impérios. O faraó Neco, de um Egito expansionista, não tinha passagem
para Carquemis na Síria, a não ser pelo caminho do mar (via maris) que
passava por Megido. O Faraó Neco enviou mensageiros para o monarca judeu
Josias, em Jerusalém, pedindo autorização para passar com seu exército. O rei
judeu negou e preparou seu exército para a batalha na tentativa de impedir que
o exército egípcio passasse por seu território e foi para Megido onde morreu.
Com a morte do rei Josias, o Reino de Judá perdeu sua autonomia
política, deixando de existir como uma nação autônoma. O Faraó Neco colocou
no trono de Judá o filho de Josias, Joacaz, e seguiu para Carquemis, no Norte,
quando foi derrotado pelo exército caldeu. O cetro mundial passou para
Babilônia, e Jerusalém passou a fazer parte do Império Babilônico.
Nabucodonosor tirou do trono Joacaz, filho de Josias, empossado pelo faraó do
Egito e entronizou a Eliaquim, também chamado Jeoaiquim como novo rei do
Reino de Judá, que se tornou tributário do rei da Babilônia. Eliaquim ou
Jeoaiquim ficou três anos como servo de Nabucodonosor e depois se rebelou e
fez aliança com o Egito.
Em 605 a.C. Nabucodonosor enviou seu general
Nebuzaradã para Jerusalém e levou a primeira leva de cativos judeus, mão de
obra especializada para a Babilônia. Em 597 a.C., ocorreu uma segunda
39
incursão babilônica em Jerusalém, de onde se levou mais cativos judeus para a
Babilônia.
1.3.- A Primeira Destruição de Jerusalém (586 a.C.)
Em 586 a.C., o poderoso Império Babilônico destruiu Jerusalém e levou
grande parte da elite dos judeus para a Babilônia. O Templo foi destruído por
Nabucodonosor 374 anos depois de sua construção. A Bíblia Hebraica descreve
essa tragédia da seguinte maneira:
Quebraram mais os caldeus as colunas de cobre que estavam na Casa
do SENHOR, como também as bases e o mar de cobre que estavam
na Casa do SENHOR; e levaram o seu bronze para Babilônia. Também
tomaram as caldeiras, as pás, e os apagadores, e os perfumadores e
todos os utensílios de cobre, com que se ministrava. Também o capitão
da guarda tomou os braseiros, e as bacias, e tudo mais que era de
puro ouro e de prata. As duas colunas, o mar, e as bases que Salomão
fizera para a Casa do SENHOR; o peso do cobre de todos esses
utensílios era incalculável A altura de uma coluna era de dezoito
côvados, e sobre ela havia um capitel de cobre, e de altura tinha o
capitel três côvados; e a rede, e as romãs em redor do capitel, tudo era
de cobre; e semelhante a esta era a outra coluna com a rede. Também
o capitão da guarda tomou a Seraías, primeiro sacerdote, e a Sofonias,
segundo sacerdote, e aos três guardas do umbral da porta. E da cidade
tomou a um eunuco, que tinha cargo de guerra, e a cinco homens dos
que viam na face do rei, e se acharam na cidade, como também ao
escrivão-mor do exército, que registrava o povo da terra para a guerra,
e a sessenta homens do povo da terra, que se achavam na cidade. E
tomando-os Nebuzaradã, o capitão da guarda, os trouxe ao rei de
Babilônia, a Ribla. E o rei de Babilônia os feriu e os matou em Ribla, na
terra de Hamate; e Judá foi levado preso para fora da sua terra (2º Reis
25:13-21 - ARC).
A história da destruição de Jerusalém foi muito relatada na tradição
religiosa judaica, especialmente como pranto religioso da perda da Casa de
Deus. Certo é que o Império Babilônico aniquilou a cidade santa, queimou o
Templo do Eterno, o palácio do rei e todas as casas de Jerusalém e derrubou os
40
muros que protegiam a cidade santa. Ao destruir o Templo os babilônicos
saquearam seu interior, levando seus vasos de ouro e prata, e outros objetos de
inestimável valor 21.
A famosa e reverenciada Arca da Aliança sumiu para sempre em meio ao
fogo abrasador lançado pelos conquistadores: “deitam fogo ao Teu Santuário;
profanaram, derrubando-a até ao chão, a morada do teu nome”, narra o Salmo
74:7 escrito por um poeta agonizado. Os sacerdotes e os filhos do rei Zedequias
foram mortos diante do rei Nabucodonosor e seus generais.
Após a destruição de Jerusalém, suas ruas ficaram desertas e cheias de
detritos, pedras e fuligem, alguns dos abastados sobreviventes rapidamente se
empobreceram, apenas a população marginal e traumatizada pelas constantes
guerras ficou nos arredores da empobrecida terra, somente as raposas
perambulavam entre os escombros do monte do altar primordial.
A queda de Jerusalém é interpretada pelo povo judeu como uma
manifestação do castigo do Eterno. Mircea Eliade assim descreve essa
percepção do povo judeu:
Cada nova manifestação de Jeová na história não é redutível a uma
manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de
Jeová contra seu povo, mas não é a mesma que Jeová exprimira no
momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções
pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo,
o povo escolhido por Jeová. Assim, o acontecimento histórico ganha
uma nova dimensão: torna-se uma teofania (ELIADE, 2012, p.97).
21
Objetos do Primeiro Templo - Nada se encontrou do Templo exceto a minúscula ponta de marfim de um cetro
ou bastão usado em procissões, esculpida na forma de uma romã, que data do século VIII e onde está inscrito:
“Pertencente à casa da santidade” (embora alguns aleguem que esse fragmento não seja autêntico). Mas Jeremias foi
surpreendentemente preciso: os beleguins de Nabucodonosor estabeleceram sua sede no portão do Meio da cidade
para organizar Judá, e seus nomes no Livro de Jeremias são confirmados por um texto descoberto na Babilônia.
Nabucodonosor designou um ministro real, Gedaliah, como governador fantoche de Judá, mas como Jerusalém era só
ruínas, ele se mudou para Mizpah, ao norte, aconselhado por Jeremias. Os judeus se rebelaram e mataram Gedaliah, e
Jeremias teve de fugir para o Egito, onde sumiu da história (MONTEFIORI, 2013, p. 79).
41
Após a trágica destruição do Templo Sagrado, será no exílio da Babilônia
que os judeus desenvolverão o sentimento de perda pela cidade santa e o
imaginário judaico sobre Jerusalém se desenvolverá profundamente; assim, a
geografia sagrada será definitivamente materializada. A perda da pátria equivalia
a ruptura do elo com o céu, o qual tornava a vida suportável (Armstrong, 2000).
A perda de Jerusalém para o povo judeu foi equivalente ao fechamento da
janela celestial, pois o elo que unia a Terra e o Céu havia sido rompido. A crença
de que o Templo era efetivamente o lugar da presença da divindade entre eles,
permitia uma vida com expectativa de segurança e bênção, a destruição desse
lugar, despedaçava a seu modelo de vida. Dessa tragédia cósmica para os
judeus é possível analisar dois aspectos relevantes, o teológico e o nacional
perceptível no Salmo de nº 137: “Como cantaremos a canção do SENHOR em
terra estanha?” (Salmo 137.4). Essa pergunta expressa o dilema vivido pelos
judeus no exílio babilônico, demonstra sua saudade pela pátria, mas também
uma preocupação piedosa da perda do lugar adequado para cantar louvores ao
Eterno, para oferecer o serviço sagrado a Deus.
A partir do cativeiro Babilônico a religião judaica adquirirá uma nova
configuração, pois os sacrifícios, os serviços sagrados, o cerimonial, as festas,
tudo havia cessado com a catastrófica destruição do Templo. Será no exílio que
os judeus adotarão o costume de levantar as mãos em direção de Jerusalém e
louvarem a Deus, nesse contexto de profunda angústia, do interior sentimento
de grande e incomparável perda, os judeus criarão uma esperança, uma relação
de amor a Jerusalém como nunca. É consequência do cativeiro babilônico a
construção do imaginário mítico judaico sobre Jerusalém, uma vez que a cidade
e o Templo já não existiam mais. O cativeiro produziu um antídoto para retirar do
povo o politeísmo, que foi definitivamente erradicado do povo de Israel.
Podemos observar que, na Bíblia Hebraica, no livro dos Juízes, no de Samuel,
no dos Reis, das Crônicas, está ali sempre presente e claro o culto politeísta. O
povo israelita estava envolvido com Baal, com Astarote, com a idolatria desde a
conquista de Canaã até o cativeiro. Até o rei Salomão se envolveu com o culto a
42
Moloque. Isso aconteceu muito no Reino de Israel. Encontramos nos dias do rei
Acabe, que o profeta Elias enfrentou os adoradores de Baal e de Aserá, e no
Reino do Sul, nos dias dos reis Amon e Manassés ambos da Casa de Davi, que
cultuavam a Moloque e as divindades autóctones de Canaã. Essa era a prática
cotidiana do povo.
Na época dos Juízes era um ciclo vicioso, o povo estava sempre
envolvido com a idolatria, mas depois do cativeiro isso não aconteceu mais.
Podemos observar que no Novo Testamento dos cristãos não existe mais o
problema do politeísmo. Jesus de Nazaré entrava na sinagoga e encontrava ali
os fariseus e os saduceus praticando um culto bastante elaborado, com muitas
cerimônias e formalidades, mas não havia idolatria, porque o povo fora mudado
após o cativeiro. Cooperou com esse fenômeno religioso monoteísta judaico a
Sinagoga, pois na Babilônia os judeus tiveram saudades do Templo e dos
sacrifícios, e agora o que eles fariam? No livro bíblico do profeta hebreu
Ezequiel encontra-se o primeiro embrião da Sinagoga (Ezequiel 8.1). Este
pequeno núcleo seria posteriormente a Sinagoga, um local fundamental para o
desenvolvimento e preservação da cultura religiosa dos judeus.
Será no cativeiro que o povo judeu desenvolverá um grande apego e
profundo amor por Jerusalém, esse sentimento está expresso no Salmo 137.5-6:
Se eu esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua
destreza. Apegue-se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti,
se não preferir, Jerusalém à minha maior alegria (Salmo 137:5-6 (ARC).
Esse Salmo foi escrito na Babilônia. Na primeira diáspora ou dispersão do
cativeiro de Judá, os judeus fizeram um compromisso moral de nunca esquecer
Jerusalém, qualquer que fosse a situação, qualquer que fosse o lugar onde eles
se encontrassem. Jerusalém ficou arraigada na alma judaica de tal maneira que
nada poderia apagar esse amor, esse anelo, essa ligação umbilical dos judeus
43
com Jerusalém, onde quer que eles estivessem, a cidade santa ficaria esculpida
na alma dos judeus.
O salmista declara: “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a
minha destra da sua destreza...”, isto é, que a mão direita fique semelhante à
esquerda, sem nenhuma ação, fique sem movimento, “...esqueça-se a minha
destra da sua destreza...” ou seja, resseque a mão direita – fique uma mão
inválida. Diz ainda “... apegue-se-me a minha língua ao paladar se me não
lembrar de ti, se não preferir Jerusalém...”, que a língua fique grudada ao céu da
boca, fique sem falar, fique totalmente mudo. Finalmente termina o versículo 6
dizendo: “...se me não preferir Jerusalém à minha maior alegria”, a maior alegria
que o judeu pudesse sentir ou ter na vida, ele trocaria por Jerusalém: “...se me
não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria”, Jerusalém, o
motivo de alegria e felicidade dos judeus; aqui está consolidado o imaginário
judeu de santidade de Jerusalém; mesmo em ruínas ela já havia se
transformado no que bem definiu Mircea Eliade: “a pedra angular da Terra”, “o
umbigo da terra”:
Um Universo origina se a partir do seu Centro, estende-se a partir de
um ponto central que é como o seu “umbigo” (...) A tradição judaica é
ainda mais explícita: “O Santíssimo criou o mundo como um embrião.
Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus
começou a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu-se em
todas as direções”. E visto que o “umbigo da Terra”, o Centro do Mundo
é a Terra Santa, Yoma afirma: “O mundo foi criado a começar por Sion.
Rabbi bin Gorion disse do rochedo de Jerusalém que “ele se chama a
Pedra angular da Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir
dali que toda a Terra se desenvolveu”. Por outro lado, uma vez que a
criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o
primeiro homem foi fabricado no “umbigo da Terra” (tradição
mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso
situado no “umbigo da Terra” ou em Jerusalém (tradições judaicocristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é
justamente o lugar onde se efetua uma rotura de nível, onde o espaço
se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica
superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção
do sagrado no mundo (ELIADE, 2012, p. 44).
44
Após Jerusalém ficar em ruínas por aproximadamente meio século (587 –
538 a.C.) e Babilônia dominar por 70 anos (607 – 536 a.C.), o Império Caldeu
ruiu, e os medos e persas assumiram o cetro mundial. No ano 536 a.C.,
segundo os historiadores Beroso, Ptolomeu e Josefo e nos dois últimos
versículos do Livro das Crônicas (2º Crônicas 36.22-23), estes dois versículos
estão repetidos no Livro de Esdras nos dois primeiros versículos (Esdras 1.1-2),
está o Édito de Ciro, onde ele decretou o fim do cativeiro de Judá.
O primeiro ano de Ciro corresponde ao ano 536 a.C.. Ciro, o primeiro Xá
do Irã, o primeiro monarca da Pérsia, com poder para governar após ter
conquistado a Babilônia, deu liberdade para os povos conquistados retornarem
para suas antigas cidades, muitos judeus retornaram em pequenas levas para
Jerusalém e iniciaram sua reconstrução, bem como a reconstrução do Templo.
Segundo a Bíblia Hebraica são quatro grupos de judeus que retornam para
Jerusalém: a primeira turma foi liderada pelo príncipe Sesbazar conforme a
ordem de Ciro (Edras 1:1-11); a segunda, liderada por Zorobabel (Edras 2); a
terceira pelo sacerdote e escriba Esdras (Edras 8) e a quarta por Neemias
(Neemias 1).
Nesse período do domínio dos persas é que aparece a primeira ameaça à
santidade de Sião, com a construção do templo rival feito pelos samaritanos22 no
Monte
Gerizim,
que
posteriormente
foi
destruído
pelos
hasmoneus23,
governantes sacerdotes da Judeia.
Nos 350 anos seguintes, a terra dos judeus será governada pelo Império
Persa e com a conquista de Alexandre o Grande, pelo Império Macedônico.
Neste período será a política ideológica grega, ou seja, o Helenismo24, que será
o principal adversário do monoteísmo ético judaico, pois essa poderosa
22
Samaritanos – esse termo, geralmente, aplica-se a uma seita israelita, cujos seguidores habitavam no território
de Samaria, tendo o Monte Gerizim o seu santuário principal. Segundo a Bíblia Hebraica, os samaritanos são
descendentes dos gentios com os israelitas que restaram do cativeiro assírio (2º Reis 17.24-34).
23
Hasmoneus (Macabeus ou Martelos) – denominação da família judaica que governou a Judeia entre 167 a 63
a.C. A família dos hasmoneus inciou com Matatias e seus cinco filhos que lutaram para purificar o Templo e expulsar as
forças sírias da Palestina.
24
Helenismo – combinação complexa entre a cultura grega com a do oriente, o resultado dessa junção
chamamos de helenismo.
45
ideologia universalista irá influenciar todas as culturas do mundo antigo,
inclusive a judaica, que se dividirá em vários partidos ou seitas, sendo as duas
mais importantes a dos Saduceus, que aceitavam o helenismo e a dos Fariseus,
que repudiavam e combatiam o helenismo. Os Saduceus por muito tempo,
governaram a Judeia, pois eram membros da elite agrária e comercial da Judeia
até a chegada dos romanos em 66 a.C., que intervieram na Judeia para encerrar
a guerra civil. Os romanos transformaram a Judeia em uma Província Romana,
pondo fim ao reinado dos hasmoneus e o fim da sua independência. Sob o
governo romano a Judeia foi inserida no mundo civilizado dos romanos, com
seus ônus e bônus.
Em 37 a.C. Jerusalém prosperava, os romanos apontavam o rei
Herodes25 como governante da Judeia; conhecido como grande construtor e
muito produtivo, iniciou uma auspiciosa política de magníficas construções.
Dentre todas as construções feitas por Herodes, em Israel, a mais fascinante é o
segundo Templo de Jerusalém, que começou a ser construído no ano 20 a.C. e
só foi concluído 80 anos depois, quase 400 anos depois do templo de Salomão.
Na edificação do Templo foram usados blocos de pedras gigantescas
cuidadosamente manipuladas e cortadas. Foi uma das maiores construções
religiosa, da antiguidade. Para não profanarem o lugar sagrado, foi construído
sob orientação de sacerdotes. O historiador da época, Flávio Josefo, assim
descreve esse episódio:
...Estas palavras de Herodes surpreenderam extraordinariamente a
todos. A grandeza da ideia a fazia parecer inexequível. E mesmo
quando não o fosse, eles temiam que depois de terem feito demolir o
templo, não o pudessem reconstruir inteiramente e assim achavam a
empresa muito perigosa. Mas ele tranquilizou-os, prometendo não
tocar no templo antigo, antes de ter preparado tudo o que era
necessário para a construção do novo e os fatos seguiram às palavras.
Empregou mil carretas para trazer as pedras, reuniu todo o material,
escolheu dez mil operários dos melhores e sobre eles constituiu mil
sacrificadores, vestidos às suas custas, inteligentes e práticos nos
25
Herodes, o Grande (73 a 4 a.C.) - foi um rei edumeu que governou a Judeia entre 37 a 4 a.C. conhecido por
seus monumentais projetos de construção em Jerusalém, Cesareia do Mar e outras partes da Palestina. Se destacou
pela reconstrução do Segundo Templo dos judeus e pelo extraordinário porto na cidade de Cesareia.
46
trabalhos de pedreiro e carpinteiro. Depois que tudo estava assim
preparado, mandou demolir os velhos alicerces, para serem
reconstruídos e sobre eles ergueu-se o templo... (JOSEFO, p. 106-107,
1990 – vol. 2).
O eminente professor Oskar Skarsaune descreve a cidade de Jerusalém
e o Templo construído por Herodes profundamente influenciados pela arquitetura
helênica:
Herodes tentou até mesmo helenizar o aspecto exterior do Templo – e
não encontrou forte oposição a isso. Nas palavras de Bickerman: “Ao
tempo do Epífanes, o ginásio de Jerusalém constituía um perigo
enorme para o judaísmo. Ao tempo de Filo, os judeus de Alexandria
aglomeravam-se durante os jogos sem sacrificar parte alguma do
judaísmo. O teatro, o anfiteatro e o hipódromo construídos em
Jerusalém por Herodes receberam posteriormente a visita de judeus
ortodoxos”. A Jerusalém de Jesus era uma cidade helenística e
herodiana. Um visitante grego não se sentiria deslocado naquela
arquitetura tipicamente helênica de ruas regulares e ângulos retos. A
visão mais impressionante era o Templo que, exceto por seu tamanho
grandioso, pouco diferia de outros templos helenísticos. (O Templo de
Herodes tomou provavelmente como modelo o “Caesaraeon” erigido
por Júlio César, em 48 a.C., em Alexandria). Se, porém, o visitante
pudesse visitar o interior do Templo - o que não era possível -, teria
diante de si o interior do velho santuário israelita praticamente intacto.
Isto poderia ser tomado como símbolo da relação entre o judaísmo e o
helenismo nos dias de Jesus (SKARSAUNE, 2001, p. 31-32).
O Templo embelezado e ampliado por Herodes tinha a fachada frontal de
mármore branco com enfeites em ouro e grandes paredes com pedras pesando
de 60 a 80 toneladas perfeitamente encaixadas sem o uso de argamassa. Tal
perícia ainda é visível no Muro das Lamentações, resquício da estrutura do
segundo Templo. Na Judeia o Templo de Herodes era o ímã que atraía milhares
de peregrinos, sem dúvida alguma o “Umbigo da Terra” estava ativo novamente,
agora ampliado e embelezado, o verdadeiro Axis mundi, a ligação da Terra ao
Céu; no imaginário judaico, o local que santificava toda a terra. A partir desse
momento a religião judaica cresce em número tanto no sentido demográfico,
como no grande número de prosélitos, tementes e simpatizantes. No eixo
sagrado, todos os judeus estavam ligados emocionalmente, espiritualmente e
47
socialmente, a janela entre a Terra e o Céu estava restaurada e toda a terra na
cosmovisão judaica seria abençoada pela presença do Eterno, diariamente
cultuado no altar primordial em Jerusalém.
1.4.- A Segunda Destruição de Jerusalém (70 d.C.)
No dia oito de setembro do ano 70 da era Cristã, mil anos depois de
conquistada pelo rei Davi, trinta e sete anos após a morte de Jesus Cristo,
setenta anos após a morte de Herodes, Jerusalém enfrentou a pior luta de sua
história: romanos e judeus entraram em conflito quando os judeus tentam
manter as posses de suas terras traumaticamente aos pés do monte sagrado.
Foram seis meses de uma terrível e brutal guerra contra Roma, cujo resultado foi
uma Jerusalém reduzida a ruínas, o magnífico Templo, o Axis mundi monoteísta
dos judeus foi completamente destruído. O exército romano incendiou a cidade,
mantendo em pé apenas o muro ocidental, denominado hoje Muro das
Lamentações, legado do poderio e da ciência da guerra do império romano.
O historiador Flávio Josefo assim resume a história da cidade de
Jerusalém, a derrota dos judeus e a sua destruição:
Os romanos queimaram o que restava da cidade e derribaram-lhe as
muralhas. Assim terminou Jerusalém, no dia oito de setembro, no
segundo ano do reinado de Vespasiano. Ela tinha sido antes tomada
cinco vezes, por Azoqueu, rei do Egito, Antíoco Epifânio, rei da Síria,
Pompeu, Herodes, com Sósio, e Nabucodonosor, que a destruiu, mil
quatrocentos e sessenta e oito anos e seus meses depois da sua
fundação. Os outros a haviam conservado, depois, de tomada; mas os
romanos destruíram-na, então, pela segunda vez. Seu fundador foi um
príncipe dos cananeus cognominado o Justo, pela sua piedade. Por
primeiro consagrou a cidade de Deus, construindo-lhe um templo e
mudou-lhe o nome de Solima para o de Jerusalém. Depois que Davi,
rei dos judeus, expulsou os cananeus, lá instalou os da sua nação e
quatrocentos e setenta e sete anos e seis meses depois, ela foi
destruída pelos babilônios. Mil cento e setenta e nove anos passaramse, desde o tempo em que Davi reinou até quando Tito a tomou e
destruiu, dois mil cento e setenta e sete anos depois da sua fundação.
Assim vemos que nem a sua antiguidade nem suas riquezas, nem a
fama difundida por todas as partes da terra, nem a glória que a
santidade da religião lhe havia conquistado, puderam impedir-lhe a
ruína e a destruição (JOSEFO, 1990, p. 191 – vol. 3).
48
Mesmo com a cidade destruída, o imaginário da cidade de Jerusalém já
estava gestado e permaneceria no imaginário judeu como um lugar santo;
mesmo perdendo um dos pilares da fé judaica, uma vez que, com a destruição
do Templo, os sacrifícios de animais como forma de expiação dos pecados
coletivos e individuais cessaram, desaparecendo para sempre; mesmo com as
medidas antijudaicas tomadas pelos romanos depois dessa devastadora guerra
(66-70 d.C.), sendo uma delas o humilhante tributo “fiscus judaicos”, no qual
todo judeu era obrigado a pagar um imposto para o templo de Júpiter, similar ao
imposto antes entregue com ações de graças ao Templo de Jerusalém; mesmo
com a perda da cidade, da sua expressão cultural religiosa, as bases da fé
monoteísta permanecerão, mas haverá uma reorganização e reinvenção da fé,
especialmente porque os sacrifícios serão substituídos pela caridade e oração
como expiação dos pecados.
Uma nova geração de judeus, herdeiros da derrota e da destruição de
Jerusalém e alguns remanescentes, como o Rabino Gamaliel que sobreviveu à
grande tragédia do seu povo, e Yohanam Ben-Zakai, um rabino muito famoso.
Esses rabinos foram para Tiberíades na Galileia e fundaram Academias
Judaicas de onde governavam os judeus que ainda estavam na Palestina e que
estavam tentando novamente a sua autonomia política. Esse período ficou
conhecido na história judaica como “geração Iavne" ou “Período Iavne”. Iavne é
o lugar onde se estabeleceu o Sanedrin (Sinédrio), um período que dura desde o
ano 70 com a destruição de Jerusalém até o ano 135, com a derrota de Simon
Bar Kochba26.
A revolta de Simon Bar Kochba foi resultante da política romana para a
região. O estopim da revolta judaica parece decorrer do seguinte contexto
histórico: quando o imperador romano Adriano visitou o Oriente Médio, por volta
do ano 125-130 d.C., prometeu restituir a Judeia aos judeus, mas por um motivo
26
Simon Bar Kochba – Guerreiro e líder judeu denominado por seus seguidores de Bar Kochba, “filho da
Estrela”, uma referência a profecia de Balaão: “...uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro” (Números
24.17b). Seus inimigos o chamaram de Bar Kozeba, “filho da decepção”. Foi o líder da revolta judaica de 132 a 135.
49
que nem os judeus nem os historiadores sabem, não aceitou devolver a Judeia a
eles.
Nessa época, o rabino Akiva27 apresentou um guerreiro famoso chamado
Bar Kochba, palavra aramaica que significa Filho da Estrela, como o Messias de
Israel. Bar Kochba conseguiu algumas vitórias e foi bem sucedido em sua guerra
e conseguiu desmantelar algumas fortalezas romanas. Assim, a província da
Judeia era a mais problemática do Império romano, os judeus não se
conformavam com a perda da autonomia.
A revolta judaica foi sufocada no ano 135 d.C. pelos romanos. O
Imperador romano Adriano, temendo outro levante, proibiu a entrada de judeus
em Jerusalém sob pena de morte; os judeus que entrassem em Jerusalém
seriam mortos. Três anos depois, segundo o costume romano, Jerusalém foi
“sulcada por uma junta de bois”. Adriano mudou o nome da cidade de Jerusalém
para Aélia Capitolina, e a Judeia foi rebatizada de Palestina, com o objetivo
explícito de destruir a nacionalidade judaica.
Portanto, os resultados da revolta dos judeus foram: o líder Bar Kochba foi
capturado e esfolado vivo; os judeus da Judeia, dispersos; a cidade de
Jerusalém rebatizada como Aélia Capitolina e reconstruída no modelo pagão de
Roma e a região da Judeia rebatizada como Palestina. No entanto, embora seu
centro religioso tenha sido destruído, o judaísmo sobreviveu a seu fatídico
encontro com Roma. A pequena comunidade judaica remanescente recuperouse gradualmente, especialmente a da Galileia, reforçada de vez em quando
pelos exilados. A vida institucional e comunal se renovou, os sacerdotes foram
substituídos por rabinos e a sinagoga tornou-se o centro das comunidades
judaicas.
Da mesma forma, que os judeus reagiram na ocasião da destruição do
primeiro Templo, construindo a geografia sagrada, desenvolvendo profundo
amor por Jerusalém, o mesmo irá ocorrer, quando da destruição do segundo
27
Rabino Akiva (50-135) – Akiva bem Yossef, considerado como um dos maiores rabinos no judaísmo.
Autoridade em assuntos da tradição judaica é citado no Talmud como “Guia dos Sábios”.
50
Templo.
O imaginário judaico sobre Jerusalém iria permanecer vivo na
cosmovisão da comunidade judaica através dos insistentes rabinos enaltecendo
a santidade de Jerusalém muito tempo depois que a cidade fora profanada e o
Templo destruído. Para eles, Jerusalém e o altar primordial ainda estavam
presentes no centro do cosmo. Os rabinos segundo a tradição ensinavam que:
“Existem dez graus de santidade: a terra de Israel é mais santa que as outras
(...). As cidades muradas da terra de Israel são ainda mais santas (...) o interior
das muralhas de Jerusalém é ainda mais santo, (...) O monte do Templo é ainda
mais santo (...) o Pátio das Mulheres é ainda mais santo (...) o Pátio dos
Israelitas é ainda mais santo (...) o Pátio dos Sacerdotes é ainda mais santo (...)
o espaço que circunda o Altar é ainda mais santo (...) o Hekhal é ainda mais
santo (...) o Devir é ainda mais santo, pois ali ninguém pode entrar, salvo o sumo
sacerdote no Yom Kippur” (ARMSTRONG, 2000, p. 202).
A teologia judaica irá criar um imaginário sobre Jerusalém de natureza
ímpar, seus rabinos falavam da cidade de Jerusalém como se ela existisse ainda
materialmente, todos sabiam que a cidade não existia mais, havia sido
completamente destruída pelos romanos, mas os rabinos recusavam a negar
essa realidade física, eles falavam de Jerusalém no presente, era uma projeção
simbólica do Shekinah, pelo fato da presença de Deus ser eterna era digna de
contemplação.
Esse imaginário sagrado sobre a Jerusalém judaica se fortaleceu nos
momentos mais dramáticos, pois após a destruição de Jerusalém no ano 70, ela
será definitivamente substituída pelo modelo pagão da Aélia Capitolina a partir
de 132, os judeus serão proibidos de entrar nela, todos esses elementos,
tiveram efeito ao imaginário judaico sobre a cidade, no entanto, ao invés de
diminuir sua devoção religiosa, ela aumentava ainda mais, o povo judeu passou
a perceber sua cidade sagrada com uma transcendência inimaginável, com a
perda e a proibição de entrar em Jerusalém, o povo judeu passou a contemplar
a cidade como eterna, totalmente transcendente e espiritualizada, existente
apenas no campo do imaginário judaico.
51
É esse poderoso imaginário judaico sobre Jerusalém, plenamente
consolidado na fé monoteísta primordial, que será posteriormente absorvido
pelas demais fés monoteístas que a seguiram, como uma herança indissociável
de suas religiosidades. Portanto, mesmo não existindo mais a cidade de
Jerusalém, nem o Templo, esse imaginário não se arrefecerá, mas se perpetuará
eternamente, nesse sentido, Jerusalém estava presente no mundo mitológico,
era transcendente, era eterna, como bem escreveu o professor Eliade Mircea:
A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o
Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusalém não era senão a
reprodução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada
pelo homem, mas seu modelo era incorruptível, porque não estava
implicado no Tempo (ELIADE, 2012, p. 57).
2.- A Construção do Imaginário Cristão sobre Jerusalém
52
Antes da destruição da cidade de Jerusalém no ano 70 d. C. pelo Império
Romano, havia em Jerusalém um grupo de judeus cristãos. Nas escrituras
sagradas dos cristãos no Novo Testamento, encontramos no livro dos Atos dos
Apóstolos referência constante acerca desse grupo de judeus cristãos em
Jerusalém:
E crescia a palavra de Deus, e em Jerusalém se multiplicava muito o
número dos discípulos, e grande parte dos sacerdotes obedecia a fé
(At 6.7 - ARC).
Também, no mesmo livro, há registro de uma crescente comunidade
cristã gentílica se desenvolvendo totalmente fora de Jerusalém, aliás, é fora de
Jerusalém que pela primeira vez os adeptos dessa nova comunidade religiosa
foram chamados de cristãos:
E sucedeu que todo um ano se reuniram naquela igreja e ensinaram
muita gente. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez,
chamados cristãos (Atos 11.26 - ARC).
As comunidades cristãs gentílicas que se formaram fora de Israel não
possuíam apego ao Templo de Jerusalém e nem pelos rituais judaicos como os
de origem judaica, embora mantivessem contato e laços com a Igreja mãe de
Jerusalém, aliás, a própria comunidade cristã judaica concordou com isso,
conforme determinação da assembleia de Jerusalém28.
A iniciante convivência entre judeus e os seguidores de Jesus no início da
Igreja era tensa, com tendência de perseguição e hostilidade por parte das
autoridades judaicas; mesmo assim os judeus seguidores de Jesus viviam na
28
Atos
dos
Apóstolos,
53
capítulo
15.
mesma comunidade. Observa-se isso no livro dos Atos dos Apóstolos no Novo
Testamento dos cristãos, pelo menos em dois episódios, que os judeus
seguidores de Cristo cultuavam no Templo em Jerusalém como qualquer outro
judeu:
Pedro e João subiram juntos ao templo à hora da oração, a nona (Atos
3:1 - ARC);
Então, Paulo, tomando consigo aqueles varões, entrou, no dia
seguinte, no templo, já santificado com eles, anunciando serem já
cumpridos os dias da purificação; e ficou ali até se oferecer em favor de
cada um deles a oferta (Atos 21:26 - ARC).
No artigo Povo Judeu, Pensamento Judaico I do Dr. Robert M. Seltzer,
eminente professor de história na Pós-Graduação da Universidade de Nova York
e diretor do Programa Interdisciplinar Hunter em Estudos Judaicos há a seguinte
informação:
Entre a morte de Jesus e a irrupção da revolta judaica contra os
romanos o cristianismo desenvolveu-se de sua condição de uma seita
entre os judeus a um movimento que consistia primariamente de nãojudeus. Os Atos dos Apóstolos no Novo Testamento indicam que nas
décadas de 30 e 40 E.C. os seguidores de Jesus em Jerusalém
continuaram a pregar no Templo, a observar as leis judaicas e a
considerar-se membros do povo judeu. (fontes históricas, mencionamse grupos de judeus cristãos até o século IV.) (SELTZER, 1990, p.
212).
2.1.- Os Cristãos e a Destruição da Cidade de Jerusalém
A separação entre judeus e cristãos cresceu vertiginosamente no período
da revolta da Judeia contra Roma no ano 66 d.C., devido às constantes
rebeliões e instabilidades na cidade de Jerusalém e às terríveis dissensões que
54
havia. Da inevitável guerra contra Roma (66- 70 d.C.) houve um distanciamento
por parte dos seguidores de Cristo de seus irmãos judeus. Embora essa revolta
não tenha tido a unanimidade dos habitantes da terra de Israel, pois havia
muitos judeus que não queriam a guerra contra Roma, a postura cristã na guerra
contra Roma afastou as duas comunidades. Os revoltosos compreenderam a
recusa cristã em participar ativamente da revolta como um gesto de traição. A
pequena comunidade judaica cristã de Jerusalém, crendo que a cidade seria
destruída, com base nas profecias de Jesus29 retirou-se de Jerusalém indo para
Péla, na Transjordânia. Nas palavras do padre católico Edward H. Flannery:
A Grande Guerra (66-70) e a destruição do Templo em Jerusalém
demonstraram um ponto crucial para as relações judeu-cristãs. Ao
principiar a guerra, os cristãos saíram de Jerusalém e foram para Pelz,
a fim de ali permanecerem durante todo o período. Para os judeus,
essa deslealdade aparente foi irritante, e não deixou dúvida em seus
espíritos de que o novo movimento se separara não somente da prática
da Lei, como também nacionalismo judeu. Mas os Cristãos viam na
destruição do Templo o cumprimento da profecia de Cristo e uma
confirmação de sua crença de que o cetro passara de Israel para a
Igreja. A nova ideia em ambos os lados serviu para aumentar as
tensões (FLANNERY, 1968, p. 48).
No ano 70 d.C., o general romano Tito com seus soldados destruíram
Jerusalém. O seu majestoso templo, suas casas, seus palácios e suas muralhas
foram demolidas, com exceção da parte da muralha situada a oeste da Cidade
Alta, que se tornou fundamental para proteger o acampamento da Décima
Legião Romana. O historiador judeu Flávio Josefo descreve esse final fatídico do
confronto de Roma com Jerusalém, com as seguintes palavras:
Depois que o exército romano, que jamais se cansaria de matar e de
saquear, nada mais achou em que saciar o seu furor. Tito ordenou que
a destruíssem, até os alicerces, com exceção de um pedaço de muro,
que está do lado do Ocidente, onde ele tinha determinado construir
29
Lucas
19:41-44
e
55
21:20-24.
uma fortaleza e as torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana, porque,
sobrepujando a todas as outras em altura e em magnificência, ele as
queria conservar para mostrar à posteridade, quão grandes foram o
valor e a ciência dos romanos na guerra, para que se apoderarem
daquela poderosa cidade, que se tinha elevado a tal grau de glória.
Essa ordem foi tão exatamente cumprida que não ficou sinal algum que
mostrasse haver ali existido um centro tão populoso. Tal o fim de
Jerusalém, cuja triste sorte só se pode atribuir à raiva daqueles
revoltosos que atearam o fogo na guerra (JOSEFO, 1995, p. 192 – Vol.
3).
Após a destruição do segundo Templo (partindo do princípio que durante
as reformas efetuadas por Herodes, o grande, não cessaram os sacrifícios, ou
Terceiro Templo partindo do princípio que as reformas foram profundas dando
outro efeito estético ao Templo), segundo fontes dos historiadores cristãos
Eusébio de Cesareia (264-340) e Epifânio de Chipre (315-403), um pequeno
grupo de judeus cristãos retornou de Péla e se fixou no monte Sião. Eusébio de
Cesareia registra que Simeão, filho de Cleófas, foi quem sucedeu Tiago como
pastor dos Judeus cristãos em Jerusalém.
Da destruição de Jerusalém no ano 70 até a revolta de Bar Kochba em
132, a igreja cristã em Jerusalém era judaica e seus bispos todos da circuncisão.
Eusébio de Cesareia, declara:
O primeiro, portanto, foi Tiago, chamado irmão de Nosso Senhor; após
ele, o segundo foi Simeão; o terceiro, Justo; o quarto, Zaqueu; o quinto,
Tobias; o sexto, Benjamin; o sétimo João; o oitavo, Matias; o nono,
Filipe; o décimo, Sêneca; e décimo primeiro, Justo; o décimo segundo,
Levi; o décimo terceiro, Efres; o décimo quarto, José; e, por fim, o
décimo quinto, Judas. Esses são todos os bispos de Jerusalém que
preencheram o período desde os apóstolos até a época acima
mencionada, todos da circuncisão (EUSÉBIO, 1999, p. 123-124).
.
As relações judaico-cristãs a partir do ano 80 se deterioram muito,
chegando ao total repúdio no ano 100 a partir do Sinedrium de Iavne30, período
30
Sinedrium de Iavne – Academia de sábios judeus instalada na cidade de Iavne. Foi na cidade de Iavne em
Israel, por iniciativa do Rabi Yochanan Ben Zakai, líder do povo judeu na época da destruição do Segundo Templo em 70
56
em que nasceu um pensamento teológico que levará ao rompimento total com a
inclusão de uma maldição pelos rabinos judeus na chamada dezoito bênçãos, a
Oração contra caluniadores. Essa oração foi destinada aos minim, "judeus
cristãos", bem como ao cristianismo, de acordo com citação do escritor Marcel
Simon:
Que os apóstatas não tenham nenhuma esperança e que o império do
orgulho seja extirpado prontamente, em nossos dias. Que os
nazarenos e os minim pereçam em um instante, que sejam apagados
do livro da vida e não sejam contados entre os justos. Bendito sejas oh
eterno, que humilhas os orgulhosos (SIMON, 1948, p. 235).
o termo logo se referia não apenas aos judeus apóstatas, como
também ao cristianismo de todas as nuanças, que era considerado a
maior apostasia do judaísmo (SIMON, 1948, p. 238).
O professor Oskar Skarsaune, em seu comentário sobre os rabinos e os
minim, faz a seguinte observação:
Temos evidências de que os rabinos levaram a sério o desafio dos
crentes judeus, e que o enfrentaram. A primeira coisa que fizeram foi
introduzir o chamado Birkat Haminim, a décima nona bênção, na
oração do culto sinagogal. No Talmude babilônico, aparece a seguinte
pergunta: “Por que a oração é conhecida como a oração das “dezoito”
bênçãos se, na verdade, ela é constituída por dezenove bênçãos? R.
Levi disse: a bênção referente ao minim foi posteriormente instituída
em Yavne (Jâmnia) (...) Nossos rabinos ensinaram: Simeão,
comerciante de algodão, organizou as dezoito bênçãos na presença do
rabban Gamaliel em Yavne (Jâmnia). O rabban Gamaliel perguntou aos
sábios: há alguém que conheça as palavras da bênção do minim?
Samuel, o pequeno, levantou-se e pronunciou-as (...) O rab Judá disse
então em nome do rab: se um leitor cometer um erro em qualquer uma
das outras bênçãos, não será destituído; contudo, será ele destituído
se errar na bênção do minim, porque suspeitamos que se trate de um
min (TB Berakhot 28b - 29a)”. Isso aconteceu, provavelmente, entre 70
e 100 d.C. Não há dúvida de que os crentes judeus estão incluídos
entre os minim (separatistas, hereges). Em um período relativamente
posterior, parece que o significado de minim tornou-se mais vago, e
para que fosse mantida a penalidade contra os crentes judeus, decidiud.C., que foi fundada a academia de Keren Iavne. A instituição foi uma das responsáveis pela preservação do estudo da
Torá e, consequentemente, pela perpetuação do judaísmo. O Período Yavne é um período que dura desde o ano 70, até
o ano 135 com o fim da chamada revolta de Simon Bar Kochba.
57
se dar, destaque no texto: “Que não haja esperança para os renegados
(meshumadim), e que o reino arrogante (Roma?) seja em breve
destruído em nossos dias, e os nazarenos (há notzrim) e os minim
pereçam num segundo e sejam apagados do livro da vida, não
encontrando lugar junto com os justos. Bendito sois vós, ó Senhor, que
humilhais os arrogantes (De uma antiga versão do Amidah)”
(SKARSAUNE, 2001, p. 199-200).
No entanto, para o cristianismo, a separação final se dá mais tarde. A
posição cristã em relação ao judaísmo a partir de Iavne vai paulatinamente se
endurecendo até o ano 130, quando o renomado rabino Akiva, apresentou Bar
Kochba como o Messias; para os cristãos da Palestina, ficava claro: os judeus
não se converteriam, mas permaneceriam no seu orgulho e pecado.
