UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ALBERTO ALVES DA FONSECA JERUSALÉM NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO SÃO PAULO 2015 1 Dados Catalográficos F676j Fonseca, Alberto Alves da Jerusalém no imaginário religioso / Alberto Alves da Fonseca – 2015. 194 f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2015. Orientador: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira Bibliografia: f. 185-194 Jerusalém 2. Imaginário 3. Religiosidade 4. Dispensacionalismo 5. Pentecostalismo I. Título LC BR1644 2 3 Para a elaboração de uma boa pesquisa necessita-se de bons modelos, boas referências, apoios e orientações. No Curso de Mestrado da Universidade Presbiteriana Mackenzie encontrei modelos, referências e amigos que muito me ensinaram e me inspiraram no mundo da pesquisa, especialmente o Professor Dr. João Baptista Borges Pereira que me orientou na composição desta pesquisa no curso mestrado em Ciências da Religião. Sou profundamente grato a minha esposa professora Eliana Renata Souza Alves da Fonseca, por me apoiar no curso de Mestrado e sugerir a elaboração desta pesquisa, e que em todo momento me ajudou com seu estímulo, paciência e seus edificantes conselhos, bem como minhas duas filhinhas, três mulheres que dão sentido à minha vida. Estas pessoas sempre estarão presentes em minha lembrança, porque contribuíram decisivamente e me honraram com seus entusiasmos e seus estímulos, tendo suas vidas como uma contínua inspiração. Agradecimentos Ao Deus ETERNO, que pela sua infinita bondade e misericórdia me amparou e me sustentou nesta longa, agradável e abençoada jornada; Aos meus pais, Lázaro Antonio Alves da Fonseca e Maria José de Morais Fonseca, pais exemplares e sempre presentes; 4 À Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelos excelentes e relevantes serviços prestados que contribuíram para a realização desta pesquisa; Ao Corpo Docente da Universidade Presbiteriana Mackenzie: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira; Professora Dra. Lidice Meyer Pinto Ribeiro; Prof. Dr. Antônio Máspoli de A. Gomes; Prof. Dr. Rev. Hérmisten Maia P. da Costa; Prof. Dr. Rodrigo Franklin Sousa; Prof. Dr. Ricardo Bitun; Prof. Dr. Jorge Luís Gutiérrez e Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, pela contínua dedicação, confiança e inspiração durante todo o curso; Aos membros da Banca Examinadora: Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira; Prof. Dr. Ricardo Bitun e Prof. Dr. Valdinei Aparecido Ferreira, referências que motivaram e abrilhantaram este trabalho; Aos meus professores de Língua Hebraica, Língua Inglesa e Portuguesa, Maurice Mazawi e Lúcia Kancelkis pela paciência, carinho e consideração; Ao Pastor Esequias Soares da Silva, Pastor Presidente da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Jundiaí-SP, que me inseriu no mundo acadêmico pelo exemplo e apoio na construção do meu conhecimento religioso e secular; A todos os meus amigos e irmãos que de maneira direta e indireta contribuíram para a realização desta pesquisa, minha contínua e sincera gratidão. Porém escolhi Jerusalém para que ali estivesse o meu nome... (2 Crônicas 6.6a). Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e não quiseste? (Lucas 13.34). 5 Dez medidas de beleza foram concedidas ao mundo; nove foram tomadas por Jerusalém, e uma pelo resto do mundo (Talmude Babilônico,Tratado Kidushin 49 b). A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusalém não era senão a reprodução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu modelo era incorruptível, porque não estava implicado no Tempo. “A construção que atualmente se encontra no meio de vós não é aquela que foi revelada por Mim, a que estava pronta desde o tempo em que me decidi a criar o Paraíso, e que mostrei a Adão antes do seu pecado” (Apocalipse de Baruc, II, 4, 37) (ELIADE, 2012, p. 57). ...Jerusalém é uma bacia de ouro cheia de escorpiões (AL-MUQADDASI, 1886, p. 37). Resumo Esta pesquisa intitulada Jerusalém no Imaginário Religioso apresenta uma análise com caráter histórico e comparativo, de natureza ensaística, de uma das cidades mais inspiradoras do mundo e profundamente influenciadora da 6 mentalidade ocidental, abordando os elementos históricos, religiosos, culturais, ideológicos e teológicos que resultaram na construção dos imaginários das três grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), passando pela perspectiva protestante até chegar ao imaginário do pentecostalismo clássico brasileiro, no decorrer de sua estruturação ou institucionalização neste último século, influenciado pela teologia fundamentalista cristã norte-americana (literalidade da Bíblia e anti-liberalismo); pelo dispensacionalismo de John Nelson Darby (pré-milenarismo ou quiliasmo); pelo restauracionismo cristão (sionismo cristão); pela escatologia e mercantilização da fé que fomenta essa temática. Palavras-chave: Jerusalém, Imaginário, Religiosidade, Dispensacionalismo, Pentecostalismo ABSTRACT This research titled Jerusalem in the Religious Imaginary presents an analysis of historical and comparative, true to essayst nature, about one of the most inspiring cities in the world and deeply influential Western mindset, addressing 7 the historical, religious, cultural, ideological and theological elements which resulted in the construction of the imaginary of the three great monotheistic religions (Judaism, Christianity and Islam), through the Protestant perspective to reach the imagination of Pentecostalism classic Brazil during its structure or institutionalization in the last century, influenced by fundamentalist theology American Christian (literalness of the Bible and anti-liberalism); dispensationalism by John Nelson Darby (premillennialism or chiliasm); by Christian restorationism (Christian Zionism), and the escatology and the commodification of faith that promotes this theme. Key-words: Jerusalem, Imaginary, Religiosity, Dispensationalism, Pentecostalism JERUSALÉM NO IMAGINÁRIO RELIGIOSO SUMÁRIO Introdução........................................................................................................11 1.- A questão do Imaginário............................................................................15 8 2.- Jerusalém Antiga e a Construção de sua Santidade pelo Judaísmo....21 1.1. O Altar Primordial...................................................................................29 1.2. Jerusalém a nova capital do Reino dos Hebreus...................................32 1.3. A Primeira Destruição de Jerusalém (586 a.C.).....................................40 1.4. A Segunda Destruição de Jerusalém (70 d.C.)......................................48 2.- A Construção do Imaginário Cristão sobre Jerusalém...........................53 2.1. Os Cristãos e a Destruição de Jerusalém..............................................54 2.2. O Desenvolvimento da Doutrina da Substituição...................................63 2.3. O Triunfo do Cristianismo.......................................................................69 2.4. A Derrota Cristã para os Persas.............................................................76 3.- A Jerusalém Islâmica ................................................................................81 3.1. O Domo da Rocha e a Construção do Imaginário Islâmico...................88 3.2. Os Cruzados e a Decadência da Região nos Séculos Seguintes.........94 3.3. O Domínio Otomano..............................................................................96 4.- Jerusalém na Construção do Imaginário Protestante ..........................99 4.1.- Distinção entre a percepção protestante e a católica..........................101 4.2.- O Milenarismo.......................................................................................104 4.3. O Protestantismo Evangélico nos Estados Unidos da América.............108 4.4. Os Protestantes Evangélicos Restauracionistas Britânicos..................111 4.5. O Dispensacionalismo...........................................................................113 4.6. O Sionismo Cristão................................................................................115 4.7. Lugar Santo dos Protestantes...............................................................117 4.8. A Conquista Britânica.............................................................................121 4.9. O Fim do Mandato Britânico..................................................................124 4.10.O Renascimento de Israel....................................................................125 4.10.1. Um “golpe” na “Doutrina da Substituição” e na “errância do povo 9 judeu”............................................................................................127 5.- A Construção do Imaginário Evangélico Pentecostal Sobre Jerusalém.....................................................................................................132 5.1. O Dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield..............................139 5.1.2. Dispensacionalismo e Pentecostalismo..........................................143 5.2. O Pentecostalismo no Brasil.................................................................145 5.2.1. Congregação Cristã no Brasil (1910)..............................................146 5.2.2. Igreja Evangélica Assembleia de Deus (1911)...............................152 5.2.3. Outras fontes de divulgação do dispensacionalismo......................155 5.3. A Teologia Escatológica Pentecostal Assembleiana na contrução do Imaginário Sobre Jerusalém..............................................................................158 5.3.1.- Outros aspectos da construção do imaginário pentecostal da Assembleia de Deus sobre Jerusalém.....................................................172 5.3.2.- A mercantilização editorial e turística no fortalecimento do imaginário pentecostal sobre Jerusalém................................................174 5.3.3.- Reflexos políticos do imaginário pentecostal clássico..................177 Considerações Finais......................................................................................180 Referências Bibliográficas..............................................................................185 Introdução Jerusalém, considerada pela tradição judaica a coroa da fé monoteísta, uma cidade ímpar, disputada e reverenciada ao longo de sua história, atualmente é a contestada capital do moderno Estado de Israel. Ela é o tema desta pesquisa científica, numa perspectiva analítica do imaginário religioso na percepção monoteísta. 10 Jerusalém, uma cidade de três mil anos, edificada nas pedregosas e quentes colinas da Judeia, distanciada aproximadamente a cinquenta quilômetros do Mar Mediterrâneo, tem sido, ao longo dos séculos, objeto focal da criação de imaginários. A fecunda religiosidade da alma humana produziu e interpretou muito a respeito dessa misteriosa cidade. Cada pedra dessa cidadela está impregnada de muitas histórias, poesias, cânticos e conflitos. Jerusalém foi continuamente citada pelos antigos monarcas, sacerdotes e profetas bíblicos e mistificada pela liturgia monoteísta, influenciando direta e indiretamente a fé e a esperança de mais de três bilhões de seres humanos. Conquistada por diversos exércitos e povos, herdeira de uma milenar religiosidade, segundo a tradição judaica foi o local primordial do culto dedicado ao Eterno. Segundo as Escrituras Sagradas dos judeus e cristãos, ali residia o líder tribal jebuseu de Salém, Melquisedeque, rei e sacerdote do Deus Altíssimo, lugar do primeiro templo hebreu com práticas exclusivas do culto monoteísta, que, transformado e mitificado pelos homens tornou-se um local sagrado para o judaísmo, para a cristandade ocidental e oriental e todo o mundo muçulmano. Uma cidade com história, espírito, memória e promessas, um poderoso ímã, sempre atraindo os homens, um lugar especial, uma janela para o sagrado. Conhecida como a cidade da paz, embora a paz interna ou externa não faça parte do seu currículo, até 1967 uma enorme e feia muralha separava o lado ocidental do oriental da cidade; embora a muralha não exista mais, as velhas animosidades e os ranços antigos de vinganças persistem e infelizmente um novo muro foi construído separando Jerusalém da Cisjordânia. Atualmente a cidade é formada por quatro bairros, um judeu, um católico, um armênio e outro muçulmano. As velhas ruas mantêm viva a lembrança de promessas, esperanças escatológicas, murmúrios contínuos de incessantes e insistentes orações e muitas tensões, muito fervor, muito comércio, muitas e estranhas sensações e aromas da rica culinária árabe, marcas indeléveis de sua dramática e riquíssima história e tradições. 11 Jerusalém não possui pontos militares estratégicos excepcionais, não possui vantagens comerciais vitais nem recursos naturais abundantes, além de uma posição geográfica nada privilegiada do ponto de vista econômico. No entanto, ali se encontra uma persistente forma de culto monoteísta, uma devoção de mais de três mil anos de história, com marcas vivas de várias tradições. Os homens medievais acreditavam que Jerusalém era o centro do mundo, o centro do universo, o local de onde tudo havia se originado. Mesmo não desfrutando essa realidade geográfica, sendo apenas uma cidade pequena e distante no interior da Judeia, afetou profundamente a visão de mundo de boa parte da humanidade. Embora seja o centro primordial e mítico de três grandes religiões monoteístas, sua devoção não é homogênea, pois foi construída de várias formas e revelada de diversas maneiras. Cada religião monoteísta construiu acerca dessa cidade um imaginário próprio, o que pode ser constatado quando analisamos a visão do judaísmo, do cristianismo e do islamismo sobre Jerusalém. Esse mosaico de percepção criado de cada religião é fator fundamental que torna Jerusalém uma cidade ímpar no campo das Ciências da Religião; as marcas do divino encontradas nas sociedades orientais foram como fios condutores para a formação do Ocidente. Dentro da construção do imaginário das muitas ramificações cristãs que veneram a cidade de Jerusalém existiram e existem, ao longo dos séculos, muitos desdobramentos e visões admiravelmente diferentes e até mesmo opostas. Esse fenômeno de variadas visões pode ser notado com a seguinte exemplificação: existe um imaginário próprio da velha cristandade (catolicismo), outra da Igreja Protestante, e da visão protestante deriva a visão do pentecostalismo clássico. O enfoque da presente obra é compreender historicamente a construção do imaginário religioso sobre Jerusalém, iniciando na percepção judaica e terminando num dos ramos oriundos do pentecostalismo clássico no Brasil – a Igreja Evangélica Assembleia de Deus. 12 O primeiro capítulo apresenta a origem, o gênesis da sacralidade da cidade de Jerusalém, como se deu a construção de sua santidade, quando surge esse altar primordial dedicado ao Deus dos hebreus e como o imaginário judeu é lento e sistematicamente construído. No capítulo 2 a pesquisa mostra a construção do imaginário cristão, o conflito que a cidade produzirá nos primeiros cristãos após a sua destruição pelos romanos no ano 70, e as consequências desse distanciamento entre judaísmo e o cristianismo, que paulatinamente gestará a Teologia da Substituição, precipitando o conceito católico de que a Igreja é o Verus Israel. O capítulo 3 relata a chegada do Islã em Jerusalém. Após analisar historicamente a consolidação dos dois primeiros imaginários, o do judaísmo e do cristianismo, a pesquisa avança para a percepção islâmica da cidade santa, sua concepção apocalíptica como o local do juízo final ou “a última hora”, a recuperação da esplanada do Templo, o monumental edifício de adoração construído no local dos escombros do antigo Templo - o Domo da Rocha, que será a partir de sua construção uma marca identificadora da cidade. O último califado islâmico que dominará a região será o Império Otomano, sendo as intervenções do sultão Suleiman, o Magnífico, especialmente a construção das muralhas da cidade santa, a última marca islâmica que permanecerá na cidade pela qual é conhecida hoje. O capítulo 4 analisa a Reforma Protestante que atingiu a Europa Católica Romana nos séculos XVI e XVII, gerando profundas repercussões no Ocidente, especialmente na Inglaterra e nos Estados Unidos. A pesquisa apresenta os acontecimentos amalgamados no fervoroso caldo religioso do universo protestante, profundamente influenciados pelo milenarismo, restauracionismo, dispensacionalismo e sionismo cristão. Apresenta a tardia chegada dos protestantes na terra santa e o “novo lugar” do santo sepulcro – o Jardim da Tumba. Finalmente mostra o fim do domínio muçulmano, com a conquista dos ingleses e o renascimento de Israel. 13 O capítulo 5 traz um histórico resumido do pentecostalismo e da doutrina dispensacionalista de Cyrus Ingerson Scofield. Apresenta algumas considerações históricas e doutrinárias das duas primeiras igrejas pentecostais do Brasil. Finalmente analisa a teologia evangélica pentecostal da Assembleia de Deus sobre Jerusalém, bem como os elementos fundamentais para a gestação e o fomento desse imaginário. A pesquisa analisa a construção histórica do imaginário sagrado sobre a cidade de Jerusalém, apresentando a origem de cada um desses imaginários de tradição monoteísta, do judaísmo até chegar no pentecostalismo clássico, registrando um aspecto analítico desse fenômeno histórico, contribuindo como instrumento de compreensão do pensamento contemporâneo sobre uma das cidades sagradas que continua a desfrutar grande status simbólico das diversas religiosidades monoteístas do mundo atual. 1.