Essa percepção cristã se concretizou em 130 d.C. quando o imperador
romano Públio Aélio Adriano decidiu construir uma nova cidade na Judeia e
escolheu os escombros da cidade de Jerusalém para sobre eles construir uma
bela metrópole helênica que levaria o seu nome e homenagearia os deuses do
Capitólio, por isso a denominaria de Aélia Capitolina. A reação judaica foi
violenta. Em 132 d.C. estourou uma grande rebelião nacional judaica
denominada a Revolta de Bar Kochba. Foi uma tentativa dos judeus de
recuperar sua soberania nacional, que resultou na criação de um encrave
independente na Judeia, tendo Jerusalém como capital. Segundo o historiador
Césare Cantu, em sua obra História Universal:
...os judeus insurgiram, sob a guia do filho da Estrela (Bar Kokhba),
que se anunciava como Messias, o rei da vitória e da vingança. Os
judeus reuniram-se em torno dele, proclamando-o astro de Jacó, cetro
de Israel, o eleito destinado a realizar a predição involuntária de
Balaão, a quebrar os cornos de Moab, a destruir os filhos de Set. No
mesmo momento se sublevaram de todos os lados contra o domínio
estrangeiro, com furor de escravo que despedaça seus grilhões
(CANTU, 1965, p. 220).
58
Esse momento histórico foi muito pouco documentado nos escritos
judaicos da época, diferentemente dos muitos dados e informações que
encontramos sobre a guerra dos judeus contra os romanos e a destruição de
Jerusalém (66-70). No entanto, escavações arqueológicas revelaram cartas
escritas pelo próprio Bar Kochba, dirigidas aos seus comandantes na região do
Mar Morto, além de descobertas de muitas redes de túneis subterrâneos
contendo depósitos para armazenar mantimentos e até pequenas indústrias;
como exemplo, temos a cidade subterrânea de Tel-Maresha, na região sudoeste
de Jerusalém. Bar Kochba governou os judeus desse período com mão de ferro.
As moedas de bronze e prata cunhadas nesse período apresentam símbolos e
inscrições de caráter messiânico; tratou-se de um movimento contrário a outras
confissões. Segundo o historiador Flannery:
Durante a revolta (132-135), Bar Khoba massacrou os cristãos que
recusaram negar Cristo” (FLANNERY, 1968, 53).
Justino de Roma, o mártir, considerado o primeiro filósofo cristão, em sua
obra I e II Apologias – Diálogo com Trifão, descreveu a perseguição de Bar
Kchoba da seguinte maneira:
Com efeito, na guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o
cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os
cristãos, caso estes não negassem e blasfemassem Jesus Cristo
(JUSTINO, 2013, p. 46).
O professor Oskar Skarsaune, ao comentar a relação entre Bar Kchoba e
os crentes judeus, traz o seguinte relato:
No chamado Apocalipse de Pedro (possivelmente de autoria de um
judeu-cristão, escrevendo de Israel ou do Egito por volta de 150 d.C.),
as seguintes palavras são atribuídas a Jesus como explicação do
significado da parábola da figueira (Lc 13.6.9): “Vocês não
59
compreenderam que a figueira é a casa de Israel? Na verdade, eu lhes
digo que, quando seus ramos frutificarem no fim dos tempos, virão
então falsos cristos (Mc 13.22), e despertarão a esperança (com
palavras): “Eu sou o Cristo (Mt 24.5), que (agora) venho ao mundo”. E
quando virem a iniquidade de seus atos (e dos falsos cristos), voltar-seão para esses cristo falsos e negarão àquele a quem nossos pais
deram louvores, o primeiro Cristo a quem crucificaram e, por isso,
pecaram demasiadamente. Esse enganador, porém, não é o Cristo. E
quando ele for rejeitado, sua espada trará a morte, e serão muitos os
mártires. Acontecerá então que os ramos da figueira, isto é, a casa de
Israel, florescerá e muitos serão martirizados pelo poder de suas mãos:
eles serão mortos e se tornarão mártires (texto etíope, cap 2). Esse
texto, escrito poucos anos depois da revolta, é uma referência óbvia à
perseguição de Bar Kokhba aos crentes judeus (SKARSAUNE, 2001,
p. 203).
A rebelião judaica durou aproximadamente três anos, sendo esmagada
pelo exército romano, que numa tentativa de eliminar qualquer identidade entre
o povo judeu e sua terra, construiu sobre a velha cidade de Jerusalém uma
cidade helenizada, denominando-a Aélia Capitolina, e passaram a chamar o país
de Palestina. Por ordens imperiais foi proibida a entrada de judeus na cidade e
os judeus cristãos também foram expulsos da Aélia. Césare Cantu, declara:
... o objetivo explícito de Adriano em aniquilar a religião dos judeus e a
dos cristãos, erigiu um templo aos ídolos no lugar do antigo templo
judaico, outro sobre o túmulo de Jesus Cristo e, um terceiro dedicado a
Adônis, no sítio em que estava o presépio. O nome de Jerusalém foi
mudado no de Aélia Capitolina, e o antigo foi por tal forma alvidado que
tendo um mártir, no tempo de Diocleciano, dito que nascera em
Jerusalém, nem o governador da Palestina, nem nenhum dos
assistentes soube onde estava situada essa cidade. (CANTU 1965, p.
221).
Após a derrota de Bar Kchoba, muitas coisas mudaram na geopolítica da
região, na religião e na relação judaico-cristã. O professor Oskar Skarsaune
assim analisou esse momento histórico:
Com o fracasso da revolta, os rabinos chegaram igualmente à
conclusão de que Bar Kokhba fora um falso messias e por isso
60
mudaram-lhe o nome para Bar Koziba, ou “filho da mentira”. Todavia, o
fato de os crentes judeus não terem participado da revolta e a
perseguição de que foram vítimas por parte de Bar Kokhba parecem ter
tido um efeito duradouro: a ruptura entre crentes judeus e seus
compatriotas ampliou-se (SKARSAUNE, 2001, p. 204).
A partir dessa nova situação política e histórica muitos cristãos
interpretaram definitivamente que a antiga aliança havia passado, as provas
materiais eram abundantes. O Templo, que era o símbolo da antiga fé, fora
destruído, bem como a antiga cidade de Jerusalém; a insistência em rejeitar
Cristo e aceitar um falso Messias pelos judeus, a escravidão, a dispersão e
errância do povo judeu eram visíveis.
A lembrança que os cristãos passaram a ter a respeito de Jerusalém era
no sentido espiritual; os cristãos estavam olhando para a Jerusalém celeste e
não a terrena, mesmo porque a terrena já não existia, fora arrasada e uma nova
cidade fora construída a Aélia Capitolina. Assim, a Jerusalém terrena não tinha
nenhum sentido ou destaque especial no imaginário cristão dessa época.
Os cristãos passaram a olhar Jerusalém terrena, que fora terrivelmente
destruída, como uma cidade culpada, pois rejeitara o Filho de Deus, o Cristo;
além do mais, os cristãos não deveriam ter um lugar específico para adoração,
já que no Evangelho de João há uma declaração de Jesus em resposta à
pergunta da mulher samaritana, dizendo que não é nem em Samaria e nem em
Jerusalém o local de adoração dos verdadeiros crentes:
Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram
neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve
adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem em que nem
neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não
sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos
judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais
que assim adorem (João 4:19-23 - ARC).
Enquanto a Igreja Cristã crescia e se fortalecia, a cidade de Jerusalém
não tinha nenhuma importância, a Jerusalém da época de Jesus não existia
mais, e a nova cidade Aélia Capitolina construída de acordo com o padrão
61
clássico romano pagão, na forma de um quadrado, com quatro portões, um de
cada lado da cidade, não tinha nada a ver com a fé cristã que se expandia no
mundo antigo. Segundo a escritora Karen Armstrong:
Jerusalém não tinha, pois, nenhuma posição especial no mapa dos
cristãos. O principal prelado da Palestina era o bispo de Cesareia, não
o de Aélia. Quando se instalou no país, em 234, Orígenes, o ilustre
erudito cristão, decidiu fundar sua academia e sua biblioteca em
Cesareia. Ao viajar pela Palestina, voltou-se basicamente para a
topologia bíblica, como Melitão. Certamente não esperava viver uma
experiência espiritual em meras localidades geográficas, por mais
veneráveis que fossem suas implicações. Só os pagãos, pensava,
procuravam Deus num santuário e acreditavam que as divindades
moravam “num lugar específico”. Era interessante visitar um lugar
como Belém, onde Jesus nasceu, e ver a manjedoura (que
aparentemente se preservara), pois assim se comprovava a exatidão
dos Evangelhos. Mas Orígenes era platônico. Achava que os cristãos
deviam libertar-se do mundo físico e buscar o Deus inteiramente
espiritual. Em vez de apegar-se a locais terrenos, deviam “buscar a
cidade celestial” neles existente. (ARMSTRONG, 2000, p. 205).
Embora os cristãos não estivessem ligados diretamente à cidade, alguns
continuavam a visitar os lugares relacionados com a vida de Jesus. Visitavam
Belém, onde Jesus nasceu, o Jardim das Oliveiras, onde muitas vezes orou, o
rio Jordão, onde Jesus foi batizado, o Gólgota, onde foi crucificado e outros
lugares. Segundo o historiador Eusébio havia uma igreja gentia em Aélia31.
Nesse novo contexto, lentamente a liderança cristã das gerações seguintes
passou a incorporar em sua crença a teologia da substituição, ou teologia da
vingança como bem descreveu o historiador James Carroll:
Os judeus do século I que seguiram Jesus haviam interpretado a
destruição do Templo, e em seguida de Jerusalém, de um modo
tipicamente judaico – como atos de Deus, ensinando lições às
pessoas, purificando-as. Vimos um pouco disso anteriormente – como
“cristãos” entenderam a crueldade romana perpetrada entre 70 e 135
como punição de Deus pela rejeição de Jesus. Se essa interpretação
31
CESAREIA,
Eusébio
de.
História
Eclesiástica,
62
CPAD,
RJ.
1999,
p.178.
tivesse ocorrido apenas de modo profético, a percepção teria sido
autocrítica, uma vez que de acordo com os textos da própria Igreja, no
fim Jesus foi rejeitado tanto por seus discípulos mais próximos – todos
o abandonaram, e Pedro o negou três vezes – quanto pelas
autoridades judaicas. Mas a interpretação da destruição de Jerusalém
pelos romanos como ato poderoso de Deus foi oferecida não de modo
profético, e sim apocalíptico (lembre que o Livro do Apocalipse, ou da
Revelação, foi escrito em meio à destruição romana e em reação a
ela), com o julgamento lançado exclusivamente sobre outros – as
forças de Satã, basicamente “os judeus”. Sim, os discípulos
abandonaram Jesus quando ele mais precisava, mas isso foi
totalmente perdoado pelo Jesus ressuscitado, que inclusive abraçou
Pedro. O que não foi perdoado, e que foi usado para vingar os cristãos,
foi a rejeição dos judeus. Essa rejeição foi punida com o que aconteceu
com Jerusalém, lembrada pelo movimento de Jesus crescentemente
gentio como uma cidade em que um Jesus cada vez mais não judeu
era estranho. O destino trágico de Jerusalém começou a assumir um
significado teológico – uma teologia da vingança. Assim, Lucas cita
Jesus dizendo, “Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei
que está próxima a sua devastação... Porque serão dias de punição,
nos quais deveria cumprir-se tudo o que foi escrito. Ai daquelas que
estiverem grávidas e estiverem amamentando naqueles dias!”
(CARROLL, 2013 - p. 286-287).
2.2. O Desenvolvimento da Doutrina da Substituição
Há duas questões primordiais necessárias para análise neste momento
para compreender a construção do imaginário cristão sobre Jerusalém: a
primeira é quando iniciou a construção da teologia de que a Igreja Cristã
substituiu o Israel (povo judeu). A segunda, quando essa teologia se
institucionalizou e tornou-se oficial na igreja. Sabemos que a teologia da
substituição foi construída dentro de dois contextos, primeiramente nos trezentos
anos iniciais do cristianismo, quando ocorre a rejeição dos judeus às instituições
cristãs e a igreja torna-se majoritariamente gentílica, período em que essa
teologia se desenvolve relativamente no campo das ideias, e o segundo
momento, quando a igreja torna-se parte do Estado Romano e impõe sua
dominação católica como imposição cultural.
63
A convicção judaica de sua fé e tradição, sua prática proselitista no
mundo gentio na época, sua rejeição e apologética contra a fé cristã e a
perseguição dos judeus ao cristianismo primitivo como povo, desencadeou, por
parte da Igreja Cristã, uma teologia apologética antijudaica. Sabemos que o
antissemitismo estava presente no mundo pagão antes do advento do
cristianismo. Justino de Roma, o mártir, escreveu o Diálogo com Trifão, um
debate polêmico afirmando a messianidade de Jesus, fazendo uso do Antigo
Testamento em contraste com contra-argumentos de uma versão fictícia do
rabino Trifão. Segundo Flannery:
São Justino foi o primeiro a expressar o tema de que as desgraças dos
judeus são consequências do castigo divino pela morte de Cristo.
Tendo feito referência à exclusão dos judeus de Jerusalém, suas terras
desoladas e suas cidades incendiadas, assevera ao seu rabino que as
“tribulações vos foram impostas justamente, pois assassinastes o
Justo”. O apologista parece ter esquecido São Pedro e Santo Estevão
que se referiram ao assassinato de Cristo num contexto de absolvição
(Atos 2:36-39, 7:60) (FLANNERY, 1968, p. 56).
A análise do professor Oskar Skarsaune sobre a leitura radical de Justino
de Roma sobre essa temática da substituição do povo de Israel pela Igreja
Cristã é muito relevante, senão vejamos:
Observa-se no segundo século uma mudança drástica. Os cristãos de
origem gentílica suplantavam em muito o número de cristãos de origem
judaica. Aos poucos, esse fato veio a influenciar o conceito de igreja.
Em Justino Mártir, a igreja é uma entidade essencialmente não-judaica.
Ela é composta de gentios crentes e, em contrapartida a essa igreja de
gentios,
Justino
coloca
uma
nação
judaica
constituída
fundamentalmente por não-crentes. A fronteira entre crentes e nãocrentes tende a coincidir com a fronteira entre gentios e judeus. Sim,
Justino sabe da existência de judeus crentes. Contudo, enquanto em
Paulo os gentios são acrescentados ao verdadeiro Israel de crentes
judeus compartilhando de sua herança, em Justino é o contrário: os
poucos judeus crentes são acrescentados à igreja dos gentios para que
compartilhem de sua herança. Essa mudança de perspectiva tem
consequências muito amplas. Enquanto em Paulo os gentios
compartilham das promessas dadas ao verdadeiro Israel, em Justino
as promessas são transferidas do povo judeu para a igreja dos gentios.
Essa igreja substitui o povo judeu. Ela assume a herança de Israel e,
64
ao mesmo tempo, deserda os judeus. Podemos exprimir essa mudança
recorrendo à imagem usada por Paulo em Romanos 11. Em Paulo,
lemos que Deus cortou alguns ramos da antiga oliveira de Israel, e em
seu lugar enxertou alguns ramos selvagens – os gentios. Em Justino,
Deus cortou a oliveira de Israel e em seu lugar plantou uma árvore
inteiramente nova – a igreja dos gentios. Nessa árvore ele enxertou
alguns poucos ramos da árvore velha – esses ramos são os judeus
crentes32. No momento em que os cristãos passassem a raciocinar
dessa forma, naturalmente colocariam a questão da eleição como algo
que demandava uma decisão: ou o povo judeu era o herdeiro do
legado veterotestamentário ou era a igreja (dos gentios) sua herdeira.
Ninguém na antiguidade jamais formulou a ideia de que Deus pudesse
ter dois povos: ou era a igreja ou eram os judeus. Dessa forma, os
cristãos do segundo século nunca foram capazes de afirmar sua
eleição em Cristo sem, ao mesmo tempo, atacar violentamente os
judeus. Um fato parece emergir com muita clareza da análise acima: a
redução numérica do elemento judaico-cristão dentro da igreja era
parte da razão por que a igreja do segundo século passou a ver a si
mesma como comunidade essencialmente gentia, uma entidade nãojudaica que se opunha ao povo judeu como tal (SKARSAUNE, 2001, p.
276-277).
Justino de Roma, o mártir, descreve a destruição de Jerusalém como uma
profecia:
Escutai o que foi predito pelo Espírito profético sobre a devastação
futura da terra dos judeus. As palavras foram ditas como que na
pessoa daqueles que se maravilham com o acontecido. São as
seguintes: “Sião ficou deserta, Jerusalém ficou solitária, e a casa,
nosso santuário, foi profanada; a glória que nossos pais bendisseram
tornou-se presa do fogo e todas as suas maravilhas se fundiram. A
esse respeito, tu suportaste, te calaste e nos humilhaste muito. Que
Jerusalém tenha ficado deserta, tal como fora predito, é coisa de que
estais bem convencidos (JUSTINO, 2013, p. 62).
É
plausível
que
sementes antissemitas
oriundas do
paganismo
amalgamaram-se na perspectiva cristã na construção da teologia da
32
Já que eu censurei Justino aqui por radicalizar um modelo paulino, alguém poderia perguntar, e com razão, se
a perspectiva de Justino não fora de fato antecipada por outros textos do NT, como em Mateus. Em Mateus 8.11-12, por
exemplo, temos a seguinte situação: gentios juntando-se aos patriarcas no reino, ao passo que os “súditos do reino”
serão lançados para fora. Aqui não é lugar para uma argumentação detalhada a esse respeito. Gostaria apenas de
propor o seguinte: não há dúvida alguma em Mateus de que alguns em Israel deverão ficar de fora do reino por causa de
sua falta de fé, e muitos gentios serão convidados a entrar no reino. Todavia, isso ainda é basicamente compatível com a
perspectiva de Paulo em Rm 11, e é possível defender a ideia de que Mateus combinou a comissão de evangelizar as
nações (Mt 25.16-20) com um motivo implícito de restauração de Israel (SKARSAUNE, 2001, p. 276).
65
substituição, absorvendo elementos da herança pagã do antissemitismo com
uma interpretação bíblica espiritualizada pelos pais da igreja. Segundo Flannery:
No raiar do século II, Santo Inácio de Antioquia enviava suas cartas
ardorosas às comunidades gentias para adverti-las contra a heresia,
especialmente contra a judaização: “Não há necessidade de “práticas
obsoletas” na esperança cristã, pois aqueles que judaízam são com
pedras funerárias e sepulcros que têm simplesmente inscrições de
nomes de homens”. “O cristianismo”, escreveu ele aos magnésios,
“não crê no judaísmo, porém o judaísmo crê no cristianismo. Com esta
última observação e a teoria da prefiguração de Barnabé, nasceu um
tema fértil: de que a Igreja é, e sempre foi, a verdadeira Israel
(FLANNERY, 1968, p. 51).
No segundo século do cristianismo surgiram várias obras apologéticas e
polêmicas antijudaicas. A primeira obra em latim foi o Adversus Iudaeos, datada
de cerca de 200, escrito por Tertuliano, trata-se de uma das primeiras tentativas
de negar sistematicamente o judaísmo e apresentar a igreja cristã como o
verdadeiro Israel. A obra tem por objetivo apresentar uma refutação de forma
escrita das acusações judaicas apresentadas no decorrer do debate, durante o
qual os porta-vozes cristãos contra os judeus não podiam fazer-se ouvir. Tratase de discussão sobre a validade da Lei, o messianismo e divindade de Jesus, a
rejeição dos judeus e a escolha dos pagãos cristianizados em seu lugar como o
Povo de Deus. No decorrer dos séculos II sendo seu auge no século IV, outras
obras antijudaicas apareceram no seio da igreja. A hipótese tradicional sustenta
que o antijudaísmo destes primeiros pais da Igreja foi herdado da tradição cristã
da exegese bíblica, pelo fato de ter apropriado da tradição judaica em muitos
sentidos e ao mesmo tempo ter que rejeitar outros elementos como algo que
perdera a validade na Nova Aliança.
Os estudiosos modernos acreditam que o judaísmo pode ter sido uma
religião missionária nos primeiros séculos da era cristã, portanto, a concorrência
pelas lealdades religiosas das almas gentílicas pode ter alimentado o
antijudaísmo.
66
Parece que, do ano 70 a 313, a teologia da substituição é gestada
paulatinamente no seio da igreja, e com o novo Império Cristão, romanizado a
partir do século III muitos cristãos se alegravam pela desgraça dos judeus e de
Jerusalém, pois entendiam que a desgraça dos judeus era a materialização clara
da rejeição de Deus, e o desaparecimento de Jerusalém era relacionado ao fato
de ser uma cidade culpada. Orígenes33 declarou que a destruição das
instituições judaicas constituía mais uma prova da veracidade dos Evangelhos:
Porque a história, e tudo o que se vê hoje, mostra claramente que,
desde o tempo de Jesus, não houve mais rei dos judeus que tivesse
esse título, porque todas as realidades que eram o orgulho dos judeus,
isto é, o que dizia respeito ao templo, ao altar, ao culto que aí se
celebrava e às vestes do sumo sacerdote fora destruído. (ORÍGENES,
2012, p. 285-286).
Em seu livro A Angústia dos Judeus, o padre Flannery declara:
Mais sinistra era a emergência de uma doutrina ainda não
completamente formulada, porém claramente enunciada em Santo
Hipólito e Orígenes: que os judeus são um povo castigado por seu
deicídio, que não pode esperar fugir às suas desgraças, que são a
vontade de Deus. Esta tese formou as primeiras sementes de uma
atitude que viria a dominar o pensamento cristão no século IV e
contribuir consideravelmente daí em diante para a rota do
antissemitismo (FLANNERY. 1968, p. 62).
No século IV Santo Agostinho (354-430) também entendia que a maldição
que os judeus invocaram sobre si no ato da condenação de Jesus foi ouvida por
Deus, por isso os judeus estavam destinados a serem errantes. Carroll assim
escreveu em seu livro:
Desde
Santo
Agostinho,
a
teologia
católica
prescrevia
permanentemente a ausência dos judeus do território judaico, sendo
sua condição de “errantes” prova da verdade de que haviam pedido a
33
Orígenes (185-254) – um dos maiores teólogos e escritor do segundo século do cristianismo. Apologista, aliou
a Filosofia ao cristianismo, foi mestre em Filosofia, Teologia e Bíblia.
67
condenação de Jesus, e a religião judaica havia espiritualizado essa
ausência, transformando a dor no pulsar da devoção (CARROLL, 2013,
p. 233).
O padre Flannery, comentando sobre a posição dos judeus de um dos
maiores doutores da Igreja, Santo Agostinho, declara:
A contribuição original de Agostinho reside em sua teoria de que os
judeus são um povo testemunha, construção teológica pela qual ele
tenta resolver o dilema aparente da sobrevivência dos judeus como
povo e seus crescentes infortúnios. Em sua opinião, o papel dos judeus
é ainda providencial; são ao mesmo tempo testemunhas do demônio e
da verdade cristã, testes iniquitatis et veritatis nostrae; subsistem “para
a salvação da nação mas não para a sua própria”. Servem de
testemunha por suas escrituras e servem de “bibliotecário escravo” da
Igreja; e além disso prestam testemunho por sua dispersão e por suas
desgraças. Tal como Caim, levam um sinal mas não deverão ser
mortos (Gên. 4:15); assim como nas Escrituras, assim na realidade, o
filho mais velho servirá ao mais moço (FLANNERY, 1968, p. 69).
Podemos considerar que nos primeiros 300 anos de fé cristã, a
construção de um imaginário cristão a respeito da cidade de Jerusalém oscilou
entre fervorosos momentos de reverência pelos lugares associados a Jesus e ao
crescente sentimento de ojeriza à Jerusalém judaica, especialmente pelo desejo
dos judeus de reconstruir o templo destruído, por sua rejeição a Jesus, o Filho
de Deus. A terrível e arrasadora destruição e depois a tentativa do imperador
romano Adriano em apagar totalmente as raízes judaicas de Jerusalém,
transformando-a em uma cidade helenizada, foram, para o imaginário cristão
daquela época, provas cabais da rejeição de Deus, do fim do pacto mosaico, e a
prova explícita da culpa de Jerusalém e dos judeus. Infelizmente esse imaginário
fez parte de uma série de pequenas sementes que mais tarde germinariam
perversamente em forma do terrível antissemitismo no universo cristão. O
antissemitismo infelizmente está presente na teologia desenvolvida por alguns
líderes cristãos dos primeiros séculos da história do cristianismo. Embora
68
houvesse hostilidade de ambos os lados, até o fim do século III as questões
ainda estavam relativamente no campo ideológico, mas a partir da metade do
século IV a doutrina da substituição sai do campo das ideias e vai para o campo
prático político, materializando-se em decretos imperiais.
2.3.- O Triunfo do Cristianismo
Essa nova realidade desponta com a vitória de Constantino, imperador do
Ocidente, sobre Licínio, imperador das províncias romanas do Oriente, em 323
na ponte Mílvia, quando o império Romano passou a ter um único imperador,
Constantino, devoto de Apolo, o deus do Sol. Ele foi benéfico com a Igreja, e
parece que os cristãos atribuíram suas vitórias ao seu Deus, algo também
considerado por Constantino, embora tenha sido batizado somente no leito de
morte. Constantino torna a fé cristã religio licita, no entanto não impôs o
cristianismo aos seus súditos, manteve o título de pontifex maximus e o culto
sacrificial do Império permaneceu inalterado. Segundo seu biógrafo Eusébio de
Cesareia, autor da obra Vita Constantini, Constantino, a caminho da invasão da
Itália, no ano 312 d.C., teria tido uma visão repentina onde via uma cruz a brilhar
contra o sol do meio-dia; o sol era de qualquer forma muito importante para
Constantino, que tinha uma certa ligação com o deus Hélio, e com muita
frequência fazia representação de si com o deus sol, mas a aparição da cruz era
algo novo, e abaixo dessa visão havia as seguintes palavras: “Com este sinal
vencerás”. Eusébio ainda declara que Cristo teria aparecido naquela noite a
Constantino num sonho ordenando que inscrevesse nos escudos de suas tropas
o monograma XP. Se esse fato foi real ou não ainda existem muitas discussões;
o certo é que quando Constantino entrou em Roma, como vencedor no final do
mês de outubro de 312, realmente suas tropas ostentavam o símbolo XP como
insígnia nas campanhas do Oriente que fizeram dele o único imperador de todo
Império Romano.
69
Constantino declarou a religião cristã como religio licita, através do Edito
de Milão em 313; nessa época os cristãos não excediam um sétimo da
população do Império, conforme informa o historiador Steven Runciman:
Calcula-se que, na época do Edito de Milão em 313, quando foram
concedidas à Igreja Cristã completa liberdade de culto e situação
legalizada, o número de cristãos não excedesse um sétimo da
população do Império (RUNCIMAN, 1978, p. 14).
Com esse número e embora não possuíssem posições de destaque na
sociedade (aristocracia) ou no exército, era sem dúvida o grupo religioso mais
bem organizado. Todavia já existiam controvérsias e cismas no seio da Igreja
Cristã, aliás, mal havia Constantino declarado o cristianismo religio licita,
acirradas controvérsias surgiram no Egito e na Ásia, e logo mais outras grandes
controvérsias doutrinárias iriam ameaçar a unidade e a estabilidade do seu
Império. Em sua obra A Teocracia Bizantina, Steven Runciman informa:
Constantino teve sorte em contar, como biógrafo e apologista, com
Eusébio de Cesareia, um sábio que certamente conhecia esses textos
e que fez deles a base de sua filosofia do Império Cristão. Inicialmente,
era preciso justificar o Império Romano. Filon havia mostrado que
Roma trouxera a paz e a unidade ao mundo, gozando, portanto, das
graças de Deus. Orígenes acrescentara um argumento cristão,
mostrando que Deus decidira enviar Seu Filho a este mundo no
momento em que Roma oferecera essa unidade e essa paz, a fim de
que o Evangelho pudesse chegar sem empecilhos a todos os povos.
Segundo Eusébio, o triunfo da história havia ocorrido quando o
Imperador romano acolhera a mensagem cristã. Ele agora era o rei
sábio, imitação de Deus, cujos domínios poderiam então tornar-se a
imitação do Céu. Eusébio simplesmente adotou as doutrinas de
Diotógenes, Ecfantus e Plutarco, com modificações convenientes. O rei
não é Deus entre os homens, mas sim o Vice-rei de Deus. Não é a
encarnação do logos, mas mantém uma relação especial com o logos.
Foi especialmente designado e é continuamente inspirado por Deus,
sendo o amigo de Deus, o intérprete do Verbo divino. Seus olhos estão
dirigidos para o alto, para receber as mensagens de Deus. Deve ser
cercado pela reverência e pela glória adequadas à cópia terrena de
Deus... (RUNCIMAN, 1978, p. 25-26).
70
Essa ideologia religiosa política do Império Romano de que o Rei, bem
como o Império representava a cópia terrena do Reino dos Céus, no fundo está
baseada na doutrina da substituição. O Império Romano do Oriente ou Império
Bizantino tem como marco inicial de sua história o ano 395, no entanto, não há
um acordo entre os historiadores. Eles dividem-se entre dois grandes eventos
acerca do início desse Império Cristão Oriental, entre o reinado de Constantino,
especialmente com a inauguração da magnífica cidade de Constantinopla e a
divisão do Império Romano do Ocidente e Oriente no ano de 395, quando
Teodósio dividiu o império em favor de seus dois filhos.
Na verdade, o primeiro reino a tornar-se oficialmente cristão foi o da
Armênia em 301, embora já houvesse começado a penetração do cristianismo
na Armênia muito antes desse ano 301. A Armênia é o primeiro país do mundo
que adotou o cristianismo como religião do Estado.
O Império Romano adotou o cristianismo oficialmente em 380-392.
Embora Constantino apoiasse a Igreja, em 361, um de seus substitutos, o
imperador Juliano cognominado de “o apóstata”, um valoroso militar de grande
talento, iniciou uma ofensiva para restaurar o paganismo estatal, mas sofreu
inúmeras resistências e por fim morreu numa batalha contra os persas.
Posteriormente, em 380, o cristianismo foi declarado religião oficial do Império
Romano quando o imperador Teodósio I promulgou um edito, oficializando o
cristianismo e autorizando o Estado a punir qualquer pessoa que seguisse outra
forma de culto religioso. Em 392, no Edito de Constantinopla, foi estabelecida a
proibição total ao culto pagão. Todavia, foi somente em 529 que Justiniano
determinou o fechamento da escola de filosofia de Atenas, desferindo o
derradeiro golpe sobre o paganismo.
Com essa gradativa aliança do cristianismo com o antigo império romano
a partir do século IV, de religião permitida para religião oficial, o cristianismo
torna-se a argamassa de unidade dos cidadãos romanos. Ambrósio mostra em
sua obra que Roma tornou-se cristã e o cristianismo tornou-se romano. Essa
oficialização do cristianismo fez com que a situação política dos judeus e de
71
Jerusalém mudasse completamente. Em relação aos judeus, o cristianismo
daquele período:
...os cristãos viam, nos judeus, como inimigos muito mais sérios que os
pagãos. Os pagãos podiam ser convertidos, e muitos já o haviam sido,
mas os judeus, cuja tradição de fidelidade às suas crenças era bem
mais forte, constituíam uma parcela irremediavelmente alheia aos
esforços cristãos. Os primeiros concílios adotam, em relação ao
judaísmo, uma política extremamente intolerante, desrespeitando até
mesmo os decretos imperiais que asseguravam aos judeus os mesmos
direitos dos demais cidadãos. Entre as medidas antijudaicas, adotadas
pelas autoridades, podemos ressaltar: a) proibição de converter novos
elementos ao judaísmo, ou de fazer a ele retornar aqueles que se
haviam convertido ao cristianismo; b) proibição de circuncidar escravos
cristãos ou pagãos; c) proibição do casamento entre judeus e cristãos;
d) proibição de ter ou comprar escravos cristãos; e) proibição de entrar
em Jerusalém, exceto no dia de Tishá be Av (Dia da Destruição do
Templo). A lei mais prejudicial aos judeus foi a de não poder possuir
escravos cristãos. Isto significava o afastamento dos judeus de
inúmeras profissões e atividades, nas quais eram necessários
escravos, desde a agricultura até o comércio e a manufatura. Apesar
do bom tratamento que os judeus davam a seus escravos, de acordo
com a lei bíblica, a Igreja não poderia tolerar que “os descendentes
daqueles que crucificaram o filho de Deus pudessem ser amos de
escravos que foram libertados por Jesus Cristo”, como escreveu o
bispo Eusébio no século IV. A medida que a Igreja ia assumindo maior
importância, como principal estrutura de poder no Império, as leis
antijudaicas iam-se tornando mais severas e o ódio aos judeus chegou
a ser pregado por várias figuras importantes do cristianismo, como São
João Crisóstomo, Santo Agostinho e São Jerônimo”. (BERIZIN, 1988,
p. 129-130 – vol. 2).
Em relação a Jerusalém, o imperador Constantino influenciado pela Igreja
começou uma política de reconstruí-la com roupagem cristã. Constantino,
totalmente ocupado com a construção de sua nova capital em Bizâncio e com as
contínuas desavenças e controvérsias entre os líderes da Igreja, enviou, em
326, sua idosa e devota mãe para a Palestina, a imperatriz Flávia Júlia Helena
Augusta (Santa Helena, 255-330); a tradição atribui a ela a descoberta da Santa
Cruz ou Vera Cruz. Ela, provavelmente, tenha chegado durante o planejamento
do Martyrium34, e as escavações da tumba (327), onde construíram a Igreja
34
Martyrium - mausoléu cristão primitivo construído para abrigar um mártir.
72
Anástasis35 - Igreja do Santo Sepulcro. Quando o imperador Adriano mandou
construir o Templo Capitólio não aplanou as rochas onde foram cavados os
sepulcros, mas apenas fez aterro para a base do seu Templo. Assim, a
imperatriz Helena e o bispo de Jerusalém, Macário, convenceram-se de ter
encontrado, debaixo do Capitólio, o sepulcro de Jesus. Além dessa construção,
a imperatriz Helena, com o apoio de Constantino e dos bispos, doou várias
igrejas em outros lugares santos e com o tempo foram construídos outros
santuários, mosteiros e outras instituições religiosas. A maior e mais importante
construção feita pelos cristãos em Jerusalém foi a “Anástasis”.
Até 325 a cidade de Jerusalém continuava sendo uma pequena Diocese
dependente do Arcebispado de Cesareia e este dependente do Patriarcado de
Antioquia, no entanto, a partir de 325, com o Concílio de Niceia foi declarada a
autonomia da Igreja de Jerusalém. A partir daí, Jerusalém transformou-se numa
cidade sagrada para o império cristão, tornou-se elemento centralizador do
cristianismo.
No Concílio de Calcedônia, em 451, deu-se o título de Patriarca
ao bispo de Jerusalém, a cidade então cresceu muito em importância
eclesiástica. Com esse novo status o Patriarcado de Jerusalém desenvolveu-se
rapidamente, adquirindo muito prestígio e aumentando o número de dioceses,
igrejas, mosteiros e instituições religiosas sob sua autoridade.
Embora o Concílio de Niceia, em 325, não tivesse como objetivo principal
a autonomia da Igreja de Jerusalém, foi nesse Concílio Ecumênico que a cidade
de Jerusalém recebeu privilégio eclesiástico especial, como declara o eminente
professor de História da Universidade de Bolonha Dr. Giusepppe Alberigo:
Nitidamente diferentemente em relação ao resto é, porém, o caso de
Jerusalém, tema do c. 7, que reconhece à Cidade Santa um privilégio
de honra especial, também ele de difícil esclarecimento quanto ao seu
conteúdo preciso. Jerusalém era diocese sufragânea da sede
metropolitana de Cesareia. É provável que o bispo da Cidade Santa,
embora mantendo-se intacta a jurisdição provincial, devia gozar de
direito de precedência (ainda que puramente honorífico) em relação ao
metropolita – por exemplo, por ocasião dos sínodos realizados fora da
35
Anástasis – palavra grega que significa não a morte, ressurreição, nome dado a Igreja do Santo Sepulcro.
73
Palestina, especialmente nos concílios ecumênicos. Se se observam
as prática conciliares entre os séculos IV e V, parece ser essa a
explicação mais adequada. Quanto às circunstâncias históricas que
levaram à sua formulação, não é descabido pensar numa ligação com
dupla ordem de ideias: de um lado, a alta consideração de Constantino
pelos lugares sagrados de Jerusalém, que o imperador privilegiará com
uma política de construção monumental; por outro, a iniciativa político
eclesiástica do bispo Macário, que se alinhou com Alexandre de
Alexandria contra o seu metropolita Eusébio de Cesareia. Mesmo com
os limites acenados, o c. 7 é o preâmbulo da futura criação do quarto
patriarcado oriental, cujo reconhecimento se dará no concílio de
Calcedônia (ALBERIGO, 1995, p. 39).
A respeito do Concílio de Calcedônia, em 451, o professor Dr. Giuseppe
Alberigo, declara:
Já na sessão de 23 de outubro (CPG 9006), e depois na do dia 26
(CPG 9009), o concílio teve que se ocupar da questão dos direitos
jurisdicionais da sede jerosolimitana. Juvenal acertou um acordo com
Máximo de Antioquia que, embora restituindo à sede antioquena as
duas províncias da Fenícia e da Arábia, adquiridas recentemente,
confirmava a autoridade de Jerusalém sobre a Palestina. A sanção
oficial da assembleia marcava a constituição formal do quarto
patriarcado do Oriente (ALBERIGO, 1995, p. 98-99).
Do ano 326 até o ano 451 a cidade de Jerusalém havia se transformado
totalmente; de Aélia ou apenas Jerusalém, uma simples diocese de Cesareia,
passara agora a chamar-se a Nova Jerusalém, um patriarcado, guardião dos
lugares santos e Igreja mãe. De cidade culpada, para cidade do Senhor, a culpa
recaíra sobre os judeus.
A arquitetura da cidade foi totalmente mudada. Foram construídas muitas
igrejas, mosteiros e outras instituições religiosas, e acima de todas as
edificações, a majestosa Igreja Anástasis (Santo Sepulcro). A cidade tornara-se
totalmente cristianizada e era visitada por todos os homens ilustres da
cristandade. O local onde havia sido erigido o antigo templo judaico era um local
desprezado pelos cristãos, símbolo da rejeição de Deus, local maldito, além de
simbolizar o velho Israel. A Igreja Anástasis era o grande símbolo e o triunfo da
74
verdadeira fé, do Verus Israel. Mircea Eliade aponta sobre a profundidade
religiosa desse imaginário cristão focado no Gólgota, onde se construiu
Anástasis – Igreja do Santo Sepulcro:
Para os cristãos, é o Gólgota que se encontra no cume da Montanha
cósmica. Todas essas crenças exprimem um mesmo sentimento, que é
profundamente religioso: “nosso mundo” é uma terra santa porque é o
lugar mais próximo do Céu, porque daqui, dentre nós, pode-se atingir o
Céu; nosso mundo é, pois, um “lugar alto”. Em termos cosmológicos,
essa concepção religiosa traduz se pela projeção do território
privilegiado que é o nosso no cume da montanha cósmica (ELIADE,
2012. p. 39-40).
Assim, de cidade culpada e rejeitada pelos cristãos, Jerusalém
transformou-se numa cidade santa para todo o mundo cristão. Ela tornou-se o
local onde milhares de peregrinos realizavam as festas cristãs, os muitos
serviços religiosos. Jerusalém até o ano 638 foi uma cidade totalmente cristã, o
local mais santo para o cristianismo, o local onde estavam os lugares e objetos
mais sagrados do mundo cristão, em especial a Igreja Anástasis, o túmulo vazio
de Jesus Cristo, e a relíquia da verdadeira cruz, além de muitos outros lugares e
objetos sagrados.
Muitas outras igrejas foram construídas em louvor aos santos e a Virgem
Maria, declarada pelo Concílio de Éfeso como a Theotókos “mãe de Deus”. Essa
fantástica mudança dos cristãos a respeito de Jerusalém, de cidade culpada,
para cidade santa, revela entre muitas coisas o poder de domínio da religião
cristã, bem como sua nova ideologia e a criação de uma simbologia concreta
através dos locais santos, um imaginário cristalizado nos locais sagrados, a
geografia sagrada, e esse imaginário católico ideologizado na Teologia da
Substituição vinha sendo gestado desde os séculos anteriores, como bem
pontuou James Carroll:
... desde Santo Agostinho pelo menos, de que o banimento dos judeus
de Jerusalém era desejado por Deus, sendo o exílio (“errância”) judaico
75
comprovação da verdade das acusações dos judeus contra Jesus.
Essa tradição era essencial para a teologia católica romana da
“substituição” – os judeus incrédulos pagando essas acusações com o
castigo, de acordo com as promessas de Deus (CARROLL, 2013, p.
248).
2.4.- A Derrota Cristã Para os Persas
Após aproximadamente 300 anos de domínio cristão e consolidação de
seu imaginário sobre Jerusalém, o mesmo entrou em colapso com a invasão
persa. A grande derrota cristã durante esse período se deu em 611, com a
invasão persa, chefiada pelo general Shahrbaraz, sob as ordens do rei dos reis,
Cosroés II. Em 611 o exército persa atinge Antioquia na Síria, e em 614
Jerusalém é atacada, a cidade resiste apenas três semanas. Alexandria e todo o
Egito são conquistados em 618-619. Os exércitos persas avançam facilmente
por todo o território do império cristão de Bizâncio e chegam a acampar nas
margens do Bósforo.
Na Palestina, os exércitos persas destroem as muralhas das cidades, os
conventos e as igrejas cristãs, a estrutura de irrigação, além de massacrar a
população e levar grande parte para o cativeiro. Jerusalém foi à ruína, sua
indústria e seu comércio quase desapareceram, sua agricultura e seus campos
de cereais foram abruptamente abandonados. Também no sentido religioso a
devastação da região foi terrível, além de saquearem e queimarem as igrejas e
mosteiros, e de massacrar milhares de cristãos, levaram a preciosa e sagrada
relíquia da verdadeira cruz e outros objetos sagrados, como a lança que
perfurara o lado de Jesus, a esponja e a taça de ônix que ele teria usado na
última ceia. Todos esses objetos foram roubados e dados de presente para a
rainha cristã nestoriana36 da Pérsia, Meryam (Shirin).
36
Igreja Cristã Nestoriana – A Antiga Igreja Católica e Apostólica (nestoriana: termo a ser evitado) pertence ao
rito Caldeu e é uma das herdeiras da antiga Igreja da Pérsia... uma das primeiras igrejas cristãs e, segundo a tradição,
76
Segundo a tradição, a única igreja cristã desse período que não foi
destruída foi a Igreja da Natividade em Belém, isso porque nesse templo há
pinturas dos magos visitando o menino Jesus, e os magos eram da Pérsia,
possivelmente os persas confundiram o templo como sendo algo ligado a eles,
daí a sua não destruição; essa terrível destruição abalou o imaginário cristão. O
historiador Dr. David Levering Lewis assim descreveu a queda da Jerusalém
cristã para os persas:
...Firme ao lado de seu patriarca, a população de Jerusalém aguentou
dois meses de cerco dos especialistas militares iranianos e seus
auxiliares judeus antes de aceitar os termos de rendição de
Shahrbaraz, que, de acordo com alguns relatos, foram muitos
generosos. Pela primeira vez desde a destruição do Segundo Templo e
de sua expulsão por Tito, em 70 EC, os judeus conquistaram o direito
de ocupar Jerusalém. O resultado pavoroso foi tão sufocado sob
hipérboles tendenciosas que hoje não se pode dizer muita coisa além
do fato de que a cidade mais santa da cristandade se transformou em
um ossuário de ruínas em brasa após vários dias de estupros,
pilhagens e massacres. De acordo com uma estimativa, foram cavados
túmulos para 33 mil corpos. Algumas fontes afirmam que foi infligido o
castigo draconiano (um tanto incomum para os sassânidas) depois que
os cristãos se ergueram contra a guarnição de ocupação, dizimando-a
até o último homem, assim como todos os judeus que conseguiram
encontrar. No local da grandiosa Igreja da Ressurreição – cujo
tabernáculo abrigava a Cruz Verdadeira – restaram apenas escombros.
Esse esplendor de arquitetura helenística foi um presente de
Constantino, o Grande, que ordenou sua construção em 326, quatorze
anos depois de a prática do cristianismo ter sido autorizado no
Império... A selvageria persa se manifestou com a notícia de que o já
idoso patriarca Zacarias tinha sido mandado para Ctesifonte como
prisioneiro de guerra, junto à Cruz Verdadeira e à Esponja e à Lança
Sagrada como troféus de vitória. Com a disseminação da horrível
notícia da demolição da Igreja e da remoção da Cruz Verdadeira,
greco-romanos de todos os lugares temia o fim das bênçãos divinas
(LEWIS, 2010, p. 63-64).
Para administrar a cidade os persas entregaram o governo aos judeus,
seus aliados. Os judeus jamais esqueceram Jerusalém e sempre procuraram
fundada pelo apóstolo São Tomé e Tadeu, os evangelizadores da Mesopotâmia... A Igreja Assiríaca reunia os cristãos do
império sassânida, os quais tentavam sobreviver diante do masdeísmo e se afastar de Roma e Constantinopla, em
constante guerra com os persas. Os cristãos assiríacos não participaram do Concílio de Éfeso (431), que condenou
Nestório por crer na separação das duas naturezas divina e humana do Cristo e recusaram seus anátemas, constituindose em igreja independente (KHATLAB, Roberto. Arábes Cristãos? São Paulo – Editora Ave Maria, 2009, p. 95).
77
estar presentes nela, mas foram violentamente perseguidos, intolerados e
espoliados pelos cristãos, pagavam caro para poder visitar e chorar sobre as
ruínas do seu amado templo. Os judeus nunca se esqueceram de sua cidade
amada e sofreram terrivelmente ao ver sua cidade sagrada sendo apossada
pelo cristianismo, que desprezava a fé judaica e se considerava herdeira dela.
Todavia, com o advento dos persas, logo ressurgiria a esperança de reconstruir
o templo e santificar Jerusalém.
A invasão persa de 614 contou com o auxílio dos judeus, animados pela
esperança messiânica da libertação. Em gratidão pela ajuda judaica o governo
persa concedeu o comando de Jerusalém para os judeus, nomeando como
governador da cidade, o judeu Neemias. Esse período durou apenas dois anos,
mas trouxe para os judeus grande euforia com a possibilidade de reconstruírem
o templo. Os judeus refletiam: não haviam sido os persas que outrora
decretaram a reconstrução do segundo templo? Não foi Neemias que
reconstruíra os muros da cidade de Jerusalém e tornara-se o governador da
cidade? Na percepção judaica estava repetindo-se a mesma história. No
entanto, em 616, aconteceu uma mudança totalmente inesperada, os persas
retornaram à cidade e assumiram o governo. Os conquistadores persas logo
perceberam que para governar a cidade tinham que fazer concessões aos
cristãos, que eram a maioria da sua população na época. Essa nova situação
acabou com as aspirações e profundas esperanças dos judeus de novamente
assumir e recuperar a sua amada cidade, mas serviu para alimentar ainda mais
o ódio dos cristãos em relação aos judeus.
Foi no ano de 622 que o imperador cristão Heráclio 37 conseguiu desferir
uma grande ofensiva contra os invasores persas derrotando-os totalmente. O
historiador francês Jacques Heers, em sua obra, escreve a respeito da reação
dos bizantinos:
37
Flávio Heráclio Augusto (575-641) – Conhecido como Heráclio, o jovem, foi imperador do Império Cristão de
Bizâncio, no seu reinado, ocorreu a grande guerra contra o Império Sassânida dos Persas (611- 627), que acabou
enfraquecendo ambos os impérios, que não teve forças para resistir o avanço islâmico de 632.
78
A reação de Heráclio, violenta, assume o aspecto de uma guerra
religiosa. O imperador afirma-se como o campeão da cristandade:
exige de todas as igrejas do império o sacrifício de suas riquezas
convertidas em lingotes de ouro e de prata. Após duas campanhas
difíceis na Armênia e na zona próxima do Cáucaso, as tropas
bizantinas infligem aos persas, em 627, nas margens do Tigre, perto da
antiga Nínive, uma derrota decisiva. Pouco depois, perseguem seu rei
conquistador, Cosroés, e reclamam a paz. Todas as províncias
perdidas dez anos antes retornam ao império. Heráclio conduz
solenemente a relíquia da Santa Cruz, de Ctesífon a Jerusalém, e aí
celebra, em meio à alegria geral, o triunfo dos cristãos. Assume então,
oficialmente, o título de basileus até essa data usado somente pelo rei
da Pérsia. De fato, desde há muito tempo, os gregos assim
designavam seu imperador; mas interpreta-se frequentemente, a
decisão de Heráclio com o desejo de melhor assinalar a vitória sobre
os persas e o sinal de uma ruptura mais nítida ainda com as tradições
da antiga Roma. O triunfo de Heráclio foi, em seguida, celebrado em
Constantinopla mesmo; a massa popular vem a Santa Sofia escutar a
longa narração de seus feitos de guerra, prontamente cantados pelos
poetas e os cronistas... (HEERS, 1977, p. 255).
Para apaziguar os cristãos que estavam ressentidos com os judeus por
estes colaborarem com os persas, Heráclio baniu os judeus de Jerusalém. Para
os cristãos, novamente a religião de Cristo triunfara. Karen Armstrong declara:
A experiência de viver em Jerusalém levara os cristãos a desenvolver
uma geografia sagrada com base no tipo de mitologia que antes
desprezavam. Agora viam Jerusalém como o centro do mundo, a fonte
da vida, da fertilidade, da salvação e da luz. Agora que morreram em
tão grande número por sua cidade, amavam-na como nunca. A
restituição de Jerusalém ao imperador cristão parecia um ato divino
(ARMSTRONG, 2000, p. 254).
O triunfo dos cristãos, porém, teve curta duração: em 634, os árabes
atacavam as fronteiras do Império Cristão de Bizâncio, e uma nova realidade
estava por surgir. No entanto, o imaginário cristão já estava consolidado e
passara da ojeriza de uma Jerusalém amaldiçoada para o mesmo imaginário
primordial judaico de cidade santa, santificadora do cosmo, sendo simbolizada e
materializada em todo mundo cristão através das belas basílicas e catedrais:
79
A basílica cristã, e mais tarde a catedral, retoma e prolonga todos
esses simbolismos. Por um lado, a igreja é concebida como imitação
da Jerusalém celeste, e isto desde a antiguidade cristã; por outro lado,
reproduz igualmente o Paraíso ou o mundo celeste. Mas a estrutura
cosmológica do edifício sagrado persiste ainda na consciência da
cristandade: é evidente, por exemplo, na igreja bizantina. “As quatro
partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo. O
interior da igreja é o Universo. O altar é o paraíso, que foi transferido
para o oriente. A porta imperial do altar denomina se também porta do
paraíso. Na semana da Páscoa permanece aberta durante todo o
serviço divino; o sentido desse costume expressa se claramente no
cânon pascal: 'Cristo ressurgiu do túmulo e abriu nos as portas do
paraíso.’ O ocidente, ao contrário, é a região da escuridão, da tristeza,
da morte, a região das moradas eternas dos mortos, que aguardam a
ressurreição do juízo final. O meio do edifício da igreja representa a
Terra. Segundo a representação de Kosmas indikopleustes, a Terra é
quadrada e limitada por quatro paredes, rematadas por uma cúpula. As
quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do
mundo”. Como Imagem do Mundo, a igreja bizantina encarna e
santifica o Mundo (ELIADE, 2012, p. 57 - 58).
Portanto, o imaginário cristão ao se cristalizar deslocou o altar primordial,
o centro sagrado do imaginário judaico, que situava no monte do Templo,
transferindo-o para o Gólgota, a Anástasis - Catedral do Santo Sepulcro. Para o
imaginário católico, a Igreja de Cristo é o Verus Israel, toda tradição judaica da
antiga Jerusalém foi apropriada e eclipsada pelo imaginário religioso católico.
80
3.- A Jerusalém Islâmica
Entre oito a nove anos após a vitória do imperador cristão Heráclio sobre
os persas e sua triunfal entrada em Jerusalém com a relíquia da verdadeira cruz,
que posteriormente foi levada para a capital do Império em Constantinopla, o
exército árabe, sob a bandeira do islamismo38, avançou por toda a Palestina:
Após a morte de Abu Bakr, o califa Omar, um dos mais austeros e
fervorosos Companheiros do Profeta, deu continuidade às campanhas
militares na Pérsia e em Bizâncio. Os muçulmanos começavam a
enriquecer, porém Omar levava a mesma vida simples de Maomé.
Usava sempre uma túnica de lã vermelha e remendada; carregava sua
própria bagagem, como qualquer soldado, e exortava seus oficiais a
imitá-lo. Assim, o islamismo chegou à Palestina como uma fé vigorosa,
preservando todo o ardor de seu entusiasmo inicial. Já o imperador
bizantino Heráclio se malquistara com muitos de seus súditos e,
deprimido, debatendo-se numa crise espiritual, temia que a invasão
islâmica fosse um sinal da desaprovação divina. As forças árabes
avançaram pela Palestina. Em 20 de agosto de 636, derrotaram as
tropas de Bizâncio na batalha de Jarmuc. No meio do combate a tribo
de Gassan desertou das fileiras imperiais e se uniu a seus
compatriotas, que, com o apoio dos judeus, começaram a subjugar o
restante do país. Heráclio fugiu, detendo-se rapidamente em Jerusalém
para apanhar a Verdadeira Cruz. Em julho de 637, o exército do Islã
acampou junto às muralhas da Cidade Santa (ARMSTRONG, 2000, p.
267).
38
Islamismo vem da palavra árabe Islam que também significa submissão, o ato de sujeição existencial a Alá
(Alá era uma antiga divindade da tribo dos coraixitas, tribo do fundador do islamismo) – atualmente a palavra Alá é
utilizada para Deus na língua árabe. Islâmico, muçulmano ou maometano são palavras sinônimas para designar os
seguidores do Islã.
81
Em 638-9 o patriarca de Jerusalém Sofrônio39 organizou a defesa da
cidade com o apoio dos soldados bizantinos que resistiram a um cerco de dois
anos e só abriram as portas de Jerusalém após o tratado que assegurava aos
cristãos algumas garantias religiosas. Segundo Montefiori:
Na Palestina, só Jerusalém resistia, sob o comando do patriarca
Sofrônio, intelectual grego que a louvava em sua poesia, chamando-a
de “Sião, radiante Sião do Universo”. Ele mal podia acreditar no
desastre que atingira os cristãos. Pregando na igreja do Sepulcro,
denunciou os pecados dos cristãos e as atrocidades dos árabes, a
quem chamava de sarakenoi (palavra grega para sarracenos): “De
onde vêm estas guerras contra nós? De onde vêm as múltiplas
invasões bárbaras? A escória dos sarracenos infiéis capturou Belém.
Os sarracenos se levantaram contra nós, com impulso bestial, por
causa dos nossos pecados. É hora de nos corrigirmos”. Tarde demais.
Os árabes convergiram sobre a cidade que chamavam de Ilya (Aélia, o
nome romano). O primeiro de seus comandantes a cercar Jerusalém
foi Amr ibn al-As, que, depois de Khalid, era seu melhor general e outro
irreprimível aventureiro exibicionista da nobreza de Meca. Amr, como
os demais líderes árabes, conhecia muito bem a área: até possuía
terras nas proximidades e visitara Jerusalém na juventude. Mas aquela
luta não visava apenas o butim. “Aproxima-se a Hora”, diz o Alcorão. O
fanatismo militante dos primeiros crentes muçulmanos era atiçado pela
crença no Julgamento Final. O Alcorão não declarava especificamente,
mas eles sabiam, pelos profetas judaico-cristãos, que o julgamento
teria de ocorrer em Jerusalém. Se a Hora se aproximava, então
precisavam de Jerusalém. Khalid e os outros generais juntaram-se a
Amr em volta das muralhas, mas os exércitos árabes talvez fossem
pequenos demais para invadir e não parece ter havido muita luta.
Sofrônio simplesmente não aceitou render-se sem uma garantia de
tolerância dada pelo próprio Comandante dos Fiéis. Amr sugeriu que o
problema fosse resolvido fazendo Khalid passar pelo comandante, mas
Khalid foi reconhecido, e por isso Omar foi chamado de Meca. O
comandante inspecionou o restante dos exércitos árabes em Jabya e
Golã, e os hierosolimitas provavelmente tiveram um encontro com ele
para negociar a rendição. Os cristãos monofisistas, maioria na
Palestina, odiavam os bizantinos, e parece que os primeiros crentes
muçulmanos ficaram felizes de permitir liberdade de culto a seus
camaradas monoteístas. Segundo o Alcorão, Omar ofereceu a
Jerusalém um Acordo – dhimma – a Capitulação, que prometia
tolerância religiosa aos cristãos em troca do pagamento do imposto de
submissão, ou jizya. Fechado o acordo, Omar partiu para Jerusalém,
um gigante em mantos esfarrapados e remendados, montado numa
mula, acompanhado de apenas um criado (MONTEFIORI, 2013, p.
232-233).
39
Sofrônio (560-638) – Foi um monge sírio, fervoroso e famoso pela extrema dedicação a sua igreja. Escritor
prolífico foi um importante Patriarca da Igreja de Jerusalém entre os anos 633-638, durante sua liderança a cidade de
Jerusalém foi conquistada pelos árabes muçulmanos. É venerado como santo pela Igreja Católica Ortodoxa.
82
Segundo a tradição40, o patriarca teria declarado que só entregaria a
cidade santa para o califa Omar41. Omar foi o segundo califa, um dos primeiros
companheiros de Maomé42 e seguia o modelo de vida de seu líder. Maomé não
havia determinado a forma de sucessão, assim, seguindo as tradições, em que a
escolha do líder do clã era em função da experiência, sabedoria e prestígio,
escolheram Abu Bakr43 para ser o primeiro califa. Embora tenham ocorrido
algumas reações, não houve uma declarada oposição à indicação. Com a morte
de Abu Bakr, assumiu o califado Omar ibn al-Khattab. Durante seu período, o
império expandiu-se com as conquistas do Iraque, Palestina, Pérsia, Síria e
Egito. O califa Omar foi assassinado por um desafeto seu.
O atendimento do pedido do patriarca Sofrônio pelo califa Omar revela a
importância da cidade de Jerusalém para o islã primitivo, pois Omar, naquele
momento, se encontrava em Meca, mas viajou para Jerusalém para receber a
cidade. Ainda segundo a tradição, o patriarca bizantino Sofrônio, com sua
comitiva vestida luxuosamente, foi se encontrar com Omar, que vivia
simplesmente, se cobria com uma túnica remendada de lã vermelha. Alguns
40
Segundo a tradição porque: Os primórdios da história do Islã, incluindo a rendição de Jerusalém, são
misteriosos e contestados. Os mais destacados historiadores islâmicos escreveram um ou dois séculos depois, e longe
de Jerusalém ou Meca. Ibn Ishaq, o primeiro biógrafo de Maomé, escrevem em Bagdá, e morreu em 770; al-Tabari, alBaladhuri e Al-Yaqubi viveram todos na Pérsia ou no Iraque do fim do século IX (MONTEFIORI, 2013, p. 231).
41
Umar Ibn Al Khattab (586-644) – Foi escolhido como sucessor de Maomé, governou a comunidade
muçulmana como segundo califa entre os anos 634 a 644, quando morreu assassinado.
42
Abú al-Qãsim Muhammad ibn ´Abd Allãh al-Mattaib ibn Hãshim (570-632) – Muhammad em português
Maomé, era da Tribo dos coraixitas, influente tribo árabe. Maomé nasceu em 570 d.C. e começou ter experiências
religiosas a partir de 610, quando tinha 40 anos de idade. Sua religião cresceu e ele com seus discípulos foram expulsos
de Meca para Medina em 622. Essa fuga é conhecida com a Hégira (fuga de Maomé de Meca para Medina – 622 d.C.)
essa data inicia a contagem do Calendário Islâmico. Em 632 Maomé morreu e sua religião já havia convertido toda a
Arábia. “Era um visionário edificante, que pregava a submissão – islã – ao Deus único em troca de salvação universal,
dos valores de igualdade e justiça e das virtudes da vida pura, com rituais de fácil apreensão e regras para a vida e a
morte. Ele recebia com prazer os convertidos. Tinha reverências pela Bíblia e via Davi, Salomão, Moisés e Jesus como
profetas, mas sua revelação substituía as anteriores. De grande importância para o destino de Jerusalém foi o fato de o
Profeta ressaltar a vinda do Apocalipse – que chamava de Julgamento, Último Dia ou simplesmente a Hora -, e essa
urgência inspirou o dinamismo do Islã dos primeiros tempos. “O conhecimento disso só Deus tem”, diz o Alcorão, “mas o
que te fará saber que a Hora está próxima! Todas as Escrituras judaico-cristãs diziam que isso só podia ocorrer em
Jerusalém” (MONTEFIORI, 2013, p. 228).
43
Abu Bakr – Abdu Ka’aba (570 – 634) – Uns dos primeiros companheiros e sogro de Maomé. Era um rico e
respeitado comerciante mecano. Com a morte de Maomé em 632, tornou-se o primeiro Califa, foi o consolidador do
islamismo na Arábia.
83
observadores cristãos da época se chocaram ao ver a cena e criticaram Omar
como se ele fosse hipócrita; outros admiraram que um líder muçulmano pudesse
estar mais próximo do ideal de pobreza santa que eles próprios pregavam.
Omar, como um político hábil, sabedor da existência da maioria cristã que
habitava em Jerusalém, procurou ser benevolente com seus moradores.
Segundo Montefiori:
Quando viu Jerusalém do monte Scopus, Omar ordenou a seu muezim
que conclamasse à oração. Depois de rezar, vestiu os mantos brancos
do peregrino, montou num camelo branco e cavalgou ao encontro de
Sofrônio. Os hierarcas bizantinos esperavam o conquistador, cuja
simplicidade no vestir contrastava com as túnicas cravejadas de joias
daqueles... Sofrônio deu de presente a Omar as chaves da Cidade
Santa (MONTEFIORI, 2013, p. 233).
Entrando em Jerusalém, os muçulmanos ficaram admirados com o
desprezo dos católicos em relação ao monte do templo; segundo o historiador
muçulmano Majir al-Din, a sujeira era tamanha:
...que se espalhava então por todo o nobre santuário, acumulara-se
nos degraus das portas de tal modo que ganhava as ruas e quase
alcançava o teto do umbral (STRANGE, 1965, p. 141-142).
O monte do Templo havia sido abandonado desde que o imperador
Juliano44, o Apóstata, havia tentado reconstruir o Templo para os judeus; a partir
de então o local foi usado pelos habitantes bizantinos como depósito de lixo.
Para o imaginário católico, crente na Doutrina ou Teologia da Substituição,
transformar o local do templo judeu em um depósito de lixo foi a forma explícita
de demonstrar a rejeição de Deus àqueles que haviam matado seu Filho Jesus
Cristo, e a definitiva passagem do Velho Israel para o Novo Israel, a substituição
44
Flávio Cláudio Juliano (331-363) – Foi o último imperador pagão de Roma, por isso ficou cognominado de “o
apóstata”. Reinou do ano 361 a 363 era um intelectual que pretendia harmonizar a cultura e a justiça com os valores do
paganismo de Roma. Para afrontar os cristãos, prometeu reconstruir o Templo dos judeus em Jerusalém, mas morreu na
expedição contra os persas em 363, não conseguindo materializar seu propósito com os judeus.
84
plena do Povo Judeu (Velha Aliança) para a Igreja Cristã (Nova Aliança), assim,
os cristãos construíram a magnífica Igreja Anástasis e outras belas igrejas como
a prova do favor de Deus, com seu novo Israel, a Igreja Católica. Esse era o
imaginário cristão sobre Jerusalém na época, fervorosamente defendido por seu
patriarca Sofrônio. Segundo o historiador Dr. David Levering Lewis, coube ao
patriarca Sofrônio essa terrível decisão de rendição:
Ser levado a abrir o Portão do Arrependimento para Omar era
equivalente, na cabeça de Sofrônio, a estender o tapete vermelho para
o Anticristo. Eles percorreram lado a lado as ruas estreitas, de calçadas
com seixos, do Jardim do Getsêmani até a colina deserta e coberta de
esterco, conhecida como Monte do Templo, acima da Igreja da
Ressurreição. Era ali que tinha existido o que Omar chamou de
“mesquita de Davi”, o Segundo Templo destruído por Tito. Para ofender
os judeus, os cristãos usavam o Monte do Templo como depósito de
lixo. Em uma noite como nenhuma outra em sua vida, Maomé tinha
montado um cavalo alado, sob as instruções de Gabriel, e ido de Meca
a Jerusalém. Lá, ele ascendeu de uma pedra no Monte do Templo para
o Paraíso, a fim de se encontrar com figuras do Antigo e Novo
Testamento e receber mais instruções de Alá. Dizem que Omar ficou
encolerizado com a profanação do Monte do Templo e ordenou que
camponeses cristãos fossem reunidos para limpar o lugar. Enquanto
Omar caminhava pensativo pelas ruínas do Templo de Salomão, diz a
lenda que o patriarca finalmente perdeu a compostura e resmungou:
“Contemple a abominação do desolamento citada pelo profeta Daniel,
daquele que está no Local Sagrado”. Apócrifa ou não, a história deve
ter sido um reflexo preciso da indignação do patriarca e de sua
comunidade enquanto o conquistador reivindicava esse pedaço
negligenciado de terreno para o islã. Omar ordenou que uma pequena
mesquita de madeira fosse erguida até que uma estrutura adequada
pudesse ser construída... (LEWIS, 2010, p. 81).
Reza a tradição, que os muçulmanos, quando chegaram em Jerusalém e
se depararam com esse desprezo cristão do Monte do Templo, passaram a
chamar a Igreja da Ressurreição Anástasis de al-qumamah “o monturo”, como
uma punição contra o comportamento ímpio dos católicos em transformar o
Monte do Templo em uma lixeira. O escritor e jornalista Simon Sebag Montefiori
descreve o interesse de Omar em relação ao local do Templo:
85
...Omar sabia que Maomé tinha venerado Davi e Salomão. “Leve-me
ao santuário de Davi”, ordenou a Sofrônio. Ele e os guerreiros entraram
no monte do Templo, provavelmente pelo portão dos Profetas no sul, e
encontraram o lugar contaminado por “um monte de excrementos
deixados pelos cristãos para insultar os judeus”. Omar pediu para ver o
Santo dos Santos. Um judeu convertido, Kaab al-Ahbar, conhecido
como Rabino, respondeu que se o comandante preservasse “o muro”
(referindo-se talvez às últimas ruínas herodianas, incluindo o Muro das
Lamentações), “eu lhe revelarei onde ficam as ruínas do Templo”, Kaab
mostrou a Omar a pedra angular do Templo, a rocha que os árabes
chamavam de Sakhra. Ajudado pelos soldados, Omar começou a
limpar os destroços para criar um espaço de oração. Kaab sugeriu que
isso fosse feito ao norte da pedra angular, “para ter duas qiblas, uma
de Moisés e outra de Maomé”. “Tu ainda te inclinas para os judeus”,
teria dito Omar a Kaab, situando sua primeira casa de oração ao sul da
pedra, mais ou menos onde está hoje a mesquita de al-Aqsa, para ficar
voltada na direção de Meca. Osmar seguira o desejo de Maomé de ir
além do cristianismo para restaurar e cooptar esse lugar de antiga
santidade, fazendo dos muçulmanos os legítimos herdeiros da
santidade judaica e passando à frente dos cristãos. As histórias de
Omar em Jerusalém datam de mais de um século depois, quando o islã
tinha formalizado seus rituais de modo bem distinto dos rituais do
cristianismo e do judaísmo. Mas a história de Kaab e outros judeus,
que mais tarde formaram a tradição literária islâmica dos Israiliyyat,
grande parte dos quais dizendo respeito à grandeza de Jerusalém,
prova que muitos judeus, e provavelmente muitos cristãos, aderiram ao
islã. Jamais saberemos ao certo o que aconteceu naquelas primeiras
décadas, mas os descontraídos arranjos em Jerusalém e noutros
lugares sugerem que pode ter havido um surpreendente grau de
mistura e compartilhamento entre os Povos do Livro (MONTEFIORI,
2013, p. 234-235).
Jerusalém, depois da conquista muçulmana, mudou profundamente, pois
a cidade tinha muito prestígio para o islamismo; muito antes da conquista, os
muçulmanos tinham-na como uma cidade santa, pois era a cidade dos profetas
e dos grandes reis fiéis ao Deus único. Segundo Karen Armstrong:
Um dos lugares mais santos, depois de Meca, era Jerusalém. Os
maometanos nunca esqueceriam que a cidade santa dos ahl al-Kitãb
fora sua primeira qiblah. Fora um símbolo que os ajudou a construir
uma identidade islâmica diferenciada, a abandonar as tradições pagãs
de seus ancestrais e a buscar uma nova família religiosa. Decisiva em
seu doloroso processo de ruptura, Jerusalém sempre ocuparia um
lugar especial em sua paisagem espiritual. Continuava simbolizando
seu senso de continuidade e parentesco com os ahl al-Kitãb,
independentemente do reconhecimento de judeus e cristãos. Os
muçulmanos a chamavam de madinat bayt al-maqdis, a Cidade do
86
Templo. Durante muito tempo ela foi um centro espiritual de seus
predecessores monoteístas. Ali rezaram e reinaram os grandes
profetas Davi e Salomão – o qual construiu uma mesquita sagrada. A
cidade estava associada a alguns dos profetas mais santos, inclusive a
Jesus, que os islamitas prezavam muito, embora não o vissem com
Deus (ARMSTRONG, 2000, p. 263).
Com o passar do tempo, a tradição muçulmana passou a interpretar a
sura 17.1 do Alcorão como uma referência a Jerusalém:
Glorificado seja Aquele Que, durante a noite, transportou Seu servo,
tirando-o da Sagrada Mesquita (em Maaca) e levando-o à Mesquita de
Alacsa (em Jerusalém), cujo recinto bendizemos, para mostrar-lhe
alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é o Oniouvinte, o Onividente
(ALCORÃO, 1986, p. 212).
Essa passagem corânica só passou a ter a interpretação que essa
Mesquita distante se referia indubitavelmente à Mesquita da Esplanada em
Jerusalém, muitos anos após a chegada do Islã na cidade santa; esse é um dos
elementos que gestará no imaginário islâmico no decorrer de seu domínio na
região. Na atualidade essa crença está fervorosamente aflorada na tradição
muçulmana:
A “inviolável Casa de Adoração” era certamente a Caaba, porém no
Alcorão não existe nada que relacione a “Remota Casa de Adoração”
com Jerusalém. Mais tarde, entretanto, provavelmente algumas
gerações depois de Maomé, os muçulmanos fizeram essa
identificação. Disseram que certa noite, por volta de 620, antes da
hijrah, Maomé estava orando junto à Caaba e o anjo Gabriel o
transportou para Jerusalém no dorso de Burãq, um cavalo alado. Os
dois pousaram no monte do Templo, sendo recebidos por uma multidão
de profetas, predecessores de Maomé. Depois galgaram os sete céus,
subindo uma escada (al-mi’rãj) que os levou até o divino Trono. Cada
uma das esferas celestes era presidida por um profeta – Adão, Jesus,
João Batista, José, Henoc, Aarão, Moisés -, e Abraão postava-se no
limiar do reino divino. Lá no alto Maomé recebeu a revelação final, que
o fez ultrapassar os limites da percepção humana. Sua ascensão ao
céu supremo foi o ato decisivo do islãm, o retorno à unidade da qual
deriva todo ser. A história de sua Viagem Noturna (al-isrã’) e de sua.
Ascensão (al-mi‘rãj) remete claramente às Visões do Trono dos
87
místicos judeus. O mais importante é que simbolizava a convicção dos
muçulmanos acerca da continuidade e da solidariedade com as
religiões mais antigas. O vôo de seu Profeta, desde a Caaba até o
monte do Templo, revelava também a transferência da santidade de
Meca para Jerusalém, al-masjid al-aqsã. Havia entre as duas cidades
uma conexão divinamente estabelecida. No entanto, Jerusalém
ocupava o terceiro lugar na hierarquia de santidade do mundo islâmico
(ARMSTRONG, 2000, p. 263-264).
A veneração islâmica por Jerusalém existente anterior à conquista,
posteriormente amalgamando-se a percepção islâmica de ser uma religião de
continuidade do monoteísmo, restauradora do verdadeiro culto ao Deus único,
da fé de Abraão, portanto, herdeira das tradições judaicas e cristãs, gestou
novas percepções nos primeiros quarenta anos após a conquista de Jerusalém;
desde o início do Islã sua escatologia ficou umbilicalmente ligada a Jerusalém,
pois será nela que ocorrerá o Último Dia ou simplesmente, a Hora, uma crença
herdada da teologia judaico-cristã. Simon Montefiori, comentando sobre a
importância de Jerusalém para o Islã primitivo, assim declarou:
De grande importância para o destino de Jerusalém foi o fato de o
Profeta ressaltar a vinda do Apocalipse – que chamava de Julgamento,
Último Dia ou simplesmente a Hora -, e essa urgência inspirou o
dinamismo do Islã dos primeiros tempos. “O conhecimento disso só
Deus tem”, diz o Alcorão, “mas o que te fará saber que a Hora está
próxima!” Todas as Escrituras judaico-cristãs diziam que isso só podia
ocorrer em Jerusalém. Certa noite, conforme acreditavam seus
seguidores, Maomé teve uma visão enquanto dormia ao lado da
Caaba. O arcanjo Gabriel o despertou, e juntos fizeram uma Jornada
Noturna montados em Buraq, cavalo alado com rosto humano, para o
anônimo “Santuário Mais Distante”. Ali Maomé encontrou seus “pais”
(Adão e Abraão) e seus “irmãos” Moisés, José e Jesus, antes de subir
uma escada para o céu. Diferentemente de Jesus, ele se intitulava
apenas o Mensageiro, ou Apóstolo de Deus, e não afirmava ter
poderes mágicos. A rigor, a Isra (Jornada Noturna) e a Mira (Ascensão)
foram suas únicas façanhas milagrosas. Jerusalém e o Templo jamais
são mencionados, mas os muçulmanos acabaram acreditando que o
Santuário Mais Distante era o monte do Templo (MONTEFIORI, 2013,
p. 228-229).
88
3.1.- O Domo da Rocha e a Construção do Imaginário Islâmico
Sob o governo de Muawiya45, que tinha a cidade santa em grande estima,
o imaginário islâmico sobre Jerusalém desabrochou. Montefiori, descreveu:
Muawiya tomou de empréstimo as tradições judaicas sobre o monte do
Templo para declarar que Jerusalém era a “terra da safra e da
ressurreição no Dia do Juízo”. E acrescentava: “A área entre os dois
muros desta mesquita é mais cara a Deus do que o resto do mundo”
(MONTEFIORI, 2013, p. 239).
Outra informação interessante apresentada por Montefiori é sobre a
construção do Domo da Rocha no monte do Templo:
Muawiya foi provavelmente o verdadeiro criador do monte do Templo
islâmico atual. Foi ele quem de fato construiu ali a primeira mesquita,
nivelando a pedra da velha fortaleza Antônia, ampliando a esplanada e
acrescentando um hexágono aberto, o Domo da Corrente; ninguém
sabe para que servia, mas, como fica exatamente no meio do monte do
Templo, pode ser que fosse para celebrar o centro do mundo. Escreve
um contemporâneo que Muawiya “talha o monte Moriá e o torna plano
e constrói uma mesquita na rocha sagrada”. Ao visitar Jerusalém, um
bispo gaulês chamado Arculf viu que “no lugar antigo onde ficava o
Templo, os sarracenos agora frequentam uma casa de orações
oblonga, construída com tábuas eretas e grande vigas, sobre alguns
restos arruinados, e que, segundo consta, abriga 3 mil pessoas”. Mas
dava para reconhecê-la como mesquita, mas é possível que ficasse
onde hoje está al-Aqsa (MONTEFIORI, 2013, p. 239).
Com a ascensão de Abd al-Malik46, Jerusalém nunca mais seria a mesma.
Ele, como Muawiya, amava Jerusalém e resolveu transformar o Domo da Rocha
numa verdadeira joia do império islâmico. Um novo santuário foi construído para
45
Mu’awya ibn Sakhr ibn Harb bin Abd Shams ibn Abd Manaf Al Qurashi Umayyad (602-680) – foi o primeiro
califa da dinastia Omíada de Damasco, foi coroado califa numa cerimônia em Jerusalém em 661.
46
Abd al-Malik ibn Marwan (685-705) – Foi califa da dinastia Omíada, muito bem educado e um competente
administrador, durante seu reinado a língua oficial passou a ser o árabe, foi o primeiro califa a cunhar moedas e a
organizar um serviço postal regular.
89
rivalizar com a Igreja Anástasis, local da Ressurreição de Cristo - a Cúpula da
Rocha no monte do Templo.
Antes da cidade de Jerusalém tornar-se, junto com Meca e Medina, um
dos três locais mais sagrados e de peregrinação para a fé islâmica é importante
registrar que a cidade de Jerusalém nunca foi nominalmente citada no Alcorão,
historicamente houve duas tentativas frustradas no início do Islã de fazê-la o
centro da adoração muçulmana, mas essas tentativas foram rapidamente
rejeitadas, uma pelo próprio fundador do islamismo e outra pelo mundo
muçulmano em geral.
A primeira tentativa de transformar Jerusalém em qiblah47 foi com Maomé.
Karen Armstrong assim descreveu esse episódio:
Todavia, quando ensinou seus primeiros discípulos a prostrarem-se
diante de Alá para demonstrar o islãm interior, Maomé lhes ordenou
que dessem as costas à Caaba e virassem o rosto na direção de
Jerusalém. A Caaba estava então poluída de ídolos, e os muçulmanos
precisavam voltar-se para o centro espiritual dos judeus e dos cristãos,
que adoravam unicamente Alá. Essa qiblah (“direção da prece”)
assinalava sua nova orientação: o afastamento de sua tribo rumo à fé
primordial de toda a humanidade. Também expressava a solidariedade
de Maomé e seu senso de continuidade em relação aos ahl al-Kitãb. E
então, em janeiro de 624, quando se tornou evidente que a maioria dos
judeus de Yathrib nunca aceitariam Maomé, a ummah se declarou
independente das tradições mais antigas. O Profeta fez os fiéis
rezarem com o rosto voltado para Meca (ARMSTRONG, 2000. p. 261).
Maomé substituiu a qiblah de Jerusalém por Meca porque não tolerava a
explícita rejeição do Povo do Livro, especialmente as tribos árabes judaizadas.
James Carrol assim declara:
Os judeus da Arábia rejeitaram a revelação a Maomé, sustentando que
ela não procedia do Deus deles, o que demonstrava – assim
concluíram os muçulmanos – que Israel havia traído sua própria
revelação. Depois dessa rejeição Maomé mudou a direção a ser
adotada para rezar, que passou a ser para a Caaba de Abraão em
Meca, e não mais para Jerusalém (CARROL, 2013, p. 150).
47
Qiblah – “direção da prece”.
90
A segunda tentativa foi com Abd Al Malik, segundo o historiador Will
Durant:
Em 684, quando o rebelde Abd Allah al-Zubayr controlou Meca e
recebeu os impostos de seus peregrinos, Abd-al-Malik, ansioso por
atrair um pouco dessa renda sagrada, decretou que a partir de então
essa rocha [onde Abraão havia oferecido Isaque e o templo havia se
situado em Jerusalém] deveria substituir a Caaba [em Meca] como o
objeto da peregrinação sagrada. Sobre aquela rocha histórica seus
artesãos ergueram [em 691] no estilo sírio bizantino o famoso “Domo
da Rocha”, que logo passou a ocupar o terceiro lugar entre as “quatro
maravilhas do mundo muçulmano... O plano de Abd-al-Malik de fazer
esse monumento substituir a Caaba fracassou; se tivesse tido sucesso,
Jerusalém teria sido o centro de todas as três religiões que competiram
pela alma do homem medieval. Mas Jerusalém não era nem a capital
da província da Palestina [sob os árabes]... (DURANT, 1950, p. 229 –
vol. IV).
Abd Al Malik promoveu grandes mudanças no nascente Império Islâmico
com sede em Damasco; pelas medidas tomadas por ele, compreende-se que o
Domo da Rocha surgiu como símbolo da importância religiosa baseada em
Jerusalém. O historiador James Carrol apresenta as seguintes considerações
sobre a disposição do califa omíada48 em promover a cidade de Jerusalém:
Ao patrocinar essa transição do antigo local sagrado judaico para o
islâmico, pode ser o que o motivo de Al Malik tivesse menos a ver com
a rivalidade com as religiões monoteístas do que com seus confrades
muçulmanos. Al-Malik introduziu uma moeda corrente, arte, arquitetura
e idioma peculiarmente muçulmanos..., o califa al-Malik estava à frente
de mudança de um movimento carismático para uma instituição, do
patriarcado do deserto para uma potência imperial... Enaltecendo o
significado religioso de Jerusalém para os muçulmanos, ele podia
reduzir o significado religioso do centro sagrado que ele ousara
abandonar na Arábia. Especialmente notável é o projeto do interior do
Domo de Jerusalém, que comporta o movimento em círculo – Sol ao
redor da Terra – que por tanto tempo caracteriza o ritual devocional da
Caaba em Meca... como a Síria substituiu a Arábia como locus do
48
_
Califado Omíada - Trata-se duma dinastia de califas muçulmanos do clã dos Coraichitas, que reinaram em
Damasco de 661 a 750 e em Córdova de 756 a 1031.
91
império islâmico, a importância religiosa de Jerusalém ficou ainda mais
reforçada por declarações (Hadith) atribuídas ao Profeta. Ele era
lembrado dizendo que no Último Dia a Caaba seria levada de Meca
para Jerusalém: Jerusalém seria o paraíso. Essa também era uma
visão ecumênica, uma colheita do Fim dos Tempos não apenas dos
muçulmanos, ou do Povo do Livro, mas de todos os seres humanos
(CARROL, 2013, p. 154-155).
Cinquenta anos depois da conquista islâmica, o califa omíada Abd alMalik
construiu sobre a rocha do antigo Templo judaico esse majestoso
santuário – o Domo da Rocha; a tradição judaico-cristã apontava como local do
paraíso de Adão, local do altar primordial de Abraão, onde jaziam as pedras do
Templo de Herodes e local onde Maomé havia ascendido ao céu em sua viagem
noturna. Obra com traçado matemático perfeito e com decoração tão
maravilhosa que dava a impressão aos judeus e aos cristãos que suas
respectivas religiões haviam sido suplantadas pelo islamismo. Montefiori
descreve da seguinte maneira o Domo:
Depois que o Domo acabou de ser construído entre 691 e 692,
Jerusalém nunca mais foi a mesma. A assombrosa visão de Abd alMalik capturou o perfil do horizonte de Jerusalém para o islã com a
construção na montanha desprezada pelos bizantinos, que tinham
governado a cidade. Fisicamente, o Domo reinou sobre Jerusalém e
eclipsou a igreja do Santo Sepulcro – e esse era o objetivo de Abd alMalik, segundo acreditavam hierosolimitas posteriores, como o escritor
Al-Muqaddasi. Funcionou: desde então, até o século XXI, os
muçulmanos zombam do Santo Sepulcro (a Kayamah em árabe),
chamando-o de Kumamah (monte de esterco). O Domo complementou
e superou as reivindicações rivais, porém relacionadas, de judeus e
cristãos, e assim Abd al-Malik enfrentou ambos com a novidade
superior do islã. Ele circundou o edifício com 244 metros de inscrições
que denunciam a ideia da divindade de Jesus com uma franqueza que
sugere a estreita relação entre as duas fés monoteístas: elas
compartilham muita coisa, exceto a Santíssima Trindade. As inscrições
são fascinantes porque nos oferecem o primeiro vislumbre do texto do
Alcorão ao qual Abd al-Malik dava forma final (MONTEFIORI, 2013, p.
243).
92
Comentando sobre a mensagem escrita no Domo, o escritor Piers Paul
Read, assim registrou:
Esses símbolos de outra fé lá estão como troféus de um Islã triunfante:
e para fazer a mensagem ser compreendida por quem porventura não
a tivesse compreendido, há uma inscrição onde se lê: ‘Ó vós, povo do
Livro, não ultrapasseis as fronteiras de vossa religião e de Deus dizei
somente a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, é apenas um
apóstolo de Deus e de sua Palavra, que Ele transmitiu a Maria, e de
um Espírito que dele se originou. Acreditai, portanto, em Deus e em
seus apóstolos, e não digais: Três. Será melhor para vós. Deus é
apenas um Deus. Que esteja longe de sua glória ter um filho’. Como
Jerome Murphy-O’Connor escreve ao citar essa inscrição em seu
inestimável guia da Terra Santa, “Um convite para abandonar a crença
na Trindade e na divina Filiação de Cristo dificilmente poderia ser
expresso em termos mais claros” (READ, 2001, p. 66).