- A questão do Imaginário Define-se o imaginário como um conjunto de símbolos, mitos, fantasias, imagens, sonhos, aspirações, muitas vezes irracionais ou pré-racionais, eivado de paixão, afetividade, construído por determinada coletividade, trata-se de um 14 conceito amplo, com grande variedade de sentido. O filósofo Gilbert Durand, em sua obra A Imaginação Simbólica, declara: A imagem simbólica é transfiguração de uma representação concreta através de um sentido para sempre abstrato. O símbolo é, pois, uma representação que faz aparecer um sentido secreto, é a epifania de um mistério (DURAND, 1964, p. 11-12). Os símbolos e mitos são elementos férteis para a recepção e projeção de vários outros elementos, entre eles estão as aspirações religiosas que norteiam o comportamento do fiel, criando uma cosmovisão própria, extremamente importante para o crédulo suportar as vicissitudes da vida. Fato é que não há dúvida sobre a grande importância do imaginário sagrado, da fantasia, do mito na sociedade e na consciência humana. Segundo Durand (1964), a consciência humana possui duas maneiras para representar o universo, ou seja, a percepção do mundo. A primeira maneira seria direta, onde a própria coisa estaria presente no espírito, como uma simples percepção ou sensação. A segunda seria indireta, quando a coisa não é perceptível, não é materializada, insensível. Nesse caso de consciência indireta, a coisa ausente é representada na consciência humana por uma imagem, ou imaginário, num sentido bem lato desse termo. É através do imaginário que os adeptos das grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) construíram a Jerusalém mítica. O homem transcendeu a Jerusalém humana para uma Jerusalém utópica, como: a Jerusalém de Paz no Judaísmo; a Jerusalém celestial no cristianismo, a Jerusalém do “Último Dia” no islamismo. Os monoteístas tomaram como referência uma realidade dada que passa por uma reordenação, reestruturação e recriação, dando outros significados ao mesmo material simbólico. As representações simbólicas são como matérias-primas na construção do imaginário. Ao longo da história, como se poderá verificar na pesquisa, os monoteístas irão conceber e produzir, através do culto, da leitura de suas 15 Escrituras Sagradas, relações de fé que propiciará experiências transcendentes em suas vidas. A mitificação da cidade de Jerusalém se dará ao longo da história dessas fés pelos sistemas religiosos, socioculturais e pelas reinterpretações dessas tradições, sempre coletivamente. Em sua obra Ideologia e Utopia, Karl Mannheim (1986), declara que era incorreto afirmar que um indivíduo isolado pudesse pensar na criação de imaginários. Seria mais correto insistir no pensar coletivamente. O indivíduo herda padrões de pensamento apropriando-os, tentando reelaborar os modos de reação herdados, ou substituindo-os por outros, podendo assim lidar mais adequadamente com os novos desafios surgidos das mudanças e variações em cada situação. Dessa forma, cada indivíduo está predeterminado em um duplo sentido por viver em sociedade; por uma lado, está numa situação definida e, por outro, descobre nessa situação, padrões de pensamento e de conduta prontos, previamente formados. O imaginário sobre Jerusalém é lentamente construído sendo herdado de uma coletividade religiosa pela outra, assim o imaginário desfaz as marcas do tempo e do espaço e, em sua própria lógica, a cidade santa é construída a partir das experiências teofânicas, revelação das qualidades que a simbolizam. Gilbert Durand, citando Paul Ricoeur, declara: ...qualquer símbolo autêntico possui três dimensões concretas: é simultaneamente “cósmico” (isto é, recolhe às mãos cheias a sua figuração no mundo bem visível que nos rodeia); “onírica” (isto é, enraíza-se nas recordações, nos gestos que emergem nos nossos sonhos e constituem, como bem demonstrou Freud, a massa muito concreta da nossa biografia mais íntima) e, finalmente, “poética”, isto é, o símbolo apela igualmente à linguagem, e à linguagem que mais brota, logo, mais concreta (DURAND, 1964, p. 12). Jerusalém, como um poderoso e autêntico símbolo das fés monoteístas, possui esses três elementos apontados por Ricoeur; é cósmica, onírica e poética, nesse sentido de plenitude está classificada como mitológica. Como 16 sabemos os mitos da “geografia sagrada” expressam verdades impressas na alma humana, da vida interior. Armstrong (2000), declara que o mito toca na fonte obscura de dor e do desejo do ser humano, e podem provocar e desencadear uma avalanche de emoções, profundamente passionais e intensas. As histórias de Jerusalém no imaginário religioso não devem ser descartadas pelo fato de serem “mitos”, pelo contrário, exatamente por serem “mitos” ou por “não passarem de mitos”, sua importância se agiganta, torna-se explosiva, ironicamente por adquirir o status de mito. Na história de Jerusalém, sempre que aumentam as tensões, as desesperanças, as dificuldades e não se consegue encontrar consolo, esperança, bom senso numa ideologia mais racional, ocorre a recorrência imediata e instintiva ao mito. Muitas vezes, fatos externos parecem expressar tão bem realidades interiores que rapidamente ganham status de mito evocando uma verdadeira explosão de entusiasmo. Portanto, é muito relevante que a mitologia de Jerusalém, ao menos para elucidar os desejos, as aspirações e o comportamento de indivíduos e comunidades inteiras profundamente afetadas por esse tipo de espiritualidade. Pensar em imaginário, fantasias e mitos num tema que perpassa pela Reforma Protestante parece contraditório e paradoxal. O protestantismo foi um dos maiores desmistificadores da religiosidade cristã medieval. Peter Ludwing Berger em sua obra O Dossel Sagrado, declara: ...o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e a magia. Esse processo foi agudamente captado na expressão “desencantamento do mundo”. O crente protestante já não vive em um mundo continuamente penetrado por seres e forças sagradas. A realidade está polarizada entre uma divindade radicalmente transcendente e uma humanidade radicalmente “decaída” que, ipso facto, está desprovida de qualidades sagradas (BERGER, 1985, p.124). O protestantismo, como acertou Berger, reduziu o relacionamento do homem com o sagrado ao canal, excessivamente estreito, que ele chamou de 17 palavra de Deus, e cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra (BERGER, 1985). A leitura radical e exclusivista da Bíblia, que gerou a desmistificação do protestantismo frente ao mundo mágico católico, gerará novos imaginários no decorrer de sua institucionalização, porém, diferentemente do catolicismo, que foi baseado em tradições e experiências dos santos, o protestantismo gestará novos imaginários baseados na interpretação da própria Sagrada Escritura através do princípio da livre interpretação. A Bíblia claramente desempenhará um papel importante no imaginário protestante, esse fenômeno é percebido por vários historiadores, entre eles James Carroll e Shlomo Sand: ...puritanos ingleses entenderam seu projeto de colonização do Novo Mundo como se fossem hebreus, fundando uma Nova Jerusalém, a Cidade no Alto da Colina, transformando a maldição do judeu errante na virtude da mobilidade americana (CARROLL, 2013, p. 231). ...o Livro dos Livros se tornou, por anacronismo nutrido por ardente imaginação, uma espécie de modelo ideal para a formação de um coletivo político-religioso moderno. Nos primórdios da colonização da América do Norte, inúmeros puritanos estavam convencidos de que encarnavam os filhos de Israel, para os quais a terra onde escorria o leite e o mel havia sido prometida. Eles adentraram a oeste, com o Antigo Testamento em mãos, e se imaginaram como os herdeiros autênticos de Josué, o Conquistador. Esse imaginário também guiou os colonos na África do Sul (SAND, 2012, p.227-228). Sendo correta a afirmação que o protestantismo abriu as comportas do secularismo, como afirmou Max Weber, Peter Berger e outros, é correta também a hipótese que ele gerou vibrantes e místicas espiritualidades, como a corrente experiencialista ou mística do pietismo1. Na clássica obra sobre o protestantismo no Brasil: O Celeste Porvir, o eminente filósofo e sociólogo da religião Antonio Gouvêa Mendonça comentando sobre o pietismo, declara: 1 Pietismo – teve início entre os luteranos da Alemanha, nos fins do século XVII, associado principalmente a Philipp Jakob Spener... cria que a ênfase original da Reforma Protestante, sobre a conversão pessoal, a santificação e a experiência religiosa tinha-se perdido essencialmente, o que justifica o seu protesto e o movimento que daí resultou... Ênfases Principais: A necessidade de experiências religiosas pessoais; o valor do misticismo; a necessidade de uma conversão que realmente mudasse a vida do indivíduo, e uma santificação que continuasse esse processo; um desprezo relativo aos credos; a retidão pessoal; a necessidade de renunciar ao mundo e suas atrações; a fraternidade universal dos crentes; o calor emocional na religião cristã (CHAMPLIN, BENTES, 1997, p. 272 – vol. 5). 18 A interpretação da Bíblia tem um sentido literal, espiritual e místico, o que facilita a superação de passagens embaraçosas, principalmente do Antigo Testamento. Em suma, o pietismo foi e é, no seu todo, uma reação contra o racionalismo, contra as especulações teológicas particularmente que não valia pena defender e suas consequências sociais, como perseguições e guerras de religião. O núcleo da fé pietista consiste na “experiência com Cristo” e no cultivo de sua presença... (GOUVÊA, 2008, p. 111) Considerando os devidos contextos, podemos apontar o pentecostalismo clássico2 no Brasil como uma dessas vertentes tardias e místicas do protestantismo3. Antonio Gouvêa Mendonça em seu artigo 4: O protestantismo Latino-Americano entre a racionalidade e o misticismo fez a seguinte observação: Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecoste que o protestantismo recusa. (GOUVÊA, 1998). O pentecostalismo como movimento experiencialista oriundo da pluralidade dos movimentos da Reforma Protestante irá reinventar o imaginário sobre a cidade santa; insistindo na literalidade da Bíblia, com sua escatologia pré-milenarista, conceberá a cidade de Jerusalém como a capital do Reino do Messias na terra. Um dos principais teólogos do pentecostalismo, Stanley M. 2 Pentecostalismo Clássico ou Tradicional – Denominação dada pelos estudiosos ao classificar o movimento pentecostal brasileiro em três momentos ou ondas, como observou Paul Freston: “O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três ondas” (ANTONIAZZI (Org.), 1994, p. 70-71). A primeira onda seria os pentecostais clássicos que chegaram entre 1910-1911: Congregação Cristã no Brasil (CCB) e Assembleia de Deus (AD). 3 Descendentes Religiosos do Pietismo – O metodismo, os menonitas, os dunkers (batistas alemães), os shwenkfelders e os morávios devem todos alguma coisa ao pietismo. A Igreja Reformada Holandesa também teve líderes cujos discípulos salientaram esse conceito, o que também sucedeu ao luteranismo norte-americano. A Igreja Reformada Alemã da América do Norte exerceu uma influência pietista sobre o povo reformado alemão naquele continente. Os Irmãos Unidos em Cristo e a Igreja Evangélica foram denominações que incorporaram (em sua história inicial pelo menos) tendências pietistas. Talvez possamos dizer que a maioria das igrejas pentecostais da atualidade retêm tanto as virtudes quanto os vícios desse movimento (CHAMPLIN, BENTES, 1997, p. 272 – vol. 5). 4 Trabalho apresentado na Mesa Dilemas do Protestantismo Latino-Americano – VIII Jornadas Sobre Alternativas Religiosas na América Latina em São Paulo entre 22 a 25 de setembro de 1998. 19 Horton5, em seu artigo6, assim se expressou sobre a crença pentecostal do prémilenarismo: Os pentecostais primitivos estavam plenamente convencidos das verdades da teologia pré-milenarista. A renovada ênfase teológica na significativa interpretação da Bíblia também marcou o reavivamento pentecostal. Eles reconheceram que a escatologia apocalíptica por meio do uso da linguagem figurativa poderia ser cumprida em eventos reais da História. Eles foram inspirados pela bendita esperança do retorno de Jesus Cristo e seu reino milenial. “Sinais dos tempos” que correspondiam a eventos profetizados na Bíblia os encorajavam a acreditar que Jesus estava vindo (HORTON, 1988). Considerando a citação de Gilbert Durand (1964) de que o simbolismo é também um departamento do semantismo linguístico, podemos, em parte, compreender o quanto a Escritura Sagrada judaico-cristã pode ser um poderoso instrumento na construção do imaginário dos monoteístas na percepção de uma cidade santa. Finalmente Durand aponta para uma inevitável verificação: Se o simbolólogo deve evitar as querelas das teologias não pode de modo algum esquivar a universalidade da teofania... Finalmente, a cidade dos homens projeta-se no céu numa imutável Cidade de Deus, ... A partir de então, o símbolo surge, por todas as suas funções, como abertura para uma epifania do Espírito e do valor, para uma hierofania. Por fim, como última dialética em que pela última vez a imagem, Bild, persegue o sentido, Sinn, a epifania busca uma figuração suprema para revestir esta mesma atividade espiritual e procura uma Mãe e um Pai para esta vida espiritual, um Justo dos Justos, um Rei da Jerusalém celeste,...” (DURAND, 1964, p. 106-107). 1.- Jerusalém Antiga e a Construção de sua Santidade pelo Judaísmo 5 Stanley M. Horton (1916-2014) – um dos maiores teólogos da Assembleia de Deus no mundo. Pastor norteamericano. Autor de vários livros sobre o pentecostalismo, entre eles, Teologia Sistemática, obra referencial sobre a doutrina pentecostal. Era professor Emérito de Bíblia e Teologia do Assemblies of God Theological Seminary em Springfield, Missouri. 6 Artigo – A Importância do Milênio de João para a Igreja de Hoje. http://ejesus.com.br/escatologia-apocalipticae-pentecostalismo/ 20 A origem da antiga cidade de Jerusalém, de acordo com as raríssimas fontes históricas e arqueológicas disponíveis7, aponta para um local de prática funerária religiosa de tribos beduínas do interior do corredor siro palestino que escolheram as colinas da Judeia para aninhar e sepultar seus mortos; tal prática materializada através dos rituais religiosos levará ao surgimento dos primeiros assentamentos populacionais em Canaã. A importância de um local para a ligação com o divino criou os espaços sagrados e desenvolveu o sentido da vida comunal, ou seja, o sentido existencial para o mundo mítico dos povos cananeus, a partir desses nichos sagrados onde se colocavam os ancestrais e onde se levantavam altares primitivos de adoração ao divino. O professor romeno Mircea Eliade, pioneiro historiador das religiões, aponta para uma primordial convicção religiosa na construção das sociedades: O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia (ELIADE, 2012, p. 18). Fato é que o surgimento dos agrupamentos populacionais primitivos, que darão origem às antigas cidades, estão intimamente ligados às experiências religiosas, em especial aos cerimoniais funerários, onde os ancestrais eram divinizados. É assim que o historiador positivista Fustel de Coulanges apresenta a origem das cidades antigas, especialmente as das Penínsulas itálica e grega: Os mortos eram tidos como seres sagrados. Os antigos davam-lhes os epítetos mais respeitosos que pudessem achar; chamavam-nos bons, santos, bem-aventurados. Tinham por eles veneração que o homem pode ter pela divindade que ama ou teme. Em seu pensamento, cada morto era um deus (COULANGES, 2009, p. 30). 7 MONTEFIORE, Simon Sebag. Jerusalém, a Biografia. SP. CIA das Letras. 2013, p. 47. apud Ronny Reich, Eli Shukro e Omri Lernau, “Recent Discoveries in the City of David, Jerusalem: Findings from the Iron Age II in the Rock-Cult Pool near the Spring”. Israel Exploration Journal, 57 (2007), pp. 153-69). 21 A comparação das crenças e das leis mostra que uma religião primitiva constituiu a família grega e romana, estabeleceu o matrimônio e a autoridade paternal, definiu os níveis de parentesco, consagrou o direito e propriedade e o direito de herança. Essa mesma religião, depois de ter ampliado e estendido a família, formou uma associação maior, a cidade, e nela reinou como na família. Dela vieram todas as instituições, assim como todo o direito privado dos antigos. Foi dela que a cidade recebeu os seus princípios, as suas regras, os seus costumes, as suas magistraturas (COULANGES, 2009, p. 17). Tal como as cidades greco-romanas que nasceram ao redor de monumentos funerários religiosos, esse fenômeno também está presente no corredor siro palestino, explicitamente influenciado pelos egípcios e sumerianos, povos com profundos pendores religiosos e obcecados por seus mortos. Percebe-se que o monte onde a cidade de Jerusalém se desenvolveu está umbilicalmente ligado à primitiva prática religiosa; o alto dos cumes e montanhas foram locais escolhidos para o culto à divindade. Trata-se da “Montanha Cósmica”, a casa dos deuses, por isso exprime uma ligação entre o Céu e a Terra; se a montanha sagrada simboliza o local das moradas dos deuses, então lá deve ser o local onde se encontra o Centro do Mundo. Em inúmeras culturas a figura da montanha está presente, seja de forma mística ou real. Em um dos salmos da Bíblia Hebraica, há um poema 8 que exprime a crença dos povos autóctones de Canaã a respeito dos montes, nela o salmista declara elevar seus olhos para as montanhas, e seguidamente pergunta: De onde me virá o socorro? Sua resposta expressa sua crença monoteísta, contrapondo com a antiga crença nas montanhas sagradas como moradas dos deuses, onde os fiéis poderiam achar o socorro. Montanhas Sagradas estão presentes na antiga Pérsia; na Mesopotâmia; na Grécia com seu famoso monte Olimpo; nas culturas indígenas da América, as montanhas sagradas estão presentes tanto no mundo místicos dos mexicas, como no dos 8 Salmo 121.1 (ARC).. 22 incas, nas Cordilheiras dos Andes. Na Palestina a montanha sagrada está associada ao “Umbigo do Mundo”. Portanto, a montanha sagrada é um Axis mundi que liga a Terra ao Céu, por ser o ponto mais alto, o que está mais próximo do céu, ela toca o céu e marca o ponto de contato, resultando numa janela entre o material e o espiritual. Rituais funerários estão presentes em todo corredor siro palestino desde os primórdios dos assentamentos populacionais. De acordo com os Escritos Sagrados dos Judeus, por volta de 1880 a.C. o arameu Abraão, oriundo da Mesopotâmia, e demais patriarcas do povo hebreu, peregrinaram em Canaã e sepultaram e foram sepultados na cova em Macpela, em Quiriate-Arba, posteriormente Hebron. Os patriarcas registrados na Bíblia Sagrada não são considerados históricos por muitos historiadores9. Eles não negam categoricamente que existam, dados históricos nas tradições que apontam para os patriarcas hebreus Abraão, Isaac e Jacó. Mas pelo fato dessas tradições estarem presentes especificamente dentro de Canaã, esses historiadores acreditam que os acontecimentos e as formas sociais mencionados no período patriarcal estão relacionadas originalmente as experiências posteriores, transferidas para uma passado mítico na formação do povo hebreu. O Dr. Norman Karol Gottwald, autor da obra As Tribos de Iahweh, declara: Muitos destes pretensos indícios “históricos” nos relatos patriarcais, são claramente a simples transferência para o passado de experiências israelitas posteriores e suas formas sociais, processo que foi facilitado pela divisão canônica israelita posterior da “história” de todo Israel em estágios dos patriarcas, de Moisés e da instalação (GOTTWALD, 1986, p. 50-51). A “história” dos patriarcas ou é material para a história protoisraelita, ou são reflexões veladas, temporalmente postas fora do lugar, da história e da experiência israelita posteriores (GOTTWALD, 1986, p. 54). 9 Muitos historiadores sobre o assunto, tais como: Norman K. Gottwald; George Mendenhall; Gósta Ahlstóm; Israel Finkelstein e Neil Asher Silberman; Niels Peter Lemche; Baruch Halpern entre outros. 23 Ainda sobre a questão da historicidade do período patriarcal lê-se, no livro A Invenção do Povo Judeu de Shlomo Sand a seguinte consideração sobre a Bíblia: A abordagem dos pesquisadores da Escola de CopenhagueShefield – Thomas Thompsom, Niels Lemche, Philip Davies e outros – é ainda mais convincente, mesmo que não se seja obrigado a aceitar todas as suas hipóteses e conclusões: não haveria, de fato, um livro, mas toda uma biblioteca extraordinária que teria sido escrita, reelaborada e revista durante mais de três séculos, do final do século VI a.C. ao início do século II. Deve-se ler a Bíblia como um sistema multiestratificado de debates filosófico-religiosos, ou como um complemento teológico que às vezes fornece descrições mais ou menos históricas com objetivo pedagógico, destinadas essencialmente às gerações futuras (o sistema de castigo divino também funciona em relação ao futuro). Segundo essa hipótese, autores e redatores diversos do mundo antigo procuraram criar uma comunidade religiosa cristalizada e se inspiraram na política do passado “glorificado” para contribuir para a construção de um futuro estável e duradouro para um importante centro de culto em Jerusalém (SAND, 2012, p. 225-226). Feitas essas citações de historiadores, é conveniente voltar à análise dos episódios patriarcais, uma vez que, independentemente da questão ser mitológica ou histórica, esses episódios ajudam a compreender a construção do imaginário judaico sobre a santidade de Jerusalém. Na Bíblia percebe-se que há uma insistência dos patriarcas hebreus, através de juramentos, para que sejam sepultados no campo de Macpela, local adquirido por Abraão dos heteus, povo autóctone de Canaã. Tal ritual era comum entre os habitantes dessa região antes da chegada do arameu Abraão e parece que os patriarcas incorporaram essa prática transformando a cova de Macpela em espaço sagrado. Há várias passagens bíblicas sobre o assunto, mas o sepultamento de Jacó se destaca, pois foi um ritual tão grandioso e tão elaborado que até os nativos da terra se admiraram. Segundo o relato do livro de Gênesis, o ritual do enterro de Jacó foi grandiosíssimo, pois subiram muitíssimos carros, gente e cavalos do Egito para Canaã, e fizeram uma grande e gravíssimo pranto por uma semana, esse ritual fúnebre, impressionou os 24 moradores de Canaã, levando-os a denominarem de Abel-Mizraim. Segundo o livro de Gênesis os hebreus sepultaram seu patriarca Jacó na cova de Macpela: E fizeram-lhe os seus filhos assim como ele lhes ordenara, pois os seus filhos o levaram à terra de Canaã e o sepultaram na cova do campo de Macpela, que Abraão tinha comprado com o campo, por herança de sepultura de Efrom, o heteu, em frente de Manre (Gênesis 50:9-13 - ARC). A cerimônia funerária prestada a Jacó impressionou os cananeus, mas não se tratava de uma prática desconhecida, já que os cananeus também realizavam elaboradas cerimônias funerárias em todo corredor siro palestino. As descobertas arqueológicas sobre essa prática religiosa fúnebre entre os povos de Canaã, especialmente as pesquisas da Dra. Katheleen Kenyon 10 se assemelham demasiadamente com os enterros em sepultura em caverna, como os descritos no Livro de Gênesis 23 e 35.19-20. Também o arqueólogo Dr. Nelson Glueck11 em suas investigações arqueológicas no deserto do Neguev revelou muitas colônias da Idade Média de Bronze do tipo patriarcal12. Esses rituais funerários antigos paulatinamente desenvolveram-se em práticas e devoções religiosas, criando espaços sagrados. A compreensão da experiência religiosa como ponto inicial da construção do espaço sagrado e o surgimento das cidades antigas, tanto no ocidente como no oriente, é constatável pela teoria da fenomenologia verificável no surgimento da cidade de Jerusalém e de tantas outras. Esses lugares são como um eixo, um ponto inicial, um centro umbilicalmente ligado ao êxtase e teofanias espirituais; esses locais se constituem em locais de culto, locus sacratus, que rompem como janelas 10 Katheleen Kenyon (1906-1978) – Foi uma experiente arqueóloga, líder de equipes arqueológicas que pesquisaram sobre o período Neológico das antigas culturas do Oriente Médio (Fértil Crescente). Sua pesquisa arqueológica mais conhecida foi suas escavações em Jericó. Ela foi considerada a arqueóloga mais influente do século 20. 11 Nelson Glueck (1900-1971) – Foi um rabino arqueólogo, que pesquisou vários sítios arqueológicos relacionados com a Bíblia Hebraica. 12 JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1995, p. 23). 25 surgidas no mundo profano ligado ao divino. Podemos perceber isso no recorte de texto do professor Mircea Eliade: A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. Na extensão homogênea e infinita onde não é possível nenhum ponto de referência, e onde, portanto, nenhuma orientação pode efetuar-se, a hierofania revela um “ponto fixo” absoluto, um “Centro” (ELIADE, 2012, p. 25–26). A experiência religiosa antecedendo a dogmatização ou algum conceito sistemático de Deus foi muito bem trabalhada pelo professor e teólogo alemão Rudolf Otto (1869-1937) e por Nathan Söderblom (1866-1931), teólogo protestante e arcebispo sueco de Upsala: … a experiência do sagrado antecede todo e qualquer conceito de Deus. Ela é a experiência religiosa fundamental por excelência. “Santidade” (Heiligkeit) é o termo determinante na religião (SÖDERBLOM, 1913, p. 713-741 apud RUDOLF, 2011, p. 15). Após considerar essa primordial convicção ou experiência religiosa na construção do espaço sagrado, convém analisar a historicidade da cidade de Jerusalém. Fragmentos de barro encontrados no crescente fértil indicam que povos cananeus seriam os primeiros habitantes. O escritor e jornalista Montefiori (2003), comentando sobre o surgimento de Jerusalém, relata que os cananeus já viviam na região há 5 mil anos. Por volta de 3.200 a.C., no início da era do Bronze, povos da região que utilizavam suas montanhas como locais funerários construíram pequenas habitações em torno de uma fonte numa colina, com uma pequena aldeia murada. Cerâmicas egípcias e textos sírios dizem que seu nome original era Ursalim, Salém ou Yeruselam. Montefiori descreve o surgimento populacional em Jerusalém da seguinte forma: … algumas cerâmicas, cujos fragmentos foram descobertos perto de Luxor, no Egito, mencionam uma cidade chamada Ursalim, uma versão de Salém ou Shalem, deus da estrela Vésper. O nome pode significar 26 “Salém fundou”. Em Jerusalém, um assentamento crescera em torno da fonte de Giom: os habitantes cananeus abriram um canal na pedra que levava a uma poça dentro dos muros da cidadela. Uma passagem subterrânea fortificada protegia o acesso à água. As últimas escavações arqueológicas no sítio revelam que eles protegeram a fonte com uma torre e um muro maciço, de sete metros de espessura, usando pedras de três toneladas. A torre pode também ter servido como um templo para celebrar a santidade cósmica da fonte. Em outras partes de Canaã, reis sacerdotais construíram torres-templos fortificados. Morro acima, restos do muro de uma cidade foram encontrados, o mais antigo em Jerusalém (MONTEFIORE, 2013, p. 4647). A escritora britânica Karen Armstrong aponta o monte Ofel, onde ainda se encontra a nascente de Giom, marco inicial da formação da cidade de Jerusalém. Neste caso a fonte de água passa a dar santidade ao local como a fonte da vida, o gênesis, o eixo inicial: O povoamento do monte Ofel ocorreu provavelmente por causa de sua localização, nas proximidades da fonte de Gion. Além disso, existiam vantagens estratégicas, por se localizar no ponto em que o contraforte das montanhas dá lugar ao deserto da Judeia. O Ofel não podia abrigar uma população numerosa – a cidade ocupava uma área pouco superior a 3,6 hectares; porém, três vales íngremes proporcionavam uma proteção extraordinária: o Cedron, a leste, o Hinom (ou Geena), ao sul, e o Central, a oeste; este último, que hoje está em grande parte coberto de detritos, recebeu do historiador judeu Flávio Josefo o nome de Tiropeon. Embora a cidade não estivesse entre as mais importantes de Canaã, ela parece ter atraído a atenção dos egípcios. Em 1925, foram comprados em Lúxor fragmentos que, uma vez reunidos, resultaram em cerca de oitenta pratos e vasos com inscrições na antiga escrita hierática. Decifrada essa escrita, constatou-se que os textos continham os nomes de países, cidades e governantes considerados inimigos do Egito. Os vasos deviam ser despedaçados num rito de magia simpática que visava provocar a ruína dos vassalos recalcitrantes. Remontam ao reinado do faraó Sesóstris III (1878-42 a.C.) e mencionam dezenove cidades cananeias, entre as quais “Rushalimum”. Trata-se da primeira menção a essa cidade, governada, segundo as inscrições, por dois príncipes: Yq’rm e Shashan. Em outro dos chamados Textos de Execração, cuja inscrição é estimada em um século depois, “Rushalimum” novamente é amaldiçoada, mas ao que tudo indica dessa vez um só homem a governa. A partir desse pequeno indício alguns estudiosos inferiram que durante o século XVIII a.C. Jerusalém, bem como o restante de Canaã, deixou de ser uma sociedade tribal, com vários chefes, para tornar-se um núcleo urbano, sob o comando de um único rei (ARMSTRONG, 2000, p. 26-27). 27 Na Bíblia Hebraica, a primeira referência à cidade de Jerusalém é mencionada no livro do Gênesis, com a denominação de Salém 13, quando o patriarca Abraão14 se encontra com o monoteísta jebuseu chamado Melquisedeque15, rei sacerdote de Salém: E Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; e este era sacerdote do Deus Altíssimo. E abençoou-o e disse: Bendito seja Abrão do Deus Altíssimo, o Possuidor dos céus e da terra; e bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os teus inimigos nas tuas mãos. E deulhe o dízimo de tudo. (Gênesis 14.18-20 - ARC). Melquisedeque é rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo (El Elyon). Com base nesta passagem da Escritura Hebraica inferimos que antes de Abraão se fixar na terra de Canaã já existia uma cidade-estado que possuía um culto monoteísta ou que ao menos era governada por um monoteísta, e Abraão o reconhece como sendo um servidor do seu Deus, o Todo-Poderoso (El-Shaday). Isso sugestiona que Jerusalém era um santuário cananeu administrado por reis sacerdotes na época de Abraão. O encontro emblemático de dois monoteístas, um cananeu Melquisedeque e outro arameu Abraão, é o início da história de Salém nas Sagradas Escrituras hebraicas. O nome Salém pode significar “Salém fundou”; outra possibilidade é que Shalem seja um deus sírio relacionado ao sol ou à estrela vespertina. 13 Salém (Shalém), segundo a tradição judaico-cristã é Jerusalém, também denominada de Jebus segundo informação presente no livro bíblico de Josué, capítulo 18 e versículo 28: “...e Jebus (esta é Jerusalém)...”. Em 2010 a arqueóloga Dra. Eilat Mazar do Instituto de Arqueologia da Universidade Hebraica de Jerusalém concluiu seu trabalho arqueológico do sistema de fortificações em Jerusalém, entre as descobertas encontrou-se uma placa que parece ser uma cópia de uma carta do rei de Jerusalém da época, Eved Haba ao rei do Egito. Uma cópia desta carta foi preservada como o arquivo da cidade de Salém. Trata-se de uma prova confiável de que Salém é Jerusalém e do status da cidade como uma cidade-estado importante em Canaã, sob proteção do Império Egípcio. 14 Patriarca Abraão – “PERÍODO DOS PATRIARCAS”, devido à organização patriarcal que vigorava então; costuma-se colocar essa época entre os séculos XX – XVII a.C., isto é, aproximadamente de 2000 a.C. a 1600 a.C. Nesse período, a tradição judaica coloca as figuras dos três “Avot”, cuja história é narrada no livro do Gênesis (BEREZIN (Org.), 2000, p. 22 – vol. 1). 15 Do hebraico malkei-tsédek "rei da justiça”, era sacerdote de El-Elyon (Deus Altíssimo), segundo a tradição judaica é Shem (Sem) um dos filhos de Noé. 28 1.1.- O Altar Primordial O primeiro altar de sacrifício para o serviço sagrado feito pelo patriarca Abraão na terra de Canaã foi na cidade de Siquém, conforme registrado na Bíblia Hebraica no Livro de Gênesis 12.6-7. Essa cidade fica atualmente próxima de Nablus, um nome derivado da cidade de Neopolis, construída pelo imperador Vespasiano no ano 72, após a destruição de Jerusalém e a conquista de toda Palestina. Foi na cidade de Siquém que posteriormente ocorreu o trágico episódio envolvendo a filha de Jacó com o heveu Siquém, príncipe daquela terra (Gênesis 33:18-19; 34:2). A identificação desse sítio arqueológica atualmente, foi possível, graças a referência feita por Flávio Josefo em sua monumental obra História dos Hebreus, escrita no ano 90 e por Eusébio, o grande historiador cristão, que escreveu História Eclesiástica em 340, ambos localizam Siquém nos subúrbios de Neapolis, perto do poço de Jacó. Siquém, portanto, foi o local do altar primordial feito por Abraão em Canaã dedicado ao El-Shadday, após sua saída de Harã na Síria (Gênesis 12:6-7). A segunda menção na Bíblia Hebraica da cidade de Jerusalém, ainda no período patriarcal, é quando Deus manda Abraão para a região de Moriá, que seria o monte santo de Jerusalém (Gênesis 22:2). Quando Isaac está prestes a ser sacrificado por seu pai, o anjo o avisa que ele não deve sacrificá-lo. Nesse monte, Abraão tem uma experiência religiosa teofânica (Gênesis 22.10): E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; e oferece-o ali em holocausto sobre uma das montanhas, que eu te direi (Gênesis 22:2,9-18 - ARC). O local onde Isaac seria sacrificado tornou-se sagrado para todas as religiões monoteístas posteriores; trata-se de um outro altar primordial. Embora não haja qualquer prova arqueológica sobre onde seria esse altar do sacrifício 29 de Abraão, o local exato dessa pedra primordial, as referências bíblicas indicam que esse é o embrião da devoção por essa cidade, por esse lugar, por essa pedra, e a criação da geografia sagrada. Karen Armstrong (2000), nos leva a compreender a contínua crença de que existem lugares mais sagrados que outros, o que permite a percepção de que sejam locais mais adequados a habitação humana. Essa crença, obviamente não se baseia em critérios investigativos, análise intelectual ou em conjecturas metafísicas sobre a natureza do mundo, pelo contrário, o homem antigo compreendia o mundo a seu redor eivado de mistérios e forças sobrenaturais, e sentiam irresistível atração por algumas lugares, completamente diferentes dos outros, e que parecia trazer-lhes alguma segurança, proteção, conforto, algo divino, que ligasse a terra ao céu, há nas culturas antigas verdadeira fixação e obsessão pelo céu, pelos astros, pela plano celestial. Na verdade, temos grande dificuldade para compreendermos intelectualmente a percepção de geografia sagrada dos antigos. Antigas visões de mundo sagrado afetam profundamente a história de Jerusalém e têm sido aceitas por muitas pessoas, até mesmo aqueles que não se consideram religiosas. Ao examinar a longa história da cidade de Jerusalém, perceber-se que desde o limiar da história, homens e mulheres têm formulado de muitas e variáveis maneiras percepções que ela é um espaço sagrado, ele foi edificada num montanha cósmica, e esse imaginário tenderá a repetir-se de maneira tão insistente e contínua que aponta para uma necessidade humana interna fundamental na busca do sagrado. O professor Mircea Eliade, escrevendo sobre o espaço sagrado, cita Rudolf Otto sobre a impactante experiência religiosa em um lugar primordial, algo presente no relato do livro de Gênesis da Bíblia Hebraica, referente à experiência teofânica sentida por Abraão no episódio do sacrifício de Isaac na montanha santa de Moriá, posteriormente, recuperada na tradição religiosa dos hebreus, para o serviço religioso: 30 Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser. R. Otto designa todas essas experiências como numinosas (do latim numen, “deus”) porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. O numinoso singulariza-se como qualquer coisa de ganz andere (*) radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou de cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criatura”, ou seja - segundo os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor - , de não ser “senão cinza e pó” (Gênesis, 18:27) * Em alemão no texto original (N.T.) (ELIADE, 2012, p. 15-16). Essa dramática experiência espiritual de Abraão na montanha cósmica de Moriá, marcará a alma do judaísmo, as teofania, ou seja, a aparição de Deus, permitindo profunda e impactante experiência ao homem, estará sempre presente no imaginário do povo judeu, este local será posteriormente recuperado como o centro do culto monoteísta na construção do Templo de Salomão. Podemos afirmar que a partir desse evento teofânico de Abraão com esse altar primordial onde sacrificou ao Deus Todo-Poderoso, o embrião da santidade da cidade estará em gestação, chegando ao seu clímax com a própria declaração do Eterno de que escolhera Jerusalém para que ali estivesse eternamente seu santo nome. No entanto, a primeira menção bíblica explicitamente usando o nome Jerusalém está no livro de Josué16, quando os hebreus fazem guerra a cinco reis cananeus, liderados por Adoni-Zedeque, que é derrotado e morto (Josué 10 e 12:10). Ainda no período das conquistas dos hebreus da terra de Canaã, eles derrotaram o rei de Jerusalém, chamado de Adoni-Bezeque (Juízes 1:1-7). 