Dos anos 638/9 até 1099, aproximadamente 460 anos, os muçulmanos
sob o governo dos vários califados49 iriam governar, islamizar e fomentar a
santidade de Jerusalém, mantendo um relativo respeito aos lugares de culto
cristãos e judaicos. Jerusalém tornou-se uma cidade com forte presença
islâmica, desenvolvendo seu poderoso imaginário de que era a terceira cidade
mais importante do Islã. O islã desenvolve uma teologia apocalíptica diretamente
ligada a Jerusalém. Montefiori apresenta o resumo da crença do apocalipse
islâmico:
Os omíadas cobriram o monte do Templo de novas cúpulas, todas
antes ligadas a tradições bíblicas, de Adão a Abraão, passando por
Davi e Salomão até Jesus. Seu cenário do Juízo Final ocorria no monte
do Templo, quando a Caaba iria para Jerusalém.* “Toda alma provará o
sabor da morte, e só no Dia da Ressurreição sereis recompensados
integralmente pelos vossos atos”, diz o Alcorão. Os muçulmanos
criaram uma geografia do Apocalipse em Jerusalém. As forças do mal
perecem no portão Dourado. O Mahdi – o Escolhido – morre quando a
Arca da Aliança é posta diante dele. Ao verem a Arca, os judeus se
convertem ao Islã. A Caaba de Meca vem para Jerusalém com todos
aqueles que já fizeram a peregrinação a Meca. O céu desce sobre o
monte do Templo com o inferno no vale de Hinom. O povo se reúne
49
Califados Islâmicos: Omíada (644-750), Abássida (750-1.258; 1261-1519) e Fatimida (910-1.171).
93
fora do portão Dourado na planície – al-Shahira. Israfil, o Arcanjo da
Morte (um dos portões do Domo leva o seu nome), toca sua trombeta:
os mortos (especialmente os que estão sepultados perto do portão
Dourado) ressuscitam e passam pelo portão, o portal para o Fim dos
Dias (com seus dois pequenos portões da Misericórdia, dotados de
cúpula, ou o da Penitência), para serem julgados no Domo da
Corrente, onde estão penduradas as balanças da justiça
(MONTEFIORI, 2013, p. 246).
No entanto, como bem acentua Karen Armstrong, a percepção do
“sagrado” era diferente para os muçulmanos:
Os muçulmanos tinham uma geografia sagrada diferente da de seus
predecessores. Já que tudo vinha de Deus, todas as coisas eram boas
e, portanto, não existia uma dicotomia essencial entre o “sagrado” e o
“profano”, como no judaísmo. O objetivo da ummah consistia em
alcançar tal integração e tal equilíbrio entre o divino e o humano, o
mundo interior e o exterior, que essa distinção se tornaria irrelevante.
Não havia “mal” intrínseco, nem reino “demoníaco” opondo-se ao
“bem”. No fim dos tempos até Satã seria perdoado. Tudo era santo e
tinha de concretizar seu potencial sagrado. Assim, todo espaço era
sagrado e não existia lugar mais santo que outro. O islamismo é,
porém, uma religião realista, e Maomé sabia que os seres humanos
precisam de símbolos. Por conseguinte, desde o início seus seguidores
aprenderam a considerar três locais como centros sagrados do mundo
(ARMSTRONG, 2000, p. 259-260).
Um dos lugares mais santos, depois de Meca, era Jerusalém. Os
maometanos nunca esqueceram que a cidade santa dos ahl al-Kitãb
fora sua primeira qiblah. Fora um símbolo que os ajudou a construir
uma identidade islâmica diferenciada, a abandonar as tradições pagãs
de seus ancestrais e a buscar uma nova família religiosa. Decisiva em
seu doloroso processo de ruptura, Jerusalém sempre ocuparia um
lugar especial em sua paisagem espiritual. Continuava simbolizando
seu senso de continuidade e parentesco com os ahl al-Kitãb,
independentemente do reconhecimento de judeus e cristãos. Os
muçulmanos a chamavam de madinat bayt al-maqdis, a Cidade do
Templo. Durante muito tempo ela foi um centro espiritual de seus
predecessores monoteístas. Ali rezaram e reinaram os grandes
profetas Davi e Salomão – o qual construiu uma mesquita sagrada. A
cidade estava associada a alguns dos profetas mais santos, inclusive a
Jesus, que os islamitas prezavam muito, embora não o vissem como
Deus. Mais tarde diriam que Maomé também visitou Jerusalém,
transportado miraculosamente por Alá (ARMSTRONG, 2000, p. 263).
94
Além dos judeus e cristãos de todo mundo olharem para Jerusalém como
um local santo, sendo o centro do seu imaginário religioso e local de contínua
peregrinação, a fé islâmica também construiu seu imaginário sobre a cidade
santa, ou seja, até a chegada dos cruzados em Jerusalém em 1099, já estavam
gestados três imaginários específicos que viam a cidade como santa: o
imaginário Judeu, o imaginário Cristão católico e o imaginário Islâmico.
3.2.- Os cruzados e a decadência da região nos séculos seguintes
Jurando libertar Jerusalém do islã, os nobres cruzados e seus exércitos
plebeus partiram da Europa em 1096. A conquista da cidade em 1099 foi
acompanhada pelo massacre de seus habitantes judeus e muçulmanos. O
historiador Christopher Tyerman apresenta a seguinte descrição da tomada de
Jerusalém pelos cruzados:
O massacre em Jerusalém poupou poucos. Judeus foram queimados
dentro de sua sinagoga. Muçulmanos foram indiscriminadamente
esquartejados, decapitados ou torturados devagar pelo fogo (isso dito
com base em evidências cristãs). Tamanha foi a escala e horror da
carnificina que uma testemunha judaica registrou com aprovação que
pelo menos os cristãos não estuprava suas vítimas antes de matá-las,
como os muçulmanos faziam. A cidade foi toda saqueada: ouro, prata,
cavalos, alimentos, o que havia dentro das casas, tudo foi tomado
pelos conquistadores, numa pilhagem completa quanto qualquer outra
da Idade Média. O lucro rivalizava com a destruição; alguns livros
judaicos sagrados foram mais tarde resgatados pela comunidade
sobrevivente no exílio. A violência superou os negócios a 16 de julho,
quando os prisioneiros de Tancredo na mesquita de al-Aqsa foram
massacrados a sangue-frio, no que tudo indica por provençais, que
haviam perdido a ação do dia anterior. As ruas estreitas da cidade
ficaram atulhadas de cadáveres e partes de corpo esquartejado,
inclusive de alguns cruzados, vitimados em seu afã de perseguir e
matar os defensores. As pilhas de mortos acarretaram um problema
imediato para os conquistadores; a 18 de julho, muitos da população
muçulmana sobrevivente foram obrigados a limpar as ruas e levar os
cadáveres para fora das muralhas, a fim de serem queimados em
enormes piras. Depois, eles próprios foram massacrados, uma prévia
95
assustadora de práticas posteriores de genocídio (TYERMAN, 2010, p.
192-193).
Durante quase um século, Jerusalém foi a capital exclusiva do Reino
Latino50 da Terra Santa, foi um período onde os líderes católicos europeus
dominavam a região litorânea da palestina protegidos em seus castelos e
fortalezas, até que o líder Saladino51, muçulmano do Curdistão, unificando o
mundo muçulmano em torno de si, conquistasse Jerusalém em 1187, permitindo
o retorno dos judeus à cidade.
De 1187 até 1517, a cidade santa viveu períodos de muita decadência,
saques, terremotos, abandono e contínua tensão entre os muitos credos
religiosos oriundos das matrizes Judaica, Cristã e Islâmica.
3.3.- O Domínio Otomano
De 1517 a 1917, sob o domínio do Império Otomano52, Jerusalém teve
basicamente apenas um momento de esplendor; foi em 1541, quando o Sultão
Suleiman53, o Magnífico, concluiu a construção dos muros da cidade, como
ainda se pode observar hoje. Karen Armstrong assim escreveu sobre esse
período:
50
Reino Latino de Jerusalém (1099-1291) – Foi um estado cruzado criado no Levante, cuja capital era
Jerusalém, com a queda de Jerusalém em 1187, a capital foi transferida para Acre, finalmente os cruzados foram
expulsos da região com a queda de Acre em 1291.
51
Saladino - Salãh ad-Din Yusuf ibn Ayyub (1138-1193) – Chefe militar curdo que tornou-se sultão do Egito e
Síria. Liderou o mundo islâmico contra os cruzados. Foi o responsável pela reconquista de Jerusalém em 1187, tornou-se
célebre entre os cronistas cristãos como exemplo dos princípios da cavalaria medieval.
52
Império Otomano – fundado por Ertughrul e seu filho Osman, em árabe Otman, de onde vem o termo
“Otomano”, sua ascensão foi entre 1299 a 1453, quando os otomanos conquistaram Constantinopla e a fizeram em sua
capital. Foi uma das maiores potências do mundo, seu auge foi no século XVII. O califado otomano foi abolido em 1924,
dando lugar a moderna República da Turquia.
53
Solimão ou Suleiman I, o Magnífico (1520-1566) – Foi o décimo sultão do Império Otomano e o de mais longo
reinado, subiu ao trono em 1520 até sua morte em 1566. Durante seu reinado, o Império Otomano alcançou o seu
apogeu.
96
Jerusalém floresceu sob o sultão Solimão, o Magnífico (1520-66).
Depois de guerrear na Europa e expandir o Império para o oeste,
Solimão concentrou-se no desenvolvimento interno e seus domínios. O
Império Otomano conheceu um renascimento cultural, e Jerusalém foi
um dos principais beneficiários. As guerras turcas naturalmente
reacenderam o ódio da Europa pelo Islã. Surgiram rumores de uma
nova Cruzada e dizia-se que o sultão sonhara com o Profeta
ordenando-lhe que organizasse a defesa de al-Quds. Verdade ou não,
em 1536 Solimão decidiu reerguer as muralhas de Jerusalém. Tratavase de um projeto ambicioso, que envolvia gastos imensos e muita
habilidade. Em poucos lugares os otomanos construíram fortificações
tão primorosas. Com três quilômetros de extensão, cerca de doze
metros de altura, 34 torres e sete portas, a muralha contornava
inteiramente a cidade – e sobrevive até hoje. Consta que, ao passar
por lá, Sinan, o grande arquiteto da corte, concebeu a Porta de
Damasco, no norte de al-Quds. Quando se concluiu a obra, em 1541,
Jerusalém estava fortificada devidamente pela primeira vez em mais de
trezentos anos (ARMSTRONG, 2000, P. 371).
Após o reinado de Suleiman, nos 350 anos seguintes pouca importância
foi dada para a região, ficando entregue a administrações decadentes,
corrompidas, incompetentes e a cidade ficou sujeita aos contínuos ataques dos
beduínos do deserto. No início do século XIX, Jerusalém possuía cerca de 8750
habitantes, sendo 4 mil muçulmanos, 2750 cristãos católicos e 2 mil judeus. Já
no inicio do século XX, especificamente em 1922, Jerusalém possuía 62600
habitantes, sendo 34400 judeus, 14700 cristãos católicos e 13500 muçulmanos.
Portanto, a estrutura da atual cidade de Jerusalém, cidade antiga, é obra
do sultão muçulmano Suleiman, o Magnífico; não há nada que possa lembrar a
Jerusalém da época de Davi, nem da época de Jesus:
Suas realizações em Jerusalém obtiveram tanto êxito que a Cidade
Velha hoje pertence mais a ele do que a qualquer outro: os muros têm
aparência antiga e, para muita gente, definem a cidade tanto quanto o
Domo, o Muro ou a igreja do Santo Sepulcro – mas esses muros e a
maioria dos portões foram criação desse contemporâneo de Henrique
VIII, tanto para tornar a cidade segura como para incrementar seu
próprio prestígio. O sultão adicionou uma mesquita, uma entrada e uma
torre à Cidadela; construiu um aqueduto para trazer água à cidade e
nove fontes das quais se podia beber (inclusive três no monte do
Templo); e, finalmente, substituiu os mosaicos gastos do Domo da
Rocha por azulejos esmaltados decorados com flores-de-lis e lótus em
97
turquesa, cobalto, branco e amarelo, como são hoje 54 (MONTEFIORI,
2013, p. 374-375).
Portanto, a Jerusalém que conhecemos em Israel é uma construção
otomana islâmica, reconstruída sobre as ruínas das outras Jerusalém:
Enquanto os muros eram erguidos, ...milhares de operários
trabalhando, novas pedras sendo extraídas, pedras velhas furtadas de
igrejas em ruínas e de palácios herodianos, e os taludes e portões
fundindo-se cuidadosamente com os muros em volta do monte do
Templo da época de Herodes e dos omíadas (MONTEFIORI, 2003, p.
373).
Em 1914-1917 ocorreu a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano
perdeu vários territórios com a derrota da Tríplice Aliança, a Palestina ficou sob
mandato britânico. Pela primeira vez, depois de aproximadamente mil anos, a
Palestina voltava ao domínio cristão, mas por um novo ramo do cristianismo, o
protestantismo.
Assim, de 3.000 a.C. até 136 d.C., o imaginário judeu se cristalizou; de
313 até 638 o imaginário cristão se cristalizou e finalmente de 638 até 1.187 o
imaginário islâmico se cristalizou, deslocando-se do eixo sagrado do
cristianismo, da Anástasis - Igreja do Santo Sepulcro para retomar o altar
primordial do imaginário judaico, o monte do Templo, o nobre santuário - AlHaram ash-Sharif. O imaginário religioso islâmico sobre Jerusalém, apropriou-se
da tradição judaica-cristã, transformando Jerusalém na terceira cidade mais
importante do mundo islâmico.
54
Difundiu-se uma lenda de que Suleiman considerava aplainar Jerusalém, até que ele sonhou que seria comido
por leões caso o fizesse, e então construiu o portão dos Leões. Isso baseia-se num mal entendido; ele construiu o portão
dos Leões, mas seus leões são na verdade as panteras do sultão Baibars de trezentos anos antes, tomadas por
empréstimo de sua Khanqah sufi que um dia se localizou a noroeste da cidade. Suleiman usou o espólio de Jerusalém:
sua fonte do portão da Corrente é encimada por uma roseta dos cruzados e a cuba é um sarcófago cruzado. Os novos
muros não envolveram o monte Sião. Conta-se que Suleiman ficou tão furioso ao olhar numa xícara mágica e ver que o
túmulo de Davi estava fora da cidade que executou os arquitetos. Guias de turismo apontam seus túmulos perto do
portão de Jafa – mas isso também é mito: os túmulos pertencem a dois eruditos de Safed (MONTEFIORI, 2013, p. 375).
98
O último imaginário que tardiamente se construirá em Jerusalém será o
protestante. A partir dessa realidade histórica, novos imaginários irão surgir
sobre Jerusalém, mas sempre fora do seu contexto geográfico-religioso-cultural.
4.- Jerusalém Na Construção Do Imaginário Protestante
A Reforma Protestante, tendo como ponto de partida as 95 Teses de
Lutero, fixadas na Igreja de Wittenberg em 31 de outubro de 1517, irá apontar
para a exclusividade da Bíblia Sagrada como única regra de fé; até hoje este
brado da Reforma é anunciado: Sola Scriptura. Karen Armstrong em sua obra
Em Nome de Deus. O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no
Islamismo, apresenta a atitude dos reformadores protestantes como uma busca
de resposta para um mundo instável e mutável:
99
...os reformadores protestantes se voltaram para o passado na
tentativa de encontrar uma nova solução para uma época de mudança.
Martinho Lutero (1483 - 1556), João Calvino (1509-64) e Huldrych
Zwingli (1484 – 1531) reportaram-se às fontes da tradição cristã...
Lutero também atacou os teólogos escolásticos medievais e procurou
retornar ao cristianismo puro da Bíblia e dos Padres da Igreja. Os
reformadores protestantes eram, pois, revolucionários e reacionários...
(ARMSTRONG, 2001, p.84).
Mas ao proclamar “somente a Escritura” como regra de fé, Lutero, por
inferência, indica a inerrância da mesma, levando a crença da literalidade das
Sagradas Escrituras num patamar inigualável no mundo cristão.
Os reformadores diziam, como os conservadores, que estavam
retornando à fonte primária, à Bíblia, mas a liam à maneira moderna. O
cristão reformado devia postar-se sozinho diante de Deus, contando
apenas com a Bíblia, porém isso não seria possível sem a invenção da
imprensa, que permitia a todos os fiéis terem seu próprio exemplar das
Escrituras, e sem a difusão da alfabetização. Cada vez mais se lia a
Bíblia literalmente, à cata de informação, mais ou menos como os
protestantes modernizadores estavam aprendendo a ler outros textos
(ARMSTRONG, 2001, p. 86).
Neste contexto histórico, os reformadores sentiram necessidade do
estudo das línguas bíblicas, especialmente o hebraico. O historiador Paul
Johnson assim analisou esse período:
A Reforma, operando na obra de eruditos do Renascimento, fomentou
também um interesse renovado por estudos hebraicos e, em particular,
pelo Velho Testamento. Muitos apologistas católicos censuravam os
judeus, e ainda mais os marranos, por ajudarem e inspirarem
pensadores protestantes (JOHNSON, 1995, p. 251).
Enquanto Lutero apontava para a literalidade da Bíblia e tinha uma visão
negativista do mundo, Calvino, diferentemente, não estava desencantado com o
mundo natural e possuía uma percepção diferente das Sagradas Escrituras,
embora a tivesse como única regra de fé:
100
Não via contradição entre a ciência e as Escrituras. Em sua opinião a
Bíblia não fornece informações literais sobre geografia ou cosmologia,
mas tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados
seres humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma
simplificação deliberada de uma verdade complexa demais para ser
articulada de outro modo. Os grandes cientistas de inícios da
modernidade partilhavam a confiança de Calvino e também situavam
suas pesquisas e discussões num plano religioso e místico
(ARMSTRONG, 2001, p. 87).
A Reforma Protestante irá desconstruir a velha cosmovisão cristã católica
romana de mundo. O protestantismo permitirá uma nova abordagem de
interpretação, em busca de respostas para as novas inquietações da
humanidade da época.
4.1.- Distinção entre o imaginário protestante e católico
O protestantismo se levantará contra o imaginário místico do catolicismo
romano. João Calvino, em sua obra Institutas ou Tratado da Religião Cristã,
Volume I, Edição Clássica (Latim) apresenta os capítulos IX a XII para explicar e
combater sistematicamente o erro do culto às imagens do catolicismo romano,
bem como um duro golpe ao mundo mágico criado por séculos de predomínio
do catolicismo romano na Europa. O combate radical ao misticismo católico, às
peregrinações e culto às imagens reduziu o protestantismo ao mesmo nível de
percepção semítica judaica. Peter L. Berger assim percebeu essa realidade no
protestantismo:
Se observarmos mais cuidadosamente essas duas constelações
religiosas, porém, o protestantismo poderá ser descrito como uma
101
imensa redução do âmbito do sagrado na realidade, comparado com o
seu adversário católico... Simplificando-se os fatos, pode-se dizer que o
protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e
poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre
e a magia (BERGER, 1985, p. 124).
A bandeira protestante de Sola Scriptura levou o protestantismo
inevitavelmente
a
despir-se
radicalmente
das
tradições,
mediações
e
misticismos tão presentes no catolicismo medieval. Os protestantes, como o
povo de Israel no Antigo Testamento, tinham como serviço sagrado exterminar
os deuses dos cananeus, os lugares de culto de ídolos e imagens em Canaã,
livrar e exterminar todas as formas de cultos e imagens que não o único Deus. O
protestantismo, ao se agarrar radicalmente e literalmente nas Escrituras, trilhará
o mesmo caminho do Israel do Antigo Testamento, e destruirá as “janelas” ou
ligações com o divino, encontradas nas intermediações dos santos e dos lugares
sagrados do catolicismo. Peter L. Berger assim declara:
O protestantismo aboliu a maior parte dessas mediações. Ele rompeu a
continuidade, cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra, e assim
atirou o homem de volta a si mesmo de uma maneira sem precedentes
na história... Fazendo isso, porém, o protestantismo, reduziu o
relacionamento do homem com o sagrado ao canal, excessivamente
estreito, que ele chamou de palavra de Deus... (BERGER, 1985 , p.
124-125).
Mas, se o protestantismo desconstrói o imaginário católico de locus
sacratus, onde estaria a importância de Jerusalém no imaginário protestante que
combateu radicalmente a percepção católica de superstição e peregrinação aos
lugares santos?
Seguramente a resposta está no mesmo fenômeno ocorrido com o Israel
do Antigo Testamento; tudo o que está na Bíblia será precioso e sagrado para a
piedade protestante. Culto aos santos não está na Bíblia, e na percepção
protestante é condenado por Deus; lugares sagrados para o catolicismo, como
102
Roma ou lugares da aparição da virgem Maria não estão na Bíblia e são
condenados como cultos falsos na percepção protestante. Assim como o povo
de Israel destruiu a antiga idolatria cananeia, mas fez de Jerusalém sua cidade
santa, o mesmo fenômeno ocorrerá com o protestantismo, despindo-se
radicalmente das intermediações da virgem Maria e dos santos católicos, dos
lugares sagrados do catolicismo e, focados unicamente na Bíblia Sagrada,
vislumbrarão um novo locus sacratus este, em sua percepção, bíblico e
escolhido pelo Eterno – Jerusalém, que não é tão novo assim, pois esteve
presente todo tempo no imaginário cristão europeu.
Weber, Berger e outros sociólogos interpretarão corretamente o nexo
histórico entre o protestantismo e o secularismo, verão nesse rompimento
protestante com o misticismo católico uma porta para a secularização do mundo
moderno. Berger afirma que as raízes da secularização encontram-se no Antigo
Testamento, na religião do antigo Israel, posteriormente impulsionada pelo
protestantismo. Mas é verdade também que a religião israelita e o
protestantismo são expressões históricas com alto grau de espiritualidade e
facilidade de acomodação, haja vista, a contínua e antiga religiosidade e
espiritualidade milenar judaica e a contínua reinvenção da fé protestante.
Marcelo Camurça em parte nos ajuda nessa questão:
...o processo de secularização não resulta na extinção da religião, mas
em sua transformação, quando a ideia de religião (nas suas formas
“desenvolvidas”) não se coloca como incompatível com a
racionalidade. Como demonstrou Weber, substituída pela ciência como
forma de conhecimento do mundo, a religião ainda pode refugiar-se
como proposta racional no terreno dos valores (ou até assumir forma
irracional com contornos extra-econômicos e extramundanos)...
(CAMURÇA, 2008, p. 95-96).
Da concepção heliocêntrica do astrônomo católico polonês Nicolau
Copérnico (1473 – 1543) até a Guerra da Independência dos Estados Unidos da
América (1774), são aproximadamente trezentos anos de mutações e profundas
103
mudanças políticas, científicas, filosóficas e religiosas na Europa e nas colônias
inglesas do Novo Mundo.
Durante esse longo período houve um lento e contínuo processo de
secularização da sociedade; a religião perderá seu papel de domínio público,
passando
em
grande
parte
para
a
privacidade,
fenômeno
presente
especialmente nos países protestantes e na França católica, fomentado pela
influência do iluminismo, racionalismo e cientificismo, tanto na Europa como nas
colônias inglesas da América do Norte. O eixo definidor para esta pesquisa se
desloca da Europa para a América com o reaparecimento do milenarismo
existente deste o século XVI, bem como o surgimento do fundamentalismo
cristão nos Estados Unidos em fins do século XIX.
O fato do protestantismo ter rompido radicalmente com o misticismo
católico não significa que não pode criar um novo locus sacratus, ele criará um
imaginário religioso fundamentado nas Sagradas Escrituras. O imaginário
sagrado sobre Jerusalém no mundo protestante, se constrói pela catalisação de
vários movimentos espiritualistas e políticos, entre eles: o movimento
milenarista, o pietismo, o restauracionismo ou sionismo cristão, bem como o
domínio britânico de toda Palestina, e da popularização da teologia profética
escatológica evangélica.
4.2.- O Milenarismo55
55
Milenarismo – No cristianismo, deve-se chamar de milenarismo a crença num reino terreno vindouro de Cristo
e de seus eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente. O advento do
milênio foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos já mortos – e uma segunda
– a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o tempo da
história e a descida da “Jerusalém celeste”. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro verá o reino do
Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este, triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e
de felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova liberação das forças demoníacas, que serão vencidas num último
combate (DELUMEAU, 1997, p. 18-19).
104
A crença no milenarismo não é um ensino estranho à igreja primitiva.
Justino de Roma, o mártir (100-165) um dos primeiros apologistas da fé cristã
era milenarista56:
De minha parte, eu e alguns outros cristãos de mentalidade correta não
só admitimos a futura ressurreição da carne, mas também mil anos em
Jerusalém reconstruída, embelezada e aumentada, como o prometem
Ezequiel, Isaías e os outros profetas (ROMA, 2013, p. 236).
... houve entre nós um homem chamado João, um dos apóstolos de
Cristo, que numa revelação que lhe foi feita, profetizou que os que
tiverem acreditado em nosso Cristo passarão mil anos em Jerusalém e
que, depois disso, viria a ressurreição universal e, dizendo brevemente,
a ressurreição eterna e o julgamento de todos juntos. A mesma coisa
dita por nosso Senhor: “Não se casarão, nem serão dadas em
matrimônio, mas serão como os anjos, pois são filhos de Deus da
ressurreição” (Lc 20.35-36) (ROMA, 2013, p. 237-238).
O milenarismo foi uma crença comum na comunidade cristã primitiva,
outros pais da Igreja cristã também defendiam o milenarismo:
Os primeiros teólogos que podem ser considerados historicistas:
Justino (100-165 D.C.), Irineu (c. 130-202 D.C.), e Hipólito (c. 170-235).
Todos acreditavam num milênio literal após a segunda vinda de Jesus
(KOVACS & ROWLAND, 2004, p.15 Apud LIMA, 2012, p.24).
O maior teólogo da antiguidade a adotar o modelo espiritual de
interpretação foi Agostinho de Hipona (354-430 D.C.), mas sua primeira
interpretação foi literal. Num sermão (259). Agostinho havia adotado a
posição milenarista, ou seja, de que haveria mil anos literais de Cristo
na terra antes do Julgamento Final (BACKUS, 2000, p. XIV Apud LIMA,
2012, p. 23).
56
Justino de Roma, o Mártir era milenarista: “Segundo Ap 20.4-5, 1-8, o milenarismo se desenvolve em duas
fases: a primeira consiste num reino terrestre de mil anos de Cristo com seus eleitos, em Jerusalém, a partir da parusia; a
segunda, a partir da ressurreição geral dos mortos se instalará o reino eterno na Jerusalém celeste. Essa crença
difundiu-se sobretudo no ambiente asiático. Justino creu com absoluta firmeza no milenarismo, pois se indigna da
suspeita de Trifão de que isso fosse apenas um truque de sua argumentação” (ROMA, 2013, p. 236 – nota de rodapé).
105
A crença milenarista desaparecerá no período do governo político da
igreja católica com a interpretação de Agostinho de Hipona, como aponta o
historiador francês Jean Delumeau:
Escreveu-se sobre Santo Agostinho que ele foi o “liquidador do
milenarismo cristão primitivo”. É verdade que ele desfechou um golpe
severo ao interpretar os mil anos de Apocalipse como o período de
duração indeterminada reservado ao reinado da Igreja entre a vinda do
Salvador e o fim dos tempos. Durante essa fase intermediária, os
santos e os pecadores estão inextricavelmente misturados na “Cidade
de Deus”, será assim até o juízo final (DELUMEAU, 1997, p. 32).
O milenarismo voltará com muita força pós Reforma Protestante, sendo
um dos temas mais presentes e recorrentes nos países protestantes, se
apresentará com faces diferentes; é notória sua radicalização na Alemanha com
a fé quiliástica de mentalidade utópica racional não alienante do mundo.
Segundo Karl Mannheim:
A ideia da aurora de um reinado milenar sobre a terra sempre conteve
uma tendência revolucionarizante, e a Igreja fez todos os esforços para
paralisar esta ideia situacionalmente transcendente com todos os
meios de que dispunha. Estas ideias; que intermitentemente afloravam,
reapareceram novamente em Joachim das Flôres, entre outros, mas
neste caso ainda não se cogitava delas como revolucionárias.
Entretanto, entre os hussitas e depois em Thomas Munzer e os
anabatistas estas ideias se transformaram nos movimentos ativadores
de estratos sociais específicos. Aspirações que até então não se
haviam apegado a um objetivo específico, ou se concentravam em
objetivos extraterrenos, assumiram subitamente uma compleição
mundana. Sentia-se que eram viáveis – aqui e agora – e infundiam um
ardor singular à conduta social... A visão utópica provocou uma visão
contrária. O otimismo quiliástico dos revolucionários veio finalmente a
dar origem à formação de atitude conservadora de resignação e, na
política, à atitude realista... Não se acha realmente preocupado com o
milênio que há por vir; o que para ele tem importância é que isto se
produza aqui e agora, e que tenha surgido da existência terrena, como
se fosse um rápido volteio noutra espécie de existência (MANNHEIM,
1986, p. 235-241).
106
Diferentemente do quiliasma alemão, na Grã-Bretanha no século XVI, um
país saturado de estudo escatológico, se desenvolveu o milenarismo utópico
distanciador e alienante do mundo presente. Jean Delumeau assim descreveu
esse período:
O país do Ocidente que, no final do século XVI e até cerca de 1660,
debateu com maior paixão os prazos apocalípticos foi de fato a GrãBretanha... interpretação das profecias, a dos milenaristas, não foi feita
apenas por alguns espíritos excêntricos. Ao contrário, foi proposto por
teólogos reconhecidos, em particular entre os puritanos. Chegou-se a
escrever que “a ideia de uma rápida realização do milênio de Nosso
Senhor era largamente difundida entre todas as categorias de devotos”,
e mesmo entre alguns adeptos da realeza”... De maneira mais geral, é
essencial perceber que os fatores teológicos desempenharam um
papel importante na história política inglesa do século XVII
(DELUMEAU, 1997, p. 216).
Esse fervor protestante milenarista encontrará campo fértil na América do
Norte, como bem pontuou Jean Delumeau:
É, no entanto, na obra de Jonhathan Edwards, iniciador do “grande
despertar” dos anos 1740-4, que se acha a expressão mais célebre de
um milenarismo ligado à América do Norte. As convicções de Edwards
esclarecem, aliás, a imbricação estreita dos temas do “despertar” com
as esperanças escatológicas. É preciso citar um pouco longamente
suas afirmações: Não é imprudente julgar que essa obra do Espírito
Santo (o “despertar”), tão extraordinária e maravilhosa, é a aurora, ou
pelo menos o prelúdio do glorioso trabalho de Deus, com frequência
predito nas Escrituras, que por seu movimento e seu resultado
renovará o mundo e a humanidade. (...) Não podemos razoavelmente
pensar de outro modo: o começo do grande trabalho de Deus deve
estar próximo. E há muitos sinais que tornam provável que essa obra
terá início na América. É dito que ela começará numa parte remota do
mundo com o qual o resto da terra só se comunicará pela navegação
(Is 60.9). “Sim, as ilhas convergem para mim, navios de Társis à frente,
para trazer teus filhos de longe”). Não pode ser mais claro que esse
capítulo profetiza a prosperidade da Igreja em seu mais glorioso estado
terrestre dos últimos dias; e não posso pensar senão que “as ilhas que
estão ao longe” referem-se à América, de onde virão os filhos recémnascidos desse glorioso dia. (...) O que é principalmente referido (em
Isaías) não são as ilhas Britânicas nem as ilhas próximas de um outro
continente. Pois trata-se de uma grande distância em relação ao
mundo onde a Igreja existiu até hoje. Essa profecia parece, portanto,
claramente designar a América como lugar dos primeiros frutos desse
glorioso dia. Deus fez, por assim dizer, dois mundos na terra, dois
107
grandes continentes habitáveis, o velho e o novo (segundo seus nomes
atuais), largamente separados um do outro. Este último só foi
descoberto recentemente. Era inteiramente desconhecido dos séculos
passados. É como se houvesse sido criado recentemente. Ele foi até
estes últimos tempos a posse inteira de Satã, a Igreja de Deus jamais
tendo nele existido desde o começo do mundo, contrariamente ao que
aconteceu no outro continente. Esse novo mundo provavelmente foi
descoberto em nossos dias para que o novo e mais glorioso estado da
Igreja de Deus na terra pudesse ter início aqui e para que Deus fizesse
começar aqui um novo mundo espiritual, criando os novos céus e a
nova terra. Deus já havia concedido ao outro continente a honra de
nele ter feito nascer Cristo, no sentido literal do termo, e de ter
ocasionado a redenção. Ora, como a providência observa uma espécie
de igualdade na distribuição das coisas, não é insensato pensar que o
grande nascimento espiritual de Cristo e a mais gloriosa aplicação da
redenção devam começar aqui (...) (DELUMEAU, 1997, p. 243-244).
Essa percepção milenarista passará por várias mutações, e os cristãos na
América deixariam de esperar nesse milênio de Edwards para uma nova
percepção mileranista, como afirmou Jean Delumeau:
A revista do “despertar”, The Christian History, deixou de ser publicada
em 1745, por falta de assunto. Depois dessa data, Edwards não
acreditou mais ver produzir-se na América o milênio que ele esperava.
Mas uma dinâmica de base escatológica subsistia, transformando-se
progressivamente para dar lugar ao que se chamou o “milenarismo
civil” americano. No interior desse movimento geral, o “despertar”
adquiriu então uma significação parcialmente diferente daquela que
Edwards queria lhe dar. Parece-nos que esse movimento contribuiu a
seu modo para criar o nacionalismo americano (DELUMEAU, 1997, p.
244-245).
Essas mutações no pensamento milenarista permanecerão e terão
grande importância na construção do pensamento evangélico e na elaboração
do dispensacionalismo.
4.3.- O Protestantismo Evangélico nos Estados Unidos da América
108
O excesso emocional caracteriza a vida religiosa dos americanos no
século XVIII. Evidenciou-se sobretudo no Primeiro Grande Despertar,
que teve lugar em Northampton, Connecticut, em 1734 e foi registrado
pelo douto ministro calvinista Jonathan Edwards (1703-58). A
população de Northampton nunca foi particularmente devota, diz ele,
mas em 1734 dois jovens morreram de repente, e o choque (reforçado
pelo sermão emocional de Edwards) despertou na cidade um fervor
religioso que, como uma epidemia, logo se espalhou para
Massachusetts e Long Island. Em vez de trabalhar, as pessoas
passavam o dia lendo a Bíblia. Ao cabo de seis meses trezentos
moradores
experimentaram
uma
violenta
conversão,
um
“renascimento” Alternavam estados de intensa euforia e de profunda
depressão; às vezes ficavam arrasados e “mergulhavam num abismo,
como uma sensação de culpa que lhes parecia ultrapassar a
misericórdia divina”. Outras vezes “punham-se a rir; ao mesmo tempo
vertendo lágrimas aos borbotões e chorando alto”. O fervor reavivado
arrefecia quando o inglês George Whitefield (1714-70), pregador
metodista, visitou as colônias e acendeu uma segunda chama. Durante
seus sermões os fiéis desmaiavam, choravam, gritavam; as igrejas
estremeciam com os brados dos que se imaginavam salvos e os
gemidos dos infelizes que se julgavam condenados. A comoção não se
limitava a indivíduos simples e incultos. Whitefield teve uma
entusiástica recepção em Harvard e Yale e encerrou sua turnê, em
1740, com uma enorme concentração popular na praça central de
Boston, onde falou para 30 mil pessoas (ARMSTRONG, 2001, p. 99100).
Embora o Primeiro Grande Despertamento57 não tivesse objetivos
políticos explícitos, o sentimento de liberdade espiritual desfrutado pelos que
experimentaram esse fervor religioso será como semente de liberdade no
imaginário dos americanos que lutaram pela independência das 13 colônias
inglesas da América do Norte. Comentando sobre os elementos motivadores
que levaram os colonos a separarem da Inglaterra, Karen Armstrong diz:
Os que escolheram lutar pela independência seriam tão motivados
pelos velhos mitos e sonhos milenaristas do cristianismo quanto pelos
ideais seculares dos Fundadores. Tornou-se difícil separar o discurso
religioso político (ARMSTRONG, 2001, p. 103).
57
Grande Despertamento (1730-1740) – Se refere aos períodos de grande e dramático avivamento religioso
presente na história norte-americana.
109
Vê-se então que desde o nascimento dos Estados Unidos há forte
presença do pensamento cristão milenarista, amalgamado ao pensamento
secular, não necessariamente consciente dessa ideia política porque os fiéis,
teoricamente, estavam se envolvendo em uma obra divina:
Assim em muitas das principais igrejas (inclusive a anglicana) os
ministros cristianizavam a retórica revolucionária de líderes populistas
como Sam Adams. Ao discorrer sobre a importância da virtude e da
responsabilidade no governo, o corroboravam as denúncias de
corrupção dos funcionários britânicos apresentados por Adams. O
Grande Despertar já levara os Novas Luzes calvinistas a desconfiar do
establishment e a contar com sua própria capacidade de efetuar
mudanças de peso. Quando falavam em “liberdade”, os líderes
revolucionários utilizavam um termo que já possui forte conotação
religiosa. Relacionavam-se com a graça, com a liberdade do Evangelho
e dos Filhos de Deus, com temas como o Reino de Deus, no qual toda
opressão terminaria, e com o mito de um Povo Eleito que se tornaria o
instrumento divino na transformação do mundo. Thimothy Dwight
(1752-1817),
reitor
da
Universidade
de
Yale,
referia-se
entusiasticamente à revolução como o caminho para a “Terra de
Emanuel” e aos Estados Unidos como “a sede daquele Reino novo e
singular, que será concedido aos santos do Altíssimo”. Em 1775 o
pregador Ebenezer Baldwin, de Connecticut, assegurou que as
calamidades da guerra só apressariam os planos de Deus em relação
ao Novo Mundo. Jesus estabeleceria seu Reino glorioso na América: a
liberdade, a religião e o saber haviam deixado a Europa e cruzado o
Atlântico. (ARMSTRONG, 2001, p. 104).
Portanto, o protestantismo desempenhou um papel vital, fundamental na
criação da primeira república secular moderna. Nos 40 anos seguintes, os
Estados Unidos floresceram como uma nação profundamente cristã, e não
tardou o surgimento do Segundo Grande Despertamento58. Karen Armstrong o
classificou como uma onda:
... mais radical que a primeira... Odiavam acadêmicos e repetiam que
todo cristão tinha o direito de interpretar a Bíblia livremente, sem se
submeter a especialistas em teologia. Em seus sermões falavam de
modo inteligível às pessoas comuns, geralmente recorrendo a gestos
grandiloquentes... Estavam reformando o cristianismo num estilo
58
Segundo Grande Despertamento (1790-1840) - foi a segunda onda de reavivacionismo protestante ocorrida
nos Estados Unidos que consistia basicamente na salvação pessoal (novo nascimento) como experiência de fé.
110
popular muito distante do refinado etos das Era da Razão... O novo
gênero “gospel” levava as plateias ao êxtase: os fiéis choravam,
sacudiam-se violentamente e gritavam de alegria... Não se prendiam a
tradições eruditas. Tinham a liberdade dos filhos de Deus e, com bom
senso, apoiando-se nos fatos das Escrituras, podiam chegar à verdade
sozinhos. Criticavam a aristocracia, o establishment e o clero letrado.
Enfatizavam as tendências igualitárias do Novo Testamento, segundo o
qual os primeiros seriam os últimos e os últimos seriam os primeiros na
comunidade cristã. Deus se revelou aos pobres e aos analfabetos:
Jesus e os Apóstolos não tinham diploma universitário (ARMSTRONG,
2001, p. 109).
A contribuição dos movimentos reavivacionistas na América do Norte nos
dá a compreensão histórica do pensamento presente da interpretação literal da
Bíblia;
essa
percepção
pentecostalismo
é
presente
gestado
no
através
fundamentalismo
dos
movimentos
cristão
e
no
reavivacionistas,
especialmente como resultando do Segundo Grande Despertamento norteamericano. Interessante análise sociológica comparativa é demostrada por
Karen Armstrong:
Como muitos movimentos fundamentalistas da atualidade, esses
profetas do Segundo Grande Despertar proporcionaram a pessoas que
se sentiam marginalizadas e exploradas nos novos estados meios de
se fazer ouvir pela elite. Mas ou menos como ocorre nos grupos
fundamentalistas de nossa época, deram-lhes o que Martin Luther King
chamou de “a sensação de ser alguém”. Ainda como os movimentos
fundamentalistas, todas essas novas seitas se voltavam para uma
ordem primitiva do passado, decididas a reconstituir a fé original; todas
se apoiavam nas Escrituras, interpretando-as ao pé da letra e, com
frequência, de maneira simplista (ARMSTRONG, 2001, p. 111-112).
Após o Segundo Grande Despertar nos Estados Unidos, será feita a
análise dos protestantes evangélicos da Inglaterra, que voltaram seu olhar para
a evangelização do povo judeu e o seu retorno para a Palestina e Jerusalém.
Montefiori assim resumiu a ligação da Reforma Protestante com Jerusalém:
Em 1517 Martinho Lutero, um professor de Teologia em Wittenberg,
protestou contra a venda de “indulgências” da Igreja para limitar o
tempo das pessoas no purgatório e insistiu que Deus existia apenas na
Bíblia, e não por intermédio dos rituais de padres ou papas. Seu
111
corajoso protesto cutucou o difundido ressentimento em relação à
Igreja, que muitos acreditavam ter perdido contato com os
ensinamentos de Jesus. Esses protestantes queriam uma fé mais crua,
sem mediação, e assim, livres da Igreja, eles poderiam encontrar seu
próprio caminho. O protestantismo era tão flexível que logo prosperou
uma variedade de novas seitas - luteranos, Igreja da Reforma,
presbiterianos, calvinistas, anabatistas -, enquanto para Henrique VIII o
protestantismo inglês foi um meio de afirmar sua independência
política. Mas uma coisa os unia a todos: a reverência pela Bíblia, que
restaurava Jerusalém como o próprio centro da sua fé (MONTEFIORE,
2013, p. 381).