16 No livro bíblico de Josué há mais duas referências sobre a cidade: uma em Josué 15:8: E este termo passará pelo vale do Filho de Hinom, da banda dos jebuseus do sul (esta é Jerusalém)... e outra em Josué 18:28: ...e Jebus (esta é Jerusalém), .... A cidade também aparece em Juízes 1.21: Porém os filhos de Benjamim não expeliram os jebuseus que habitavam em Jerusalém; antes, os jebuseus habitaram com os filhos de Benjamin em Jerusalém até ao dia de hoje. 31 1.2.- Jerusalém a nova capital do Reino dos Hebreus Por volta do ano 1.000 a.C, Jerusalém volta a ser o centro espiritual do povo judeu, com a política do rei Davi, de primeiro conquistá-la e transformá-la em sua capital, tirando a sede do governo israelita de Hebron, onde repousavam os seus ancestrais na Cova de Macpela, para o local do altar primordial de Abraão, Moriá. Essa mudança para Jerusalém mudará totalmente e para sempre a história da cidade. Poucos são os materiais arqueológicos sobre esse inspirador rei judeu – Davi. Em 1993 o arqueólogo e professor Avraham Biram, então diretor da Faculdade de Arqueologia Bíblica Nélson Glueck da Hebrew Union College, descobriu num sítio no norte de Israel, em Tel Dã, uma estela com a inscrição “Casa de Davi”. Segundo o arqueólogo Randall Prince, a data do achado está entre o fim do século IX e começo do século VIII a.C.; o fragmento está escrito em aramaico. Nesse fragmento há referência de guerra entre o reino de Israel e o rei arameu Ben-Hadade de Damasco, que derrota o “rei de Israel da Casa de Davi”17. A Bíblia Hebraica é a fonte mais antiga que apresenta o episódio da conquista de Jebus por Davi. O historiador judeu Flávio Josefo, em sua obra História dos Hebreus, descreveu o episódio da conquista de Jebus por Davi parafraseando Bíblia Hebraica. Todos de comum acordo, declaram a Davi, rei. Depois de terem passado três dias em festas e banquetes públicos, marchou com todas as suas forças, para Jerusalém (JOSEFO, 1990). As cidades dos cananeus, eram fortificadas e normalmente edificadas em montanhas cósmicas. Os jebuseus, povo autóctone, da etnia dos cananeus, enfrentaram os israelitas, e fecharam as portas da sua cidade, e para demonstrar total desprezo aos israelitas, colocaram sobre a inexpugnável 17 PRICE, Randall. Pedras Que Clamam. RJ: CPAD, 1997. p.148. 32 muralha as pessoas com deficiências físicas, tal o grau de segurança e confiança que tinham em sua fortaleza. Davi sentiu-se ofendido, e desafiado ao extremo, resolveu atacá-los com todas as suas forças e estratégias militares possíveis. Mas, conseguiu apenas apoderar-se da cidade baixa, não havia como conquistar a fortaleza jebuseia. Davi resolveu então apresentar um desafio as suas tropas, prometendo recompensas e honrarias, aos que se desatacassem pelo valor e coragem nessa empreitada, prometeu ainda o cargo de general comandante de seu exército, ao que primeiro entrasse na fortaleza de Jebus. Esse desafio, trouxe bons resultados, seus soldados desafiados e motivados adentraram na fortaleza pelo encanamento da cidade. Os hebreus liderados por Davi tomaram a fortaleza e expulsaram seus moradores jebuseus. Davi consertou as brechas das muralhas, habitou com sua corte na cidade e deu seu nome para ela. De Jerusalém unificou e governou sobre as tribos de Israel, embelezou Jerusalém e tornando-a capital sagrada do povo de Israel. Se o rei Davi é um personagem histórico ou um mito, como acreditam alguns historiadores e arqueólogos18, isso não interfere na busca da compreensão da construção do imaginário sagrado de Jerusalém para os fiéis monoteístas. A perspectiva não é desconstruir mitos ou revisar a história, mas apresentar a construção do imaginário religioso sobre a cidade de Jerusalém na acomodação das fés monoteísta até a evangélica pentecostal. Independentemente das provas materiais históricas, a literatura sagrada aponta Davi como o maior rei judeu de todos os tempos, inclusive os profetas hebreus apresentam-no como genitor do Messias. Essa perspectiva sagrada, que embebeda as esperanças de milhões de almas, que criará o sagrado, é o que nos interessa na descrição dos acontecimentos nesta obra. Davi, ao conquistar Jerusalém, de imediato quis trazer os objetos sagrados para sua nova capital. 18 FINKELSTEIN, I e SILBERMAN,Neil A. Davi and Salomon: In Search of the Bible's Sacred Kings and the Roots of the Western Tradition. New York: Free Press, 2006. 33 É possível que Davi não tenha decidido escolher uma cidade israelita já bem estabelecida para ser a sede do seu reino, para evitar conflitos internos, por isso escolheu uma cidade neutra. Jerusalém era uma cidade cananeia19 que não pertencia a nenhuma das tribos hebraicas, não tendo problemas políticos para fazer dela sua nova capital para o jovem reino de Israel. Com objetivo de levar os símbolos divinos para sua nova cidade, Davi congregou todas as tribos de Israel em Jerusalém a fim de fazer uma longa procissão de translado da Arca da Aliança do Senhor (1º Crônicas 15:3). Segundo registro bíblico, Davi abrigou a Arca da Aliança numa tenda enquanto ampliava e fazia novas construções em sua cidade. Naquela época a cidade localizava-se ao sul da cidade antiga de Jerusalém. De acordo com informações de Armstrong (2000), sua extensão era de seis hectares na encosta sul do monte Moriá e era o lar de mais de duas mil pessoas. O rei Davi unificou o reino dos hebreus, estabeleceu a nova capital em Jerusalém, organizou o exército, a economia e o mais importante para os hebreus, organizou a forma de culto monoteísta, compôs Salmos e comprou o monte sagrado de Moriá, local do altar primordial de Abraão. Davi após consolidar seu poder se ocupou demasiadamente com assuntos militares e o Deus dos hebreus ficou descontente. Segundo a Bíblia, Seu castigo foi enviar uma terrível peste, então um ser angelical surgiu num ponto específico do monte Moriá. Naquele local Davi construiu um altar, após comprar o terreno, segundo documento de compra e venda registrado no primeiro livro das Crônicas da Bíblia: E disse Davi a Ornã: Dá-me este lugar da eira, para edificar nele um altar ao SENHOR; dá-mo pelo seu valor, para que cesse este castigo sobre o povo. Então, disse Ornã a Davi: Toma-a para ti, e faça o rei, meu senhor, dela o que parecer bem aos seus olhos; eis que dou os bois para holocaustos, e os trilhos para lenha, e o trigo para oferta de manjares; tudo dou. E disse o rei Davi a Ornã: Não! Antes, pelo seu 19 Segundo o livro do Profeta Ezequiel a origem de Jerusalém é: E dize: Assim diz o Senhor Jeová a Jerusalém: A tua origem e o teu nascimento procedem da terra dos cananeus; teu pai era amorreu, e a tua mãe; heteia (Ez 16.3). ...vossa mãe foi heteia, e vosso pai, amorreu (Ez 16.43b). 34 valor a quero comprar; porque não tomarei o que é teu, para o SENHOR, para que não ofereça holocausto sem custo. E Davi deu a Ornã, por aquele lugar o peso de seiscentos siclos de ouro. Então, Davi edificou ali um altar ao SENHOR, e ofereceu nele holocaustos e sacrifícios pacíficos, e invocou o SENHOR, o qual lhe respondeu com fogo do céu sobre o altar do holocausto (1º Crônicas 21:22-26 - ARC). Essa experiência teofânica de Davi, no mesmo local onde Abraão também experimentou extasiado o contato teofânico do Eterno, levou a construção do imaginário sagrado da cidade ao ápice. Jerusalém passou a ser vista, a partir daí, como um local sagrado, uma janela para o divino. O professor Mircea Eliade (2012) apresenta esse fenômeno transcendente quando cita o exemplo da pedra sagrada, não como uma veneração da pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A perspectiva da pedra sagrada, não tem haver com uma adoração a pedra em si, mas são hierofanias, porque “revelam” algo transcendente, que já não é mais pedra, mas o sagrado. Uma pedra sagrada, não deixa de ser uma pedra, nada a difere de todas as demais pedras. No entanto, para quem cujos olhos uma pedra se reveste de sacralidade, sua realidade imediata se transforma numa realidade sobrenatural. Para os que tem uma experiência religiosa cósmica, tudo o que existe no universo é suscetível de revelar-se como sagrado. O mundo inteiro pode tornar-se numa hierofania cósmica. O monte de Jerusalém é importante porque aponta para a construção da geografia sagrada, o local da pedra primordial, o mesmo local onde aproximadamente mil anos antes o patriarca Abraão havia levado para sacrificar seu filho Isaac (Gênesis 22:10). Davi contemplou esse misterioso ser angelical em Jerusalém, no Monte Moriá, para deter a praga, ordenando a construção de um altar, esse é o local onde posteriormente será construído o primeiro Templo dedicado ao Deus Único: Então o Anjo do SENHOR disse a Gade que dissesse a Davi para que subisse Davi para levantar um altar ao SENHOR na eira de Ornã, o jebuseu (1º Crônicas 21.18). 35 Posteriormente, Davi preparou o material necessário para a construção de uma Casa para a Arca da Aliança, porém foi seu filho Salomão que construiu o primeiro templo sagrado dedicado ao Eterno. O Professor Mircea Eliade, escrevendo sobre o espaço sagrado, diz: A descoberta ou projeção de um ponto fixo – o “Centro” – equivale à Criação do Mundo, e não tardaremos a citar exemplos que mostrarão, de maneira absolutamente clara, o valor cosmogônico da orientação ritual e da construção do espaço sagrado (ELIADE, 2012, p. 26). O Templo de Salomão foi construído por volta de 950 a.C., possuía degraus para a entrada, portas trabalhadas e duas suntuosas colunas na frente; dentro do templo ficava o lugar mais sagrado de todos, o santo dos santos, onde só o sumo sacerdote podia adentrar, local da Arca da Aliança, que continha as duas tábuas da lei, o vaso com maná colhido no deserto e a vara do sacerdote Arão que florescera. O Templo era uma cópia do modelo celestial dado pelo Eterno. Segundo Eliade (2012), na crença israelita os modelos do tabernáculo, de todos os utensílios sagrados e do Templo, foram criados por Deus desde a eternidade, e foi o Ele que revelou ao seu povo eleito, para que fossem reproduzidos na terra com precisão. O Templo construído por Salomão tinha por finalidade o serviço sagrado. Era um lugar de sacerdotes e sacrifícios, onde repousava a Arca da Aliança dos israelitas. O santuário era único do gênero, dedicado a uma divindade invisível, num mundo de representações visíveis, totalmente politeísta e idolátrico. O que surpreende a respeito dessa construção não eram as madeiras importadas, os cedros do Líbano, nem os detalhes de ouro feitos por peritos artesãos e ourives, mas um pequeno recinto fechado e sem janelas, chamado de “o mais sagrado entre o sagrado” ou de “o santo dos santos” (2º Crônicas 3:8). Esse era o local 36 mais importante, onde não deveria haver nenhuma imagem de Deus, pois segundo a tradição israelita Deus é irretratável, demasiadamente grandioso e não poderia ser representado por imagens advindas do imaginário humano. O silêncio e a ausência de imagens são os grandes diferenciais da religião israelita. Ali repousava apenas a Arca da Aliança e ninguém podia entrar. Essa simplicidade misteriosa de culto e essa crença de santidade do local serão elementos responsáveis pela santificação de toda a terra de Israel. A Bíblia Hebraica declara que após Salomão sacrificar a Deus e fazer sua oração, fogo celestial caiu e consumiu o holocausto e os sacrifícios e o Shekinah20 do Eterno encheu o Templo (2º Crônicas 7:1-3). O rei Salomão teve uma experiência teofânica com Deus, em uma visão noturna, onde o Eterno declara ter ouvido sua oração e escolhido aquele lugar para o culto divino: E o SENHOR apareceu de noite a Salomão, e disse-lhe: Ouvi a tua oração e escolhi para mim este lugar para casa de sacrifício. Se eu cerrar os céus, e não houver chuva; ou se ordenar aos gafanhotos que consumam a terra, ou se enviar a peste entre o meu povo; e se o meu povo, que se chama pelo meu nome, se humilhar, e orar, e buscar a minha face, e se converter dos seus maus caminhos, então eu ouvirei dos céus, e perdoarei os seus pecados, e sararei a sua terra. Agora, estarão abertos os meus olhos e atentos os meus ouvidos à oração deste lugar. Porque, agora, escolhi e santifiquei esta casa, para que o meu nome esteja nela perpetuamente; e nela estarão fixos os meus olhos e o meu coração todos os dias (2º Crônicas 7:12-16 - ARC). A construção do Templo de Salomão coroou a cidade de Jerusalém como o espaço sagrado pleno. Estava criada definitivamente a geografia sagrada para a cidade de Jerusalém. Segundo Eliade (2012), o Templo dedicado ao Eterno em Jerusalém era uma imago mundi: estava situado no “Centro do Mundo”. De Jerusalém a santificação abrangia não somente o Cosmos, mas também a “vida” cósmica, ou seja, o tempo. Essa ideia apresentada por simbólica de ação santificadora é Josefo (1990) da seguinte maneira: o pátio do Templo 20 Shekinah é uma palavra hebraica que significa “habitação” ou “presença de Deus”. Para os teólogos a tradução que mais se aproxima dessa palavra é “a glória de Deus se manifesta”. 37 simbolizava o Mar (as regiões inferiores); o santuário representava a Terra, e o Santo dos Santos, o Céu. Segundo Eliade (2012) esse simbolismo do Templo se projeta para o interior do mundo habitado. Assim a terra de Canaã (Palestina), a cidade de Jerusalém e o Templo do Eterno simbolizavam e representavam cada um e ao mesmo tempo a imagem do Cosmo e o Centro do Universo. Essa pluralidade de “Centros” e essa contínua referência a imagem do mundo passando por escalas cada vez menores constituíam na própria cosmovisão dos povos antigos, das sociedades tradicionais. No entanto, essa extraordinária expressão de fé monoteísta dos hebreus, eivada de simbolismos, não teve força suficiente e não foi páreo frente ao politeísmo pragmático e muito mais atraente, que seduziria a maioria dos israelitas às práticas culturais e religiosas mais sofisticadas dos antigos povos de Canaã, em especial ao fascinante culto a Baal, o senhor, o dono, o marido da mãe terra, que com seu abençoado sêmen, fecundava com copiosas chuvas a mãe terra, produzindo vida, o alimento para todos os seres humanos; este culto autóctone cananeu fascinava os israelitas, que negligenciaram o culto do Eterno. Segundo a teologia hebraica, a desobediência e a persistência na prática do velho politeísmo levaram à destruição dos reinos de Judá e de Israel: E o SENHOR, Deus de seus pais, lhes enviou a sua palavra pelos seus mensageiros, madrugando, e enviando-lhos; porque se compadeceu do seu povo e da sua habitação. Porém zombaram dos mensageiros de Deus, e desprezaram as suas palavras e escarneceram dos seus profetas, até que o furor do SENHOR subiu tanto, contra o seu povo, que mais nenhum remédio houve (2º Crônicas 30.15-16 - ARC). A primeira grande ameaça vinda de um povo estrangeiro ocorreu séculos depois da morte dos reis Davi e Salomão, momento em que o reino já estava enfraquecido e dividido em duas partes; no sul o Reino de Judá com capital Jerusalém e no Norte o Reino de Israel com capital Samaria. Em 722 a.C. o 38 Império Assírio destruiu o Reino do Norte, levando ao exílio seus habitantes e 136 anos depois, o poderoso Império Babilônico destruiria Jerusalém. Jerusalém e o Templo sagrado foram alvos de invasões sucessivas de muitos povos, foi notória por um magnetismo especial que atraiu sobre si vários ataques hostis. Analisando os aspectos geopolíticos, essa região estava assentada sobre o corredor siro palestino, região que sempre foi alvo das potências militares da época, pois era a ponte natural de ligação terrestre entre a África, Ásia e Europa; quem dominava essa ponte terrestre dominaria as rotas comerciais que abasteciam o mundo antigo, certamente, quem dominasse essa região estratégica dominaria todo o mundo. Canaã, ou o corredor siro palestino, onde ficava o Reino de Judá, estava entre o Egito no sul e a Babilônia no Norte, era a ligação terrestre entre os dois grandes impérios. O faraó Neco, de um Egito expansionista, não tinha passagem para Carquemis na Síria, a não ser pelo caminho do mar (via maris) que passava por Megido. O Faraó Neco enviou mensageiros para o monarca judeu Josias, em Jerusalém, pedindo autorização para passar com seu exército. O rei judeu negou e preparou seu exército para a batalha na tentativa de impedir que o exército egípcio passasse por seu território e foi para Megido onde morreu. Com a morte do rei Josias, o Reino de Judá perdeu sua autonomia política, deixando de existir como uma nação autônoma. O Faraó Neco colocou no trono de Judá o filho de Josias, Joacaz, e seguiu para Carquemis, no Norte, quando foi derrotado pelo exército caldeu. O cetro mundial passou para Babilônia, e Jerusalém passou a fazer parte do Império Babilônico. Nabucodonosor tirou do trono Joacaz, filho de Josias, empossado pelo faraó do Egito e entronizou a Eliaquim, também chamado Jeoaiquim como novo rei do Reino de Judá, que se tornou tributário do rei da Babilônia. Eliaquim ou Jeoaiquim ficou três anos como servo de Nabucodonosor e depois se rebelou e fez aliança com o Egito. Em 605 a.C. Nabucodonosor enviou seu general Nebuzaradã para Jerusalém e levou a primeira leva de cativos judeus, mão de obra especializada para a Babilônia. Em 597 a.C., ocorreu uma segunda 39 incursão babilônica em Jerusalém, de onde se levou mais cativos judeus para a Babilônia. 1.3.- A Primeira Destruição de Jerusalém (586 a.C.) Em 586 a.C., o poderoso Império Babilônico destruiu Jerusalém e levou grande parte da elite dos judeus para a Babilônia. O Templo foi destruído por Nabucodonosor 374 anos depois de sua construção. A Bíblia Hebraica descreve essa tragédia da seguinte maneira: Quebraram mais os caldeus as colunas de cobre que estavam na Casa do SENHOR, como também as bases e o mar de cobre que estavam na Casa do SENHOR; e levaram o seu bronze para Babilônia. Também tomaram as caldeiras, as pás, e os apagadores, e os perfumadores e todos os utensílios de cobre, com que se ministrava. Também o capitão da guarda tomou os braseiros, e as bacias, e tudo mais que era de puro ouro e de prata. As duas colunas, o mar, e as bases que Salomão fizera para a Casa do SENHOR; o peso do cobre de todos esses utensílios era incalculável A altura de uma coluna era de dezoito côvados, e sobre ela havia um capitel de cobre, e de altura tinha o capitel três côvados; e a rede, e as romãs em redor do capitel, tudo era de cobre; e semelhante a esta era a outra coluna com a rede. Também o capitão da guarda tomou a Seraías, primeiro sacerdote, e a Sofonias, segundo sacerdote, e aos três guardas do umbral da porta. E da cidade tomou a um eunuco, que tinha cargo de guerra, e a cinco homens dos que viam na face do rei, e se acharam na cidade, como também ao escrivão-mor do exército, que registrava o povo da terra para a guerra, e a sessenta homens do povo da terra, que se achavam na cidade. E tomando-os Nebuzaradã, o capitão da guarda, os trouxe ao rei de Babilônia, a Ribla. E o rei de Babilônia os feriu e os matou em Ribla, na terra de Hamate; e Judá foi levado preso para fora da sua terra (2º Reis 25:13-21 - ARC). A história da destruição de Jerusalém foi muito relatada na tradição religiosa judaica, especialmente como pranto religioso da perda da Casa de Deus. Certo é que o Império Babilônico aniquilou a cidade santa, queimou o Templo do Eterno, o palácio do rei e todas as casas de Jerusalém e derrubou os 40 muros que protegiam a cidade santa. Ao destruir o Templo os babilônicos saquearam seu interior, levando seus vasos de ouro e prata, e outros objetos de inestimável valor 21. A famosa e reverenciada Arca da Aliança sumiu para sempre em meio ao fogo abrasador lançado pelos conquistadores: “deitam fogo ao Teu Santuário; profanaram, derrubando-a até ao chão, a morada do teu nome”, narra o Salmo 74:7 escrito por um poeta agonizado. Os sacerdotes e os filhos do rei Zedequias foram mortos diante do rei Nabucodonosor e seus generais. Após a destruição de Jerusalém, suas ruas ficaram desertas e cheias de detritos, pedras e fuligem, alguns dos abastados sobreviventes rapidamente se empobreceram, apenas a população marginal e traumatizada pelas constantes guerras ficou nos arredores da empobrecida terra, somente as raposas perambulavam entre os escombros do monte do altar primordial. A queda de Jerusalém é interpretada pelo povo judeu como uma manifestação do castigo do Eterno. Mircea Eliade assim descreve essa percepção do povo judeu: Cada nova manifestação de Jeová na história não é redutível a uma manifestação anterior. A queda de Jerusalém exprime a cólera de Jeová contra seu povo, mas não é a mesma que Jeová exprimira no momento da queda de Samaria. Seus gestos são intervenções pessoais na História e só revelam seu sentido profundo para seu povo, o povo escolhido por Jeová. Assim, o acontecimento histórico ganha uma nova dimensão: torna-se uma teofania (ELIADE, 2012, p.97). 21 Objetos do Primeiro Templo - Nada se encontrou do Templo exceto a minúscula ponta de marfim de um cetro ou bastão usado em procissões, esculpida na forma de uma romã, que data do século VIII e onde está inscrito: “Pertencente à casa da santidade” (embora alguns aleguem que esse fragmento não seja autêntico). Mas Jeremias foi surpreendentemente preciso: os beleguins de Nabucodonosor estabeleceram sua sede no portão do Meio da cidade para organizar Judá, e seus nomes no Livro de Jeremias são confirmados por um texto descoberto na Babilônia. Nabucodonosor designou um ministro real, Gedaliah, como governador fantoche de Judá, mas como Jerusalém era só ruínas, ele se mudou para Mizpah, ao norte, aconselhado por Jeremias. Os judeus se rebelaram e mataram Gedaliah, e Jeremias teve de fugir para o Egito, onde sumiu da história (MONTEFIORI, 2013, p. 79). 41 Após a trágica destruição do Templo Sagrado, será no exílio da Babilônia que os judeus desenvolverão o sentimento de perda pela cidade santa e o imaginário judaico sobre Jerusalém se desenvolverá profundamente; assim, a geografia sagrada será definitivamente materializada. A perda da pátria equivalia a ruptura do elo com o céu, o qual tornava a vida suportável (Armstrong, 2000). A perda de Jerusalém para o povo judeu foi equivalente ao fechamento da janela celestial, pois o elo que unia a Terra e o Céu havia sido rompido. A crença de que o Templo era efetivamente o lugar da presença da divindade entre eles, permitia uma vida com expectativa de segurança e bênção, a destruição desse lugar, despedaçava a seu modelo de vida. Dessa tragédia cósmica para os judeus é possível analisar dois aspectos relevantes, o teológico e o nacional perceptível no Salmo de nº 137: “Como cantaremos a canção do SENHOR em terra estanha?” (Salmo 137.4). Essa pergunta expressa o dilema vivido pelos judeus no exílio babilônico, demonstra sua saudade pela pátria, mas também uma preocupação piedosa da perda do lugar adequado para cantar louvores ao Eterno, para oferecer o serviço sagrado a Deus. A partir do cativeiro Babilônico a religião judaica adquirirá uma nova configuração, pois os sacrifícios, os serviços sagrados, o cerimonial, as festas, tudo havia cessado com a catastrófica destruição do Templo. Será no exílio que os judeus adotarão o costume de levantar as mãos em direção de Jerusalém e louvarem a Deus, nesse contexto de profunda angústia, do interior sentimento de grande e incomparável perda, os judeus criarão uma esperança, uma relação de amor a Jerusalém como nunca. É consequência do cativeiro babilônico a construção do imaginário mítico judaico sobre Jerusalém, uma vez que a cidade e o Templo já não existiam mais. O cativeiro produziu um antídoto para retirar do povo o politeísmo, que foi definitivamente erradicado do povo de Israel. Podemos observar que, na Bíblia Hebraica, no livro dos Juízes, no de Samuel, no dos Reis, das Crônicas, está ali sempre presente e claro o culto politeísta. O povo israelita estava envolvido com Baal, com Astarote, com a idolatria desde a conquista de Canaã até o cativeiro. Até o rei Salomão se envolveu com o culto a 42 Moloque. Isso aconteceu muito no Reino de Israel. Encontramos nos dias do rei Acabe, que o profeta Elias enfrentou os adoradores de Baal e de Aserá, e no Reino do Sul, nos dias dos reis Amon e Manassés ambos da Casa de Davi, que cultuavam a Moloque e as divindades autóctones de Canaã. Essa era a prática cotidiana do povo. Na época dos Juízes era um ciclo vicioso, o povo estava sempre envolvido com a idolatria, mas depois do cativeiro isso não aconteceu mais. Podemos observar que no Novo Testamento dos cristãos não existe mais o problema do politeísmo. Jesus de Nazaré entrava na sinagoga e encontrava ali os fariseus e os saduceus praticando um culto bastante elaborado, com muitas cerimônias e formalidades, mas não havia idolatria, porque o povo fora mudado após o cativeiro. Cooperou com esse fenômeno religioso monoteísta judaico a Sinagoga, pois na Babilônia os judeus tiveram saudades do Templo e dos sacrifícios, e agora o que eles fariam? No livro bíblico do profeta hebreu Ezequiel encontra-se o primeiro embrião da Sinagoga (Ezequiel 8.1). Este pequeno núcleo seria posteriormente a Sinagoga, um local fundamental para o desenvolvimento e preservação da cultura religiosa dos judeus. Será no cativeiro que o povo judeu desenvolverá um grande apego e profundo amor por Jerusalém, esse sentimento está expresso no Salmo 137.5-6: Se eu esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza. Apegue-se-me a língua ao paladar, se me não lembrar de ti, se não preferir, Jerusalém à minha maior alegria (Salmo 137:5-6 (ARC). Esse Salmo foi escrito na Babilônia. Na primeira diáspora ou dispersão do cativeiro de Judá, os judeus fizeram um compromisso moral de nunca esquecer Jerusalém, qualquer que fosse a situação, qualquer que fosse o lugar onde eles se encontrassem. Jerusalém ficou arraigada na alma judaica de tal maneira que nada poderia apagar esse amor, esse anelo, essa ligação umbilical dos judeus 43 com Jerusalém, onde quer que eles estivessem, a cidade santa ficaria esculpida na alma dos judeus. O salmista declara: “Se eu me esquecer de ti, ó Jerusalém, esqueça-se a minha destra da sua destreza...”, isto é, que a mão direita fique semelhante à esquerda, sem nenhuma ação, fique sem movimento, “...esqueça-se a minha destra da sua destreza...” ou seja, resseque a mão direita – fique uma mão inválida. Diz ainda “... apegue-se-me a minha língua ao paladar se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém...”, que a língua fique grudada ao céu da boca, fique sem falar, fique totalmente mudo. Finalmente termina o versículo 6 dizendo: “...se me não preferir Jerusalém à minha maior alegria”, a maior alegria que o judeu pudesse sentir ou ter na vida, ele trocaria por Jerusalém: “...se me não lembrar de ti, se não preferir Jerusalém à minha maior alegria”, Jerusalém, o motivo de alegria e felicidade dos judeus; aqui está consolidado o imaginário judeu de santidade de Jerusalém; mesmo em ruínas ela já havia se transformado no que bem definiu Mircea Eliade: “a pedra angular da Terra”, “o umbigo da terra”: Um Universo origina se a partir do seu Centro, estende-se a partir de um ponto central que é como o seu “umbigo” (...) A tradição judaica é ainda mais explícita: “O Santíssimo criou o mundo como um embrião. Tal como o embrião cresce a partir do umbigo, do mesmo modo Deus começou a criar o mundo pelo umbigo e a partir daí difundiu-se em todas as direções”. E visto que o “umbigo da Terra”, o Centro do Mundo é a Terra Santa, Yoma afirma: “O mundo foi criado a começar por Sion. Rabbi bin Gorion disse do rochedo de Jerusalém que “ele se chama a Pedra angular da Terra, quer dizer, o umbigo da Terra, pois foi a partir dali que toda a Terra se desenvolveu”. Por outro lado, uma vez que a criação do homem é uma réplica da cosmogonia, daí resulta que o primeiro homem foi fabricado no “umbigo da Terra” (tradição mesopotâmica), no Centro do Mundo (tradição iraniana), no Paraíso situado no “umbigo da Terra” ou em Jerusalém (tradições judaicocristãs). E nem podia ser de outra forma, aliás, pois o Centro é justamente o lugar onde se efetua uma rotura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência. Uma criação implica superabundância de realidade, ou, em outras palavras, uma irrupção do sagrado no mundo (ELIADE, 2012, p. 44). 44 Após Jerusalém ficar em ruínas por aproximadamente meio século (587 – 538 a.C.) e Babilônia dominar por 70 anos (607 – 536 a.C.), o Império Caldeu ruiu, e os medos e persas assumiram o cetro mundial. No ano 536 a.C., segundo os historiadores Beroso, Ptolomeu e Josefo e nos dois últimos versículos do Livro das Crônicas (2º Crônicas 36.22-23), estes dois versículos estão repetidos no Livro de Esdras nos dois primeiros versículos (Esdras 1.1-2), está o Édito de Ciro, onde ele decretou o fim do cativeiro de Judá. O primeiro ano de Ciro corresponde ao ano 536 a.C.. Ciro, o primeiro Xá do Irã, o primeiro monarca da Pérsia, com poder para governar após ter conquistado a Babilônia, deu liberdade para os povos conquistados retornarem para suas antigas cidades, muitos judeus retornaram em pequenas levas para Jerusalém e iniciaram sua reconstrução, bem como a reconstrução do Templo. Segundo a Bíblia Hebraica são quatro grupos de judeus que retornam para Jerusalém: a primeira turma foi liderada pelo príncipe Sesbazar conforme a ordem de Ciro (Edras 1:1-11); a segunda, liderada por Zorobabel (Edras 2); a terceira pelo sacerdote e escriba Esdras (Edras 8) e a quarta por Neemias (Neemias 1). Nesse período do domínio dos persas é que aparece a primeira ameaça à santidade de Sião, com a construção do templo rival feito pelos samaritanos22 no Monte Gerizim, que posteriormente foi destruído pelos hasmoneus23, governantes sacerdotes da Judeia. Nos 350 anos seguintes, a terra dos judeus será governada pelo Império Persa e com a conquista de Alexandre o Grande, pelo Império Macedônico. Neste período será a política ideológica grega, ou seja, o Helenismo24, que será o principal adversário do monoteísmo ético judaico, pois essa poderosa 22 Samaritanos – esse termo, geralmente, aplica-se a uma seita israelita, cujos seguidores habitavam no território de Samaria, tendo o Monte Gerizim o seu santuário principal. Segundo a Bíblia Hebraica, os samaritanos são descendentes dos gentios com os israelitas que restaram do cativeiro assírio (2º Reis 17.24-34). 23 Hasmoneus (Macabeus ou Martelos) – denominação da família judaica que governou a Judeia entre 167 a 63 a.C. A família dos hasmoneus inciou com Matatias e seus cinco filhos que lutaram para purificar o Templo e expulsar as forças sírias da Palestina. 24 Helenismo – combinação complexa entre a cultura grega com a do oriente, o resultado dessa junção chamamos de helenismo. 45 ideologia universalista irá influenciar todas as culturas do mundo antigo, inclusive a judaica, que se dividirá em vários partidos ou seitas, sendo as duas mais importantes a dos Saduceus, que aceitavam o helenismo e a dos Fariseus, que repudiavam e combatiam o helenismo. Os Saduceus por muito tempo, governaram a Judeia, pois eram membros da elite agrária e comercial da Judeia até a chegada dos romanos em 66 a.C., que intervieram na Judeia para encerrar a guerra civil. Os romanos transformaram a Judeia em uma Província Romana, pondo fim ao reinado dos hasmoneus e o fim da sua independência. Sob o governo romano a Judeia foi inserida no mundo civilizado dos romanos, com seus ônus e bônus. Em 37 a.C. Jerusalém prosperava, os romanos apontavam o rei Herodes25 como governante da Judeia; conhecido como grande construtor e muito produtivo, iniciou uma auspiciosa política de magníficas construções. Dentre todas as construções feitas por Herodes, em Israel, a mais fascinante é o segundo Templo de Jerusalém, que começou a ser construído no ano 20 a.C. e só foi concluído 80 anos depois, quase 400 anos depois do templo de Salomão. Na edificação do Templo foram usados blocos de pedras gigantescas cuidadosamente manipuladas e cortadas. Foi uma das maiores construções religiosa, da antiguidade. Para não profanarem o lugar sagrado, foi construído sob orientação de sacerdotes. O historiador da época, Flávio Josefo, assim descreve esse episódio: ...Estas palavras de Herodes surpreenderam extraordinariamente a todos. A grandeza da ideia a fazia parecer inexequível. E mesmo quando não o fosse, eles temiam que depois de terem feito demolir o templo, não o pudessem reconstruir inteiramente e assim achavam a empresa muito perigosa. Mas ele tranquilizou-os, prometendo não tocar no templo antigo, antes de ter preparado tudo o que era necessário para a construção do novo e os fatos seguiram às palavras. Empregou mil carretas para trazer as pedras, reuniu todo o material, escolheu dez mil operários dos melhores e sobre eles constituiu mil sacrificadores, vestidos às suas custas, inteligentes e práticos nos 25 Herodes, o Grande (73 a 4 a.C.) - foi um rei edumeu que governou a Judeia entre 37 a 4 a.C. conhecido por seus monumentais projetos de construção em Jerusalém, Cesareia do Mar e outras partes da Palestina. Se destacou pela reconstrução do Segundo Templo dos judeus e pelo extraordinário porto na cidade de Cesareia. 46 trabalhos de pedreiro e carpinteiro. Depois que tudo estava assim preparado, mandou demolir os velhos alicerces, para serem reconstruídos e sobre eles ergueu-se o templo... (JOSEFO, p. 106-107, 1990 – vol. 2). O eminente professor Oskar Skarsaune descreve a cidade de Jerusalém e o Templo construído por Herodes profundamente influenciados pela arquitetura helênica: Herodes tentou até mesmo helenizar o aspecto exterior do Templo – e não encontrou forte oposição a isso. Nas palavras de Bickerman: “Ao tempo do Epífanes, o ginásio de Jerusalém constituía um perigo enorme para o judaísmo. Ao tempo de Filo, os judeus de Alexandria aglomeravam-se durante os jogos sem sacrificar parte alguma do judaísmo. O teatro, o anfiteatro e o hipódromo construídos em Jerusalém por Herodes receberam posteriormente a visita de judeus ortodoxos”. A Jerusalém de Jesus era uma cidade helenística e herodiana. Um visitante grego não se sentiria deslocado naquela arquitetura tipicamente helênica de ruas regulares e ângulos retos. A visão mais impressionante era o Templo que, exceto por seu tamanho grandioso, pouco diferia de outros templos helenísticos. (O Templo de Herodes tomou provavelmente como modelo o “Caesaraeon” erigido por Júlio César, em 48 a.C., em Alexandria). Se, porém, o visitante pudesse visitar o interior do Templo - o que não era possível -, teria diante de si o interior do velho santuário israelita praticamente intacto. Isto poderia ser tomado como símbolo da relação entre o judaísmo e o helenismo nos dias de Jesus (SKARSAUNE, 2001, p. 31-32). O Templo embelezado e ampliado por Herodes tinha a fachada frontal de mármore branco com enfeites em ouro e grandes paredes com pedras pesando de 60 a 80 toneladas perfeitamente encaixadas sem o uso de argamassa. Tal perícia ainda é visível no Muro das Lamentações, resquício da estrutura do segundo Templo. Na Judeia o Templo de Herodes era o ímã que atraía milhares de peregrinos, sem dúvida alguma o “Umbigo da Terra” estava ativo novamente, agora ampliado e embelezado, o verdadeiro Axis mundi, a ligação da Terra ao Céu; no imaginário judaico, o local que santificava toda a terra. A partir desse momento a religião judaica cresce em número tanto no sentido demográfico, como no grande número de prosélitos, tementes e simpatizantes. No eixo sagrado, todos os judeus estavam ligados emocionalmente, espiritualmente e 47 socialmente, a janela entre a Terra e o Céu estava restaurada e toda a terra na cosmovisão judaica seria abençoada pela presença do Eterno, diariamente cultuado no altar primordial em Jerusalém. 