4.4.- Os Protestantes Evangélicos Restauracionistas Britânicos
A política diplomática britânica relativa a Jerusalém desenvolveu-se com a
necessidade de ter uma ponte na região ampliando seu poder, uma vez que os
franceses defendiam os católicos romanos, os russos, os ortodoxos e como
havia poucos protestantes, coube aos britânicos “proteger” os judeus. Essa
política objetivando diminuir a influência francesa e russa foi executada por
Lorde Palmestron59, cujo genro, o Conde de Shaftesbury60, um fervoroso
evangélico que queria converter os judeus a Cristo. Segundo Montefiori, o
Conde Shaftesbury era um aristocrata de coração puro que:
...era também um fundamentalista que acreditava que a Bíblia “é a
palavra de Deus escrita da primeira até a última sílaba”. Tinha certeza
de que um cristianismo dinâmico promoveria uma renascença moral
global e uma melhora da humanidade em si. Na Grã-Bretanha, havia
muito que o milenarismo tinha sido sobrepujado pelo racionalismo
iluminista, mas sobrevivera entre os não conformistas... Convencido de
que a salvação eterna era alcançável mediante a experiência pessoal
de Jesus e suas boas-novas (evangelion em grego), esses evangélicos
esperavam a Segunda Vinda. Shaltesbury acreditava, como os
puritanos de dois séculos antes, que o retorno e a conversão dos
judeus criariam uma Jerusalém anglicana e o Reino dos Céus. Ele
preparou um memorando para Palmerston: “Há um país sem nação, e
59
Lorde Palmestron - Henry John Temple (1784-1865) foi um nobre e político britânico. Foi Ministro do Interior
(1852-1855), tornou-se primeiro-ministro (1855-1858 & 1859-1865).
60
Conde de Shaftesbury – Anthony Asheley-Cooper (1801 - 1885) foi um político e filantropo Inglês, um dos mais
conhecidos da era vitoriana.
112
Deus, em sua sabedoria e misericórdia, nos dirige para uma nação
sem país” (MONTEFIORI, 2013, p. 426).
O Conde Shaftesbury acreditava sinceramente que Deus havia levantado
o Império Britânico com o propósito do retorno dos judeus para Sião, e para isso,
ele atuou através da diplomacia britânica. Montefiori registrou essa atuação de
Shaftesbury junto às autoridades britânicas:
Enquanto isso, Shaftesbury convencera o novo primeiro-ministro,
Robert Peel, a apoiar a criação do primeiro bispado e da primeira igreja
anglicanos em Jerusalém. Em 1841, a Prússia (cujo rei havia proposto
uma Jerusalém internacional cristã) e a Grã-Bretanha nomearam em
conjunto o primeiro bispo protestante, Michael Solomon Alexander, um
judeu convertido. A Alemanha protestante vivenciava também um
despertar evangélico. Missionários britânicos tornavam-se cada vez
mais agressivos em sua missão judaica. Criaram um complexo
anglicano com uma igreja – dirigida pela Jews Society – e um
consulado britânico perto do portão de Jaffa, defronte à Cidadela: uma
ilha de arquitetura gótica vitoriana e evangelismo missionário. No
entanto, a Igreja de Cristo era – e continua sendo – única no mundo
protestante: não havia cruz, apenas uma menorá (um candelabro de
sete braços); tudo era escrito em hebraico, até mesmo a Oração do
Senhor. Era uma igreja protestante destinada a judeus. Na abertura,
três judeus foram batizados diante do cônsul Young (MONTEFIORI,
2012, p. 429).
A febre pela evangelização dos judeus e por Jerusalém era tamanha que
Jerusalém foi tomada por muitos evangelistas apocalípticos: “o Americam
Journal of Insanity comparou essa histeria à Corrida do Ouro na Califórnia”
(MONTEFIORI, 2013, p. 434). Na verdade, Jerusalém era fundamental para a
visão evangélica americana e inglesa da Segunda Vinda de Cristo, daí a
coqueluche evangelizadora deles. Antônio Gouvêa Mendonça, declara:
Para muitos, a pregação da salvação era urgente; devia ser feita antes
da segunda vinda de Cristo, do milênio portanto (GOUVÊA, 2008,
p.95).
113
4.5.- O Dispensacionalismo61
O pensamento teológico do dispensacionalismo foi primeiramente
formulado nos idos de 1830, nas Ilhas Britânicas, por John Nelson Darby (18001882). Várias foram as influências amalgamadas até chegar à sistematização do
dispensacionalismo de Darby, sempre baseado nas abordagens mais literais da
interpretação da Bíblia, em uma teologia que reconhece a distinção do plano de
Deus para Israel, do plano de Deus para a Igreja, e na crença vital do
Arrebatamento pré-tribulacional. Thomas Ice assim declarou:
A distinção feita por Darby, entre o plano de Deus para Israel e o plano
de Deus para a Igreja, formou a base de sua contribuição mais
polêmica para o cristianismo evangélico – o Arrebatamento da Igreja
antes da Tribulação, ou seja, o pré-tribulacionismo. Até mesmo os mais
ferrenhos opositores dessa doutrina admitem a sua lógica, se Deus
estiver para cumprir literalmente Suas antigas promessas a Israel. A
Igreja tem de ser removida antes que Deus retorne a Sua obra para
com Israel, dando condições de que os dois planos se integrem em
plena participação no reino milenar (ICE, 2004, p. 64).
Esse sistema teológico do dispensacionalismo chegou na América do
Norte antes da Guerra da Secessão (1861-1865) através do próprio John Nelson
Darby e de outros crentes da Igreja dos Irmãos. Dez anos depois da fratricida
guerra, por volta de 1875, o dispensacionalismo já havia sido propagado por
meio de pregações, conferências, fundações de escolas e da literatura por todo
o Canadá e Estados Unidos, sendo que, no século XIX, o dispensacionalismo já
havia se propagado de tal maneira, que se tornou no mais popular sistema
teológico evangélico.
Muitos são os motivos ou causas do crescimento do dipensacionalismo,
entre eles: Primeiro, o descontentamento com as perspectivas proféticas no fim
61
Dispensacionalismo - A palavra “dispensação” vem do latim dispenso, que significa “pesar” ou “administrar”,
como um mordomo... O termo grego assim traduzido é aikonomia, essa palavra é traduzido no Novo Testamento como:
“administração” ou “mordomia”. (CHAMPLIM e BENTES, 1997, p. 186 - vol. 2).
114
do século XIX, sendo que a perspectiva dispensacionalista do Arrebatamento
“iminente” proporcionava uma perspectiva bíblica mais plausível, muito mais
coerente para a época.
Segundo,
numa
sociedade
em
constantes
mudanças
e
grande
desenvolvimento tecnológico, cheia de complexidades, o dispensacionalismo,
com suas explanações do plano de Deus na história, com seus gráficos
dispensacionais, valorizava também as explanações complexas e lógicas.
Segundo Karen Armstrong:
Por bizarro que pareça, o programa pré-milenarista estava em sintonia
com o pensamento científico do século XIX. Também era moderno em
seu literalismo e em sua democracia. Não continha significados ocultos
ou simbolismos acessíveis apenas a uma elite de místicos. Todos os
cristãos, por mais rudimentar que fosse sua instrução, podiam
descobrir a verdade, revelada claramente na Bíblia. Sob esse prisma
as Escrituras querem dizer exatamente o que dizem: um milênio
compreende dez séculos; 485 anos são 485 anos; ao falar de “Israel”,
os profetas não se referem à Igreja, mas aos judeus; se o autor do
Apocalipse prevê uma batalha entre Jesus e Satã na planície de
Armagedon, nos arredores de Jerusalém, é exatamente isso que vai
acontecer. A leitura pré-milenarista da Bíblia se tornaria ainda mais fácil
para o cristão médio após a publicação de The Scofield Reference
Bible (1909), um best-seller imediato. C. I. Scofield explica a divisão da
história da salvação feita por Darby em notas detalhadas que
acompanham o texto bíblico e que para muitos fundamentalistas têm
quase tanta autoridade quanto o próprio texto (ARMSTRONG, 2001,
p.166).
Terceiro, era uma resposta contundente ao liberalismo que negava a
veracidade histórica da Bíblia.
Quarto, o dispensacionalismo se ajustava muito bem ao sistema de
explicação da Bíblia, versículo por versículo.
Quinto, o dispensacionalismo apresentava uma explicação plausível da
soberania de Deus num mundo terrivelmente cruel, onde a maldade crescia
cada vez mais.
Sexto e último, a causa do crescimento do dispensacionalismo, o
sionismo cristão, ou seja, a defesa dos dispensacionalistas ao retorno dos
115
judeus para a Palestina era um atrativo profético irresistível, pois tratava-se do
futuro plano de Deus para Israel.
Essa maneira clara e simplista de ler as Sagradas Escrituras permitiu
atingir o maior número de pessoas, pois qualquer indivíduo alfabetizado poderia
ler e compreender a Bíblia. Dentro dessa perspectiva, a Bíblia tornou-se
acessível e compreensível a todos. Todos podiam acompanhar as grandes
profecias bíblicas que estavam sendo cumpridas aos seus olhos, bastava ler a
Bíblia com lentes dispensacionalistas.
O dispensacionalismo foi a mensagem que mais se divulgou e a que teve
o maior crescimento e aceitação, entre os fiéis, em todo o mundo protestante.
4.6.- Sionismo Cristão ou Restauracionismo62
Os ingleses adotaram uma postura diferente. Desenvolveram uma
forma de sionismo cristão. Sua leitura da Bíblia os convencera de que a
Palestina pertencia aos judeus, e já na década de 1870 alguns
observadores ingleses ansiavam pelo estabelecimento de uma pátria
judaica na Palestina sob a proteção da Grã-Bretanha. Esse ponto de
vista permeava claramente a política dos cônsules britânicos. Na
Inglaterra protestante, onde se lia a Bíblia literalmente, muita gente
acreditava que um dia os judeus retornariam a Sião e que os árabes
eram usurpadores temporários (ARMSTRONG, 2000, p. 412).
Profundamente
influenciado
pelo
dispensacionalismo,
William
E.
Blackstone (1841 – 1935), metodista fervoroso, foi um dos mais destacados
defensores do restauracionismo dos judeus na terra de Israel. Sua obra
publicada em 1908, Jesus is Coming (Jesus Está Voltando) foi um best-seller,
62
Sionismo Cristão – O movimento sionista cristão teve seu início dentro do âmbito protestante, durante a Era
Pós-Reforma, no começo do século XV. Um número cada vez maior de protestantes, principalmente Puritanos, começou
a perceber que a Bíblia previa um reagrupamento dos judeus em sua pátria, na Terra de Israel, no fim dos tempos. Esse
movimento foi chamado de “Restauracionismo”, antes do surgimento do sionismo moderno que se deu no fim do século
XVII. O sionismo cristão é quase exclusivamente um movimento protestante, com livros inteiros escritos especificamente
sobre o assunto desde os primórdios de 1620... Os cristãos sionistas foram e têm sido atuantes em ajudar para que o
Estado de Israel da modernidade fosse fundado e mantido (ICE, 2010, p. 07).
116
sendo o mais aclamado expositor dispensacionalista de sua época. Conforme
Thomas Ice escreveu:
“Talvez você diga: ‘eu não creio que os israelitas devam retornar à terra
de Canaã, nem creio que Jerusalém deva ser reconstruída’. Meu caro
leitor, você já leu as declarações da Palavra de Deus sobre esse
assunto? Certamente não existe nada que tenha sido afirmado com
mais clareza nas Escrituras do que isso”. Após fazer tal declaração, as
próximas quatorze páginas que ele escreveu praticamente só contêm
citações das Escrituras que fundamentam sua convicção. Então ele
conclui: “Poderíamos ter enchido um livro inteiro com explicações sobre
a maneira pela qual Israel será restaurado à sua terra, mas nosso
único desejo era o de demonstrar o fato inquestionável da profecia, fato
esse que está intimamente relacionado com a aparição de nosso
Senhor e que, segundo cremos, cumprir-se-á plenamente” (ICE, 2010,
p. 11).
O sionismo cristão, difundido por Blackstone, não tinha apenas o objetivo
do retorno dos Judeus, mas também a evangelização deles. Segundo Thomas
Ice, Blaskstone acreditava firmemente na evangelização dos judeus:
Blackstone queria deixar um legado de evangelização para o povo
judeu, de modo que pudesse contribuir para a salvação dele após o
Arrebatamento da Igreja. Ele produziu e distribuiu material explicativo a
fim de que os judeus soubessem como poderiam ser salvos depois que
o Arrebatamento acontecesse. Houve ocasião em que Blackstone
chegou a ter centenas de Novos Testamentos impressos em hebraico,
os quais foram levados para Petra (na atual Jordânia) e lá estocados a
fim de que o remanescente judeu pudesse conhecer o caminho da
salvação durante o tempo da Grande Tribulação. (ICE, 2010, p. 14).
William Blackstone, como cristão sionista, precede o moderno Movimento
Sionista em pelo menos meio século. Como bem expressou Thomas Ice:
“Não é de se admirar que “a Conferência Sionista de 1918, realizada
em Filadélfia, tenha aclamado Blackstone como o ‘Pai do Sionismo’”
(ICE, 2010, p. 15).
117
4.7.- Lugar Santo dos Protestantes
A chegada dos protestantes em Jerusalém foi tardia, somente no século
XIX, nesse período a velha cristandade já havia se apoderado dos “lugares
sagrados”. Por isso, os protestantes ficaram sem “lugar sagrado” em Jerusalém,
até que uma tumba antiga foi descoberta pelo major britânico Charles Gordon 63
sugerindo uma localização diferente para o Calvário e túmulo de Jesus Cristo.
Um dos heróis da campanha do Egito foi o general Charles “Chinês”
Gordon, morto no Sudão após a queda de Cartum. Sua principal
contribuição para Jerusalém foi a descoberta da “Tumba do Jardim”.
Muitos europeus tomaram-se de aversão à igreja do Santo Sepulcro:
achavam que esse edifício obsoleto estava cheio de monges irritados e
irritantes, inconciliáveis com os límpidos mistérios de sua fé. Ao estudar
o levantamento militar de Wilson, Gordon encontrou certa semelhança
entre um das curvas de nível e um corpo de mulher, cuja “cabeça” era
um outeiro ao norte da Porta de Damasco. Esse devia ser o “Lugar da
Caveira”. Quando descobriu no local um sepulcro de pedra
aparentemente antigo, identificou o outeiro como o Gólgota e o
sepulcro como o de Cristo. Após sua morte, a “Tumba do Jardim” se
tornou um lugar santo dos protestantes (ARMSTRONG, 2000, p. 417418).
A descoberta foi no ano de 1867. Em seu dia de folga, Gordon, andando
pelos arredores da cidade velha, deparou-se com uma pequena elevação
rochosa semelhante a uma caveira, o que o levou à conclusão de se tratar do
lugar da crucificação de Jesus. Próximo do local encontrou um túmulo vazio.
Segundo o arqueólogo Randall Price:
Gabriel Barkay e Amos Kloner, arqueólogos de Jerusalém,
demonstraram que a Tumba do Jardim é inegavelmente parte de um
sistema de sepulcros na área, o mais proeminente dos quais está
próximo à porta da Tumba do Jardim na propriedade da Escola
Francesa de Arqueologia, a École Biblique. Todos os sepulcros neste
complexo de sepulcros datam da época do Primeiro Templo ou da
63
Charles George Gordon (1833-1885) - foi um oficial do exército britânico.
118
Idade de Ferro II (séculos VIII-VII a.C.) Pela razão de o Novo
Testamento dizer que Jesus foi enterrado num “sepulcro novo, em que
ainda ninguém havia sido posto” (João 19.41), a Tumba do Jardim deve
ser descartada para efeito de consideração (PRICE, 2001, p. 273).
Gordon era evangélico batista e escreveu uma carta para a Inglaterra
avisando a Comunidade Batista inglesa da "descoberta do sepulcro de Jesus" e
o local da crucificação. Os batistas ingleses chegaram a Jerusalém para verificar
o local e em seguida declararam como sendo o santo sepulcro de Jesus e o
local da crucificação; assim, os protestantes passaram a ter um local santo em
Jerusalém. A respeito dessa Tumba, a ex-freira católica Karen Armstrong
declara:
Trata-se de um monumento ao imperialismo britânico que mudaria para
sempre a história de Jerusalém (ARMSTRONG, 2000, p. 418).
Segundo a Associação do Jardim da Tumba64, instituição responsável
pelo local:
Este Jardim tem sido cuidadosamente preservado como um local
santo, cristão, porque muitos acreditam que este pode ter sido o jardim
de José de Arimateia no qual Jesus foi sepultado após Sua
crucificação. Este túmulo foi descoberto em 1867. Infelizmente, sua
entrada foi danificada, possivelmente por um terremoto e depois
reparada com blocos de pedra. A datação exata do túmulo é
contestada... O General Charles Gordon se tornou o maior expoente da
ideia de que esta pedreira (agora uma estação de ônibus) poderia ter
sido o local da crucificação de Jesus, evento que se deu fora da
muralha da cidade. Nós não podemos ter certeza, mas é curiosa a
semelhança com um crânio humano, esculpida sobre a face da rocha à
sua esquerda... A Bíblia também nos diz que "no local onde Jesus foi
crucificado, havia um jardim, e no jardim um novo túmulo, em que
ninguém ainda havia sido sepultado." (João 19:41). Este túmulo (e
presumivelmente também o jardim) pertencia a José de Arimateia, um
64
Associação do Jardim da Tumba - é uma associação de origem inglesa, criada em 1893 para a preservação
do Túmulo e Jardim que se encontram fora das muralhas da Cidade Velha de Jerusalém, considerado, por muitos, como
o Sepulcro e Jardim de José de Arimateia.
119
discípulo secreto de Jesus, a quem foi dado permissão especial para
sepultar o corpo de Jesus antes do início do Sábado Judaico... Nós não
temos nenhuma prova definitiva se, de fato, este seria o local da
crucificação, sepultamento e ressurreição de Jesus. Tudo o que você
viu aqui se encaixa nos detalhes descritos nas narrativas dos
Evangelhos e ajuda as pessoas a imaginarem os eventos maravilhosos
da primeira manhã da Páscoa Cristã (Associação do Jardim da Tumba,
Jerusalém 91193, Israel).
O arqueólogo Randall Price apresenta a seguinte consideração sobre o
Jardim do Túmulo e a Igreja do Santo Sepulcro:
...quando os turistas em Jerusalém são levados para visitar o sepulcro
de Jesus, em geral são lhes mostrados dois lugares que os guias
dizem que competem pelo título do local do sepultamento de Jesus.
Um deles é o local protestante conhecido como Calvário de Gordon,
assim chamado por causa do nome daquele que o descobriu... O outro
é o local tradicional da Igreja do Santo Sepulcro, cuja história remonta
a pelo menos o século IV d.C. (baseado na existência de colunas ainda
em uso hoje procedentes da igreja de Constantino e sua descrição em
fontes bizantinas). Enquanto que a maioria dos cristãos evangélicos
prefere o local sereno e calmo da Tumba do Jardim situada próxima à
colina que Gordon identificou como a Colina da Caveira ou Gólgota,
não há nenhuma evidência arqueológica que apoie esse local.
Previamente seu principal apoio adveio do fato de que estava fora dos
atuais muros da Cidade Velha, ao passo que a Igreja do Santo
Sepulcro situava-se dentro. Considerando que o Novo Testamento
deixa bem claro que Jesus foi crucificado “fora da porta” (João 19.20;
Hebreus 13.11,12) e que foi presumido que os modernos muros
seguiam o curso antigo, o apoio para a Igreja do Santo Sepulcro
dependia principalmente da tradição. Porém, em fins da década de
1960, Kathleen Kenyon descobriu prova de que o muro que hoje inclui
o local tradicional era um “Terceiro Muro” construído depois do tempo
de Jesus (cerca de 41 d.C.) Portanto, quando Jesus foi crucificado,
teria estado fora do antigo “Segundo Muro”. Além disso, em 1976,
Magen Broshi desenterrou uma porção de muro herodiano em seção
nordeste da igreja. Isso significa que quando Jesus foi crucificado a
área na qual a igreja está construída achava-se imediatamente fora do
Muro Ocidental da cidade na linha do Primeiro Muro. Outros
descobriram que havia uma “Porta do Jardim” neste muro, o que
concorda com as referências a um jardim nesse lugar (João 19.41;
20.15)... Em fins da década de 1970, escavações no local revelaram o
fundamento do foro romano de Adriano, sobre o qual o Templo de
Afrodite fora construído (cerca de 135 d.C.). Adriano tinha construído
templos e santuários pagãos aqui para sobrepujar as anteriores
estruturas religiosas, da mesma maneira que fizera no local do Templo
Judaico. Se este fosse o local venerado pelos cristãos primitivos como
120
o sepulcro de Jesus, teríamos explicação para esta localização do
edifício. Eusébio (século IV), historiador da igreja, fala que Adriano
construiu enorme plataforma retangular em cima desta pedreira,
“escondendo a caverna santa debaixo deste montículo volumoso”...
Ainda há outra consideração a favor da Igreja do Santo Sepulcro: o tipo
de sepulcro no qual Jesus foi posto. No século I, estavam em uso dois
tipos de sepulcros. Um era o kokim, forma mais comum, que são
nichos estreitos muito longos talhados em ângulo reto na câmara das
paredes da caverna mortuária. O outro tipo, chamado arcosólia, eram
saliências pouco profundas talhadas paralelas à parede da câmara
com um topo na forma de arco sobre o vão. Este tipo de sepulcro eram
reservados para pessoas de posse e alto nível social. Parece ter sido
este o tipo de sepulcro no qual Jesus foi colocado, porque está escrito
que o sepulcro de Jesus era o sepulcro de um homem rico (Mateus
27.57-60; cf. Isaías 53.9), o corpo pôde ser visto pelos discípulos
quando foi colocado (possível somente num sepulcro talhado na forma
de saliência, João 20.5,11) e os anjos foram vistos sentados onde
haviam estado a cabeça e os pés de Jesus (João 20.12). O sepulcro
gravemente erodido na Tumba do Jardim não tem nenhuma destas
características, ao passo que o pretenso sepulcro de Jesus no local
tradicional, embora, deformado por séculos de peregrinos dedicados, é
nitidamente composto de uma antecâmara e um arcosolium talhada na
pedra (PRICE, 2001, p.272-273 e 276).
Independentemente, qual seja o “verdadeiro lugar sagrado”, o mundo
protestante evangélico desenvolveu seu imaginário através da leitura literal das
Sagradas Escrituras e aparentemente o Jardim do Túmulo se “parece” mais com
o túmulo de Jesus, conforme registro bíblico65, do que a velha Basílica do Santo
Sepulcro, repleta de misticismo católico, dominado por sete tradições religiosas
católicas diferentes, local cheio de animosidades e rituais misteriosos, como o
“fogo sagrado” dos ortodoxos, além de outros rituais religiosos místicos,
intoleráveis na percepção protestante, interpretado como idolatria.
4.8.- A Conquista Britânica
A Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914, o enfrentamento foi entre a
Tríplice Aliança formada em 1882 por Itália, Império Austro-húngaro e Alemanha
(a Itália saiu da Tríplice Aliança e passou para a Tríplice Entente em 1915). Do
65
João 19.20.
121
outro lado a Tríplice Entente, formada em 1907, com a participação de França,
Império Czarista Russo e Reino Unido. O velho Império Otomano aliou-se à
Tríplice Aliança:
A Turquia aliou-se à Alemanha contra a França e a Inglaterra.
Jerusalém tornou-se quartel-general do VIII Exército Turco. A tragédia
que se desenrolou entre 1915 e 1918 foi o prelúdio de uma catástrofe
que teria profundo impacto na história de Jerusalém... Em 1916, os
ingleses chegaram à conclusão de que uma vitória espetacular no
Oriente Próximo acabaria com o impasse da guerra de trincheira na
França. A Força Expedicionária Anglo-Egípcia deslocou-se para a
península do Sinai, mas encontrou firme resistência turca em Gaza. O
general Edward Allenby, a quem o primeiro ministro Lloyd George
recomendara que conquistasse Jerusalém para oferecê-la ao povo
britânico como presente de Natal, substituiu o general Murray e tratou
de estudar atentamente as publicações do FEP: como na conquista de
Napoleão, mais de um século antes, o estudo científico preludiou a
ocupação militar. Em outubro de 1917, Allenby tomou Gaza e deu início
a seu avanço sobre Jerusalém. O governador Djemal Pasha ordenou
que os turcos evacuassem cidade, onde a única autoridade presente
em 9 de dezembro era o prefeito Hussein Selim al-Husaini. À frente de
um cortejo de meninos, al-Husaini deixou a Cidade Velha pela Porta de
Jafa e entregou Jerusalém a dois atônitos batedores ingleses. Quando
Allenby chegou à Porta de Jafa, em 11 de dezembro, todos os sinos
repicaram para saudá-lo. Por respeito à santidade da “Jerusalém
Bendita”, o general apeou-se e seguiu a pé até a escadaria da
Cidadela. Em nome do governo de Sua Majestade garantiu aos
habitantes locais que protegeria os lugares santos e preservaria a
liberdade religiosa das três crenças de Abraão. Havia completado a
obra dos cruzados (ARMSTRONG, 2000, p. 423-424).
Em 02 de novembro de 1917, basicamente um mês antes da entrada de
Allenby em Jerusalém, o primeiro-ministro britânico Lloyd George orientou seu
ministro do Exterior, Lord Balfour, a escrever uma carta a Lord Rothschild com a
seguinte declaração:
O governo de Sua Majestade considera favoravelmente a criação, na
Palestina de um lar nacional para o povo judeu e envidará seus
maiores esforços no sentido de facilitar a concretização de tal objetivo,
estando claramente entendido que nada se fará para prejudicar os
direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na
Palestina ou os direitos e a situação política dos judeus em qualquer
outro país (ARMSTRONG, 2000, p. 427-428).
122
A Inglaterra sempre alimentou a esperança restauracionista do retorno do
povo judeu à Palestina. No final da Primeira Guerra Mundial, ela reunia todas as
condições de realizar esse sonho britânico há tempos gestado no imaginário
cristão protestante evangélico e nesse momento havia vantagem política nesse
processo:
Durante muito tempo a Inglaterra alimentara a fantasia do retorno dos
judeus à Palestina. Em 1917, em plena guerra mundial, possivelmente
houve também considerações estratégicas. Um protetorado britânico
de judeus agradecidos poderia contrariar as ambições dos franceses
na região (ARMSTROG, 2000, p. 428).
Em 1917 ocorreu um fato histórico de extrema relevância para o término
da Primeira Guerra Mundial - a entrada dos Estados Unidos da América ao lado
da Tríplice Entente. Este fato marcou a vitória da Entente, forçando os países da
Aliança a assinarem a rendição. Os derrotados tiveram ainda que assinar o
Tratado de Versalhes que impunha a estes países fortes restrições e punições.
O Império Otomano derrotado após a Primeira Guerra Mundial assinou,
em 10 de agosto de 1920, a paz em Sèvres (Hauts-de-Seine). Os Aliados
impuseram o desmembramento do Império Otomano, cujo território ficou
reduzido à Anatólia e uma pequena porção europeia. A Inglaterra e França
firmaram o secreto Acordo Sykes-Picot, que dividiu as províncias árabes do
Império Otomano em zonas e protetorados britânicos e franceses.
Entre os anos de 1917 a 1920, a Inglaterra controlou militarmente a
denominada Administração dos Territórios Inimigos Ocupados, ou seja, a
Palestina e Jerusalém estiveram sob o controle militar dos ingleses. Em Abril de
1920, a Inglaterra foi oficializada como responsável para administrar a Palestina:
O artigo 22 do Pacto da Liga das Nações instava-a a aplicar “o
princípio de que o bem estar e o desenvolvimento (do povo palestino)
constituem um dever sagrado da civilização”. Instava-a também a
123
implementar a Declaração Balfour e preparar o caminho para o
estabelecimento de um Lar Nacional Judaico na Palestina. Para isso
seria criada uma Agência Judaica que contribuiria igualmente para o
desenvolvimento do país em geral (artigo 4). Caberia ainda à Agência
facilitar “a concessão da cidadania palestina aos judeus” (artigo 6) e “a
imigração judaica em condições adequadas” (artigo 7) (ARMSTRONG,
2000, p. 430).
Durante a Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo nazista de 1933 a
1945 exterminou seis milhões de judeus, simplesmente pelo fato de ser judeu.
Anciãos, crianças, jovens, adultos foram mortos indiscriminadamente, pois os
nazistas procuravam processos de exterminar o mais rápido possível a etnia
judaica. Os campos de extermínios como o de Auchiwitz, Treblinka, Dachau,
Soberbowr e outros usavam as técnicas de cremação e jogavam o pó nos rios,
para não deixar vestígios; embora as autoridades mundiais soubessem, não se
mobilizaram para fazer algo pelos judeus, alguns isoladamente procuraram fazer
algo, mas foi muito pouco em relação à dimensão e à monstruosidade da
máquina nazista.
Quando os nazistas perceberam que iam perder a guerra, ficaram
preocupados e começaram a desativar os campos de extermínios para não
deixar nenhum vestígio e portanto não deixar prova, mas não houve tempo para
desativar o campo de Auchiwitz na Polônia. Existia no mundo na época
aproximadamente onze milhões de judeus, dos quais o regime nazista
exterminou seis milhões.
4.9.- O Fim do Mandato Britânico
Após dois mil anos de exílio, dispersão, sofrimento, angústias,
discriminação e isolamento o povo de Israel, povo deslocado, “povo errante”,
voltou a sua terra; muitos voltaram sobreviventes do holocausto, buscando
124
refúgio de um mundo que assistiu ao extermínio de seis milhões de judeus
europeus. Milhares de judeus, vislumbrando vida nova na Terra Prometida,
foram barrados pelos ingleses, que lhes impediam acesso à Palestina.
Os ingleses não conseguiam manter a paz entre quinhentos mil judeus e
um milhão de árabes, cada um com seu sonho de independência. A maioria
árabe se opunha ao simples conceito de um Estado Judeu. Os ânimos ferviam
em ambos os lados, povoados judeus iam se isolando devido aos frequentes
ataques árabes tornando a vida impossível.
Em 29 de novembro de 1947 a Palestina foi dividida em dois Estados, um
judeu e outro árabe. No dia seguinte, cinco mil árabes marcharam em Jerusalém
rumo ao centro judaico, destruindo tudo pelo caminho. Uma bomba colocada na
rua Ben Yehuda deixou judeus soterrados sob os escombros. Atiradores árabes
fizeram dos judeus seus alvos.
Oitenta mil judeus de Jerusalém permanecerem na cidade santa,
racionando suas reservas de água e comida. No dia 20 de abril as brigadas
judaicas avançaram rumo a Jerusalém juntamente com um comboio de
aproximadamente trezentos caminhões que deveriam abastecer a cidade e
libertar toda Jerusalém. Após pesado combate, mil e quinhentos soldados judeus
abriram caminho e conquistaram partes estratégicas de Jerusalém.
Em maio de 1948, David Ben Gurion declarou a independência do Estado
Judeu na terra de Israel. Enquanto as tropas britânicas zarpavam da baía de
Haifa, Israel hasteava a sua bandeira no porto protegido pelo primeiro navio da
marinha de Israel, mas as comemorações duraram pouco, pois os países árabes
decidiram atacar a jovem nação.
Toda essa história era assistida com fervorosa fé e oração pelos
protestantes evangélicos dispensacionalistas do mundo todo, em especial os
pentecostais do Brasil, para eles era o cumprimento das profecias da Bíblia
Sagrada.
125
4.10.- O Renascimento de Israel
No dia 29 de novembro de 1947, a 1ª Assembleia Ordinária da ONU
aprovou a criação do Estado de Israel; na percepção profética dos evangélicos
dispensacionalistas, nasceu uma nação num só dia. O dia 14 de maio de 1948
foi o prazo dado às tropas britânicas para se retirarem da Palestina e passarem
a administração para os judeus assumirem seu governo. Foi quando Davi Ben
Gurion fez a Declaração da Fundação do Estado de Israel, 14 de maio de 1948
a data da Independência de Israel. Os evangélicos dipensacionalistas, crentes
na literalidade da Bíblia, declaravam que o Estado Judeu nascera num só dia,
assim como vaticinara o Profeta Isaías:
Quem jamais ouviu tal coisa? Quem viu coisas semelhantes? Poderse-ia fazer nascer uma terra em um só dia? Nasceria uma nação de
uma só vez? Mas Sião esteve de parto e já deu à luz seus filhos (Isaías
66.8 - ARC).
No entendimento evangélico dispensacionalista a declaração: “mas Sião
esteve de parto...” foi o holocausto, a agonia, a angústia, o sofrimento do povo
judeu na Europa, mas depois Sião deu à luz, depois do holocausto, depois da
derrocada do nazismo, nasceu o Estado de Israel, cumprindo a palavra do
profeta Isaías. Para sustentar sua teologia os evangélicos dispensacionalistas
citam ainda a literalidade de Jeremias 31.15-17 e Ezequiel 36.24:
Assim diz o SENHOR: Uma voz se ouviu em Ramá, lamentação, choro
amargo; Raquel chora seus filhos, sem admitir consolação por eles,
porque já não existem. Assim diz o SENHOR: Reprime a voz de choro,
e as lágrimas de teus olhos, porque há galardão para o teu trabalho,
diz o SENHOR; pois eles voltarão da terra do inimigo. E há esperanças
no derradeiro fim, para os teus descendentes, diz o SENHOR, porque
teus filhos voltarão para o seu país (Jeremias 31.15-17 - ARC)
E vos tomarei dentre as nações, e vos congregarei de todos os países,
e vos trarei para a vossa terra (Ezequiel 36.24 - ARC).
126
Os judeus vieram de todas as partes do mundo e até hoje estão voltando
para a terra de Israel, a terra de seus pais, a terra dos patriarcas, para Eretz
Israel; na crença dos dispensacionalistas esse é o cumprimento inequívoco e
literal da Palavra de Deus.
Lembrando que o primeiro país a reconhecer o estado judaico
imediatamente após sua declaração de independência no dia 14 de maio de
1948, foram os Estados Unidos da América, sendo o Presidente Harry Truman o
primeiro líder mundial a fazer isso; além dos interesses políticos e geopolíticos
de Truman, há o motivo religioso do presidente batista, como acentuou Carroll:
Truman não era filossemita, mas crucial para sua decisão a favor de
Israel foi sua associação permanente, como batista (e membro do
Comitê Palestino Cristão Americano), com o programa sionista cristão,
como vimos, de apoiar a reintegração dos judeus a terra de Israel como
precondição da Segunda Vinda de Jesus. Não havia dúvida de que, ao
reconhecer o estado judaico, Truman desejava o melhor às vítimas de
Hitler, mas, talvez inconscientemente, ele também considerasse natural
que, ao apoiar o retorno dos judeus a Sião, eles seriam instrumentos
de sua própria derrota final (CARROLL, 2013, p. 311).
Esse apontamento mostra a forte presença da visão dispensacionalista
nos membros das igrejas evangélicas dos Estados Unidos da América.
4.10.1.- Um “golpe” na “Doutrina da Substituição” e da “errância do povo
judeu”.
A volta do povo judeu para a terra de Israel foi um duro “golpe” no
imaginário cristão católico, defensor da milenar doutrina da Substituição da
127
nação de Israel pela Igreja Cristã e da errância do povo judeu. Assim descreveu
James Carroll:
No tempo de Constantino, início do século IV, depois de duzentos anos
sendo uma cidade pagã conhecida como Aelia Capitolina, Jerusalém
foi reconstruída como lugar santo cristão – um símbolo da substituição
de Israel pela Igreja. No local onde a mãe de Constantino “descobriu” a
Cruz Verdadeira foi construída a Igreja do Santo Sepulcro, dando à
cidade seu novo Templo. A teologia da Substituição inseria-se num
contexto geográfico: como o sinal da aliança de Deus era “a terra que
Eu te darei”, com a quebra da aliança, a terra foi tomada. Pelo final do
século IV, entendia-se que Santo Agostinho considerava a quase
inexistência de judeus em Jerusalém – ele citava um Salmo para
ordenar “Dispersem-nos!” – como prova de que eram os cristãos que
detinham o direito de posse da cidade. Começou nesse ponto “o judeu
errante”. Desde então, como vimos, quando os cristãos governaram a
cidade, os judeus eram proibidos de lá residir. A Igreja Católica
Romana e a Ortodoxa Oriental foram as principais guardiãs dessa
tradição, que não foi minimamente alterada pelas crenças
restauracionistas do século XIX professadas por evangélicos
protestantes na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Para os católicos
e outras denominações cristãs preponderantes, “Nada de judeus em
Jerusalém”: ponto (CARROLL, 2013, p. 287).
Aproximadamente quarenta e quatro anos antes do restabelecimento do
Estado de Israel na Palestina, o jornalista fundador do sionismo 66, o judeu
Theodor Herzl67, teve um encontro com o Papa Pio X68. Carroll descreve o
encontro apresentando o pensamento de Herzl sobre a frustração de seu
objetivo sobre uma questão de reverência entre ele e o papa, enquanto que, o
66
Sionismo- É um movimento político e filosófico que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à
existência de um Estado nacional judaico independente no território onde historicamente existiu o antigo Israel.
Denominado de nacionalismo judaico, historicamente propõe o fim da Diáspora Judaica, com o retorno dos judeus para o
Estado de Israel. O movimento defende a manutenção da identidade judaica, opondo-se à assimilação dos judeus pelas
sociedades dos países onde vivem. Surgido no final do século XIX na Europa Central e Oriental como um movimento de
revitalização nacional, logo foi associado pela maioria dos seus líderes, à colonização da Palestina. A Organização
Sionista Mundial foi criada em 3 de setembro de 1897 durante o primeiro Congresso Sionista Mundial que se realizou em
Basileia na Suíça. Esta organização, que se denominou inicialmente Organização Sionista, serviu como frente
organizativa para o movimento sionista. Em 1960 a organização adotou o nome de Organização Sionista Mundial. A sede
da organização está em Jerusalém (Israel).
67
Theodor Herzl (1860-1904) – Jornalista judeu austríaco foi o fundador do Sionismo político. Theodor Herzl foi
eleito o primeiro presidente da Organização Sionista Mundial.
68
Papa Pio X (1835-1914) - Cardeal Giuseppe Sarto foi eleito para o Sumo Pontificado, como Pio X, foi o único
Papa canonizado no século XX.
128
que estava em jogo era a “Doutrina da Substituição” e da “errância do povo
judeu”:
Não admira que Theodor Herzl, por seu próprio relato, se sentisse
apreensivo quando chegou no Vaticano, no dia 25 de janeiro de 1904,
para uma audiência particular com o papa Pio X. Herzl fora bemsucedido em atrair monarcas e autoridades governamentais para sua
causa, e agora esperava obter o apoio do Vaticano. Na verdade, ele
estava instigando o que um historiador chama de “revolta contra o
destino judaico” – contra a febre de Jerusalém que havia muito
infectara o mais sagrado nicho da imaginação ocidental. Sua iniciativa
com relação ao Vaticano fora arranjada por um conde papal seu
conhecido, o conde o orientara insistentemente a beijar o anel do papa.
Mas Herzl não conseguiu fazer isso. Quando Pio X lhe ofereceu a mão
adornada, Herzl simplesmente retribuiu em um aperto. “Creio que isso
arruinou as minhas possibilidades com ele”, escreveu no seu diário no
dia seguinte, mas considerando os objetivos de Herzl as possibilidades
haviam sido arruinadas 1.800 anos antes (CARROLL, 2013, p. 287288).
O diálogo entre Herzl e o Papa Pio X apresenta o real problema entre a
petição de Herzl e a doutrina católica da substituição, ou seja, o Vaticano não
poderia jamais apoiar o retorno dos judeus para a terra santa, porque contrariava
a doutrina católica da substituição. Carroll descreve o diálogo da seguinte
maneira:
“Papa: ‘Estamos impossibilitados de apoiar esse movimento (sionismo).
Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém, mas jamais
poderíamos aprovar isso. O solo de Jerusalém, não fosse sagrado
desde sempre, foi santificado pela vida de Jesus Cristo. Como chefe da
Igreja, não posso responder-lhe de outra forma. Os judeus não
reconheceram nosso Senhor, portanto não podemos reconhecer o
povo judeu”. Como que tirando a escara da ferida de mil anos da
cristandade, Herzl replicou, “E quanto à condição atual da cidade,
Santo Padre?”. Pio X respondeu: “Eu sei, é desagradável ver os turcos
de posse de nossos Lugares Santos. Nós simplesmente temos de
suportar isso. Mas aprovar o desejo dos judeus de ocupar esses
lugares, isso não podemos fazer”. Apesar de todo o longo conflito, e
mesmo ódio, da cristandade com o inimigo islâmico, não havia afronta
teológica muçulmana que se comparasse com o insulto eterno que a
Igreja recebera dos judeus. Como que explicando o porquê disso, o
papa continuou: “A fé judaica era a base de nossa própria fé, mas foi
substituída pelos ensinamentos de Cristo, e não podemos admitir que
ainda goze de qualquer validade. Os judeus, que deveriam ter sido os
129
primeiros a reconhecer Jesus Cristo, não o aceitam até hoje”. O
encontro do papa com o sionista assumira o caráter de uma disputa
medieval. Herzl disparou de volta, “Terror e perseguição não (são)
exatamente os melhores meios de converter os judeus”. Pio X aparou o
golpe com uma lâmina, embainhada numa rara apreciação papal de
origens históricas, “Nosso Senhor veio sem poder nenhum. Ele veio em
paz. Ele não perseguiu ninguém. Foi abandonado até por seus
apóstolos. Só mais tarde foi que adquiriu estatura. Foram necessários
três séculos para que a Igreja evoluísse. Portanto, os judeus tiveram
bastante tempo para aceitar sua divindade sem coação ou pressão.
Mas optaram por não fazer isso, e ainda não, o fizeram”. E então cada
homem, ao seu próprio modo, chegou ao cerne da questão. Herzl
disse, “Mas, Santo Padre, os judeus se encontram numa situação
terrível. Não sei se Vossa Santidade está a par da enormidade da
tragédia que vivem. Precisamos de uma terra para essas pessoas
expropriadas”. Reiterando a tradição fulcral, o papa perguntou: “Pecisa
ser Jerusalém?”. A resposta de Herzl está impregnada da implicação
de que o sionismo ainda não estava infectado pela febre da
restauração religiosa. “Não estamos pedindo Jerusalém, mas a
Palestina – apenas a terra secular”. “Não podemos ser favoráveis a
isso”, declarou Pio X. E ameaçou com a sentença católica suprema: “E
assim, se forem à Palestina e fixarem seu povo lá, estaremos prontos
com igrejas e padres para batizá-los”. Depois disso, relata Herzl, o
papa “pegou um pitada de rapé e espirrou num grande lenço de
algodão vermelho... A audiência durou em torno de 25 minutos”. Ao
retirar-se da presença do papa, Herzl passou pela galeria de arte do
Vaticano. “Vi o quadro de um imperador ajoelhado diante de um papa
sentado, recebendo a coroa de suas mãos. É isso que Roma quer”
(CARROLL, 2013, p. 288-289).