1.4.- A Segunda Destruição de Jerusalém (70 d.C.) No dia oito de setembro do ano 70 da era Cristã, mil anos depois de conquistada pelo rei Davi, trinta e sete anos após a morte de Jesus Cristo, setenta anos após a morte de Herodes, Jerusalém enfrentou a pior luta de sua história: romanos e judeus entraram em conflito quando os judeus tentam manter as posses de suas terras traumaticamente aos pés do monte sagrado. Foram seis meses de uma terrível e brutal guerra contra Roma, cujo resultado foi uma Jerusalém reduzida a ruínas, o magnífico Templo, o Axis mundi monoteísta dos judeus foi completamente destruído. O exército romano incendiou a cidade, mantendo em pé apenas o muro ocidental, denominado hoje Muro das Lamentações, legado do poderio e da ciência da guerra do império romano. O historiador Flávio Josefo assim resume a história da cidade de Jerusalém, a derrota dos judeus e a sua destruição: Os romanos queimaram o que restava da cidade e derribaram-lhe as muralhas. Assim terminou Jerusalém, no dia oito de setembro, no segundo ano do reinado de Vespasiano. Ela tinha sido antes tomada cinco vezes, por Azoqueu, rei do Egito, Antíoco Epifânio, rei da Síria, Pompeu, Herodes, com Sósio, e Nabucodonosor, que a destruiu, mil quatrocentos e sessenta e oito anos e seus meses depois da sua fundação. Os outros a haviam conservado, depois, de tomada; mas os romanos destruíram-na, então, pela segunda vez. Seu fundador foi um príncipe dos cananeus cognominado o Justo, pela sua piedade. Por primeiro consagrou a cidade de Deus, construindo-lhe um templo e mudou-lhe o nome de Solima para o de Jerusalém. Depois que Davi, rei dos judeus, expulsou os cananeus, lá instalou os da sua nação e quatrocentos e setenta e sete anos e seis meses depois, ela foi destruída pelos babilônios. Mil cento e setenta e nove anos passaramse, desde o tempo em que Davi reinou até quando Tito a tomou e destruiu, dois mil cento e setenta e sete anos depois da sua fundação. Assim vemos que nem a sua antiguidade nem suas riquezas, nem a fama difundida por todas as partes da terra, nem a glória que a santidade da religião lhe havia conquistado, puderam impedir-lhe a ruína e a destruição (JOSEFO, 1990, p. 191 – vol. 3). 48 Mesmo com a cidade destruída, o imaginário da cidade de Jerusalém já estava gestado e permaneceria no imaginário judeu como um lugar santo; mesmo perdendo um dos pilares da fé judaica, uma vez que, com a destruição do Templo, os sacrifícios de animais como forma de expiação dos pecados coletivos e individuais cessaram, desaparecendo para sempre; mesmo com as medidas antijudaicas tomadas pelos romanos depois dessa devastadora guerra (66-70 d.C.), sendo uma delas o humilhante tributo “fiscus judaicos”, no qual todo judeu era obrigado a pagar um imposto para o templo de Júpiter, similar ao imposto antes entregue com ações de graças ao Templo de Jerusalém; mesmo com a perda da cidade, da sua expressão cultural religiosa, as bases da fé monoteísta permanecerão, mas haverá uma reorganização e reinvenção da fé, especialmente porque os sacrifícios serão substituídos pela caridade e oração como expiação dos pecados. Uma nova geração de judeus, herdeiros da derrota e da destruição de Jerusalém e alguns remanescentes, como o Rabino Gamaliel que sobreviveu à grande tragédia do seu povo, e Yohanam Ben-Zakai, um rabino muito famoso. Esses rabinos foram para Tiberíades na Galileia e fundaram Academias Judaicas de onde governavam os judeus que ainda estavam na Palestina e que estavam tentando novamente a sua autonomia política. Esse período ficou conhecido na história judaica como “geração Iavne" ou “Período Iavne”. Iavne é o lugar onde se estabeleceu o Sanedrin (Sinédrio), um período que dura desde o ano 70 com a destruição de Jerusalém até o ano 135, com a derrota de Simon Bar Kochba26. A revolta de Simon Bar Kochba foi resultante da política romana para a região. O estopim da revolta judaica parece decorrer do seguinte contexto histórico: quando o imperador romano Adriano visitou o Oriente Médio, por volta do ano 125-130 d.C., prometeu restituir a Judeia aos judeus, mas por um motivo 26 Simon Bar Kochba – Guerreiro e líder judeu denominado por seus seguidores de Bar Kochba, “filho da Estrela”, uma referência a profecia de Balaão: “...uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro” (Números 24.17b). Seus inimigos o chamaram de Bar Kozeba, “filho da decepção”. Foi o líder da revolta judaica de 132 a 135. 49 que nem os judeus nem os historiadores sabem, não aceitou devolver a Judeia a eles. Nessa época, o rabino Akiva27 apresentou um guerreiro famoso chamado Bar Kochba, palavra aramaica que significa Filho da Estrela, como o Messias de Israel. Bar Kochba conseguiu algumas vitórias e foi bem sucedido em sua guerra e conseguiu desmantelar algumas fortalezas romanas. Assim, a província da Judeia era a mais problemática do Império romano, os judeus não se conformavam com a perda da autonomia. A revolta judaica foi sufocada no ano 135 d.C. pelos romanos. O Imperador romano Adriano, temendo outro levante, proibiu a entrada de judeus em Jerusalém sob pena de morte; os judeus que entrassem em Jerusalém seriam mortos. Três anos depois, segundo o costume romano, Jerusalém foi “sulcada por uma junta de bois”. Adriano mudou o nome da cidade de Jerusalém para Aélia Capitolina, e a Judeia foi rebatizada de Palestina, com o objetivo explícito de destruir a nacionalidade judaica. Portanto, os resultados da revolta dos judeus foram: o líder Bar Kochba foi capturado e esfolado vivo; os judeus da Judeia, dispersos; a cidade de Jerusalém rebatizada como Aélia Capitolina e reconstruída no modelo pagão de Roma e a região da Judeia rebatizada como Palestina. No entanto, embora seu centro religioso tenha sido destruído, o judaísmo sobreviveu a seu fatídico encontro com Roma. A pequena comunidade judaica remanescente recuperouse gradualmente, especialmente a da Galileia, reforçada de vez em quando pelos exilados. A vida institucional e comunal se renovou, os sacerdotes foram substituídos por rabinos e a sinagoga tornou-se o centro das comunidades judaicas. Da mesma forma, que os judeus reagiram na ocasião da destruição do primeiro Templo, construindo a geografia sagrada, desenvolvendo profundo amor por Jerusalém, o mesmo irá ocorrer, quando da destruição do segundo 27 Rabino Akiva (50-135) – Akiva bem Yossef, considerado como um dos maiores rabinos no judaísmo. Autoridade em assuntos da tradição judaica é citado no Talmud como “Guia dos Sábios”. 50 Templo. O imaginário judaico sobre Jerusalém iria permanecer vivo na cosmovisão da comunidade judaica através dos insistentes rabinos enaltecendo a santidade de Jerusalém muito tempo depois que a cidade fora profanada e o Templo destruído. Para eles, Jerusalém e o altar primordial ainda estavam presentes no centro do cosmo. Os rabinos segundo a tradição ensinavam que: “Existem dez graus de santidade: a terra de Israel é mais santa que as outras (...). As cidades muradas da terra de Israel são ainda mais santas (...) o interior das muralhas de Jerusalém é ainda mais santo, (...) O monte do Templo é ainda mais santo (...) o Pátio das Mulheres é ainda mais santo (...) o Pátio dos Israelitas é ainda mais santo (...) o Pátio dos Sacerdotes é ainda mais santo (...) o espaço que circunda o Altar é ainda mais santo (...) o Hekhal é ainda mais santo (...) o Devir é ainda mais santo, pois ali ninguém pode entrar, salvo o sumo sacerdote no Yom Kippur” (ARMSTRONG, 2000, p. 202). A teologia judaica irá criar um imaginário sobre Jerusalém de natureza ímpar, seus rabinos falavam da cidade de Jerusalém como se ela existisse ainda materialmente, todos sabiam que a cidade não existia mais, havia sido completamente destruída pelos romanos, mas os rabinos recusavam a negar essa realidade física, eles falavam de Jerusalém no presente, era uma projeção simbólica do Shekinah, pelo fato da presença de Deus ser eterna era digna de contemplação. Esse imaginário sagrado sobre a Jerusalém judaica se fortaleceu nos momentos mais dramáticos, pois após a destruição de Jerusalém no ano 70, ela será definitivamente substituída pelo modelo pagão da Aélia Capitolina a partir de 132, os judeus serão proibidos de entrar nela, todos esses elementos, tiveram efeito ao imaginário judaico sobre a cidade, no entanto, ao invés de diminuir sua devoção religiosa, ela aumentava ainda mais, o povo judeu passou a perceber sua cidade sagrada com uma transcendência inimaginável, com a perda e a proibição de entrar em Jerusalém, o povo judeu passou a contemplar a cidade como eterna, totalmente transcendente e espiritualizada, existente apenas no campo do imaginário judaico. 51 É esse poderoso imaginário judaico sobre Jerusalém, plenamente consolidado na fé monoteísta primordial, que será posteriormente absorvido pelas demais fés monoteístas que a seguiram, como uma herança indissociável de suas religiosidades. Portanto, mesmo não existindo mais a cidade de Jerusalém, nem o Templo, esse imaginário não se arrefecerá, mas se perpetuará eternamente, nesse sentido, Jerusalém estava presente no mundo mitológico, era transcendente, era eterna, como bem escreveu o professor Eliade Mircea: A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso, portanto in aeternum. A cidade de Jerusalém não era senão a reprodução aproximativa do modelo transcendente: podia ser maculada pelo homem, mas seu modelo era incorruptível, porque não estava implicado no Tempo (ELIADE, 2012, p. 57). 2.- A Construção do Imaginário Cristão sobre Jerusalém 52 Antes da destruição da cidade de Jerusalém no ano 70 d. C. pelo Império Romano, havia em Jerusalém um grupo de judeus cristãos. Nas escrituras sagradas dos cristãos no Novo Testamento, encontramos no livro dos Atos dos Apóstolos referência constante acerca desse grupo de judeus cristãos em Jerusalém: E crescia a palavra de Deus, e em Jerusalém se multiplicava muito o número dos discípulos, e grande parte dos sacerdotes obedecia a fé (At 6.7 - ARC). Também, no mesmo livro, há registro de uma crescente comunidade cristã gentílica se desenvolvendo totalmente fora de Jerusalém, aliás, é fora de Jerusalém que pela primeira vez os adeptos dessa nova comunidade religiosa foram chamados de cristãos: E sucedeu que todo um ano se reuniram naquela igreja e ensinaram muita gente. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos (Atos 11.26 - ARC). As comunidades cristãs gentílicas que se formaram fora de Israel não possuíam apego ao Templo de Jerusalém e nem pelos rituais judaicos como os de origem judaica, embora mantivessem contato e laços com a Igreja mãe de Jerusalém, aliás, a própria comunidade cristã judaica concordou com isso, conforme determinação da assembleia de Jerusalém28. A iniciante convivência entre judeus e os seguidores de Jesus no início da Igreja era tensa, com tendência de perseguição e hostilidade por parte das autoridades judaicas; mesmo assim os judeus seguidores de Jesus viviam na 28 Atos dos Apóstolos, 53 capítulo 15. mesma comunidade. Observa-se isso no livro dos Atos dos Apóstolos no Novo Testamento dos cristãos, pelo menos em dois episódios, que os judeus seguidores de Cristo cultuavam no Templo em Jerusalém como qualquer outro judeu: Pedro e João subiram juntos ao templo à hora da oração, a nona (Atos 3:1 - ARC); Então, Paulo, tomando consigo aqueles varões, entrou, no dia seguinte, no templo, já santificado com eles, anunciando serem já cumpridos os dias da purificação; e ficou ali até se oferecer em favor de cada um deles a oferta (Atos 21:26 - ARC). No artigo Povo Judeu, Pensamento Judaico I do Dr. Robert M. Seltzer, eminente professor de história na Pós-Graduação da Universidade de Nova York e diretor do Programa Interdisciplinar Hunter em Estudos Judaicos há a seguinte informação: Entre a morte de Jesus e a irrupção da revolta judaica contra os romanos o cristianismo desenvolveu-se de sua condição de uma seita entre os judeus a um movimento que consistia primariamente de nãojudeus. Os Atos dos Apóstolos no Novo Testamento indicam que nas décadas de 30 e 40 E.C. os seguidores de Jesus em Jerusalém continuaram a pregar no Templo, a observar as leis judaicas e a considerar-se membros do povo judeu. (fontes históricas, mencionamse grupos de judeus cristãos até o século IV.) (SELTZER, 1990, p. 212). 2.1.- Os Cristãos e a Destruição da Cidade de Jerusalém A separação entre judeus e cristãos cresceu vertiginosamente no período da revolta da Judeia contra Roma no ano 66 d.C., devido às constantes rebeliões e instabilidades na cidade de Jerusalém e às terríveis dissensões que 54 havia. Da inevitável guerra contra Roma (66- 70 d.C.) houve um distanciamento por parte dos seguidores de Cristo de seus irmãos judeus. Embora essa revolta não tenha tido a unanimidade dos habitantes da terra de Israel, pois havia muitos judeus que não queriam a guerra contra Roma, a postura cristã na guerra contra Roma afastou as duas comunidades. Os revoltosos compreenderam a recusa cristã em participar ativamente da revolta como um gesto de traição. A pequena comunidade judaica cristã de Jerusalém, crendo que a cidade seria destruída, com base nas profecias de Jesus29 retirou-se de Jerusalém indo para Péla, na Transjordânia. Nas palavras do padre católico Edward H. Flannery: A Grande Guerra (66-70) e a destruição do Templo em Jerusalém demonstraram um ponto crucial para as relações judeu-cristãs. Ao principiar a guerra, os cristãos saíram de Jerusalém e foram para Pelz, a fim de ali permanecerem durante todo o período. Para os judeus, essa deslealdade aparente foi irritante, e não deixou dúvida em seus espíritos de que o novo movimento se separara não somente da prática da Lei, como também nacionalismo judeu. Mas os Cristãos viam na destruição do Templo o cumprimento da profecia de Cristo e uma confirmação de sua crença de que o cetro passara de Israel para a Igreja. A nova ideia em ambos os lados serviu para aumentar as tensões (FLANNERY, 1968, p. 48). No ano 70 d.C., o general romano Tito com seus soldados destruíram Jerusalém. O seu majestoso templo, suas casas, seus palácios e suas muralhas foram demolidas, com exceção da parte da muralha situada a oeste da Cidade Alta, que se tornou fundamental para proteger o acampamento da Décima Legião Romana. O historiador judeu Flávio Josefo descreve esse final fatídico do confronto de Roma com Jerusalém, com as seguintes palavras: Depois que o exército romano, que jamais se cansaria de matar e de saquear, nada mais achou em que saciar o seu furor. Tito ordenou que a destruíssem, até os alicerces, com exceção de um pedaço de muro, que está do lado do Ocidente, onde ele tinha determinado construir 29 Lucas 19:41-44 e 55 21:20-24. uma fortaleza e as torres de Hípicos, de Fazael e de Mariana, porque, sobrepujando a todas as outras em altura e em magnificência, ele as queria conservar para mostrar à posteridade, quão grandes foram o valor e a ciência dos romanos na guerra, para que se apoderarem daquela poderosa cidade, que se tinha elevado a tal grau de glória. Essa ordem foi tão exatamente cumprida que não ficou sinal algum que mostrasse haver ali existido um centro tão populoso. Tal o fim de Jerusalém, cuja triste sorte só se pode atribuir à raiva daqueles revoltosos que atearam o fogo na guerra (JOSEFO, 1995, p. 192 – Vol. 3). Após a destruição do segundo Templo (partindo do princípio que durante as reformas efetuadas por Herodes, o grande, não cessaram os sacrifícios, ou Terceiro Templo partindo do princípio que as reformas foram profundas dando outro efeito estético ao Templo), segundo fontes dos historiadores cristãos Eusébio de Cesareia (264-340) e Epifânio de Chipre (315-403), um pequeno grupo de judeus cristãos retornou de Péla e se fixou no monte Sião. Eusébio de Cesareia registra que Simeão, filho de Cleófas, foi quem sucedeu Tiago como pastor dos Judeus cristãos em Jerusalém. Da destruição de Jerusalém no ano 70 até a revolta de Bar Kochba em 132, a igreja cristã em Jerusalém era judaica e seus bispos todos da circuncisão. Eusébio de Cesareia, declara: O primeiro, portanto, foi Tiago, chamado irmão de Nosso Senhor; após ele, o segundo foi Simeão; o terceiro, Justo; o quarto, Zaqueu; o quinto, Tobias; o sexto, Benjamin; o sétimo João; o oitavo, Matias; o nono, Filipe; o décimo, Sêneca; e décimo primeiro, Justo; o décimo segundo, Levi; o décimo terceiro, Efres; o décimo quarto, José; e, por fim, o décimo quinto, Judas. Esses são todos os bispos de Jerusalém que preencheram o período desde os apóstolos até a época acima mencionada, todos da circuncisão (EUSÉBIO, 1999, p. 123-124). . As relações judaico-cristãs a partir do ano 80 se deterioram muito, chegando ao total repúdio no ano 100 a partir do Sinedrium de Iavne30, período 30 Sinedrium de Iavne – Academia de sábios judeus instalada na cidade de Iavne. Foi na cidade de Iavne em Israel, por iniciativa do Rabi Yochanan Ben Zakai, líder do povo judeu na época da destruição do Segundo Templo em 70 56 em que nasceu um pensamento teológico que levará ao rompimento total com a inclusão de uma maldição pelos rabinos judeus na chamada dezoito bênçãos, a Oração contra caluniadores. Essa oração foi destinada aos minim, "judeus cristãos", bem como ao cristianismo, de acordo com citação do escritor Marcel Simon: Que os apóstatas não tenham nenhuma esperança e que o império do orgulho seja extirpado prontamente, em nossos dias. Que os nazarenos e os minim pereçam em um instante, que sejam apagados do livro da vida e não sejam contados entre os justos. Bendito sejas oh eterno, que humilhas os orgulhosos (SIMON, 1948, p. 235). o termo logo se referia não apenas aos judeus apóstatas, como também ao cristianismo de todas as nuanças, que era considerado a maior apostasia do judaísmo (SIMON, 1948, p. 238). O professor Oskar Skarsaune, em seu comentário sobre os rabinos e os minim, faz a seguinte observação: Temos evidências de que os rabinos levaram a sério o desafio dos crentes judeus, e que o enfrentaram. A primeira coisa que fizeram foi introduzir o chamado Birkat Haminim, a décima nona bênção, na oração do culto sinagogal. No Talmude babilônico, aparece a seguinte pergunta: “Por que a oração é conhecida como a oração das “dezoito” bênçãos se, na verdade, ela é constituída por dezenove bênçãos? R. Levi disse: a bênção referente ao minim foi posteriormente instituída em Yavne (Jâmnia) (...) Nossos rabinos ensinaram: Simeão, comerciante de algodão, organizou as dezoito bênçãos na presença do rabban Gamaliel em Yavne (Jâmnia). O rabban Gamaliel perguntou aos sábios: há alguém que conheça as palavras da bênção do minim? Samuel, o pequeno, levantou-se e pronunciou-as (...) O rab Judá disse então em nome do rab: se um leitor cometer um erro em qualquer uma das outras bênçãos, não será destituído; contudo, será ele destituído se errar na bênção do minim, porque suspeitamos que se trate de um min (TB Berakhot 28b - 29a)”. Isso aconteceu, provavelmente, entre 70 e 100 d.C. Não há dúvida de que os crentes judeus estão incluídos entre os minim (separatistas, hereges). Em um período relativamente posterior, parece que o significado de minim tornou-se mais vago, e para que fosse mantida a penalidade contra os crentes judeus, decidiud.C., que foi fundada a academia de Keren Iavne. A instituição foi uma das responsáveis pela preservação do estudo da Torá e, consequentemente, pela perpetuação do judaísmo. O Período Yavne é um período que dura desde o ano 70, até o ano 135 com o fim da chamada revolta de Simon Bar Kochba. 