A base teológica da Igreja Católica Apostólica Romana contra o
Movimento Sionista Mundial de Herzl está descrita na publicação jesuíta oficial
Civilità Cattolica em 1897, conforme reproduz Carrol em seu livro:
Mil oitocentos e vinte sete anos se passaram desde que a predição de
Jesus de Nazaré se realizou, isto é, que Jerusalém seria destruída...
que os judeus seriam levados como cativos para todas as nações e
que permaneceriam na dispersão até o fim do mundo... Segundo as
Escrituras Sagradas, o povo judeu deve viver sempre disperso e
vagabundo (vagabundo, errante) entre as outras nações lpara dar
testemunho de Cristo, não só pelas Escrituras... mas por sua própria
existência. Quanto a uma Jerusalém reconstruída que poderia se tornar
o centro de um Estado de Israel reconstituído, precisamos acrescentar
que isso é contrário à previsão do próprio Cristo que prediz que
“Jerusalém será pisada pelos gentios até que se completarem os
tempos das nações pagãs” (Lucas 21.24), isto é... até o fim do mundo
(CARROLL, 2013, p. 289-290).
130
A teologia católica da “substituição” e da “errância do povo judeu” reinou
sem ameaça até 1948, quando foi restabelecido o Estado de Israel. Nesta
questão de percepção teológica a respeito da restauração dos judeus na
Palestina, podemos notar a diferença abissal da doutrina católica em relação à
evangélica, como bem pontuou Carroll:
Essa antiga convicção católica romana e ortodoxa oriental de que Deus
proíbe a volta dos judeus a Jerusalém não poderia contrastar mais
agudamente com a moderna certeza evangélica protestante de que
Deus deseja a reintegração dos judeus em Jerusalém – no entanto, no
fundo essas duas visões cristãs colocam a relação dos judeus com
Jerusalém no centro da teologia do Fim dos Tempos... Não somente
Jerusalém, a cidade eternamente judaica, desencadeou a fúria da
imaginação cristã, e esse, naturalmente, é mais uma aspecto do
desdém cristão pelos judeus (CARROLL, 2013, p. 290-291).
O segundo “golpe” dado à “Doutrina da Substituição” e da “errância do
povo judeu” foi a anexação de Jerusalém por Israel em 1967. Carroll faz a
seguinte análise desta questão:
Os gregos também faziam parte disso, enquanto Bizâncio levara
adiante pressupostos da expulsão dos judeus da terra que Constantino
e sua mãe, Helena, haviam tornado sagrada. Mas agora o Vaticano era
o principal guardião da teologia do exílio e era expectativa universal
que ele fosse uma das partes em qualquer arranjo de
internacionalização. O desejo insatisfeito de Roma por Jerusalém era a
própria gênese da mimese – da rivalidade mimética. Novamente, a
justificação expressa para a política proposta apelava à razão e à
equidade: a internacionalização respeitaria as necessidades religiosas
dos três monoteísmos que possuíam santuários no coração da Cidade
Velha. Mas também em vigência estava o dogma teológico que Pio X
havia exposto tão francamente a Theodor Herzl, o qual exigia a
ausência judaica de Jerusalém como prova de que os cristãos eram os
verdadeiros herdeiros de Jesus, que a havia predito. Como revelaria a
falta de objeções do Vaticano ao controle jordaniano da Cidade Velha,
que durou de 1948 até 1967, era especialmente a soberania judaica
que constituía problema. Não houvera nenhuma exigência de um
corpus separatum quanto os árabes estava no controle. A rejeição ao
poder judaico sobre Jerusalém estava instalada no DNA do cristianismo
131
e, portanto, em 1948, da civilização ocidental. Para a Igreja Católica,
essa rejeição equivalia a um dogma. De fato, por causa de sua
obrigação divinamente ordenada de se opor a volta dos judeus para a
terra natal judaica, o Vaticano se recusaria a reconhecer
diplomaticamente Israel por quase meio século (CARROLL, 2013, p.
310).
Embora, o protestantismo tenha desenvolvido seu imaginário religioso
sobre Jerusalém tardiamente, ele recuperou em parte a experiência das fés
anteriores, apropriando-se da cidade santa, porém sua experiência será
influenciada por uma perspectiva mais simbólica.
De modo geral, o mundo protestante terá um imaginário sobre a cidade
mais alegórico e transcendente, destituído da paixão mística política-religiosa. O
protestantismo tradicional de maneira geral faz uma leitura augustiniana, onde a
interpretação
alegórica
está
presente,
diferentemente
de
seus
irmãos
evangélicos dispensacionalistas, que criarão um imaginário mais literal das
Sagradas Escrituras.
5.- A Construção Do Imaginário Evangélico Pentecostal Clássico Sobre
Jerusalém
132
Os evangélicos pentecostais69 são oriundos de um vasto movimento
reavivacionista de herança wesleyana e Holiness70 norte-americano, desde o fim
do século XVII até sua eclosão na virada do século XX. O Dr. Gary B. McGee,
catedrático de Estudos Bíblicos na Faculdade Teológica Evangel, em seu
panorama histórico do pentecostalismo, assim escreveu:
Com a chegada do reavivalismo, no fim do século XVII e início do
século XVIII, na Europa e na América do Norte, os pregadores
calvinistas, luteranos e arminianos passaram a enfatizar o
arrependimento e a piedade na vida cristã. Qualquer estudo do
Pentecostalismo tem de se ater aos eventos desse período,
especialmente à doutrina da perfeição cristã ensinada por João
Wesley, o pai do Metodismo, e pelo seu assistente João Fletcher. A
publicação por Wesley de A Short Account of Christian Perfection
(1760) conclama seus seguidores a buscarem uma nova dimensão
espiritual. Essa segunda obra da graça, posterior à conversão,
libertaria os crentes de sua natureza moral imperfeita, que os tem
induzido ao comportamento pecaminoso. Essa doutrina chegou à
América do Norte, e inspirou o crescimento do Movimento da
Santidade. A ênfase voltada à vida santificada, mas sem mencionar o
falar noutras línguas, registrado nas Escrituras (“derramamento do
Espírito”, “batismo no Espírito Santo”, “línguas de fogo”), tornou-se
“marca registrada” da literatura e hinódia do Movimento da Santidade.
Uma das principais líderes da ala metodista do movimento, Phoebe
Palmer, editou o Guide to Holiness e escreveu entre outros livros, The
Promise of the Father (1859). Outro escritor popular, William Arthur,
escreveu Tongue of Fire (1856) um grande sucesso literário (HORTON,
1999, p. 12-13).
O professor e conferencista pré-tribulacionista71 Dr. Thomas Ice72 assim
definiu o pentecostalismo:
O pentecostalismo é, em seu cerne, uma suposta restauração do
cristianismo apostólico que tem por objetivo produzir, na época da
69
Pentecostal – A palavra pentecostal tem suas raízes na festa dos judeus, comemorada na quinquagésimo dia
posterior à Páscoa Judaica. A Septuaginta usa o termo pentêconta hêmeras como a tradução do hebraico cinquenta dias,
referindo-se ao número de dias partindo da oferta do molho da cevada até o inicio da Páscoa. Ao quinquagésimo dia era
a festa de pentecostes (DOUGLAS, 1997, p. 1265 apud BITUN, 2011, p. 49).
70
Herança Wesleyana e Holiness – referente à herança teológica que dá ênfase a santidade, doutrina da
perfeição cristã ensinada por João Wesley, o pai do Metodismo.
71
Pré-Tribulacionista – Adepto da crença evangélica que acredita no arrebatamento dos cristãos nascidos de
novo para o céu, antes da grande tribulação.
72
Thomas Ice - É diretor executivo do Pre-Tribulation Research Center (Centro de Pesquisas Pré-Tribulacionista)
em Arlington, Texas (EUA). Ele é Ph.D. pelo Seminário Teológico de Dallas e pelo Seminário de Tyndale. Autor de
dezenas de artigos e co-autor de mais de 20 livros, é conferencista.
133
chuva serôdia, uma colheita em preparação para a volta de Cristo. A
expressão “chuva serôdia” é proveniente de Joel 2.23 e 28, e, ás
vezes, de Tiago 5.7, como um designativo que descreve um
reavivamento no fim dos tempos e uma colheita evangelística
esperados por muitos carismáticos e pentecostais. Estes creem que o
Espírito Santo, nalguma ocasião futura, será derramado de modo
nunca dantes visto. O ensino da chuva serôdia desenvolve-se a partir
do modelo agrícola que demonstra, por parte do agricultor, a
necessidade de chuva em dois momentos cruciais do ciclo de
crescimento dos vegetais a fim de produzir uma safra abundante. O
primeiro momento se dá logo após o plantio da semente, quando a
“chuva temporã” é necessária para a germinação da semente a fim de
que a plantação seja saudável. O segundo momento em que a
plantação precisa de chuva é imediatamente antes da colheita,
precipitação que se denomina “chuva serôdia”, de modo que haja uma
alta produção de grãos até o momento da colheita que vem logo a
seguir. O pentecostalismo da chuva serôdia defende o ensino de que o
derramamento do Espírito em Atos 2 foi a “chuva temporã” e que o
derramamento do Espírito que diz respeito à “chuva serôdia” ocorrerá
no final dos tempos” (ICE, 2004, p. 90-91).
A história do pentecostalismo é bastante complexa e emblemática, uma
vez que ela é resultante de vários avivamentos e movimentos espirituais de
santidade oriundos do protestantismo anglo-saxônico. Thomas Ice assim
resumiu a história do pentecostalismo:
...o movimento pentecostal teve início em 1 de janeiro de 1901 na
cidade de Topeka, capital do estado de Kansas, quando Agnes Ozman
(1870-1937) falou em línguas sob a tutela de Charles Fox Parham
(1873-1929)... “o pentecostalismo, nos primeiros anos, era denominado
de ‘Movimento da Chuva Serôdia’”... Isso se deve ao fato de que
Parham intitulou seu registro do novo movimento de The Latter Rain:
The Story of the Origin of the Original Apostolic or Pentecostal
Movements (“Chuva Serôdia: A História do Nascimento dos
Movimentos Pentecostais ou Apostólicos Originais”). Muitos também
estão informados de que William J. Seymour (1870-1922), sob a
influência de Parham, foi a Houston, no Texas, em 1905, e em seguida
levou a mensagem pentecostal para a rua Azusa em Los Angeles no
ano de 1906, de onde ela se disseminou para os quatro cantos da
terra... Sem dúvida, a doutrina da chuva serôdia foi um dos principais
componentes do pentecostalismo (ICE, 2004, p. 91).
134
Armstrong (2001), apresenta a história do pentecostalismo como uma fé
“pós-moderna” que ojeriza a modernidade racional do Iluminismo, não se
interessando na dogmática, mas voltando para o primitivismo eclesiástico de
Atos dos Apóstolos, algo retomado na rua Azusa em Los Angeles pelo pastor
afro-americano William Joseph Seymour73.
O Movimento Pentecostal inicial, adepto da doutrina da “Chuva Serôdia”
de herança wesleyana e holiness, propunha o aperfeiçoamento individual
(santificação) e o aperfeiçoamento social no âmbito coletivo.
Thomas Ice
apresenta o pensamento de alguns líderes pentecostais para explicar o
distanciamento do pentecostalismo da doutrina da “Chuva Serôdia” para a
adesão ao dispensacionalismo:
Donald Dayton declara que “o moderno pentecostalismo é a ‘chuva
serôdia’, o derramamento especial do Espírito, que nos últimos dias
restaura os dons como parte da preparação para a ‘colheita’, a volta de
Cristo em glória”. David Weslwy Myland (1858-1943) foi um dos
primeiros líderes pentecostais, sendo o autor do primeiro hino
nitidamente pentecostal, intitulado The Latter Rain (“A Chuva Serôdia”)
escrito em 1906. Em 1910, surgiu “a primeira teologia distintamente
pentecostal, Latter Rain Covenant (“Pacto da Chuva Serôdia”), que foi
amplamente distribuída. Em seu livro, Myland alega que “agora
estamos no Pentecoste Gentílico, o primeiro Pentecoste deu início à
Igreja, o corpo de Cristo, e este, o segundo Pentecoste, une e
aperfeiçoa a Igreja para a volta do Senhor”. Dayton chega à conclusão
de que “a doutrina geral da chuva serôdia estabelecia uma premissa
(...) chave da lógica do pentecostalismo”. Apesar de ocupar um lugar
fundamental no pensamento do pentecostalismo primitivo, “a doutrina
da chuva serôdia estava fadada a desaparecer do pentecostalismo” na
década de 1920, “para reaparecer, todavia, na década de 1940, por
ocasião do movimento de revitalização radical da chuva serôdia”. Uma
das causas do declínio dos ensinamentos da chuva serôdia em
73
William Joseph Seymour (1870-1922) - Era filho de escravos libertos após a Guerra Civil e durante muito
tempo buscara uma religião mais imediata e desinibida que a praticada pelas congregações protestantes mais formais
dos brancos. Em 1900 converteu-se à espiritualidade da Santidade, que acreditava que, como predisse o profeta Joel,
imediatamente depois do Juízo Final o povo de Deus recuperaria os dons de cura, do êxtase, das línguas e da profecia,
concedidos à Igreja primitiva. Quando Seymour e seus amigos experimentaram o Espírito, a notícia se espalhou como
um rastilho de pólvora. Multidões de negros e brancos pobres acorreram em tão grande número à reunião seguinte que
os pentecostais tiveram de mudar-se para um velho armazém da rua Azusa. Quatro anos depois a congregação contava
centenas de grupos nos Estados Unidos e estava presente em cinquenta países. Seu primeiro boom foi mais um dos
reavivamentos populares que ocorreram no período moderno quando se pressentia uma grande mudança. Para
Seymour e seus adeptos o fim dos tempos começara e em breve Jesus voltaria e estabeleceria uma ordem social mais
justa. Contudo, depois da I Guerra Mundial, parecia que Jesus demoraria a voltar, e os pentecostais passaram a
interpretar seu dom das línguas como uma nova maneira de falar com Deus. São Paulo explica que, quando os cristãos
têm dificuldade para rezar, “o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis”. Os pentecostais procuravam um Deus
que excedia o alcance da linguagem (ARMSTRONG, 2001, p. 208-209).
135
meados da década de 1920 reside no fato de que, à medida que se
tornou mais institucionalizado, o pentecostalismo precisava oferecer
uma resposta ao avanço do liberalismo nas suas fileiras. Como se
observou anteriormente, o dispensacionalismo foi visto como um
auxílio nessa área (ICE, 2004, p. 91-92).
Além do problema do liberalismo teológico, o pentecostalismo da Chuva
Serôdia se defrontou com um segundo problema; ora, se alguém acredita no
aperfeiçoamento pessoal, individual, crerá também no aperfeiçoamento da coisa
pública ou social, no entanto, se o Espírito Santo foi concedido para
aperfeiçoamento individual e coletivo, por que a sociedade não mudava para
melhor? Por que um dos aperfeiçoamentos, ou seja, o coletivo não se
concretizava? Se Deus dá o Espírito Santo para aperfeiçoar pessoas, indivíduos,
por que não a sociedade formada por esses indivíduos? A esse segundo
problema Thomas Ice explica:
...na passagem do século XIX para o século XX, a mudança social
relacionava-se cada vez mais com a teoria da evolução proposta por
Darwin. O fundamento da lógica evolucionista foi, então, utilizado para
atacar a própria Bíblia. Para a maioria dos crentes de fala inglesa, sem
dúvida não parecia que a sociedade se aperfeiçoava, pelo contrário,
parecia estar em declínio. Os críticos da Bíblia diziam que se alguém
quisesse entender e estruturar a Bíblia, precisava, antes disso, concluir
um curso de doutorado (Ph.D.) na Europa. Foi nesse clima que o
dispensacionalismo adentou os Estados Unidos e esta talvez seja uma
das razões de sua rápida e ampla aceitação por parte de muitos
cristãos conservadores. Para estes, que realmente criam na Bíblia, o
dispensacionalismo desenvolvia uma visão de mundo que fazia muito
mais sentido do que as conclusões anti-sobrenaturalistas do liberalismo
(ICE, 2004, p. 93).
O movimento pentecostal nasceu como um grupo protestante avesso aos
princípios liberais, e sem dúvida o fundamentalismo influenciou as igrejas
pentecostais em seu sistema teológico básico. No período em que o
pentecostalismo começou a se desenvolver era necessária uma identificação
136
firme, sendo que ou se apresentava como liberal ou como fundamentalista, mas
o pentecostalismo tinha um roteiro próprio. Karen Armstrong assim escreveu:
Enquanto os fundamentalistas desenvolviam sua fé moderna, os
pentecostais elaboravam uma visão “pós-moderna” que correspondia a
uma rejeição popular da modernidade racional do iluminismo. Enquanto
os fundamentalistas retornavam ao que consideravam a base doutrinal
do cristianismo, os pentecostais, que não se interessavam por dogmas,
remontavam a um nível ainda mais fundamental: a essência da
religiosidade primitiva que ultrapassa as formulações de um credo.
Enquanto os fundamentalistas acreditavam na palavra das Escrituras,
os pentecostais desdenhavam a linguagem que, como os místicos
sempre enfatizaram, não podia expressar adequadamente a Realidade
existente além dos conceitos e da razão. Seu discurso religioso não era
o logos dos fundamentalistas, mas, extrapola as palavras. Os
pentecostais falaram em “línguas” de que o Espírito Santo descera
sobre eles da mesma forma que descera sobre os apóstolos de Jesus
na festa judaica de Pentecostes, quando a presença divina se
manifestou em línguas de fogo e conferiu aos apóstolos o dom de falar
idiomas estrangeiros (ARMSTRONG, 2001, p. 208).
No
entanto,
o
pentecostalismo
aceitaria
do
fundamentalismo
o
dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield74, um dos escritores do livro Os
Fundamentos, editado por R. A. Torrey, que foi a base escriturística do
movimento pentecostal, bem como sua Bíblia de Referências de Scofield75. Dr.
Gary B. McGee assim escreveu:
O evangelista, segurando um indicador, guiava o auditório através dos
sete períodos dispensacionais da redenção divina, explicando as
verdades bíblicas desde a Era da Inocência, no Jardim do Éden, até o
Milênio. Entre os que produziram mais materiais, Finis Jennings Dake
era provavelmente o pentecostal mais conhecido. De fato, suas muitas
publicações, inclusive apostilas, livros e, posteriormente, Dake’s
74
Cyrus Ingerson Scofield (1843-1921) - Foi congregacional e presbiteriano, fundou a Central American Mission,
conhecido mundialmente como um sistematizador que popularizou o dispensacionalismo por intermédio da Bíblia de
Referências de Scofield.
75
Bíblia de Referências de Scofield - Versão das Escrituras que apresenta o método dispensacional de estudo
bíblico esquematizado pelo Dr. C. I. Scofield. Ao longo da exposição das notas e comentários se observa o caráter
progressivo do trato de Deus com a humanidade por meio das alianças firmadas com o homem. As notas e o sistema de
referências neste método sustentam a inspiração verbal e plenária e a inerrância das Escrituras, a existência de um Deus
em três pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo -, a divindade de Cristo, sua morte substitutiva, ressurreição física e
ascensão, e sua iminente volta para buscar sua noiva, a Igreja (HORTON, 1999, p. 21).
137
Annotated Reference Bible (1963), vêm ajudando a moldar a teologia
de muitas pentecostais (HORTON, 1999, p. 24).
O dispensacionalismo foi adotado pelo pentecostalismo em sua
institucionalização como resposta ao avanço do liberalismo nas suas fileiras,
mesmo sendo cessacionista76, questão que levou a Assembleia de Deus norteamericana proibir a Bíblia de Referências de Scofield por uma período77. O
primeiro superintendente geral das Assembleias de Deus nos Estados Unidos
declarou, em 1914, no Concílio geral da igreja em Hot Springs:
Essas Assembleias opõem-se a toda Alta Crítica radical da Bíblia, a
todo o modernismo, a toda a incredulidade na igreja e a filiação a ela
de pessoas não-salvas, cheias de pecado e de mundanismo. Acreditam
em todas as verdades bíblicas genuínas sustentadas por todas as
igrejas verdadeiramente evangélicas (HORTON, 1999, p 21).
Karen Armstrong apresenta a percepção do estudioso americano Harvey
Cox sobre o pentecostalismo da seguinte maneira:
...o pentecostalismo constituiu uma tentativa de resgatar muitas das
experiências rejeitadas pelo Ocidente moderno. “Pode-se dizer que
representou uma rebelião popular contra o moderno culto da razão.
Firmou-se numa época em que se começava a duvidar da ciência, em
que os indivíduos religiosos constatavam que confiar apenas na razão
tinha implicações alarmantes para a fé, tradicionalmente relacionada
com atividade mentais mais intuitivas, criativas e estéticas. Enquanto
os fundamentalistas procuravam tornar totalmente razoável e científica
sua religião baseada na Bíblia, os pentecostais remontavam à essência
da religiosidade, que Cox definiu como “aquele núcleo da psique em
76
Cessacionismo é o entendimento de teólogos reformados e batistas fundamentalistas, comumente de matiz
puritana. Advogam que muitos dos dons do Espírito Santo foram necessários momentaneamente, apenas para os
primórdios da Igreja primitiva, e que cessaram após o primeiro século do cristianismo. Os cessacionistas acreditam que o
dom de línguas, na compreensão pentecostal, se encerrou nos tempos apostólicos. Entendem os cessacionistas que tais
e restritos dons serviam a um propósito, a fundação da Igreja Primitiva, em momento que os apóstolos teriam que
cumprir o ide sem possuir qualificação de doutores ou mestres. O encerramento do livro teria fechado toda profecia fora
da palavra.
77
“Quando a Comissão Executiva reconheceu o perigo das anotações antipentecostais da Bíblia de Referências
de Scofield, proibiu-se a sua propaganda no Pentecostal Evangel durante dois anos (1924-1926), antes que os seus
membros se deixassem convencer de que os comentários edificantes da obra pesavam mais que aqueles” (HORTON,
1996, p. 23).
138
que se trava a luta incessante por uma noção de propósito e sentido”.
“Enquanto os fundamentalistas limitavam a experiência religiosa à parte
cerebral da mente, identificando a fé com dogmas racionalmente
demonstrados, os pentecostais mergulhavam na fonte inconsciente da
mitologia e da religiosidade. Enquanto os fundamentalistas destacavam
a importância da palavra e do literal, os pentecostais desdenhavam o
discurso convencional e tentavam acessar a espiritualidade primordial
subjacente às formulações do credo de uma tradição (ARMSTRONG,
2001, p. 209-210).
Para compreender o corpo doutrinário pentecostal é necessário identificar
a influência de elementos do fundamentalismo, bem como seu repúdio ao
liberalismo
teológico
e
ao
racionalismo,
e
sua
profunda
crença
no
dispensacionalismo.
Os
estudiosos
evangélicos
dispensacionalistas
influenciaram
substancialmente o ponto de vista pentecostal no tocante aos aspectos presente
e futuro do Reino de Deus, conceito esse que havia recebido mera alusão na
Declaração das Verdades Fundamentais. Durante muitos anos, o ensino dos
primeiros pentecostais, a respeito dos eventos futuros, havia tido forte orientação
dispensacionalista, pois compartilhava a crença nas sete dispensações, no
Arrebatamento78 antes da Tribulação e na interpretação pré-milenarista79 das
Escrituras, mas deixava de lado uma doutrina-chave do dispensacionalismo: a
separação entre a Igreja e Israel. Essa doutrina foi popularizada e reforçada
pelos escritos de Riggs, Boyd, Dake, Brumback, John G. Hall e T. J. Jones. As
referências no Novo Testamento ao "Reino de Deus" (definido resumidamente
como o senhorio ou governo de Deus) como realidade e presente nos corações
dos redimidos passaram quase despercebidas, ao passo que seu futuro
aparecimento milenar recebe consideração extensiva.
78
Arrebatamento - A palavra arrebatamento quer dizer arrancar; tirar com violência, levar. Na perspectiva
pentecostal, o arrebatamento é o evento em que o Senhor Jesus tirará a sua igreja da face da terra, levando-a para o
céu.
79
Pré-Milenista ou Pré-milenarista - É a crença literal no que está descrito na Bíblia a respeito do milênio e de
acontecimentos futuros como fatos proféticos e históricos, crê no arrebatamento da igreja, antes do Milênio, é a base da
teologia
dispensacionalista.
139
Segundo o dispensacionalismo histórico, a promessa do reino
restaurado de Davi havia sido adiado até ao Milênio, porque os judeus
tinham rejeitado a oferta que Jesus lhes fizera do reino. A rejeição
levou ao adiamento do cumprimento da profecia de Joel, da
restauração de Israel e do derramamento do Espírito, para depois da
segunda vinda de Jesus. Os eventos registrados em Atos 2, portanto,
representavam apenas uma bênção inicial de poder para a Igreja
Primitiva. Israel e a Igreja eram, logicamente, mantidos separados; daí
surgiu a postura anti-pentecostal subjacente desse sistema da
interpretação das Escrituras (HORTON, 1999, p. 33).
O Dr. Charles Caldwell Ryrie, professor jubilado do Seminário de Dallas,
conhecido pela famosa Bíblia Anotada80, definiu da seguinte maneira uma
dispensação teológica:
“...um estágio na revelação progressiva, expressamente adaptado às
necessidades de uma determinada nação ou de um período de
tempo... também, a era ou período durante o qual um sistema
predominou” (ICE, 2004, p. 32).
5.1.- O Dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield
O dispensacionalismo presente no pentecostalismo evangélico brasileiro
foi elaborado por Cyrus Ingerson Scofield, cujo esquema é apresentado em sua
obra Bíblia de Referências de Scofield, da seguinte forma:
As sete dispensações distinguem-se nesta edição da Bíblia da seguinte
maneira: Inocência (Gn 1.28); Consciência ou Responsabilidade Moral
(Gn 3:7); Governo Humano (Gn 8:15); Promessa (Gn 12.1); Lei (Êx
19:1); Igreja (Atos 2:1); Reino (Ap 20:4)...
80
A Bíblia Anotada – (The Ryrie Bible) Trata-se de uma Bíblia com introdução, esboço, referências laterais e
notas por Charles Caldwell Ryrie, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão, São Paulo.
140
(Gn 1:18) A Primeira Dispensação: Inocência. O homem foi criado
em inocência, colocado em um ambiente perfeito, sujeito a uma prova
simples, e advertido das consequências da desobediência. Ele não foi
compelido a pecar, mas, tentado por Satanás, preferiu desobedecer a
Deus. A mulher foi enganada, o homem transgrediu deliberadamente (1
Tm 2:14). A mordomia da Inocência terminou na sentença da expulsão
do Éden (Gn 3:24)...
(Gn 3:7) A Segunda Dispensação: Consciência (Responsabilidade
Moral). O homem pecou (3:6-7), a primeira promessa de redenção
estava para ser feita (3:15), e nossos primeiros pais seriam expulsos do
Éden (3:22-24). O pecado do homem foi uma rebeldia contra uma
ordem específica de Deus (2:16-17) e marcou uma transição do
conhecimento teórico do bem e do mal para o conhecimento
experimental (3:22-24). O homem pecou entrando no reino da
experiência moral pela porta errada, quando poderia tê-lo feito fazendo
o que era certo. Assim o homem tornou-se igual a Deus, passando por
esta experiência, no escolher o mal e não o bem. Assim ele foi
colocado por Deus sob a mordomia da responsabilidade moral, ficando
responsável de praticar todo o bem conhecido, abster-se de todo o mal
conhecido e aproximar-se de Deus por meio do sacrifício sangrento
aqui instituído, em perspectiva à obra consumada de Cristo. O
resultado é apresentado na Aliança Adâmica (Gn 3:14-21)... O homem
falhou no teste que lhe foi apresentado nesta dispensação..., como nas
outras. Embora, como teste específico, este período de tempo tenha
terminado com o dilúvio, o homem continuou em sua responsabilidade
moral conforme Deus acrescentou mais revelação referentes a Si
mesmo, e à Sua vontade nos períodos subsequentes (por exemplo,
Atos 24:14-16; Rm 2:15; II Co 4:2)...
(Gn 8:15) A Terceira Dispensação: Governo Humano. Esta
dispensação começou quando Noé e sua família saíram da arca.
Quando Noé entrou numa nova situação, Deus (na Aliança Noética)
sujeitou a humanidade a um novo teste. Antes disso, nenhum homem
tinha o direito de tirar a vida de outro homem (comp. Gn 4:10-11, 14-15,
23-24). Nessa nova dispensação, embora a responsabilidade moral
direita do homem para com Deus continuasse (“Dai... a Deus o que é
de Deus”, Mt. 22:21), Deus delegou-lhe determinadas áreas de Sua
autoridade, nas quais ele tinha de obedecer a Deus através de
submissão ao seus próximo (“dai, pois, a César o que é de César”, Mt.
22:21). Portanto Deus instituiu um relacionamento corporativo de
homem para homem no governo humano.
(Gn 12:1) A Quarta Dispensação: a Promessa. Esta dispensação
estendeu-se da chamada de Abrão até a concessão da lei no Sinai (Êx
19:3 e segs.). Sua mordomia baseava-se sobre a aliança de Deus com
Abrão, citada pela primeira vez aqui (Gn 12:1-3, e confirmada e
ampliada em Gn 13:14-17; 15:1-7; 17:1-8, 15-19; 22:16-18; 26:2-5,24;
28:13-15; 31:13; 35:9-12)...
(Êx 19.1) A Quinta Dispensação: a Lei. Esta dispensação começa
com a concessão da Lei no Sinai e terminou como período de tempo
com a morte sacrificial de Cristo, que cumpriu todas as suas provisões
141
e tipos. Na dispensação anterior, Abraão, Isaque e Jacó, como também
as multidões de outros indivíduos, falharam nos testes de fé e
obediência que eram da responsabilidade do homem (por exemplo, Gn
16:1-4; 26:6-10; 27.1-25). O Egito também falhou em atender a
advertência de Deus (Gn 12:3) e foi julgado. Não obstante Deus
providenciou um libertador (Moisés), um sacrifício (o cordeiro pascal) e
o poder milagroso para tirar os israelitas do Egito (as pragas do Egito,
livramento no Mar Vermelho). Os israelitas, como resultado de suas
transgressões (Gl 3:19), foram agora colocados sob a disciplina precisa
da lei...
(At 2:1) A Sexta Dispensação: a Igreja. Uma nova era foi anunciada
por nosso Senhor Jesus Cristo em Mt 12:47 - 13:52... O ponto de prova
desta dispensação é o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, a
mensagem as boas novas sobre a Sua morte e ressurreição... A
dispensação da Igreja chegará ao fim através de uma série de
acontecimentos profetizados, o principal dos quais será: 1) A
trasladação da verdadeira Igreja da terra para encontrar o Senhor nos
ares em um momento conhecido por Deus, mas não revelado aos
homens... Este acontecimento geralmente é chamado de
"arrebatamento" (veja 1 Ts 4:17)...; 2) Os juízos da septuagésima
semana de Daniel, chamados de "a tribulação" (Ap 7:14)... e 3) a volta
do Senhor Jesus do céu à terra em poder e glória, trazendo com Ele a
Sua Igreja, para estabelecer o Seu reino milenal de justiça e paz...
(Ap 20.4) A Sétima Dispensação: o Reino. Esta é a última das
dispensações ordenadas que condicionam a vida humana na terra. É o
Reino da Aliança feita a Davi (II Sm 7:8-17; Zc 12.8)... A Dispensação
do Reino une dentro de si mesmo e debaixo de Cristo as várias
"épocas" mencionadas na Escritura... No final dos mil anos, Satanás é
solto por um pequeno período e instiga uma rebelião final que é
sumariamente abafada pelo Senhor. Cristo lança Satanás no lago de
fogo para ser eternamente atormentado, derrota o último inimigo - a
morte - e então entrega o reino ao Pai (I Co 15:24)... (SCOFIELD,
1983, p. 4; 7-8; 20-21; 91; 1099-1100; 1303-1304).
Para ser dispensacionalista é necessário crer em ao menos três
fundamentos básicos, sem os quais não é possível compreender o
dispensacionalismo.
O primeiro fundamento do dipensacionalismo é a interpretação literal da
Bíblia Sagrada, ou como os fundamentalistas entendem, utiliza-se da
hermenêutica literal coerente. Uma abordagem literal é fundamental para a
teologia dispensacionalista. O dispensacionalismo não analisa a Bíblia através
de uma abordagem interpretativa simbólica, mas busca aplicar o sentido original
142
do texto bíblico de acordo com o uso normal e costumeiro da linguagem,
considerando as normas gramaticais, históricas e contextuais, ou seja:
Um método de abordar as Escrituras que permita, através do progresso
da revelação, que as próprias Escrituras interpretem a si mesmas. O
dispensacionalismo não aborda a Bíblia por meio de um esquema
interpretativo fantasioso, cheio de simbolismos complexos que
reduzem as Escrituras a um livro de códigos místicos, dependendo de
um manual de decodificação para desvendá-la (ICE, 2004, p. 43-44).
O segundo fundamento do dispensacionalismo, talvez a essência dele,
sendo decorrente do primeiro, é a distinção entre Israel e a Igreja.
O que significa manter Israel distinto da Igreja? Os dispensacionalistas
creem que a Bíblia apresenta um único programa de Deus para a
história, o qual inclui um plano específico para Israel e outro diferente
para a Igreja. Dois povos estão no programa de Deus: Israel e a Igreja
(ICE, 2004, p. 44).
No entanto, para os dispensacionalistas, o atual período dispensacional é
o da graça, e nesta dispensação há somente um caminho para salvação, que é
pela fé no Senhor Jesus Cristo, ou seja, pela graça, e embora Israel seja distinto
da igreja, embora seja o povo eleito por Deus, nesta dispensação atual, para ser
salvo é necessário converter-se ao Senhor Jesus Cristo e fazer parte da Igreja,
que é formada por gentios e judeus que aceitaram a Jesus Cristo como seu
Salvador Pessoal.
O Dr. Thomas Ice apresenta as seis razões de Fruchtenbaum para
mostrar a distinção entre Israel e a Igreja:
(1) A Igreja nasceu em Pentecostes, enquanto Israel já existia há
muitos séculos...
(2) Certos eventos no ministério do Messias foram essenciais para o
estabelecimento da Igreja – a Igreja não veio à existência até que
certos eventos ocorressem...
(3) O caráter de mistério da Igreja...
(4) A Igreja, distinta de Israel, é o relacionamento singular entre judeus
e gentios, que se denomina “um novo homem” em Efésios 2.15...
(5) A diferença entre Israel e a Igreja encontra-se em Gálatas 6.16 (i.e.,
“o Israel de Deus”)...
143
(6) No livro de Atos, tanto Israel quanto a Igreja existem
simultaneamente. O termo Israel ocorre vinte vezes e o termo ekklesia
(ie., “igreja”) dezenove vezes, todavia os dois grupos são sempre
mantidos distintos (ICE, 2004, p. 46-47).
O terceiro fundamento do dispensacionalismo é demonstrar a soberania
de Deus através da história e que o propósito final da história é a glória de Deus.
O Dr Thomas Ice cita a declaração do professor Dr. Charles Caldwell Ryrie:
Reconhecemos que o princípio unificador da Bíblia é a glória de Deus e
que ela é levada a efeito de vários modos – o programa da redenção, o
programa para Israel, o castigo dos ímpios, o plano para os anjos, e a
glória de Deus revelada através da natureza. Consideramos todos
estes programas como meios de glorificar a Deus, e rejeitamos a
acusação de que, ao fazermos distinção entre eles (particularmente
entre o programa de Deus para Israel e o Seu propósito para a Igreja),
provocamos uma bifurcação no propósito de Deus (ICE, 2004, p. 47).
5.1.2.- Dispensacionalismo e Pentecostalismo
No início do século XX, no auge da propagação do dispensacionalismo é
que surge o movimento pentecostal nos Estados Unidos da América. Sendo um
dos fundamentos do pentecostalismo a crença literal na Bíblia, já que os
pentecostais acreditavam ser possível ter a mesma experiência da efusão do
Espírito Santo que os discípulos de Jesus tiveram conforme registrado no livro
dos Atos dos Apóstolos 2. O mesmo princípio está presente na abordagem do
dispensacionalismo e do pentecostalismo, ou seja, a leitura literal das Sagradas
Escrituras, possibilitando ao sistema teológico dispensacionalista encontrar solo
fértil
no
pentecostalismo
iniciante,
embora
o
dispensacionalismo
seja
cessacionista, exatamente o contrário do que advoga o pentecostalismo.
144
Segundo o Dr. Thomas Ice há ainda uma outra contradição entre o
dispensacionalismo e pentecostalismo:
O pentecostalismo primitivo nasceu de uma motivação de visão para
restaurar na Igreja o poder apostólico perdido ao longo do as anos.
Agora a Igreja devia desfrutar da glória e vitória dos últimos dias,
revelando-se num glorioso resplendor de sucesso. Por outro lado, o
dispensacionalismo nasceu na Inglaterra no início do século XIX,
lastimando a apostasia e a decadência da igreja nos últimos dias. No
entanto, essas duas perspectivas divergentes se fundiram dentro do
pentecostalismo (ICE, 2004, p. 94).
Portanto, os elementos teológicos dos movimentos de santidade
Wesleyano e Holiness; os elementos básicos do fundamentalismo evangélico; a
perspectiva teológica escatológica do dispensacionalismo, em especial a
distinção entre a Israel e a Igreja; o milenarismo; o restauracionismo ou sionismo
cristão, amalgamaram-se na crença pentecostal tão fortemente e tão
fervorosamente que gestará um imaginário próprio sobre a cidade de Jerusalém.
É esse imaginário que se desenvolverá no seio teológico e doutrinário da
igreja pentecostal clássica brasileira, resultando num apego e carinho pelo
Estado de Israel e sua capital Jerusalém com fervor religioso, não é um simples
modismo, muito pelo contrário, há uma identificação religiosa profética entre o
discurso protestante evangélico dispensacionalista com a literalidade da busca
dos dons espirituais para a atualidade, leitura feita pelo mundo pentecostal
desde seu nascimento e seu caminho influenciado pela cultura autóctone do
Brasil. O sociólogo Paul Freston81 assim descreveu o início do movimento
pentecostal no Brasil:
O pentecostalismo estava apenas na sua infância, quando chegou no
Brasil um fato importante para sua autoctonia. Sem grandes recursos
81
Paulo Freston - Pesquisador inglês naturalizado brasileiro, é doutor em Sociologia pela UNICAMP. É professor
de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, professor Catedrático de Sociologia do
Calvin College nos EUA. É colunista da Revista Ultimato, autor de vários artigos e livros, como: Religião e Política, Sim –
Estado e Igreja, Não; Nem Monge, Nem Executivo – Jesus, um modelo de espiritualidade Invertida; Neemias, Um
Profissional a Serviço do Reino e Quem Perde, Ganha.
145
ou denominações estabelecidas, e mais interessado numa última
arrancada evangelística antes do fim do que na criação institucional, o
movimento não estabeleceu as relações de dependência que
caracterizavam as missões históricas (ANTONIAZZI (Org.), 1994, p.
75).
5.2.- O Pentecostalismo no Brasil
O pentecostalismo chegou ao Brasil em três momentos distintos
classificados como as três ondas82 por Paul Freston; a primeira onda seria os
chamados pentecostais clássicos ou tradicional, o primeiro grupo que chegou ao
Brasil em 1910 e 1911, representado respectivamente pela Congregação Cristã
no Brasil e a Assembleia de Deus, caracterizados pela glossolalia 83, dons
espirituais, santificação materializados nos usos e costumes austeros. A
segunda onda, surgida na década de 1950 e início de 1960, formada por
algumas dissidências, em sua maioria da primeira onda, sendo seu contexto
paulista: Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo e a Igreja Deus
é Amor, caracterizados pela ênfase na cura divina e no uso do rádio, de tendas e
grandes campanhas evangelísticas, e finalmente a terceira onda, também
denominada de neopentecostal que surgiu na década de 1970 ganhando forças
nos anos 80, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, e outras,
caracterizadas pela doutrina da prosperidade, o uso da televisão e na
construção ou locação de amplos espaços para templos, sendo seu contexto
carioca.
Como a pesquisa objetiva compreender a cidade de Jerusalém no
imaginário religioso até o pentecostalismo clássico, o estudo limitar-se-á ao
82
O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três ondas (ANTONIAZZI (Org.), 1994,
p. 70-71).
83
Glossolalia – Do grego γλώσσα (língua) e λαλώ (falar), falar em outras línguas, segundo o pentecostalismo é a
evidência que o fiel foi batizado com o Espírito Santo.
146
imaginário da primeira onda, a Congregação Cristã no Brasil (1910) e a
Assembleia de Deus (1911).
A primeira consideração apresentada é o resumo histórico de cada
denominação utilizando a cronologia de sua chegada ao Brasil e o apontamento
de elementos do dispensacionalismo presente nos seus respectivos credos
doutrinários. Considerando que nesta pesquisa será analisada apenas a
Assembleia de Deus, como representante das demais igrejas depositárias do
pentecostalismo clássico que apontam para uma mesma matriz evangélica
pentecostal, classificadas como clássicas, e por fazer parte da primeira onda do
pentecostalismo no Brasil. O motivo da escolha da Assembleia de Deus é pelo
fato de ser a segunda maior denominação cristã do país e pela deficiência de
material documental sobre a Congregação Cristã no Brasil, sendo abundante na
Assembleia de Deus. Na verdade, o pentecostalismo clássico, em seu início, era
avesso à pesquisa científica, à documentação e mais aberto ao “profetismo”,
testemunho oral e experiencialismo. Isso foi muito bem apontado por Paul
Freston:
É verdade que a pesquisa histórica entre os pentecostais sofre da
relativa escassez de fontes escritas. Alguns grupos se adéquam mais a
uma “História anedótica” do que a uma “História documental”. Podemos
distinguir o grau de dificuldade para se pesquisar as várias igrejas do
seguinte modo: (1) considerável facilidade: Assembleia de Deus e
Igreja do Evangelho Quadrangular – muitas fontes escritas, inclusive
histórias domésticas e facilidade para se fazer entrevistas; (2) relativa
facilidade: Brasil para Cristo e Igreja Universal do Reino de Deus –
poucas fontes escritas, mas certa facilidade para se fazer entrevistas;
(3) relativa dificuldade: Deus é Amor – pouquíssimas fontes escritas e
dificuldade para se fazer entrevistas; (4) extrema dificuldade:
Congregação Cristã – quase nenhuma fonte escrita e extrema
dificuldade para entrevistas (ANTONIAZZI (org.), 1994, p.68).
5.2.1.- Congregação Cristã no Brasil (1910)
147
O principal documento para a reconstituição dos primórdios da
Congregação Cristã no Brasil é o testemunho escrito por seu fundador, o ancião
Louis Francescon (Luigi Francesconi), em Chicago - Illinois, EUA. Originalmente
esse livreto recebeu o nome de Resumo de Uma Ramificação na Obra de Deus
Pelo Espírito Santo no Século Atual, publicado pela primeira vez em 1942, na
cidade de São Paulo, atualmente chama-se Histórico da Obra de Deus,
Revelada Pelo Espírito Santo, no Século Atual.
Louis Francescon nasceu no dia 29 de março de 1866 na Comarca de
Cavasso Nuovo – Província de Udine, Itália, tendo emigrado para os EUA em
1890 para a cidade de Chicago, Estado de Illinois. No mesmo ano entrou em
contato com o evangelho através da pregação de Miguel Nardi, em 1891 se
converteu e no ano seguinte, juntamente com o grupo de Miguel Nardi e de
algumas famílias da igreja Valdense84, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana
Italiana. Sendo eleito Filippo Grilli como pastor, Francescon foi eleito diácono e
posteriormente ancião. Em 1894, Francescon, lendo Colossenses 2.12, passou
a questionar a forma de batizar por aspersão e no princípio de setembro de
1903, convenceu Giuseppe Beretta a se batizar por imersão:
Então, servindo-se Deus também de outros meios, convenceu-se e
dois dias após fez-se batizar mesmo em Elgin, por um irmão americano
pertencente à Igreja dos Irmãos (Church of the Brethren). Na ocasião
lhe disse: Irmão Beretta, agora que sois batizado, na próxima segundafeira, dia 7 é o Dia do Trabalho, batizar-me-ás também
(FRANCESCON, 1977, p. 09).
Com a viagem do pastor Filippo Grilli para a Itália, coube a Francescon,
como ancião, presidir à reunião dominical no dia 06 de setembro de 1903,
oportunidade em que, após 9 anos da “revelação” acerca do batismo por
84
Igreja Valdense - Muito assemelhados doutrinariamente com o protestantismo, os valdenses devem seu nome
ao fundador do movimento, Pedro Valdo, um próspero comerciante da cidade francesa de Lyon que, em 1176,
influenciado por ideais monásticos e pela leitura do Novo Testamento, distribuiu seus bens aos pobres, deixando apenas
o necessário para garantir a sobrevivência de sua esposa e suas filhas, iniciando a atividade de pregador leigo. No ano
seguinte, já contava com um grupo de seguidores, os chamados “Pobres de Espírito” (WALKER, vol. I, 1980, p. 322)
apud (SOARES, 2013, p.57).
148
imersão, falou com a Igreja acerca deste assunto, o que fez, convidando a todos
os membros da Igreja Presbiteriana Italiana para assistir ao seu batismo por
imersão. O batismo foi realizado no dia 07 de setembro de 1903, em Lake-front
em Chicago, onde compareceram cerca de vinte e cinco irmãos, dos quais
dezoito, incluindo Francescon se batizaram por imersão. Com a chegada do
pastor Filippo Grilli da Itália, Francescon e seu grupo desligaram-se da igreja,
estabelecendo uma pequena comunidade evangélica livre, reunindo-se na casa
dos irmãos.
Em fins de 1907, o grupo liderado por Francescon entrou em contato com
o nascente movimento pentecostal, participando das reuniões realizadas na
missão localizada na West North Avenue, 943, que tinha como pastor William H.
Durham85. No dia 25 de agosto de 1907, Francescon recebeu a experiência
pentecostal e algum tempo depois o pastor Durham informou a ele que o Senhor
o havia chamado para levar essa mensagem à colônia italiana.
O grupo de crentes italianos vinha há algum tempo reunindo-se na W.
Grand Avenue, 1139, e no dia 15 de setembro de 1907 surgiu a primeira
comunidade evangélica italiana de fé pentecostal: a Assembleia Cristiana. Além
de Francescon, outros nomes pioneiros são: Pietro Ottolini, Giacomo Lombardi,
Lucia Menna, Umberto Gazzeri e Giuseppe Petrelli86.
O movimento pentecostal italiano expandiu-se, surgindo congregações na
Filadélfia, Califórnia e Nova York, além de Illinois; atualmente, estas
congregações formam a Igreja Cristã da América do Norte, que surgiu da junção
de duas denominações pentecostais ítalo-americanas: Assembleias de Deus
85
Pastor William H. Durham (1873-1912) - Foi um líder dinâmico do início do movimento pentecostal e foi um
dos proponentes da doutrina da santificação como processo contínuo e não como uma crise ou experiência, colaborando
para distinguir a doutrina pentecostal da teologia Holliness originária. Tendo ouvido falar do derramamento do Espírito,
que estava ocorrendo na Califórnia em 1906, Durham visitou a Missão da Rua Azusa em Los Angeles, tendo recebido a
experiência pentecostal com o dom de línguas estranhas em 02 de março de 1907, momento que recebeu uma palavra
profética do próprio pastor J. Saymour, que onde ele pregasse, o Espírito Santo seria derramado sobre o povo. Além de
Francescon (fundador da Congregação Cristã no Brasil), muitos outros líderes, missionários e pioneiros do movimento
pentecostal participaram dos trabalhos desenvolvidos na Missão da West North Avenue, tais como: A. H. Argue; E. N.
Bell; Joward Goss; Daniel Berg (um dos fundadores da Assembleia de Deus); Aime Semple McPherson (fundadora da
Igreja do Evangelho Quadrangular).
86
WOMACK, David e TOPPI, Francesco. Le Radici Del Movimento Pentecostale, 1989, p. 124.
149
Pentecostais Italianas87 e a Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do
Norte88.
No dia 04 de setembro de 1909 Francescon e Giacomo Lombardi
embarcaram de Chicago para a cidade de Buenos Aires, capital da Argentina,
onde em contato com familiares de membros da igreja italiana norte-americana
instalaram o trabalho pentecostal entre as colônias italianas; atualmente, a igreja
que ali surgiu foi incorporada pela Igreja Cristã Pentecostal da Argentina.
Em 08 de março de 1910 Francescon e Giacomo Lombardi embarcaram
de Buenos Aires para São Paulo; no segundo dia no Brasil, evangelizaram um
italiano chamado Vicenzo Pievani na Praça da Luz. Aparentemente o início do
trabalho foi pouco promissor, até que no dia 18 de abril Giacomo Lombardi partiu
para Buenos Aires. Francescon foi para Santo Antônio da Platina no Paraná,
chegando no dia 20 de abril de 1910 e estabeleceu ali um pequeno grupo de
crentes pentecostais, os primeiros no Brasil. No dia 20 de junho de 1910,
Francescon retorna para São Paulo capital, entrando em contato com a Igreja
Presbiteriana do Brás, onde alguns membros aceitaram a mensagem
pentecostal, bem como alguns batistas, metodistas e católicos romanos,
surgindo a primeira igreja pentecostal organizada no Brasil. A partir daí o
trabalho se espalhou entre as colônias italianas, notadamente na região sudeste
do país, principalmente nos Estados de São Paulo e do Paraná. Seu fundador,
Louis Francescon, faleceu em 07 de setembro de 1964 na cidade de Oak Park,
Illinois, EUA.
O sociólogo Paul Freston assim definiu a Congregação Cristã no Brasil:
O iluminismo e apelo ao Espírito leva a uma rejeição da organização. O
modelo das igrejas históricas e da Assembleia de Deus representa a
87
Assembleias de Deus Pentecostais Italianas - Foram fundadas por John Santamaria e seu filho Rocco,
resultante do contato também com a mensagem pentecostal através do pastor William H. Durham, organizada em 1932
nos EUA. (MELTON, 1978, p. 280-281 apud MAPES, 1979, p. 168).
88
Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do Norte - Foi organizada em 1927 pelo próprio Francescon,
defendia um ferrenho congregacionalismo, mas em 1948 somou-se à outra, atualmente essa denominação possui uma
doutrina muito parecida a da Assembleia de Deus, apesar de guardar certas características étnicas italianas, seus
periódicos continuam sendo editados em dois idiomas: The Ligth House em inglês e II Faro em italiano (MELTON, 1978,
p. 281-281 apud MAPES, 1979, p. 168).
150
ingerência do humano na obra divina. O modelo da Congregação
Cristã, segundo Nelson, é o de parentesco, ou patriarcal. A burocracia
é mantida no mínimo absoluto, e não há pastores, somente anciãos
não remunerados. Provavelmente a figura de Francescon ajudou a
solidificar esse modelo; ele representava uma autoridade incontestável
mas quase sempre ausente. Outro fator é a estrutura familiar italiana. A
liderança é por antiguidade mais do que por carisma ou por
competência. A dependência da tradição oral fortalece essa liderança.
O modelo é reforçado pelo imaginário de uma família extensa; a igreja
é conhecida como “irmandade” (ANTONIAZZI (org.), 1994, p. 105-106).
A recusa à organização é uma característica do movimento pentecostal,
essa ojeriza a toda forma de organização humana que pudesse abafar a
atuação do Espírito Santo está presente nos primeiros pentecostais. O grande
líder pentecostal sueco Lewi Petrus89, ao se referir sobre a questão da
organização da Assembleia de Deus, assim declarou:
Durante os últimos anos, temos sido enganados aqui na Suécia com a
notícia de que os missionários e a missão no Brasil estava organizadas
numa (sic) denominação bastante forte. Quem nos disse isto;
mencionou que a sede da organização está no Pará e que no princípio
consistia somente de três missionários, mas que depois se estendeu,
dominando a obra em todo Brasil. Os missionários, estão, quando se
trata do assunto da organização, inteiramente no mesmo ponto de vista
que as igrejas livres da Suécia. Todos expuseram a sua perfeita
aprovação sobre o pensamento bíblico de igrejas locais e
independentes, entre as quais deve haver uma colaboração espiritual,
mas sem a organização da qual os missionários agora tinham sido
acusados que professavam e até praticavam (VINGREN, 1973, p. 157
apud ALENCAR, 2010, P. 123-124).
Embora a Congregação Cristã no Brasil seja a primeira igreja pentecostal
no Brasil, seu comportamento sectário não permite um estudo para a
compreensão do imaginário pentecostal sobre Jerusalém, porque não há
literatura e seus líderes são avessos a entrevistas; esse comportamento está
presente na maioria dos membros dessa comunidade. Na década de 50 o
89
Lewis Petrus (1884-1974) – Pastor da Igreja Filadélfia de Estocolmo na Suécia. Foi um dos mais importantes
líder pentecostal da Europa, escreveu mais de 50 livros, fundou um jornal e uma rádio.
151
professor Émile G. Léonard, ilustre historiador francês, já apontava para essas
questões:
Parece-nos, entretanto, haver nas Congregações uma profunda
fraqueza, que faz com que não as possamos considerar absolutamente
protestantes (o que, alias, elas não pretendem, mantendo-se afastadas
de todas as igrejas), mas que nos faz desejar que o protestantismo
brasileiro se interesse pelo problema que elas apresentam. Não se
trata de nada relativo ao Espírito ou a essas manifestações, que
atraem a atenção, e sobre as quais não insistimos; as curas
miraculosas, a glossolalia, os êxtases e, eventualmente, as convulsões.
Aqui não há nada desconhecido, anticristão ou antibíblico. Muitas
outras denominações protestantes tiveram essas manifestações, nos
seus primeiros tempos, e lamentam secretamente não serem mais
privilegiadas. Entretanto, tal como na Igreja Evangélica Brasileira, o
papel da Bíblia aqui também parece bem pequeno. Os fiéis parecem
considerá-la mais um livro de oráculos, que se abre para encontrar a
resposta do Espírito a uma questão ou a uma necessidade, do que o
relato de uma Revelação que deve ser conhecida e meditada
sistematicamente. As escolas dominicais são substituídas pelos “cultos
para menores”, cópia dos cultos comuns, com os três cânticos de
início, os testemunhos, as orações (nas quais os fenômenos de
glossolalia), o sermão, novas preces e a bênção final. O conhecimento
bíblico que as crianças possuem reduz-se, muitas vezes, a um certo
número de passagens ou versículos particularmente comentados. Os
próprios guias espirituais declaram, sem embaraço, que não leram toda
a Bíblia. Suas prédicas, feitas apenas sob a inspiração do Espírito,
sobre textos que lhes são “dados” naquele momento, não são
preparadas. Não possuem livro algum, nem jornal de edificação, nem
cultura alguma religiosa, considerando ilegitima toda literatura humana
– o que é para eles, aliás, motivo de glória – o mesmo acontecendo
com todos os seus fiéis. Pode-se dizer que todos os conhecimentos
bíblicos mais ou menos sistemáticos que existem nas Congregações
provém de prosélitos recrutados nas denominações protestantes.
Felizmente eles são numerosos, pois certas comunidades evangélicas
perdem importantes frações que passam para comunidade vizinha... O
movimento “glória” é um fato, e fato considerável, que possui,
certamente, centenas de milhares de batizados e simpatizantes. Por
importante que seja o recrutamento entre protestantes, a grande
maioria deles provem de meios católicos, e desses meios proletários
perante os quais não se encontram muito comodamente, não obstante
toda sua boa vontade. Há, aqui um grande problema. Essas almas
serão abandonadas apenas às manifestações do Espírito, num
conhecimento insuficiente da Revelação, da Bíblia e, através dela, do
Salvador e de sua Cruz? (LÉONARD, 2002, p. 382-383).
152
Essas considerações do historiador professor Émile G. Léornad são
importantes para compreender que, apesar dos membros da Congregação
Cristã no Brasil não possuírem literatura ou estudos da Bíblia de maneira
sistemática, foram influenciados pelo dispensacionalismo, tanto por pessoas
oriundas
de
outras
denominações
dispensacionalistas,
como
também
principalmente pelo fato de logo no início de sua organização no Brasil, o
dispensacionalismo já ser muito popular nos Estados Unidos, de onde veio seu
fundador Louis Francescon, como aconteceu com as demais líderes
pentecostais dessa época; prova disso é a declaração de fé da Congregação
Cristã no Brasil denominada como Pontos de Doutrina e da Fé90. Em seu artigo
1º e no 11º temos os elementos do pensamento dispensacionalista como a
literalidade da Bíblia, sua inerrância, a crença do arrebatamento dos fiéis antes
do Milênio, bem como a crença no Milênio literal:
1. Nós cremos na inteira Bíblia e aceitamo-la como infalível Palavra de
Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é a única e
perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode acrescentar
ou dela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de todo
aquele que crê. (II Pedro 1.21; II Tm 3.16,17; Rom 1.16).
11. Nós cremos que o mesmo Senhor (antes do milênio) descerá do
céu com alarido, com voz de arcanjo e com a trombeta de Deus; e os
que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, nós, os que
ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens,
a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o
Senhor (I Tess., 4.16,17; ap., 20.6).
Essa percepção doutrinária, apoiada por muitos adeptos oriundos de
outras igrejas pentecostais, faz com que exista na Congregação Cristã no Brasil
desejo entre os fiéis de visitar Israel91. Portanto, o imaginário pentecostal sobre
Jerusalém é presente e existente na Congregação Cristã no Brasil, mesmo não
90
Pontos de Doutrina e Fé Que Uma Vez Foi Dada aos Santos – trata-se de 12 Artigos de Fé, presente na
contra capa dos hinários da Congregação Cristã no Brasil, denominado: Hinos de Louvores e Súplicas a Deus.
91
CAPRICE TURISMO E OPERADORA INTERNACIONAL – Essa operadora de turismo leva anualmente vários
grupos formados por fiéis da Congregação Cristã no Brasil para Israel, inclusive seu Diretor Geral pertence a esta
denominação, e está a mais de vinte anos no mercado de viagens para a Terra Santa (http://www.capricetour.com.br).
153
possuindo literatura ou estudos bíblicos sistematizados, como é o caso da
segunda igreja pentecostal mais antiga do Brasil, a Assembleia de Deus,
denominação que será analisada com mais atenção.
5.2.2.- Igreja Evangélica Assembleia De Deus (1911)
Trata-se da maior denominação evangélica do país e a segunda mais
antiga igreja pentecostal do Brasil, se constituiu no país em 19 de junho de 1911
em Belém, no Norte do país, no Estado do Pará. Foi organizada pelos
missionários suecos Daniel Berg92 e Gunnar Vingren93, ambos oriundos de um
vasto movimento espiritual que ocorreu no início do século XX. Segundo Duncan
Alexander Reily:
As vidas de Daniel Berg (1885-1963) e Gunnar Vingren (1870-1933)
são notavelmente paralelas. Nascidos na Suécia, os dois se tornaram
batistas, e foram batizados por imersão no país de origem; depois
emigraram para os Estados Unidos, respectivamente em 1902 e 1903.
Os dois homens afirmam ter recebido o dom do Espírito Santo em
1909. De volta à Suécia para visitar seus familiares, Berg soube sobre
o Batismo no Espírito Santo através de um ex-amigo de infância, agora
pastor, e alega ter recebido essa graça na viagem de regresso aos
Estados Unidos. Logo a seguir, passou para a Igreja batista de W. H.
Durham, em Chicago. Vingren estudou teologia em Chicago de 1904 a
1909, no Seminário Batista Sueco. Foi a Chicago para assistir a uma
conferência pentecostal, onde, conforme seu próprio testemunho,
recebeu o Espírito e o dom de línguas. Ao voltar à sua paróquia,
Vingren escandalizou sua Igreja e foi despedido, assumindo logo
depois um pastorado em South Bend, Indiana, que dista uns cem
quilômetros de Chicago. Foi a essa altura que os dois se julgaram
chamados divinamente para a missão no Brasil. Obedientes ao
chamado, embarcaram para o Brasil, aportando em Belém do Pará a
19 de novembro de 1910. Localizaram a Igreja Batista, onde foram
hospedados pelo pastor; colaboraram nesta Igreja, na medida do
possível. Suas práticas pentecostais resultaram em dissenções, e
92
Daniel Berg (1884-1963) – Missionário batista de origem sueca que esteve no Brasil por 52 anos, morrendo na
Suécia em 1963, juntamente com Gunnar Vingren fundaram a Assembleia de Deus.
93
Gunnar Vingren (1870-1933) – Missionário batista de origem sueca que esteve no Brasil por 22 anos,
morrendo na Suécia em 1933, juntamente com Daniel Berg fundaram a Assembleia de Deus.
154
depois de algum tempo Berg e Vingren foram convidados a se retirar;
saíram, levando dezoito membros da Igreja Batista com eles (REILY,
1993, p. 371-372).
Daniel Berg e Gunnar Vingren e os dezoito membros da Igreja Batista de
Belém do Pará que os acompanharam deram à sua nova igreja a denominação
Missão da Fé Apostólica e posteriormente Assembleia de Deus.
O ano de 1918 foi de suma importância para a continuação do
movimento pentecostal no grande país. O trabalho já contava com
alguns anos. Agora chegou o tempo de registrar a igreja oficialmente,
para que fosse pessoa jurídica. Isto aconteceu no dia 11 de janeiro de
1918, quando a igreja foi registrada oficialmente com o nome de
‘Assembleia de Deus’” (VINGREN, 1973, p. 91 Apud ALENCAR, 2010,
p. 62).
A Assembleia de Deus no Brasil cresceu de maneira extraordinária,
somando mais de 12,3 milhões de membros94. Possui vários ministérios
independentes, várias convenções, sendo a Convenção Geral das Assembleias
de Deus do Brasil (CGADB)95 a maior e mais influente. Possui um grande
parque gráfico denominado Casa Publicadora das Assembleias de Deus
(CPAD)96, um incentivo ao estudo sistemático da Bíblia e produz a maior
quantidade de material evangélico do Brasil.
Sua crença está expressa em seu credo doutrinário denominado Cremos,
onde aparece a abordagem da literalidade e inerrância da Bíblia, na ideia do
arrebatamento e do milênio literal.
CREMOS:
94
Censo do IBGE feito em 2010, publicado em 2012.
95
CGADB - Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, fundada em 1930 e registrada em 1946, pelos
pastores Samuel Nystron, Cícero Canuto de Lima, Paulo Leivas Macalão, José Menezes, Nels Julius Nelson, Francisco
Pereira do Nascimento, José Teixeira Rego, Orlando Spencer Boyer, Bruno Skolimowski, José Bezerra da Silva e outros,
é uma entidade civil de natureza religiosa, com fins não econômicos, tem sua sede na Avenida Vicente de Carvalho,
1083, Rio de Janeiro - RJ.
96
CPAD - Casa Publicadora das Assembleias de Deus é a editora oficial da denominação e sempre esteve
presente em todos os momentos históricos e decisivos do Movimento Pentecostal no Brasil. É uma empresa sem fins
lucrativos e, em 2015, completou 75 anos.
155
2º – Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé
normativa para a vida e o caráter cristão. 2 Tm 3.14-17.
11º – Na segunda vinda premilenial de Cristo, em duas fases distintas:
Primeira – invisível ao mundo, para arrebatar a Sua Igreja fiel da terra,
antes da grande tribulação; Segunda – visível e corporal, com Sua
Igreja glorificada, para reinar sobre o mundo durante mil anos. 1 Ts
4.16,17; 1 Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc 14.5; Jd 14.
O Credo doutrinário das Assembleias de Deus é dispensacionalista, prétribulacionista e milenarista, solo fértil para a negação da doutrina da
substituição da velha cristandade e para desenvolver a crença na distinção de
Israel e Igreja, materializando seu imaginário sobre a cidade de Jerusalém como
a capital do mundo no Milênio. O Mensageiro da Paz97 publicou matéria com o
título Concepção Escatológica dos Cristãos, de autoria de Wagner Tadeu dos
Santos Gaby, em agosto de 2002, com a seguinte redação:
Das três concepções escatológicas acima descritas, a que mais se
harmoniza com a exegese bíblica é a da Escola Pré-Milenista
Dispensacionalista. É a posição mais condizente com os ensinamentos
dos profetas, de Jesus e dos apóstolos. A Declaração de Fé das ADs
no Brasil, em seus itens de 11 a 14, norteia sua concepção
escatológica
na
perspectiva
da
Escola
Pré-Milenista
Dispensacionalista. A Declaração de Verdades Fundamentais aprovada
pelo Concílio Geral das ADs nos EUA, de 2 a 7 de outubro de 1916,
também acompanha a mesma perspectiva escatológica em seus itens
de 14 a 17. Na contracapa do livro Manual de Doutrina das
Assembleias de Deus no Brasil (CPAD), elaborado pelo Conselho de
Doutrina da CGADB, lê-se a advertência: “as doutrinas fundamentais
nunca foram tão atacadas como agora. Modismos revestidos de
misticismo e superstição têm investido contra a Igreja com a
impetuosidade de uma tormenta. São ventos de doutrina, mas eles
estão conseguindo arrancar do coração dos crentes o que deveriam
ser sólidas convicções. E por que essas convicções se tornaram tão
frágeis? Porque nossos crentes – e até alguns líderes – se
acostumaram a escutar e a reproduzir tudo o que lhes chega aos
ouvidos como Palavra de Deus sem confrontar o que estão ouvindo
com o texto sagrado. Assim, a sua fé enfraquece e as nossas igrejas
ficam expostas aos movimentos espúrios, às teologias deturpadas e às
falsas revelações”. Todos que amam a Vinda do Senhor devem se
voltar ao estudo sistemático da Palavra de Deus, principalmente da
Escatologia, a fim de não se descuidar acerca da verdade
incontestável: Jesus breve virá (Mt 24.44-51). Maranata! (MP, 2000, p.
248-249, Vol. 3).
97
Jornal Mensageiro da Paz - Órgão oficial das Assembleias de Deus no Brasil editado desde 1930.
156
5.2.3.- Outras fontes de divulgação do dispensacionalismo.
Além das denominações pentecostais clássicas terem herdado e
absorvido a perspectiva escatológica dispensacionalista que origina seu
imaginário sobre Jerusalém, há, sem dúvida, pelo menos dois fatores
extremamente relevantes que manterão essa crença, especialmente nas igrejas
e escolas teológicas pentecostais que são: as pregações de Billy Graham 98 e de
outros pregadores midiáticos e a Obra Missionária Chamada da Meia Noite99.
O primeiro fator é a mensagem de Billy Graham, que surge num contexto
histórico específico e adquire uma impressionante unanimidade entre os
evangélicos pentecostais no Brasil. Oriundo de uma ebulição teológica
ideológica dos cumprimentos proféticos e do início da guerra fria surge o grande
pregador evangélico batista Billy Graham, cuja mensagem influenciará e
marcará profundamente o imaginário evangélico pentecostal brasileiro. James
Carroll assim relata:
Durante alguns anos anteriores, o ministro itinerante havia atiçado o
fervor cristão em estilo fundamentalista habitual ao longo da trilha da
serragem, atraindo pequenas multidões em áreas rurais e em
pequenas cidades americanas. Foi coincidência ele encontrar-se numa
cidade grande naquela semana de setembro, e logo ficou evidente, ao
98
William Franklin "Billy" Graham Jr. - pregador batista norte-americano. Foi conselheiro espiritual de vários
presidentes norte-americanos. Foi o mais proeminente pregador evangélico do mundo, pregou para mais de 2,2 bilhões
de pessoas.
99
Obra Missionária Chamada da Meia Noite - é uma missão sem fins lucrativos, com o objetivo de anunciar a
Bíblia inteira como infalível e eterna Palavra de Deus escrita, inspirada pelo Espírito Santo, sendo o guia seguro para a fé
e conduta do cristão. Todas as atividades da "Obra Missionária Chamada da Meia-Noite" são mantidas através de ofertas
voluntárias dos que desejam ter parte neste ministério, as atividades são organizacionalmente independentes de igrejas
ou denominações religiosas.
157
receber a informação dos pastores do sul da Califórnia, que sua tenda
não seria suficientemente grande. Milhares de pessoas afluíam para
ouvi-lo no seu acampamento revivalista ampliado. Nos dias seguintes,
centenas de milhares chegaram, talvez a maior demonstração de
religiosidade espontânea na história americana. O nome do
evangelizador era Billy Graham. A angústia de um povo em pânico com
as notícias da Bomba-A Comunista projetou-o na sua carreira como o
revivalista mais famoso na história dos Estados Unidos. Ele se tornou a
personificação da virtude americana, o pastor da Casa Branca, um
fiador da escolha divina da nação... A genialidade de Graham consistiu
em santificar a proximidade do Armagedom pela guerra nuclear,
mesmo enquanto ainda soavam os alarmes, e transformar esse fervor
impregnado de destruição em matéria-prima da sua pregação. Mais do
que qualquer pregador cristão, Graham conferiu relevância religiosa à
ameaça da aniquilação nuclear. Segundo a pregação de Graham,
somente categorias religiosas, especialmente aquelas extraídas do
Livro de Apocalipse poderia dar ao povo um modo de conviver com o
pavor nuclear... tudo em confronto com o ato da volta de Jesus... Está
longe de ser acidental para essa longa história que Billy Graham então
e depois do princípio do fim da Guerra Fria, denominasse sua missão
de “cruzada”. A febre de Jerusalém ao estilo americano alcançara o seu
grau máximo (CARROLL, 2013, p. 270-271).
Segundo fator relevante é no campo da literatura com o surgimento da
Associação Evangélica denominada Obra Missionaria Chamada da Meia Noite,
instituição
sem
fins
lucrativos,
que
apresenta
sua
perspectiva
pré-
tribulacionista/Pré-milenista/Dispensacionalista, que é a visão majoritária entre
as igrejas evangélicas pentecostais brasileiras edita mensalmente as revistas
Chamada da Meia Noite e Notícias de Israel, bem como vídeos de várias
temáticas em conexão com profecias bíblicas alusivas a Israel de acordo com
sua escatologia100. Entre seus doze pontos doutrinários temos:
1. Cremos em toda a Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento)
como infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo e
autoridade máxima em todas as questões de fé (2 Pe 1.21; 2 Tm 3.1617).
100
Todos os anos a Obra Missionária Chamada da Meia Noite realiza uma Conferência Profética com ênfase no
dispensacionalismo. Entre os dias 21 a 24 de Outubro de 2015 será realizada em Águas de Líndóia-SP o 17º Congresso
Internacional Sobre a Palavra Profética, com o tema principal: O Arretabatamento. Você está preparado?
158
8.- Cremos na volta de Jesus Cristo para o arrebatamento da sua Igreja
comprada pelo seu sangue e na Sua volta, com a Igreja, em grande
poder e glória (1 Ts 4.13-17; 1 Co 15.51-53; Mt 24.30; Zc 14.5b; Jd 14).
11.- Cremos no cumprimento da palavra profética e, portanto, na
restauração de Israel em nossos dias (2 Pe 1.19; Am 9.11; At 15.1416).
Existe uma intensa distribuição de materiais que mantém acesa a
perspectiva dispensacionalista nas maiores igrejas evangélicas pentecostais do
Brasil.
Como se pode observar, as igrejas pentecostais clássicas, embora
possuam liturgias e costumes diferentes, todas têm uma mesma percepção
teológica dispensacionalista presente em suas respectivas declarações de fé.
Além dos dois fatores apresentados: as mensagens de Billy Graham e Obra
Missionária Chamada da Meia Noite, é essencial na construção e consolidação
do imaginário que o pentecostalismo clássico brasileiro tem a respeito de
Jerusalém, a interpretação e crença literal na Bíblia.
Essa percepção da interpretação literal de toda Bíblia, está a visão que
incentiva o retorno dos judeus para Israel, mesmo antes da criação do moderno
Estado de Israel;
restauracionistas ou restauracionismo, têm esse nome
derivado do objetivo desses evangélicos em restituir os judeus para a Terra
Santa de Israel e sua capital Jerusalém.
O Professor James Carroll assim
descreve:
...Com a volta de todos os judeus a Jerusalém e o restabelecimento da
política que vigorava na época do próprio Jesus, cumprir-se-ia a última
condição para o retorno do Messias, e todos – judeus, cristãos e
muçulmanos – veriam a luz. “O Olhar de cada um” disse o pregador,
“está fixo em Jerusalém”. Uma leitura literal da Bíblia gerou a crença de
que o retorno do Messias começaria na cidade e de que dependia da
volta prévia dos judeus à sua terra natal – e de sua conversão há muito
protelada: A salvação virá de Sião (CARROLL, 2013, p. 247).
159
5.3.- A Teologia Escatológica Pentecostal da Assembleia de Deus na
Construção do Imaginário Sobre Jerusalém
O movimento pentecostal clássico nasceu saturado de escatologia
apocalíptica:
O significado de Azusa foi centrifugal - aqueles que eram tocados por
ele levavam suas experiências para outros lugares e tocavam a vida de
outras pessoas. Reunidos pela crença e pelos conceitos teológicos de
salvação pessoal, de santidade, de cura divina, do batismo com o
Espírito Santo como autoridade para o ministério, e pela expectativa do
iminente retorno de Jesus Cristo, eram amplamente providos de uma
grande motivação para dar ao despertamento verificado entre eles um
impacto de longo alcance (BURGESS; DER MASS, 2002, p. 955).
Estes movimentos relacionavam escatologia e pneumatologia, gestando
uma nova percepção nas atividades proselitistas e missionárias. A crença na
atualidade da experiência com o Espírito Santo, à semelhança dos tempos da
igreja primitiva, torna-se um sinal claro, que os últimos dias estão próximos.
Assim
o nexo escatologia e pneumatologia contribuiu solidamente para um
urgente, incansável movimento missionário que se alastrou dos EUA, atingindo
todo o mundo, nas duas primeiras décadas do século XX.
A escatologia é muito presente no imaginário da Assembleia de Deus101.
O pesquisador Gedeon Alencar, declara:
No primeiro momento, as marcas do pentecostalismo eram glossalalia
(falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito
Santo), cura divina e por escatologia. Com uma interpretação bíblica
fundamentalista e espaço apenas para uma moral individual puritana
(ALENCAR, 2010, p. 21).
101
O Hinário Oficial da Assembleia de Deus é a Harpa Cristã, 37% dos hinos são escatológicos, e apenas 7% de
natureza pentecostal. Portanto, os assembleianos cantam mais sobre escatologia, que sobre o pentecostalismo.
160
Ademais, o mundo está na iminência de ser destruído. Esse
escatologismo não é tão anacrônico ou atemporal assim, … Porque a
Igreja deveria se preocupar com as questões do mundo, se sua
destruição é irreversível e qualquer tentativa infrutífera? Ademais,
“nossa missão” é mais importante e até mais eficiente (ALENCAR,
2010, p. 14-1-142).
A escatologia pentecostal da Assembleia de Deus é profundamente
influenciada pela ideia das dispensações. No início de sua institucionalização, a
liderança pentecostal da Assembleia de Deus norte-americana proibiu a Bíblia
de Referência de Scofield, porque seus comentários eram cessacionistas,
doutrina contrária ao pentecostalismo. A Assembleia de Deus no Brasil
inicialmente desenvolveu um dispensacionismo diferente de Scofield, mas com a
mesma ideia de dispensação, conforme declaração de Emílio Conde no
Mensageiro da Paz em 1930:
Os teólogos dividem a história das Escrituras em sete dispensações,
nós, porém, falamos só de três: a do Pai, a do Filho e a do Espírito
Santo. A dispensação do Pai abrange todo o Velho Testamento e
termina com o profeta Malaquias. A dispensação do Filho começa com
o Evangelho de Mateus e vai até o dia de Pentecostes. E a
dispensação do Espírito Santo começou no Pentecostes e só
terminará com a volta do Senhor Jesus. Vivemos, portanto na última,
mas gloriosa dispensação mais ampla da obra expiatória de Jesus
Cristo, e o Consolador, o Espírito Santo, tem através dos tempos
convencido muitos do pecado, da justiça e do juízo, e despertado os
homens para buscarem a Deus (MP, 2004, p. 54-55 – vol. I).
Posteriormente, a Assembleia de Deus liberou102 a Bíblia de Referência
de Scofield, a partir daí, o dispensacionalismo de Scofield está presente na
Assembleia de Deus. Como o dispensacionalismo tem como um de seus pontos
fundamentais a separação da Igreja de Israel, a teologia pentecostal
assembleiana se firmará na literalidade da palavra de Paulo em Romanos 11:
102
Sobre a proibição e liberação da Bíblia de Referência de Scofild na Assembleia de Deus norte-americana, veja
nota de rodapé 77 – pag. 137.
161
Digo, pois: Porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum!
porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo
de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu. Ou
não sabeis o que a Escritura diz de Elias, como fala a Deus contra
Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus profetas e derribaram os teus
altares; e só eu fiquei, e buscam a minha alma? Mas, que lhe diz a
resposta divina? Reservei para mim sete mil varões, que não dobraram
os joelhos a Baal. Assim, pois, também agora neste tempo ficou um
resto, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas
obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Pois quê? O que Israel
buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros
foram endurecidos. Como está escrito: Deus lhes deu espírito de
profundo sono: olhos para não verem, e ouvidos para não ouvirem, até
ao dia de hoje. E Davi diz: Torne-se-lhes a sua mesa em laço, e em
armadilha, e em tropeço, por sua retribuição; escureçam-se-lhes os
olhos para não verem, e encurvem-se-lhes continuamente as costas.
Digo, pois: porventura tropeçaram, para que caíssem? De modo
nenhum! Mas pela sua queda, veio a salvação aos gentios, para os
incitar à emulação. E, se a sua queda é a riqueza do mundo, e a sua
diminuição a riqueza dos gentios, quanto mais a sua plenitude! Porque
convosco falo, gentios, que, enquanto for apóstolo dos gentios,
glorificarei o meu ministério; para ver se de alguma maneira posso
incitar à emulação os da minha carne e salvar alguns deles. Porque, se
a sua rejeição é a reconciliação do mundo, qual será a sua admissão,
senão a vida dentre os mortos? E, se as primícias são santas, também
a massa o é; se a raiz é santa, também os ramos o são. E se alguns
dos ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado
em lugar deles e feito participante da raiz e da seiva da oliveira, não te
glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não és tu que
sustentas a raiz, mas a raiz a ti. Dirás, pois: Os ramos foram
quebrados, para que eu fosse enxertado. Está bem! Pela sua
incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé, então não te
ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos
naturais, teme que te não poupe a ti também. Considera, pois, a
bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade;
mas, para contigo, a benignidade de Deus, se permaneceres na sua
benignidade; de outra maneira também tu serás cortado. E também
eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados;
porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar. Porque, se tu foste
cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa
oliveira, quanto mais esses, que são naturais, serão enxertados na sua
própria oliveira! Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo
(para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio
em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E
assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o
Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E este será a meu
concerto com eles, quando eu tirar os seus pecados. Assim que,
quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas, quanto à
eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a vocação de
Deus são sem arrependimento. Porque assim como vós também
antigamente fostes desobedientes a Deus, mas agora alcançastes
misericórdia pela desobediência deles, assim também estes agora,
foram desobedientes, para também alcançarem misericórdia pela
162
misericórdia a vós demonstrada. Porque Deus encerrou a todos
debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia. Ó
profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de
Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os
seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou
quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que
lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas
as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém (Romanos 11:1-36 ARC).
No entender dos evangélicos pentecostais clássicos, de acordo com sua
interpretação literal da Bíblia, Deus não rejeitou o povo de Israel, conforme
afirmação do apóstolo Paulo:
Digo, pois: porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum!
Porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo
de Benjamim. Deus não rejeitou ao seu povo, que antes conheceu...
(Romanos 11.1-2 - ARC).
De acordo com essa interpretação pentecostal, a declaração de Paulo no
capítulo 11 da Epístola aos Romanos aponta para as seguintes considerações:
ele se referia à nação de Israel, ele fala de sua etnia, “sou israelita”, fala de seu
antepassado, “da descendência de Abraão”, fala de sua família tribal, “da tribo
de Benjamim” e fecha sua consideração declarando "Deus não rejeitou ao seu
povo, que antes conheceu".
Os escritos de Paulo aos Romanos capítulos 9 a 11, nessa perspectiva,
tratam da eleição de Israel no passado, da sua rejeição do evangelho no
presente, e da sua salvação no porvir. O pentecostalismo infere que havia,
naquela comunidade, ou entre algumas pessoas, o seguinte questionamento:
como as promessas de Deus feitas a Abraão, a Isaac e a Jacó, feitas a seus
descendentes, ou seja, a toda nação de Israel, poderiam permanecer válidas,
quando o povo judeu, ou a nação de Israel, como um todo, não aceitava as boas
novas de salvação? Seriam mesmo inimigos perseguidores do Evangelho de
Jesus, o Messias? Algum tipo de pensamento ou ideia que implicava a rejeição
163
dos judeus, devido à oposição contínua, a perseguição e rejeição dos judeus
aos primeiros cristãos levou a essa disposição, sugestionando-os a concluírem
precipitadamente que o povo judeu teria sido rejeitado, já que não conseguiam
conciliar a nação de Israel e a Igreja de Cristo.
Mas para essa pergunta especificamente "Porventura rejeitou Deus o seu
povo?", em Romanos 11.1, a teologia dispensacionalista e pentecostal
concebem os escritos de Paulo com uma tríplice resposta?
Uma primeira resposta negativa: "... não rejeitou ao seu povo...".
Uma segunda resposta, fazendo a justaposição dos termos "Deus" e "seu
povo", obviamente jamais o Eterno rejeitaria seu povo que de antemão o
conheceu, ou escolheu, e o fez por uma ação totalmente independente de
qualquer valoração. Veja o que Deus fala a Israel através de Moisés:
O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a
vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós
éreis menos em número do que todos os povos, mas porque o
SENHOR vos amara; e, para guardar o juramento que jurara a vossos
pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da
servidão, da mão de Faraó, rei do Egito (Deuteronômio 7.7,8 - ARC).
Uma terceira resposta à promessa de Deus a Israel, ele não rejeitou o seu
povo, como podemos ler na promessa da Antiga Aliança, Salmo 94.14 e 1º
Samuel 12.22:
Pois o SENHOR não rejeitará o seu povo, nem desamparará a sua
herança (Salmo 94.14 - ARC).
Pois o SENHOR não desamparará o seu povo, por causa do seu
grande nome, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo (1º
Samuel 12.22 – ARC)
A percepção pentecostal lê na declaração de Paulo uma enorme aversão
à rejeição do povo judeu: "...De modo nenhum...", parafraseado como "Não
164
aconteceu sob hipótese alguma", "Deus proíba" ou "longe de nós tal
possibilidade ou pensamento".
Assim o pentecostalismo compreende que a aversão à ideia de rejeição
do povo judeu é definitiva, não podendo admitir que a vontade e o plano divino
pudessem mudar de tal modo que aqueles que antes haviam sido povo de Deus,
agora pudessem vir a ser final e totalmente rejeitados por Deus: “Porque os dons
e a vocação de Deus são sem arrependimento” (Rm 11.29). Na Epístola aos
Hebreus capítulo 6 e versículos 17 a 18 lemos:
Pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a
imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs
com juramento. Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é
impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que
pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta (Hebreus 6.1718).
Para os pentecostais clássicos, na exposição teológica dos capítulos 9 a
11 aos Romanos, o apóstolo Paulo estaria elencando três elementos distintos de
Israel no plano salvífico de Deus. Primeiramente (9.6-26) ele analisa a eleição
de Israel no passado. Em segundo lugar (9.30 a 10.21) Paulo analisa a rejeição
de Israel em relação ao evangelho e, finalmente, em terceiro lugar (11.1-36)
explica que o endurecimento a Israel veio em parte, portanto era parcial e
temporário.
No dispensacionalismo, a teologia da rejeição à nação de Israel é
totalmente impossível, Deus não rejeitou seu povo, Paulo em Romanos 11 evoca
sua etnicidade judaica, e em seguida explica que ele não era o único judeu
cristão, mas havia um remanescente fiel em Israel, como nos dias do Profeta
Elias, quando o Eterno conservou sete mil homens para si. Essa é uma analogia
interessante, Paulo estava ensinando que embora o profeta Elias se
considerasse o único israelita fiel de sua época, o único que não negara sua fé,
Deus testemunha contra essa ideia declarando:
165
Também eu fiz ficar em Israel sete mil; todos os joelhos que se não
dobraram a Baal, e toda boca que o não beijou (1 Reis 19.18 - ARC).