57 se dar, destaque no texto: “Que não haja esperança para os renegados (meshumadim), e que o reino arrogante (Roma?) seja em breve destruído em nossos dias, e os nazarenos (há notzrim) e os minim pereçam num segundo e sejam apagados do livro da vida, não encontrando lugar junto com os justos. Bendito sois vós, ó Senhor, que humilhais os arrogantes (De uma antiga versão do Amidah)” (SKARSAUNE, 2001, p. 199-200). No entanto, para o cristianismo, a separação final se dá mais tarde. A posição cristã em relação ao judaísmo a partir de Iavne vai paulatinamente se endurecendo até o ano 130, quando o renomado rabino Akiva, apresentou Bar Kochba como o Messias; para os cristãos da Palestina, ficava claro: os judeus não se converteriam, mas permaneceriam no seu orgulho e pecado. Essa percepção cristã se concretizou em 130 d.C. quando o imperador romano Públio Aélio Adriano decidiu construir uma nova cidade na Judeia e escolheu os escombros da cidade de Jerusalém para sobre eles construir uma bela metrópole helênica que levaria o seu nome e homenagearia os deuses do Capitólio, por isso a denominaria de Aélia Capitolina. A reação judaica foi violenta. Em 132 d.C. estourou uma grande rebelião nacional judaica denominada a Revolta de Bar Kochba. Foi uma tentativa dos judeus de recuperar sua soberania nacional, que resultou na criação de um encrave independente na Judeia, tendo Jerusalém como capital. Segundo o historiador Césare Cantu, em sua obra História Universal: ...os judeus insurgiram, sob a guia do filho da Estrela (Bar Kokhba), que se anunciava como Messias, o rei da vitória e da vingança. Os judeus reuniram-se em torno dele, proclamando-o astro de Jacó, cetro de Israel, o eleito destinado a realizar a predição involuntária de Balaão, a quebrar os cornos de Moab, a destruir os filhos de Set. No mesmo momento se sublevaram de todos os lados contra o domínio estrangeiro, com furor de escravo que despedaça seus grilhões (CANTU, 1965, p. 220). 58 Esse momento histórico foi muito pouco documentado nos escritos judaicos da época, diferentemente dos muitos dados e informações que encontramos sobre a guerra dos judeus contra os romanos e a destruição de Jerusalém (66-70). No entanto, escavações arqueológicas revelaram cartas escritas pelo próprio Bar Kochba, dirigidas aos seus comandantes na região do Mar Morto, além de descobertas de muitas redes de túneis subterrâneos contendo depósitos para armazenar mantimentos e até pequenas indústrias; como exemplo, temos a cidade subterrânea de Tel-Maresha, na região sudoeste de Jerusalém. Bar Kochba governou os judeus desse período com mão de ferro. As moedas de bronze e prata cunhadas nesse período apresentam símbolos e inscrições de caráter messiânico; tratou-se de um movimento contrário a outras confissões. Segundo o historiador Flannery: Durante a revolta (132-135), Bar Khoba massacrou os cristãos que recusaram negar Cristo” (FLANNERY, 1968, 53). Justino de Roma, o mártir, considerado o primeiro filósofo cristão, em sua obra I e II Apologias – Diálogo com Trifão, descreveu a perseguição de Bar Kchoba da seguinte maneira: Com efeito, na guerra dos judeus agora terminada, Bar Kókeba, o cabeça da rebelião, mandava submeter a terríveis torturas somente os cristãos, caso estes não negassem e blasfemassem Jesus Cristo (JUSTINO, 2013, p. 46). O professor Oskar Skarsaune, ao comentar a relação entre Bar Kchoba e os crentes judeus, traz o seguinte relato: No chamado Apocalipse de Pedro (possivelmente de autoria de um judeu-cristão, escrevendo de Israel ou do Egito por volta de 150 d.C.), as seguintes palavras são atribuídas a Jesus como explicação do significado da parábola da figueira (Lc 13.6.9): “Vocês não 59 compreenderam que a figueira é a casa de Israel? Na verdade, eu lhes digo que, quando seus ramos frutificarem no fim dos tempos, virão então falsos cristos (Mc 13.22), e despertarão a esperança (com palavras): “Eu sou o Cristo (Mt 24.5), que (agora) venho ao mundo”. E quando virem a iniquidade de seus atos (e dos falsos cristos), voltar-seão para esses cristo falsos e negarão àquele a quem nossos pais deram louvores, o primeiro Cristo a quem crucificaram e, por isso, pecaram demasiadamente. Esse enganador, porém, não é o Cristo. E quando ele for rejeitado, sua espada trará a morte, e serão muitos os mártires. Acontecerá então que os ramos da figueira, isto é, a casa de Israel, florescerá e muitos serão martirizados pelo poder de suas mãos: eles serão mortos e se tornarão mártires (texto etíope, cap 2). Esse texto, escrito poucos anos depois da revolta, é uma referência óbvia à perseguição de Bar Kokhba aos crentes judeus (SKARSAUNE, 2001, p. 203). A rebelião judaica durou aproximadamente três anos, sendo esmagada pelo exército romano, que numa tentativa de eliminar qualquer identidade entre o povo judeu e sua terra, construiu sobre a velha cidade de Jerusalém uma cidade helenizada, denominando-a Aélia Capitolina, e passaram a chamar o país de Palestina. Por ordens imperiais foi proibida a entrada de judeus na cidade e os judeus cristãos também foram expulsos da Aélia. Césare Cantu, declara: ... o objetivo explícito de Adriano em aniquilar a religião dos judeus e a dos cristãos, erigiu um templo aos ídolos no lugar do antigo templo judaico, outro sobre o túmulo de Jesus Cristo e, um terceiro dedicado a Adônis, no sítio em que estava o presépio. O nome de Jerusalém foi mudado no de Aélia Capitolina, e o antigo foi por tal forma alvidado que tendo um mártir, no tempo de Diocleciano, dito que nascera em Jerusalém, nem o governador da Palestina, nem nenhum dos assistentes soube onde estava situada essa cidade. (CANTU 1965, p. 221). Após a derrota de Bar Kchoba, muitas coisas mudaram na geopolítica da região, na religião e na relação judaico-cristã. O professor Oskar Skarsaune assim analisou esse momento histórico: Com o fracasso da revolta, os rabinos chegaram igualmente à conclusão de que Bar Kokhba fora um falso messias e por isso 60 mudaram-lhe o nome para Bar Koziba, ou “filho da mentira”. Todavia, o fato de os crentes judeus não terem participado da revolta e a perseguição de que foram vítimas por parte de Bar Kokhba parecem ter tido um efeito duradouro: a ruptura entre crentes judeus e seus compatriotas ampliou-se (SKARSAUNE, 2001, p. 204). A partir dessa nova situação política e histórica muitos cristãos interpretaram definitivamente que a antiga aliança havia passado, as provas materiais eram abundantes. O Templo, que era o símbolo da antiga fé, fora destruído, bem como a antiga cidade de Jerusalém; a insistência em rejeitar Cristo e aceitar um falso Messias pelos judeus, a escravidão, a dispersão e errância do povo judeu eram visíveis. A lembrança que os cristãos passaram a ter a respeito de Jerusalém era no sentido espiritual; os cristãos estavam olhando para a Jerusalém celeste e não a terrena, mesmo porque a terrena já não existia, fora arrasada e uma nova cidade fora construída a Aélia Capitolina. Assim, a Jerusalém terrena não tinha nenhum sentido ou destaque especial no imaginário cristão dessa época. Os cristãos passaram a olhar Jerusalém terrena, que fora terrivelmente destruída, como uma cidade culpada, pois rejeitara o Filho de Deus, o Cristo; além do mais, os cristãos não deveriam ter um lugar específico para adoração, já que no Evangelho de João há uma declaração de Jesus em resposta à pergunta da mulher samaritana, dizendo que não é nem em Samaria e nem em Jerusalém o local de adoração dos verdadeiros crentes: Disse-lhe a mulher: Senhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós dizeis que é em Jerusalém o lugar onde se deve adorar. Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim adorem (João 4:19-23 - ARC). Enquanto a Igreja Cristã crescia e se fortalecia, a cidade de Jerusalém não tinha nenhuma importância, a Jerusalém da época de Jesus não existia mais, e a nova cidade Aélia Capitolina construída de acordo com o padrão 61 clássico romano pagão, na forma de um quadrado, com quatro portões, um de cada lado da cidade, não tinha nada a ver com a fé cristã que se expandia no mundo antigo. Segundo a escritora Karen Armstrong: Jerusalém não tinha, pois, nenhuma posição especial no mapa dos cristãos. O principal prelado da Palestina era o bispo de Cesareia, não o de Aélia. Quando se instalou no país, em 234, Orígenes, o ilustre erudito cristão, decidiu fundar sua academia e sua biblioteca em Cesareia. Ao viajar pela Palestina, voltou-se basicamente para a topologia bíblica, como Melitão. Certamente não esperava viver uma experiência espiritual em meras localidades geográficas, por mais veneráveis que fossem suas implicações. Só os pagãos, pensava, procuravam Deus num santuário e acreditavam que as divindades moravam “num lugar específico”. Era interessante visitar um lugar como Belém, onde Jesus nasceu, e ver a manjedoura (que aparentemente se preservara), pois assim se comprovava a exatidão dos Evangelhos. Mas Orígenes era platônico. Achava que os cristãos deviam libertar-se do mundo físico e buscar o Deus inteiramente espiritual. Em vez de apegar-se a locais terrenos, deviam “buscar a cidade celestial” neles existente. (ARMSTRONG, 2000, p. 205). Embora os cristãos não estivessem ligados diretamente à cidade, alguns continuavam a visitar os lugares relacionados com a vida de Jesus. Visitavam Belém, onde Jesus nasceu, o Jardim das Oliveiras, onde muitas vezes orou, o rio Jordão, onde Jesus foi batizado, o Gólgota, onde foi crucificado e outros lugares. Segundo o historiador Eusébio havia uma igreja gentia em Aélia31. Nesse novo contexto, lentamente a liderança cristã das gerações seguintes passou a incorporar em sua crença a teologia da substituição, ou teologia da vingança como bem descreveu o historiador James Carroll: Os judeus do século I que seguiram Jesus haviam interpretado a destruição do Templo, e em seguida de Jerusalém, de um modo tipicamente judaico – como atos de Deus, ensinando lições às pessoas, purificando-as. Vimos um pouco disso anteriormente – como “cristãos” entenderam a crueldade romana perpetrada entre 70 e 135 como punição de Deus pela rejeição de Jesus. Se essa interpretação 31 CESAREIA, Eusébio de. História Eclesiástica, 62 CPAD, RJ. 1999, p.178. tivesse ocorrido apenas de modo profético, a percepção teria sido autocrítica, uma vez que de acordo com os textos da própria Igreja, no fim Jesus foi rejeitado tanto por seus discípulos mais próximos – todos o abandonaram, e Pedro o negou três vezes – quanto pelas autoridades judaicas. Mas a interpretação da destruição de Jerusalém pelos romanos como ato poderoso de Deus foi oferecida não de modo profético, e sim apocalíptico (lembre que o Livro do Apocalipse, ou da Revelação, foi escrito em meio à destruição romana e em reação a ela), com o julgamento lançado exclusivamente sobre outros – as forças de Satã, basicamente “os judeus”. Sim, os discípulos abandonaram Jesus quando ele mais precisava, mas isso foi totalmente perdoado pelo Jesus ressuscitado, que inclusive abraçou Pedro. O que não foi perdoado, e que foi usado para vingar os cristãos, foi a rejeição dos judeus. Essa rejeição foi punida com o que aconteceu com Jerusalém, lembrada pelo movimento de Jesus crescentemente gentio como uma cidade em que um Jesus cada vez mais não judeu era estranho. O destino trágico de Jerusalém começou a assumir um significado teológico – uma teologia da vingança. Assim, Lucas cita Jesus dizendo, “Quando virdes Jerusalém cercada de exércitos, sabei que está próxima a sua devastação... Porque serão dias de punição, nos quais deveria cumprir-se tudo o que foi escrito. Ai daquelas que estiverem grávidas e estiverem amamentando naqueles dias!” (CARROLL, 2013 - p. 286-287). 2.2. O Desenvolvimento da Doutrina da Substituição Há duas questões primordiais necessárias para análise neste momento para compreender a construção do imaginário cristão sobre Jerusalém: a primeira é quando iniciou a construção da teologia de que a Igreja Cristã substituiu o Israel (povo judeu). A segunda, quando essa teologia se institucionalizou e tornou-se oficial na igreja. Sabemos que a teologia da substituição foi construída dentro de dois contextos, primeiramente nos trezentos anos iniciais do cristianismo, quando ocorre a rejeição dos judeus às instituições cristãs e a igreja torna-se majoritariamente gentílica, período em que essa teologia se desenvolve relativamente no campo das ideias, e o segundo momento, quando a igreja torna-se parte do Estado Romano e impõe sua dominação católica como imposição cultural. 63 A convicção judaica de sua fé e tradição, sua prática proselitista no mundo gentio na época, sua rejeição e apologética contra a fé cristã e a perseguição dos judeus ao cristianismo primitivo como povo, desencadeou, por parte da Igreja Cristã, uma teologia apologética antijudaica. Sabemos que o antissemitismo estava presente no mundo pagão antes do advento do cristianismo. Justino de Roma, o mártir, escreveu o Diálogo com Trifão, um debate polêmico afirmando a messianidade de Jesus, fazendo uso do Antigo Testamento em contraste com contra-argumentos de uma versão fictícia do rabino Trifão. Segundo Flannery: São Justino foi o primeiro a expressar o tema de que as desgraças dos judeus são consequências do castigo divino pela morte de Cristo. Tendo feito referência à exclusão dos judeus de Jerusalém, suas terras desoladas e suas cidades incendiadas, assevera ao seu rabino que as “tribulações vos foram impostas justamente, pois assassinastes o Justo”. O apologista parece ter esquecido São Pedro e Santo Estevão que se referiram ao assassinato de Cristo num contexto de absolvição (Atos 2:36-39, 7:60) (FLANNERY, 1968, p. 56). A análise do professor Oskar Skarsaune sobre a leitura radical de Justino de Roma sobre essa temática da substituição do povo de Israel pela Igreja Cristã é muito relevante, senão vejamos: Observa-se no segundo século uma mudança drástica. Os cristãos de origem gentílica suplantavam em muito o número de cristãos de origem judaica. Aos poucos, esse fato veio a influenciar o conceito de igreja. Em Justino Mártir, a igreja é uma entidade essencialmente não-judaica. Ela é composta de gentios crentes e, em contrapartida a essa igreja de gentios, Justino coloca uma nação judaica constituída fundamentalmente por não-crentes. A fronteira entre crentes e nãocrentes tende a coincidir com a fronteira entre gentios e judeus. Sim, Justino sabe da existência de judeus crentes. Contudo, enquanto em Paulo os gentios são acrescentados ao verdadeiro Israel de crentes judeus compartilhando de sua herança, em Justino é o contrário: os poucos judeus crentes são acrescentados à igreja dos gentios para que compartilhem de sua herança. Essa mudança de perspectiva tem consequências muito amplas. Enquanto em Paulo os gentios compartilham das promessas dadas ao verdadeiro Israel, em Justino as promessas são transferidas do povo judeu para a igreja dos gentios. Essa igreja substitui o povo judeu. Ela assume a herança de Israel e, 64 ao mesmo tempo, deserda os judeus. Podemos exprimir essa mudança recorrendo à imagem usada por Paulo em Romanos 11. Em Paulo, lemos que Deus cortou alguns ramos da antiga oliveira de Israel, e em seu lugar enxertou alguns ramos selvagens – os gentios. Em Justino, Deus cortou a oliveira de Israel e em seu lugar plantou uma árvore inteiramente nova – a igreja dos gentios. Nessa árvore ele enxertou alguns poucos ramos da árvore velha – esses ramos são os judeus crentes32. No momento em que os cristãos passassem a raciocinar dessa forma, naturalmente colocariam a questão da eleição como algo que demandava uma decisão: ou o povo judeu era o herdeiro do legado veterotestamentário ou era a igreja (dos gentios) sua herdeira. Ninguém na antiguidade jamais formulou a ideia de que Deus pudesse ter dois povos: ou era a igreja ou eram os judeus. Dessa forma, os cristãos do segundo século nunca foram capazes de afirmar sua eleição em Cristo sem, ao mesmo tempo, atacar violentamente os judeus. Um fato parece emergir com muita clareza da análise acima: a redução numérica do elemento judaico-cristão dentro da igreja era parte da razão por que a igreja do segundo século passou a ver a si mesma como comunidade essencialmente gentia, uma entidade nãojudaica que se opunha ao povo judeu como tal (SKARSAUNE, 2001, p. 276-277). Justino de Roma, o mártir, descreve a destruição de Jerusalém como uma profecia: Escutai o que foi predito pelo Espírito profético sobre a devastação futura da terra dos judeus. As palavras foram ditas como que na pessoa daqueles que se maravilham com o acontecido. São as seguintes: “Sião ficou deserta, Jerusalém ficou solitária, e a casa, nosso santuário, foi profanada; a glória que nossos pais bendisseram tornou-se presa do fogo e todas as suas maravilhas se fundiram. A esse respeito, tu suportaste, te calaste e nos humilhaste muito. Que Jerusalém tenha ficado deserta, tal como fora predito, é coisa de que estais bem convencidos (JUSTINO, 2013, p. 62). É plausível que sementes antissemitas oriundas do paganismo amalgamaram-se na perspectiva cristã na construção da teologia da 32 Já que eu censurei Justino aqui por radicalizar um modelo paulino, alguém poderia perguntar, e com razão, se a perspectiva de Justino não fora de fato antecipada por outros textos do NT, como em Mateus. Em Mateus 8.11-12, por exemplo, temos a seguinte situação: gentios juntando-se aos patriarcas no reino, ao passo que os “súditos do reino” serão lançados para fora. Aqui não é lugar para uma argumentação detalhada a esse respeito. Gostaria apenas de propor o seguinte: não há dúvida alguma em Mateus de que alguns em Israel deverão ficar de fora do reino por causa de sua falta de fé, e muitos gentios serão convidados a entrar no reino. Todavia, isso ainda é basicamente compatível com a perspectiva de Paulo em Rm 11, e é possível defender a ideia de que Mateus combinou a comissão de evangelizar as nações (Mt 25.16-20) com um motivo implícito de restauração de Israel (SKARSAUNE, 2001, p. 276). 