O argumento de Paulo é o mesmo, ele estava dizendo que o mesmo
acontecia naquela época, existe um remanescente fiel de Israel (Romanos 11.4).
Finalmente Paulo declara que, depois da entrada da plenitude dos
gentios, Deus salvará todo o Israel e Jerusalém será a capital do reino terreno
do Messias: 0
Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não
presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre
Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E, assim todo o
Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e
desviará de Jacó as impiedades. E este será o meu concerto com eles,
quando eu tirar os seus pecados (Romanos 11.25-27 – ARC - grifo
nosso).
São inúmeras as profecias bíblicas que apontam para um reino terreno do
Messias com capital Jerusalém. A teologia evangélica pentecostal acredita
literalmente no milênio de Apocalipse 20, como expressou o conferencista Dave
Hunt103 em seu artigo: Jerusalém, Jerusalém!104 diz:
Duas vezes na Bíblia Jerusalém é chamada “cidade do nosso Deus”
(Salmo 48.1,8); duas vezes, “cidade de Deus” (Salmo 46.4 e Salmo
87.3); oito vezes, “santa cidade” ou “cidade santa” (Neemias 11.1;
Isaías 48.2; Isaías 52.1; Mateus 4.5; etc.). Deus decretou que jamais
existirá uma cidade igual a Jerusalém! Ela é mencionada 811 vezes na
Bíblia... Toda a história de Jerusalém, inclusive sua destruição (em 70
d.C.) e sua restauração “nos últimos dias”, foi predita pelos profetas
hebreus e por Jesus Cristo: “Em verdade vos digo que não ficará aqui
pedra sobre pedra que não seja derribada” (Mateus 24.2) –“...esta
cidade será reedificada... Jerusalém jamais será desarraigada ou
destruída” (Jeremias 31.38-40). Ainda em processo de realização, em
103
Dave Hunt (1926-2013) – Teólogo dispensacionalista, escritor e apologista, escreveu 20 livros, com tiragem de
mais de 4 milhões de exemplares.
104
Artigo: Jerusalém, Jerusalém! - www.beth-shalom.tv.br/artigos/jerusalém_jerusalem.html
166
face da ferrenha oposição do mundo e de Satanás, a caminhada rumo
ao cumprimento das profecias de restauração (nenhuma delas
podendo ser aplicada à Igreja) é a maior prova que Deus dá de Sua
existência e de que a Bíblia é a Sua Palavra infalível (HUNT, 2011).
A percepção dos evangélicos pentecostais da Assembleia de Deus em
relação à questão profética pode ser constatada em escrito de um de seus
fundadores, o sueco Gunnar Vingren, em sua Monografia de graduação em
Teologia intitulada O Tabernáculo e Suas Lições, apresentada em 1909 no
Seminário Teológico Sueco de Chicago (EUA):
Já quem observa o Novo Testamento pode contemplar uma cidade de
imensas dimensões geográficas, também chamada de tenda de Deus,
a nova Jerusalém, em cujo nome está contido o mesmo pensamento
fundamental, o de um tenda do testemunho no deserto. Onde vemos o
término de uma era, temos o começo de outra. Na cidade de Deus,
com sua tenda celestial, contemplamos a consumação do conselho de
Deus à humanidade, de forma que a tenda do testemunho não deve
ser vista apenas como símbolo, e sim como o início do reino do Senhor
junto ao povo eleito (VINGREN, 2011, p. 82).
Outra citação interessante encontra-se no artigo A Palestina de Hoje, de
Alice E. Luce, publicado no órgão oficial da Assembleia de Deus, o jornal
Mensageiro da Paz da primeira quinzena de 1941, antes mesmo da fundação do
moderno Estado de Israel:
A figueira é a primeira das três árvores que representam a nação
judaica e tipifica sua organização política e econômica. A videira
representa a vida religiosa e cerimonial (Is 5.1-7), a oliveira é usada
para demonstrar o aspecto espiritual diante de Deus (MP, 2000, p. 186187 – Vol I).
Essa interpretação profética assembleiana está em simetria com a
declaração a respeito de Jerusalém exposta pelo Dr. Wim Malgo:
167
Israel é o centro do mundo; Jerusalém é o centro de Israel; o templo é
o centro de Jerusalém; o Santo dos Santos é o centro do templo; a
Arca da Aliança com o sangue espargido é o centro do Santuário, e
esse é o Cordeiro! Cantares 6.4 diz: És “...aprazível como Jerusalém”.
Isaías 40.2: “Falai ao coração de Jerusalém (com isso se faz referência
também a Israel), bradai-lhe que já é findo o tempo da sua milícia, que
a sua iniquidade está perdoada e que já recebeu em dobro da mão do
Senhor, por todos os seus pecados”. Façamos mais uma vez a
pergunta: por que Jerusalém? Para isso existe uma resposta curta do
Senhor, mas que diz tudo: “...habitarei no meio de Jerusalém” (Zc 8.3)
Deus o Senhor nunca muda sua vontade e seu conselho. Por isso, sob
todos os aspectos, Jerusalém era e será o centro deste mundo. Até
mesmo geograficamente o Senhor localizou Jerusalém em posição
central. Isso pode ser visto claramente num mapa-múndi. É o que está
também escrito na Bíblia: “Assim diz o Senhor Deus: Esta é Jerusalém;
pu-la no meio das nações e terras que estão ao redor dela” (Ez 5.5).
Deus o Senhor mesmo, e assim também como centro da sua ação com
este mundo. Por isso, toda comparação política de qualquer nação com
Israel e com Jerusalém é desacertada. Pois Deus age em e através de
Jerusalém, ou seja, Israel é algo bem diferente do que os outros povos,
e deveria ter a coração de ser Israel. Todas as questões políticas,
religiosas e militares mundiais são por isso cada vez mais respondidas
a partir de Jerusalém. Partindo de Jerusalém a justiça penetrará por
todo o mundo. De Jerusalém procederá também a paz para todo o
mundo. Isso está escrito, por exemplo, em Isaías 2.2-4, onde se fala do
futuro. Essas palavras são inequívocas. Elas igualmente não devem
ser espiritualizadas. “Nos últimos dias acontecerá que o monte da casa
do SENHOR será estabelecido no cume dos montes, e se elevará
sobre os outeiros, e a ele afluirão os povos. Irão muitas nações, e
dirão: Vinde, e subamos ao monte do Senhor, e à casa do Deus de
Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas
veredas; porque de Sião sairá a lei, e a Palavra do Senhor de
Jerusalém. Ele (o Rei e Messias que então terá vindo) julgará entre os
povos, e corrigirá muitas nações; estes converterão as suas espadas
em relhas de arados, e as suas lanças em podadeiras: uma nação não
levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a
guerra”. Encontramos o mesmo também em Miqueias 4.1-3. Esse é o
futuro! A partir de Jerusalém haverá na terra um reino de paz sob o
abençoado domínio do Messias, do Senhor Jesus Cristo. (MALGO,
1999, p. 47-49).
O escritor assembleiano pastor Claudionor Corrêa de Andrade assim
sintetizou a crença pentecostal do que acontecerá a Jerusalém nos últimos
tempos:
168
Estamos vivendo os estertores da dispensação da graça. Cumprem-se
as profecias; os sinais da volta de Cristo tornam-se ainda mais
evidentes. A areia não para de fluir na ampulheta escatológica. Os
oráculos de Moisés, Isaías e Daniel materializam-se na tela da
soberania divina. Ganham corpo, no presente século, os eventos
preditos do atual período probatório. O Rei está voltando! A mais forte
profecia do retorno de Cristo já se cumpriu, Israel, a figueira seca e
sem flores, frutifica advertências. O arrebatamento da Igreja é mais que
iminente. Mas o que reserva Deus à sua amada cidade? Neste
capítulo, veremos que, não obstante o ardor da Grande Tribulação,
Jerusalém há de resplandecer. Apesar da rapacidade e sanguinolência
das tropas de Gogue e Magogue, Sião não será subvertida, nem cairá
no fosso do esquecimento. No auge de suas dores, dará à luz uma fé
viva em seu desprezado e humilhado Messias: Jesus Cristo... O clímax
da Grande Tribulação, os israelitas converter-se-ão a Cristo, conforme
os oráculos que Deus transmitiu ao profeta Zacarias: “Mas sobre a
casa de Davi, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o
Espírito de graça e de súplicas; e olharão para mim, a quem
traspassaram; e prantearão sobre ele, como quem pranteia pelo filho
unigênito; e chorarão amargamente por ele, como se chora
amargamente pelo primogênito. Naquele dia será grande o pranto em
Jerusalém, como o pranto de Hadade-Rimom no vale de Megido”.
Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi, e para os
habitantes de Jerusalém, para purificação do pecado e da imundícia. E
acontecerá naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, que tirarei da terra
os nomes dos ídolos, e deles não haverá mais memória; e também
farei sair da terra os profetas e o espírito da impureza” (Zc 12.10-11;
13.1,2). Com o arrependimento nacional de Israel, será instaurado o
Milênio na Terra. ... “Ele (o anjo que desceu do céu) prendeu o dragão,
a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos.
E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele, para que
não mais engane as nações, até que os mil anos se acabem. E depois
importa que seja solto por um pouco de tempo” (Ap 20:2-3)... Inspirado
pelo Espírito Santo, narra-nos o profeta Isaías como será este reino,
que terá por capital a Cidade de Jerusalém: “E acontecerá nos últimos
dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes, e
se elevará por cima dos outeiros; e concorrerão a ele todas as nações.
E irão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à
casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e
andemos nas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém
a palavra do Senhor” (Is 2:2-3) (ANDRADE, 1997, p. 169-173).
O Mensageiro da Paz, em abril de 2002, publicou matéria intitulada
Conflito do Oriente Médio no contexto bíblico de autoria de Paulo Roberto Freire
da Costa, presidente da Assembleia de Deus de Campinas-SP, com a seguinte
afirmação:
169
Para que as Escrituras continuem se cumprindo será necessário que
haja uma união entre as nações, o que, por sinal, já vem ocorrendo...
Temos assim, a continuação do cumprimento da Palavra do Senhor.
Por mais que as nações queiram ignorar ou menosprezar o povo de
Israel, a sua capital – Jerusalém – continuará sendo o local mais
disputado da Terra. Enquanto Yasser Arafat e todos os palestinos
desejam-na como capital, outras nações e instituições pedem a sua
internacionalização. Esquecem que foi em Jerusalém que Davi
governou como rei durante 33 anos sobre todo o Israel e Judá (2 Sm
5.5). Também esquecem que Jerusalém é a terra escolhida pelo
Senhor como habitação (Zc 8.3) e que foi por ela que Jesus chorou (Lc
19.41). Por fim, será em Jerusalém travada a grande luta em que todas
as nações guerrearão e se ferirão, e lá, finalmente, haverá a conversão
do remanescente de Israel, por ocasião da vinda de Jesus (Zc 14.4)
(MP, 2000, p. 231-232 – Vol. I).
Essa teologia pentecostal clássica é completamente diferente da velha
cristandade como bem observou o Professor James Carroll:
…antiga convicção católica romana e ortodoxa oriental de que Deus
proíbe a volta dos judeus a Jerusalém não poderia contrastar mais
agudamente com a moderna certeza evangélica protestante de que
Deus deseja a reintegração dos judeus em Jerusalém – no entanto, no
fundo essas duas visões cristãs colocam a relação dos judeus com
Jerusalém no centro da teologia do Fim dos Tempos. Para os católicos,
os judeus só voltarão a Jerusalém no momento do fim do mundo; para
os protestantes a volta acontecerá antes do final, como instrumento
causal desse clímax. Mas ambos preveem a destruição da Jerusalém
terrestre como prelúdio para o estabelecimento da Jerusalém celeste
(CARROLL, 2013, p. 290).
Para o imaginário escatológico pentecostal, a cidade de Jerusalém (atual
capital do moderno Estado de Israel) tem e terá um papel fundamental no plano
divino para o futuro. As profecias encontradas na Bíblia Sagrada a respeito de
Jerusalém são aceitas literalmente, tais como: Isaías 60-61, Zacarias 12 e 14 e
Apocalipse 20-22.
Mesmo após o arrebatamento da igreja, segundo a escatologia
pentecostal, Jerusalém estará no centro dos propósitos de Deus na terra,
quando ocorrerá a grande tribulação (Apocalipse 6, 8 e 9; Ezequiel 38.17-23;
170
Zacarias 12. 8-9; 14.1-2; Daniel 9.24-27; Mateus 24.15-22). O templo judeu será
reconstruído no atual monte do templo em Jerusalém, local da esplanada das
mesquitas (Mesquita de Al-Acsa – cúpula preta e Domo da Rocha – cúpula
dourada), a base bíblica citada pelo pentecostalismo está em Daniel 9.27;
Mateus 24.15-16; 2 Tessalonicenses 2.3-4; e Apocalipse 11.1-2. Em Apocalipse
11.3-14, haverá duas testemunhas singulares em Jerusalém pregando o
Evangelho por 1260 dias. Durante três anos e meio eles ministrarão na cidade
de Jerusalém, eles serão mortos pelo Anticristo e seus corpos serão expostos
nas ruas de Jerusalém (Apocalipse 11.1-8). No final desse período haverá
guerra intensa em Jerusalém (Zacarias 14.1-3). Essa leitura do livro de
Apocalipse é feito pelo pentecostalismo na perspectiva literal.
Como o pentecostalismo clássico acredita que a vinda de Cristo se dará
em duas fases, na segunda fase Cristo retornará com sua igreja raptada da terra
no Monte das Oliveiras em Jerusalém conforme profecia de Zacarias:
Naquele dia estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está
defronte de Jerusalém para o oriente; e o monte das Oliveiras será
fendido pelo meio, para o oriente e para o ocidente, e haverá um vale
muito grande; e metade do monte se apartará para o norte, e a outra
metade dele para o sul (Zacarias 14.4 - ARC).
Cristo voltará em Jerusalém para julgar o mundo e estabelecer seu Reino
Milenal, reinará no trono de Davi em cumprimento às profecias do Antigo
Testamento sobre o Messias da linhagem de Davi. Segundo o Dr. Walvoord:
Seu reinado sobre a casa de Israel será a partir de Jerusalém (Isaías
2.1-4), e do mesmo local em que reinará como Rei dos Reis e Senhor
dos Senhores sobre toda a terra (Salmo 72.8-11, 17-19)... O Milênio
será a hora da restauração final de Israel. No começo do reino milenar
Israel terá seu ajuntamento final e permanente (Ezequiel 39.25-29:
Amós 9.15). O reinado de Cristo sobre Israel será glorioso e um
cumprimento completo e literal de tudo que Deus prometeu a Davi
(Jeremias 23.5-8). (ICE e DEMY, 2000, p. 55).
171
Finalmente, qual é o futuro de Jerusalém no Estado Eterno na concepção
pentecostal e dispensacionalista? Segundo Thomas Ice e Timothy Demy:
...Deus quer continuar usando o nome amado de Jerusalém, já que
este nome está associado à Sua glória e presença. A Nova Jerusalém
de Apocalipse 3.12 e 21-22 (e Hebreus 11.0-10; 12.22-25) descerá do
céu e continuará pela eternidade. Será a habitação dos redimidos de
todas as eras, quer servirão a Deus eternamente (Apocalipse 22.3)...
Em João 14.2-3, Jesus disse aos Seus discípulos que iria para o céu
preparar um lugar para os crentes. Parece que este lugar que Ele está
preparando é a Jerusalém Celestial (ICE, DEMY, 2000, p. 55).
O apóstolo João após fazer uma detalhada descrição da Nova Jerusalém,
declara que ela desce do céu, segundo sua visão descrita no livro do Apocalipse
temos:
Vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a
primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa
cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada
como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz
do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois
com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará
com eles, e será o seu Deus (Apocalipse 21:1-3).
Em um cântico evangélico muito presente na liturgia pentecostal no Brasil
intitulado Cidade Santa (Jerusalém) expressa a essência dessa crença:
Dormindo no meu leito, em sonho encantador,
Um dia eu vi Jerusalém e o trono do Senhor.
Ouvi cantar crianças e em meio ao seu cantar
Rompeu a voz dos anjos, no céu a proclamar
Rompeu a voz dos anjos, no céu a proclamar
Jerusalém, Jerusalém
Cantai oh Santa Grei!
Hosanas nas alturas!
Hosana sem cessar!
Então o sonho se alterou, não mais o som feliz
Ouvia das hosanas, dos coros infantis.
172
O ar em torno se esfriou
Do sol faltava a luz
E no alto e tosco monte vi o vulto de uma cruz
E no alto e tosco monte vi o vulto de uma cruz
Jerusalém, Jerusalém
Aos anjos escutei!
Hosanas nas alturas!
Hosana ao vosso Rei!
Ainda a cena se mudou, surgia em resplendor
A divinal cidade, morada do Senhor.
Da luz não brilhava a luz, nem sol nascia lá
Mas só fulgia a luz de Deus mui pura em seu brilhar.
E todos que queriam sim, podiam logo entrar
Na mui feliz Jerusalém, que nunca passará
Na mui feliz Jerusalém, que nunca passará
Jerusalém, Jerusalém
Teu dia vai raiar
Hosanas nas alturas!
Hosana sem cessar!
Hosana sem cessar!
Trata-se, de um imaginário próprio construído paulatinamente e
plenamente cristalizado nas muitas comunidades evangélicas brasileiras,
especialmente as que derivam das Assembleias de Deus.
5.3.1.-
Outros
aspectos
da
construção
do
imaginário
pentecostal
assembleiano sobre Jerusalém
Após analisar a perspectiva histórica, teológica escatológica do
pentecostalismo clássico, é necessário analisar outros aspectos da construção e
fomento desse imaginário, primeiro porque a maioria dos pentecostais clássicos,
sejam da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, não
possuem uma prática doutrinária teológica totalmente homogênea, ou seja, há
diferença entre o que a denominação declara oficialmente e o que os fiéis em
seu cotidiano acreditam; segundo, porque os membros, de modo geral, não
173
possuem conhecimento histórico teológico aprofundado de suas crenças e
doutrinas, algo notável na Congregação Cristã no Brasil, e em menor dimensão
nas Assembleias de Deus; e terceiro, porque o modelo administrativo
eclesiástico de autonomias de campos e ministérios, especificamente nas
Assembleias de Deus, permite uma diversificação de possibilidades e
pluralidade de interpretações.
Pode-se afirmar que o imaginário pentecostal clássico sobre Jerusalém
não é fruto ou herança do catolicismo brasileiro, não há paralelo no catolicismo
brasileiro para fazer uma ponte com o que ocorre no pentecostalismo clássico ou
da primeira onda pentecostal com alguma crença preexistente no catolicismo
brasileiro. Lembrando que o pentecostalismo clássico não aceita objetos
santificadores ou mágicos, elementos presentes no catolicismo, presentes em
parte, tanto no pentecostalismo da segunda onda, como no neopentecostalismo.
O pentecostalismo clássico não aceita a água do rio Jordão como milagrosa,
óleos de oliveiras de Jerusalém, arca da aliança, sal do Vale do Sal, trombetas
de Gideão, o cajado de Moisés, ou qualquer outro kit milagroso de Israel. Como
bem apontou o escritor Pierre Sanchis:
Para o pentecostalismo ‘clássico’ dito, às vezes e já, ‘tradicional’ a
unicidade da mediação (o Cristo) é proclamada e ciosamente mantida.
O encontro que salva é direto, sem intermediários, e procurado
exclusivamente. O resto são consequências: dons, curas, milagres,
falar em línguas... (SANCHIS, 1994, p. 51).
O imaginário evangélico pentecostal clássico não é herança dos
movimentos messiânicos presentes no catolicismo e no protestantismo étnico no
Brasil, até porque o pentecostalismo nasceu antipolítico e alienante do mundo.
Gedeon Alencar em sua obra Assembleias de Deus: Origens, implantação e
militância (1911-1946), declara
174
A AD tem um seu ethos uma natureza de “aversão do mundo” que se
justifica por razões internas: sua escatologia iminente não lhe dá tempo
para pensar no presente (ALENDAR, 2010, p. 49).
Não se trata de judaização identificada em parte nas igrejas da segunda
onda do pentecostalismo e entre as igrejas neopentecostais, no uso de objetos
do judaísmo, como Kipá, talit, candelabros, chofar, arca da aliança, uso de barba
e linguagem hebraica, entre outros. Como afirmou Antonio Gouvêa Mendonça, o
pentecostalismo clássico está mais próximo do protestantismo que as outras
ondas pentecostais:
Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a
não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecoste
que o protestantismo recusa. O pentecostalismo posterior, cuja
explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura divina, o
que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores
movimentos,
que
têm
recebido
o
nome
genérico
de
neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o
protestantismo (GOUVÊA, 1998).
5.3.2.- A mercantilização editorial e turística no fortalecimento desse
imaginário
O mercado irá explorar e fomentar o desejo do fiel pentecostal no
fortalecimento de seu imaginário, reforçando questões teológicas escatológicas
do pentecostalismo para seu proveito, potencializando o desejo do fiel em
materializar sua fé, caminhando nas terras bíblicas, conhecendo a cidade de
Jerusalém, a futura capital do reino milenar na percepção pentecostal. O
mercado contribuirá para afirmação e materialização do imaginário evangélico
pentecostal, mas o mercado não irá criar o imaginário, ele explorará e
175
potencializará uma demanda preexistente, o mercado criará necessidade no fiel
e será um facilitador para materializar seus sonhos, ele amalgama-se num
imaginário confessional, espiritual, transformando-o numa necessidade material,
palpável e possível de realizar-se, mas não é o criador do imaginário porque ele
já existia.
Se o mercado não cria o imaginário pentecostal clássico sobre a cidade
de Jerusalém, mas fomenta-o, dando uma enorme importância a ele, então onde
está a gênese da construção desse imaginário e sua fomentação?
A gênese desse imaginário, como foi dito, é teológica escatológica, está
presente na declaração de fé do pentecostalismo clássico. Portanto está no
campo da crença, de sua esperança escatológica. No entanto, há um tripé
elementar que precisamos considerar para a compreensão desse imaginário
especialmente nas Assembleias de Deus: primeiro, houve na Assembleia de
Deus um longo período de afirmação escatológica; segundo, muita publicação
editorial sobre escatologia e terceiro, empresas turísticas facilitadoras que,
impulsionadas pela estabilidade econômica desde o plano real, adentraram nas
igrejas para concretizarem o desejo de conhecer a terra santa.
O primeiro elemento trata-se da doutrina escatológica ou apocalíptica
presente desde a origem do pentecostalismo clássico; a escatologia está no
DNA do pentecostalismo, como bem apontou o pesquisador Gedeon Alencar:
A AD tem um seu ethos uma natureza de “aversão do mundo” que se
justifica por razões internas: sua escatologia iminente... (ALENDAR,
2010, p. 49).
A teologia escatológica é a responsável pelo imaginário pentecostal sobre
Jerusalém. Desde sua fundação até hoje, a escatologia está muito presente nas
Assembleias de Deus, mas é entre as décadas de 70 a 90 que irá acontecer a
massificação da escatologia, com muitos preletores pregando essa temática
através de ensinos e publicações de livros: como o testemunho e o livro Milênio
do pastor João de Oliveira, que foi um dentre os pastores que ajudaram no
176
fomento e construção do imaginário assembleiano sobre Jerusalém, como a
capital literal do reino milenal de Cristo na terra, tanto nas igrejas como nos
institutos de ensino teológico; o livro Israel, Gogue e o Anticristo, de Abraão de
Almeida com mais de 250 mil cópias vendidas, obra publicada pela Casa
Publicadora da Assembleia de Deus (CPAD); e os estudos do pastor Antonio
Gilberto da Silva, considerado um dos maiores ensinadores pentecostais do
Brasil, autor de vários livros como: “Daniel & Apocalipse”, “O Calendário da
Profecia”, “A Bíblia: o livro, a mensagem e a história”, “Verdades Pentecostais”,
“A Bíblia através de séculos”, “Manual de Escola Dominical”, todos títulos da
CPAD, sendo este último o seu maior best-seller, com mais de 200 mil
exemplares vendidos. Além de outros autores assembleianos, ensinadores,
pregadores e escritores que abordaram e fomentaram essa temática
escatológica em seus ensinos, apresentando Israel e Jerusalém como
fundamentais em sua teologia apocalíptica, no imaginário pentecostal, Israel é
como uma bússola, que deve ser continuamente observada.
Tanto o mercado editorial, alavancado pela CPAD – Casa Publicadora das
Assembleias de Deus, como as agências de turismo que, se aproveitaram da
estabilidade econômica e do crédito fácil105, passam a apresentar pacotes
específicos para os assembleianos, com facilidade no pagamento, levando
muitos grupos de crentes pentecostais a realizarem viagem para Israel. Essas
empresas106 aproveitaram-se do imaginário existente na teologia escatológica
assembleiana, trabalhando com líderes de destaque na Assembleia de Deus, e
catalisaram o desejo de muitos pentecostais de realizarem viagens para Israel, e
nesses anos de estabilidade econômica muitos viajaram para lá.
105
Plano Real a partir do ano de 1993 no governo de Itamar Franco, levou a estabelização da economia do país
e no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) aconteceu a valorização do salário do trabalhador e a criação de
crédito fácil para grande parcela da população brasileira, inclusive para os aposentados.
106
Empresas como: Us Travel Operadora de Turismo; Viagens Bíblicas Agências de Turismo e Operadora;
Caprice Tour Operadora entre outras, que possuem grande trânsito entre as lideranças pentecostais e nas igrejas
evangélicas.
177
Não se trata de um consenso homogêneo o desejo de viajar para Israel e
conhecer a cidade de Jerusalém, mas esse imaginário está presente em muitos
pentecostais assembleianos, consequência desse tripé: o prolongado período
escatológico, muita publicação editorial sobre o assunto e o incentivo das
empresas de turismo, sempre representadas por líderes carismáticos e de
grande prestígio na igreja.
Cânticos alusivos a Jerusalém e a Israel fazem sucesso no mercado
fonográfico de produtos evangélicos, livros e materiais a respeito de Jerusalém
têm mercado. Até mesmo revistas com abrangência nacional, que discorrem
exclusivamente sobre Israel, encontram espaço no mercado, camisetas e
símbolos de Israel são apreciados. A revista de Escola Bíblica Dominical das
Assembleias de Deus, ligadas a Convenção Geral das Assembleias de Deus no
Brasil (CGADB), para Jovens (2º Trimestre de 2015) teve por Título: Jesus e o
seu tempo — Conhecendo o contexto da sociedade judaica nos tempos de
Jesus e na lição 02 declara:
Hoje, os cristãos devem orar pela paz na região e interceder pela
nação de Israel, pois eles são o relógio escatológico de Deus referente
ao mundo, principalmente acerca da Grande Tribulação (Ap 16.12-21).
Esse evento escatológico será terrível e indescritível para o povo de
Israel. Ele estará mobilizado para a grande batalha do Armagedom. Os
reis da terra, isto é, os governantes do mundo todo estarão reunidos
com seus exércitos e armas destrutivas para o maior combate já
registrado na história mundial; será no clímax dessa batalha que Jesus,
o Messias, anteriormente rejeitado pelos israelitas, virá e destruirá os
inimigos do seu povo, e implantará o seu reino milenial (Ap 19.11-21)
(LIÇÃO BÍBLICA, 2015, p. 23).
Trata-se da construção de um imaginário próprio das igrejas evangélicas
pentecostais clássicas que faz da cidade de Jerusalém e de Israel, um elemento
fundamental de sua teologia e em especial sua escatologia. Não podemos ainda
desconsiderar as contínuas orações, seminários, congressos e cultos realizados
nas milhares de igrejas evangélicas, seminários, centros missionários e escolas
178
teológicas sobre Israel e Jerusalém, ou
em favor de Israel, pela “Paz de
Jerusalém”.
5.3.3.- Reflexos políticos do imaginário pentecostal clássico
Esse contexto traz reflexos políticos derivantes da percepção pentecostal
acerca de Jerusalém. Sobre a defesa incondicional de Israel feita pelo
dispensacionalismo herdado pelo pentecostalismo, sabemos que o sionismo é
um movimento essencialmente político, mas que implica, especialmente para os
pentecostais, numa perspectiva religiosa escatológica.
Os pentecostais apoiaram os sionistas por um estado judeu, uma pátria
israelense antes mesmo da fundação de Israel. Em 1948 continuaram apoiando
o Estado de Israel, essa posição é interpretada no pentecostalismo, como
espiritual, embora na prática seja política.
Obviamente, o pentecostalismo se baseia na literalidade da Bíblia
Sagrada que contempla a natureza incondicional da promessa de Deus feita a
Abraão, Isaac e Jacó da terra que “mana leite e mel”107 - Canaã.
É relevante salientar que embora os pentecostais apoiam o Estado de
Israel, numa perspectiva profética, bíblica, literalmente, não se trata de um apoio
acrítico, pois há discordância em relação a certas políticas estabelecidas por
partidos políticos que ocupam o governo israelense.
Não é fácil para os pentecostais distinguir o povo escolhido de Deus, o
povo judeu, das políticas de governo, implementadas pelos líderes eleitos pelos
partidos políticos da atualidade. Ter censo crítico para separar o povo eleito, das
políticas dos atuais governantes do Estado de Israel, é uma posição considerada
107
Terra que mana leite e mel – expressão comum no Antigo Testamento para designar a terra de Canaã ou a
terra prometida.
179
equilibrada de muitos pentecostais, obviamente não é uma unanimidade, uma
vez que a teologia escatológica pentecostal faz de Jerusalém literalmente um
“cálice de tontear”; é impossível exercer fé plena nessa teologia sem defender
Israel e Jerusalém.
Ainda no campo político, nota-se a grande diferença no imaginário
evangélico pentecostal por Jerusalém em relação à velha cristandade, já que
esses evangélicos não defendem a ideia de internacionalizá-la, como declarou a
ONU108 e ainda aspira o Vaticano109; e muito menos apoia a ideia de Jerusalém
ser a capital de dois Estados, um judeu e outro palestino, posição do governo
brasileiro, que em agosto de 2015, retirou do
passaporte dos brasileiros
nascidos em Jerusalém o nome de Israel110
O pentecostalismo clássico brasileiro, em sua maioria, crê que Jerusalém
é a capital indivisível do povo judeu por direito divino e histórico, apoia
explicitamente o “status” atual de Jerusalém; sua base teológica é milenarista e
dispensacionalista, e esse é um dos motivos de grande importância para o
estudo e a análise desse imaginário evangélico pentecostal clássico; é
fundamental, pois destoa frontalmente da velha cristandade, partindo de um
outro princípio, totalmente diferente da visão e ideologia adotadas pelo
catolicismo e até mesmo de muitos protestantes tradicionais que advogam
teologicamente a Doutrina da Substituição (a igreja como substituta de Israel em
todos os aspectos) e são simpatizantes da proposta palestina, que é ter como
capital a parte oriental árabe de Jerusalém.
A posição evangélica pentecostal clássica apoia a posição judaica de que
Jerusalém é a capital eterna e indivisível do Estado de Israel. Essa posição
108
Resolução da ONU 181 de 29 de novembro de 1947 - O plano consistia na partição da banda ocidental do
território em dois Estados – um judeu e outro árabe -, ficando as áreas de Jerusalém e Belém sob controlo internacional. A
Resolução 478/1980 do Conselho de Segurança da ONU, declarou anulada a anexação da parte Oriental de Jerusalém
por Israel depois da Guerra dos Seis Dias (1967) e ordenou que todo aos países membros da ONU que retirassem suas
embaixadas de Jerusalém.
109
110
A posição do Vaticano não mudou - http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/1840/33/
A Embaixada do Brasil retira o nome do Estado de Israel nos passaportes das pessoas nascidas em
Jerusalém:
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1665384-brasil-retira-mencao-a-israel-de-passaportes-denascidos-em-jerusalem.shtml
180
defendida pelos pentecostais é uma posição política, (embora seja também uma
posição teológica, religiosa, para os pentecostais clássicos, uma posição bíblica
e até mesmo espiritual com base em Romanos 11.26-27), que os colocam
abertamente contra a posição do Vaticano e de muitos outros cristãos que
defendem a tese da internacionalização de Jerusalém, ou a divisão de
Jerusalém em duas capitais, a parte judaica para o Estado de Israel e a parte
árabe para um Estado Palestino.
Entre os cristãos do Brasil os evangélicos pentecostais tiveram um
importante papel em favor de Israel para que a ONU declarasse que: “Sionismo
não é racismo” na década de oitenta111, assim eles participaram ativamente de
um enorme abaixo assinado, que foi passado em todos os seus templos
espalhados no Brasil e assinado pelos fiéis demonstrando explicitamente sua
postura política favorável a Jerusalém judaica e ao retorno dos judeus para a
terra de Israel.
Todos os anos a Bancada Evangélica realiza Sessão Solene na Câmara
dos Deputados (Câmara Federal) pela passagem do aniversário do Estado de
Israel112.
Todos esses elementos elencados são resultados de uma construção
desenvolvida pela teologia evangélica pentecostal clássica brasileira no decorrer
de sua estruturação ou institucionalização nesse último século. A essência da
questão é teológica escatológica, com fomento mercadológico e político. A
maioria das igrejas pentecostais clássicas no Brasil acreditam na Bíblia como
única regra infalível de fé normativa para a conduta cristã. Essa crença na
infalibilidade da Bíblia leva à aplicação literal da mesma, este é o fundamento do
imaginário evangélico pentecostal sobre Jerusalém, fomentado pelo mercado
editorial e turístico.
111
112
“Sionismo não é igual a racismo” - ONU – site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u28044.shtml
Sessão Solene em Homenagem à Data Nacional da Criação do Estado de Israel http://www.camara.leg.br/internet/lideres/reunioes/mapames.asp
181
Esses elementos elencados e amalgamados são resultados de uma
construção desenvolvida pelo imaginário evangélico pentecostal sobre a cidade
de Jerusalém, que em parte, é herdeira de vários imaginários préexistentes
derivado da enorme significância religiosa e espiritual que Jerusalém tem na
escatologia de todas as religiões monoteístas.
Jerusalém não é somente mais uma cidade, mas sim, um lugar carregado
de profecia, na perspectiva pentecostal, muitas cumpridas e outras por cumprir.
A Bíblia Sagrada está repleta de referências a Jerusalém e todas as confissões
cristãs possuem em sua escatologia menção de Jerusalém, seja a terrestre ou a
celeste.
Considerações Finais
Jerusalém é centro primordial e mítico de todas as religiões monoteístas.
Cada uma delas construiu acerca dessa cidade um imaginário próprio. Os
judeus declaram que Jerusalém é o seu eterno lar, é o centro da sua vida
182
espiritual, local onde foi construído o majestoso Templo ao Deus único, o local
mais sagrado da face da terra; ali está o muro Oriental ou das Lamentações
(Qotel HaMa'aravi em hebraico), resquício do segundo Templo construído por
Herodes há dois mil anos.
Em 1967 quando os soldados de Israel tomaram e reunificaram a cidade
de Jerusalém, se defrontaram e tiveram uma experiência extasiástica, a sombra
do monumental Muro das Lamentações, uma sensação de pertencimento
existencial, aquelas antiquíssimas pedras, faziam parte do seu mais sagrado
imaginário, o altar primordial de Abraão.
Os soldados de Israel, paraquedistas religiosos ou seculares tocaram
reverentemente no emblemático resquício do segundo Templo, o Muro das
Lamentações, e como um sonho milenar, ouviram o chofar tocado pela rabino
Shlomo Goren que cantou os salmos em meio as lágrimas e abraços dos
soldados, até mesmo alguns oficiais ateus se alegraram e se abraçaram nesse
momento de júbilo místico. Nesse lugar sagrado e nesse momento ímpar,
acabava definitivamente a ideia do “judeu errante”, em fim, o povo judeu estava
de volta em sua cidade ancestral, crença presente no imaginário mítico judaico
por milênios: “...ano que vem em Jerusalém”113.
A famosa cantora e compositora judia Naomi Shemer114 poeticamente
canta a ligação umbilical do povo de Israel com a cidade santa: “Teu nome está
para sempre em meus lábios como o beijo de um Serafim, se eu te esquecer,
cidade dourada, Jerusalém de ouro. Ó Jerusalém de ouro, de cobre e de luz...”.
Para os cristãos, ali o Filho de Deus, Jesus Cristo, apresentou suas
credenciais de messias, viveu, andou, ensinou seus discípulos, carregou a cruz,
foi crucificado para a redenção da humanidade e ressuscitou ao terceiro dia. Ali
está a grande e imponente Basílica do Santo Sepulcro (Anástasis em grego). No
ano 629 d.C., após os católicos recuperarem Jerusalém dos persas, o fervoroso
113
“Ano que em Jerusalém” em hebraico: “Leshana habaa b' Yerushalayim”, é a expressão proferida pelos judeus
após a festa da Páscoa.
114
Naomi Shemer (1930-2004) – famosa cantora judia, considerada a Maior Dama da Música de Israel até hoje.
183
monge Sofrônio, que viria a ser patriarca de Jerusalém em 633, expressou o
grande amor católico por essa cidade:
Ó Tumba luminosa, és o mar da vida eterna, e o verdadeiro rio do
Esquecimento. Prostrado, beijo esta pedra, o centro sagrado do
mundo, onde se fixou a árvore que afastou a maldição da árvore [de
Adão] [...] Salve, Sião, esplêndido sol do mundo, por quem anseio e
padeço dia e noite” (Anacreônticos, Canto 20, PPTS, vol. 11, p.30).
Milhares de protestantes evangélicos visitam e realizam seus cultos, a
Jesus, com fervor no Jardim do Túmulo em Jerusalém. Um cântico evangélico
pentecostal em alusão a Jerusalém celeste, ainda cantado atualmente em seus
cultos diz:
Jerusalém, mansão de luz, Jerusalém de meu Jesus! Cidade que para
nós fez Deus; eterna glória para os filhos seus” (Harpa Cristã, cântico
nº 494 – CPAD).
Para os muçulmanos é o lugar escolhido por Alá, local da passagem dos
grandes profetas, considerada a terceira cidade mais importante do islã.
Segundo a tradição islâmica a cidade é sagrada especialmente pelo fato de
Maomé ter subido numa noite para os céus quando voltou da viagem noturna de
Meca para Jerusalém. Declara o Alcorão, livro tido pelos muçulmanos como
literalmente sagrado, na sura 17.1:
Glorificado seja Aquele Que, durante a noite, transportou Seu servo,
tirando-o da Sagrada Mesquita e levando-o à Mesquita de Alacsa, cujo
recinto bendizemos, para mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Sabei
que Ele é o Oniouvinte, o Onividente (ALCORÃO, 17.1).
Segundo a tradição islâmica o local da “Sagrada Mesquita” seria em Meca
e o local da “Mesquita de Alacsa” seria em Jerusalém. Ali ainda hoje está o
184
magnífico Domo da Rocha, também conhecido como mesquita de Omar,
símbolo de uma religião triunfante. Muçulmanos xiitas e de outros grupos
liderados pelo líder xiita iraniano, o grande aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi
Khomeini consagraram a última sexta-feira do mês sagrado muçulmano do
Ramadã como o Dia Mundial de Al Quds (Jerusalém).
Gestado no ventre do imaginário católico romano, o imaginário
protestante nasceu e foi profundamente influenciado pelo milenarismo,
dispensacionalismo e restauracionismo, resultando no imaginário evangélico que
se
desenvolverá
e
se
consolidará
no
pentecostalismo brasileiro
com
características próprias.
O crescimento das igrejas evangélicas pentecostais clássicas no Brasil,
que declaram possuir a Bíblia como única regra de fé, trouxe grande interesse
por Israel, especialmente pela cidade de Jerusalém, porque sua escatologia está
intimamente inter-relacionada.
A pesquisa apresentou historicamente a construção do imaginário
religioso sobre Jerusalém, começando pelo Judaísmo até chegar no
pentecostalismo
clássico,
cujo
elemento
fundamental
de
sua
teologia
escatológica é a cidade de Jerusalém, atual capital de Israel.
O imaginário pentecostal clássico fomentado nas Assembleias de Deus se
deve há um longo período de ensinos escatológicos, de publicação de livros e
facilidades apresentadas pelas empresas de turismo catalisadas no período de
estabilidade econômica pela qual o país passou.
Assim, bebendo do antiquíssimo imaginário judaico sobre Jerusalém, com
base nas profecias do Antigo Testamento, recusando o antigo imaginário católico
com sua teologia da “Substituição”, acolhendo e aceitando as formas
geográficas construídas durante o período islâmico, como suas muralhas e sua
esplanada, em sintonia com os novos locais sagrados do protestantismo e
fundida nas ideias que fomentaram o mundo protestante entre os séculos XVII
ao XX, como o movimento da santidade Wesleyano/Holiness, restauracionismo,
fundamentalismo, dispensacionalismo, e fomentado pelo mercado literário e
185
turístico, o pentecostalismo clássico construiu seu imaginário singular sobre
Jerusalém.
Portanto, a cidade de Jerusalém, capital do Estado de Israel, segundo a
perspectiva pentecostal, graças às profecias literalmente cumpridas a partir de
1948, alcançando seu ápice em 1967, é uma realidade profética. Há uma
identificação concreta entre a crença pentecostal e os acontecimentos históricos
a respeito da cidade de Jerusalém.
Embora Jerusalém seja um centro geográfico meramente simbólico e
reconstruído sob diversas cosmovisões, está presente no imaginário religioso
monoteísta como se fosse uma realidade suprema. Jerusalém como um
poderoso símbolo religioso é um local onde os fiéis monoteístas se localizam,
criaram uma identidade utópica, simbólica ou escatológica, por isso é amada,
cantada, reverenciada e desejada, como dizem as Sagradas Escrituras:
...alegria de toda a terra é o monte Sião sobre os lados do norte, a
cidade do grande Rei. ...Porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a
palavra do Senhor (Salmo 48:1b-2; Isaías 2:3b).
Assim, o imaginário religioso sobre Jerusalém é poderoso e vivo, uma
realidade sagrada, profundamente influenciador de toda crença monoteísta,
tanto no presente, como no porvir.
A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o
Paraíso, portanto in aeternum (ELIADE, 2012, p. 57).
É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real
por excelência (ELIADE, 2012, p. 85).
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