65 substituição, absorvendo elementos da herança pagã do antissemitismo com uma interpretação bíblica espiritualizada pelos pais da igreja. Segundo Flannery: No raiar do século II, Santo Inácio de Antioquia enviava suas cartas ardorosas às comunidades gentias para adverti-las contra a heresia, especialmente contra a judaização: “Não há necessidade de “práticas obsoletas” na esperança cristã, pois aqueles que judaízam são com pedras funerárias e sepulcros que têm simplesmente inscrições de nomes de homens”. “O cristianismo”, escreveu ele aos magnésios, “não crê no judaísmo, porém o judaísmo crê no cristianismo. Com esta última observação e a teoria da prefiguração de Barnabé, nasceu um tema fértil: de que a Igreja é, e sempre foi, a verdadeira Israel (FLANNERY, 1968, p. 51). No segundo século do cristianismo surgiram várias obras apologéticas e polêmicas antijudaicas. A primeira obra em latim foi o Adversus Iudaeos, datada de cerca de 200, escrito por Tertuliano, trata-se de uma das primeiras tentativas de negar sistematicamente o judaísmo e apresentar a igreja cristã como o verdadeiro Israel. A obra tem por objetivo apresentar uma refutação de forma escrita das acusações judaicas apresentadas no decorrer do debate, durante o qual os porta-vozes cristãos contra os judeus não podiam fazer-se ouvir. Tratase de discussão sobre a validade da Lei, o messianismo e divindade de Jesus, a rejeição dos judeus e a escolha dos pagãos cristianizados em seu lugar como o Povo de Deus. No decorrer dos séculos II sendo seu auge no século IV, outras obras antijudaicas apareceram no seio da igreja. A hipótese tradicional sustenta que o antijudaísmo destes primeiros pais da Igreja foi herdado da tradição cristã da exegese bíblica, pelo fato de ter apropriado da tradição judaica em muitos sentidos e ao mesmo tempo ter que rejeitar outros elementos como algo que perdera a validade na Nova Aliança. Os estudiosos modernos acreditam que o judaísmo pode ter sido uma religião missionária nos primeiros séculos da era cristã, portanto, a concorrência pelas lealdades religiosas das almas gentílicas pode ter alimentado o antijudaísmo. 66 Parece que, do ano 70 a 313, a teologia da substituição é gestada paulatinamente no seio da igreja, e com o novo Império Cristão, romanizado a partir do século III muitos cristãos se alegravam pela desgraça dos judeus e de Jerusalém, pois entendiam que a desgraça dos judeus era a materialização clara da rejeição de Deus, e o desaparecimento de Jerusalém era relacionado ao fato de ser uma cidade culpada. Orígenes33 declarou que a destruição das instituições judaicas constituía mais uma prova da veracidade dos Evangelhos: Porque a história, e tudo o que se vê hoje, mostra claramente que, desde o tempo de Jesus, não houve mais rei dos judeus que tivesse esse título, porque todas as realidades que eram o orgulho dos judeus, isto é, o que dizia respeito ao templo, ao altar, ao culto que aí se celebrava e às vestes do sumo sacerdote fora destruído. (ORÍGENES, 2012, p. 285-286). Em seu livro A Angústia dos Judeus, o padre Flannery declara: Mais sinistra era a emergência de uma doutrina ainda não completamente formulada, porém claramente enunciada em Santo Hipólito e Orígenes: que os judeus são um povo castigado por seu deicídio, que não pode esperar fugir às suas desgraças, que são a vontade de Deus. Esta tese formou as primeiras sementes de uma atitude que viria a dominar o pensamento cristão no século IV e contribuir consideravelmente daí em diante para a rota do antissemitismo (FLANNERY. 1968, p. 62). No século IV Santo Agostinho (354-430) também entendia que a maldição que os judeus invocaram sobre si no ato da condenação de Jesus foi ouvida por Deus, por isso os judeus estavam destinados a serem errantes. Carroll assim escreveu em seu livro: Desde Santo Agostinho, a teologia católica prescrevia permanentemente a ausência dos judeus do território judaico, sendo sua condição de “errantes” prova da verdade de que haviam pedido a 33 Orígenes (185-254) – um dos maiores teólogos e escritor do segundo século do cristianismo. Apologista, aliou a Filosofia ao cristianismo, foi mestre em Filosofia, Teologia e Bíblia. 67 condenação de Jesus, e a religião judaica havia espiritualizado essa ausência, transformando a dor no pulsar da devoção (CARROLL, 2013, p. 233). O padre Flannery, comentando sobre a posição dos judeus de um dos maiores doutores da Igreja, Santo Agostinho, declara: A contribuição original de Agostinho reside em sua teoria de que os judeus são um povo testemunha, construção teológica pela qual ele tenta resolver o dilema aparente da sobrevivência dos judeus como povo e seus crescentes infortúnios. Em sua opinião, o papel dos judeus é ainda providencial; são ao mesmo tempo testemunhas do demônio e da verdade cristã, testes iniquitatis et veritatis nostrae; subsistem “para a salvação da nação mas não para a sua própria”. Servem de testemunha por suas escrituras e servem de “bibliotecário escravo” da Igreja; e além disso prestam testemunho por sua dispersão e por suas desgraças. Tal como Caim, levam um sinal mas não deverão ser mortos (Gên. 4:15); assim como nas Escrituras, assim na realidade, o filho mais velho servirá ao mais moço (FLANNERY, 1968, p. 69). Podemos considerar que nos primeiros 300 anos de fé cristã, a construção de um imaginário cristão a respeito da cidade de Jerusalém oscilou entre fervorosos momentos de reverência pelos lugares associados a Jesus e ao crescente sentimento de ojeriza à Jerusalém judaica, especialmente pelo desejo dos judeus de reconstruir o templo destruído, por sua rejeição a Jesus, o Filho de Deus. A terrível e arrasadora destruição e depois a tentativa do imperador romano Adriano em apagar totalmente as raízes judaicas de Jerusalém, transformando-a em uma cidade helenizada, foram, para o imaginário cristão daquela época, provas cabais da rejeição de Deus, do fim do pacto mosaico, e a prova explícita da culpa de Jerusalém e dos judeus. Infelizmente esse imaginário fez parte de uma série de pequenas sementes que mais tarde germinariam perversamente em forma do terrível antissemitismo no universo cristão. O antissemitismo infelizmente está presente na teologia desenvolvida por alguns líderes cristãos dos primeiros séculos da história do cristianismo. Embora 68 houvesse hostilidade de ambos os lados, até o fim do século III as questões ainda estavam relativamente no campo ideológico, mas a partir da metade do século IV a doutrina da substituição sai do campo das ideias e vai para o campo prático político, materializando-se em decretos imperiais. 2.3.- O Triunfo do Cristianismo Essa nova realidade desponta com a vitória de Constantino, imperador do Ocidente, sobre Licínio, imperador das províncias romanas do Oriente, em 323 na ponte Mílvia, quando o império Romano passou a ter um único imperador, Constantino, devoto de Apolo, o deus do Sol. Ele foi benéfico com a Igreja, e parece que os cristãos atribuíram suas vitórias ao seu Deus, algo também considerado por Constantino, embora tenha sido batizado somente no leito de morte. Constantino torna a fé cristã religio licita, no entanto não impôs o cristianismo aos seus súditos, manteve o título de pontifex maximus e o culto sacrificial do Império permaneceu inalterado. Segundo seu biógrafo Eusébio de Cesareia, autor da obra Vita Constantini, Constantino, a caminho da invasão da Itália, no ano 312 d.C., teria tido uma visão repentina onde via uma cruz a brilhar contra o sol do meio-dia; o sol era de qualquer forma muito importante para Constantino, que tinha uma certa ligação com o deus Hélio, e com muita frequência fazia representação de si com o deus sol, mas a aparição da cruz era algo novo, e abaixo dessa visão havia as seguintes palavras: “Com este sinal vencerás”. Eusébio ainda declara que Cristo teria aparecido naquela noite a Constantino num sonho ordenando que inscrevesse nos escudos de suas tropas o monograma XP. Se esse fato foi real ou não ainda existem muitas discussões; o certo é que quando Constantino entrou em Roma, como vencedor no final do mês de outubro de 312, realmente suas tropas ostentavam o símbolo XP como insígnia nas campanhas do Oriente que fizeram dele o único imperador de todo Império Romano. 69 Constantino declarou a religião cristã como religio licita, através do Edito de Milão em 313; nessa época os cristãos não excediam um sétimo da população do Império, conforme informa o historiador Steven Runciman: Calcula-se que, na época do Edito de Milão em 313, quando foram concedidas à Igreja Cristã completa liberdade de culto e situação legalizada, o número de cristãos não excedesse um sétimo da população do Império (RUNCIMAN, 1978, p. 14). Com esse número e embora não possuíssem posições de destaque na sociedade (aristocracia) ou no exército, era sem dúvida o grupo religioso mais bem organizado. Todavia já existiam controvérsias e cismas no seio da Igreja Cristã, aliás, mal havia Constantino declarado o cristianismo religio licita, acirradas controvérsias surgiram no Egito e na Ásia, e logo mais outras grandes controvérsias doutrinárias iriam ameaçar a unidade e a estabilidade do seu Império. Em sua obra A Teocracia Bizantina, Steven Runciman informa: Constantino teve sorte em contar, como biógrafo e apologista, com Eusébio de Cesareia, um sábio que certamente conhecia esses textos e que fez deles a base de sua filosofia do Império Cristão. Inicialmente, era preciso justificar o Império Romano. Filon havia mostrado que Roma trouxera a paz e a unidade ao mundo, gozando, portanto, das graças de Deus. Orígenes acrescentara um argumento cristão, mostrando que Deus decidira enviar Seu Filho a este mundo no momento em que Roma oferecera essa unidade e essa paz, a fim de que o Evangelho pudesse chegar sem empecilhos a todos os povos. Segundo Eusébio, o triunfo da história havia ocorrido quando o Imperador romano acolhera a mensagem cristã. Ele agora era o rei sábio, imitação de Deus, cujos domínios poderiam então tornar-se a imitação do Céu. Eusébio simplesmente adotou as doutrinas de Diotógenes, Ecfantus e Plutarco, com modificações convenientes. O rei não é Deus entre os homens, mas sim o Vice-rei de Deus. Não é a encarnação do logos, mas mantém uma relação especial com o logos. Foi especialmente designado e é continuamente inspirado por Deus, sendo o amigo de Deus, o intérprete do Verbo divino. Seus olhos estão dirigidos para o alto, para receber as mensagens de Deus. Deve ser cercado pela reverência e pela glória adequadas à cópia terrena de Deus... (RUNCIMAN, 1978, p. 25-26). 70 Essa ideologia religiosa política do Império Romano de que o Rei, bem como o Império representava a cópia terrena do Reino dos Céus, no fundo está baseada na doutrina da substituição. O Império Romano do Oriente ou Império Bizantino tem como marco inicial de sua história o ano 395, no entanto, não há um acordo entre os historiadores. Eles dividem-se entre dois grandes eventos acerca do início desse Império Cristão Oriental, entre o reinado de Constantino, especialmente com a inauguração da magnífica cidade de Constantinopla e a divisão do Império Romano do Ocidente e Oriente no ano de 395, quando Teodósio dividiu o império em favor de seus dois filhos. Na verdade, o primeiro reino a tornar-se oficialmente cristão foi o da Armênia em 301, embora já houvesse começado a penetração do cristianismo na Armênia muito antes desse ano 301. A Armênia é o primeiro país do mundo que adotou o cristianismo como religião do Estado. O Império Romano adotou o cristianismo oficialmente em 380-392. Embora Constantino apoiasse a Igreja, em 361, um de seus substitutos, o imperador Juliano cognominado de “o apóstata”, um valoroso militar de grande talento, iniciou uma ofensiva para restaurar o paganismo estatal, mas sofreu inúmeras resistências e por fim morreu numa batalha contra os persas. Posteriormente, em 380, o cristianismo foi declarado religião oficial do Império Romano quando o imperador Teodósio I promulgou um edito, oficializando o cristianismo e autorizando o Estado a punir qualquer pessoa que seguisse outra forma de culto religioso. Em 392, no Edito de Constantinopla, foi estabelecida a proibição total ao culto pagão. Todavia, foi somente em 529 que Justiniano determinou o fechamento da escola de filosofia de Atenas, desferindo o derradeiro golpe sobre o paganismo. Com essa gradativa aliança do cristianismo com o antigo império romano a partir do século IV, de religião permitida para religião oficial, o cristianismo torna-se a argamassa de unidade dos cidadãos romanos. Ambrósio mostra em sua obra que Roma tornou-se cristã e o cristianismo tornou-se romano. Essa oficialização do cristianismo fez com que a situação política dos judeus e de 71 Jerusalém mudasse completamente. Em relação aos judeus, o cristianismo daquele período: ...os cristãos viam, nos judeus, como inimigos muito mais sérios que os pagãos. Os pagãos podiam ser convertidos, e muitos já o haviam sido, mas os judeus, cuja tradição de fidelidade às suas crenças era bem mais forte, constituíam uma parcela irremediavelmente alheia aos esforços cristãos. Os primeiros concílios adotam, em relação ao judaísmo, uma política extremamente intolerante, desrespeitando até mesmo os decretos imperiais que asseguravam aos judeus os mesmos direitos dos demais cidadãos. Entre as medidas antijudaicas, adotadas pelas autoridades, podemos ressaltar: a) proibição de converter novos elementos ao judaísmo, ou de fazer a ele retornar aqueles que se haviam convertido ao cristianismo; b) proibição de circuncidar escravos cristãos ou pagãos; c) proibição do casamento entre judeus e cristãos; d) proibição de ter ou comprar escravos cristãos; e) proibição de entrar em Jerusalém, exceto no dia de Tishá be Av (Dia da Destruição do Templo). A lei mais prejudicial aos judeus foi a de não poder possuir escravos cristãos. Isto significava o afastamento dos judeus de inúmeras profissões e atividades, nas quais eram necessários escravos, desde a agricultura até o comércio e a manufatura. Apesar do bom tratamento que os judeus davam a seus escravos, de acordo com a lei bíblica, a Igreja não poderia tolerar que “os descendentes daqueles que crucificaram o filho de Deus pudessem ser amos de escravos que foram libertados por Jesus Cristo”, como escreveu o bispo Eusébio no século IV. A medida que a Igreja ia assumindo maior importância, como principal estrutura de poder no Império, as leis antijudaicas iam-se tornando mais severas e o ódio aos judeus chegou a ser pregado por várias figuras importantes do cristianismo, como São João Crisóstomo, Santo Agostinho e São Jerônimo”. (BERIZIN, 1988, p. 129-130 – vol. 2). Em relação a Jerusalém, o imperador Constantino influenciado pela Igreja começou uma política de reconstruí-la com roupagem cristã. Constantino, totalmente ocupado com a construção de sua nova capital em Bizâncio e com as contínuas desavenças e controvérsias entre os líderes da Igreja, enviou, em 326, sua idosa e devota mãe para a Palestina, a imperatriz Flávia Júlia Helena Augusta (Santa Helena, 255-330); a tradição atribui a ela a descoberta da Santa Cruz ou Vera Cruz. Ela, provavelmente, tenha chegado durante o planejamento do Martyrium34, e as escavações da tumba (327), onde construíram a Igreja 34 Martyrium - mausoléu cristão primitivo construído para abrigar um mártir. 72 Anástasis35 - Igreja do Santo Sepulcro. Quando o imperador Adriano mandou construir o Templo Capitólio não aplanou as rochas onde foram cavados os sepulcros, mas apenas fez aterro para a base do seu Templo. Assim, a imperatriz Helena e o bispo de Jerusalém, Macário, convenceram-se de ter encontrado, debaixo do Capitólio, o sepulcro de Jesus. Além dessa construção, a imperatriz Helena, com o apoio de Constantino e dos bispos, doou várias igrejas em outros lugares santos e com o tempo foram construídos outros santuários, mosteiros e outras instituições religiosas. A maior e mais importante construção feita pelos cristãos em Jerusalém foi a “Anástasis”. Até 325 a cidade de Jerusalém continuava sendo uma pequena Diocese dependente do Arcebispado de Cesareia e este dependente do Patriarcado de Antioquia, no entanto, a partir de 325, com o Concílio de Niceia foi declarada a autonomia da Igreja de Jerusalém. A partir daí, Jerusalém transformou-se numa cidade sagrada para o império cristão, tornou-se elemento centralizador do cristianismo. No Concílio de Calcedônia, em 451, deu-se o título de Patriarca ao bispo de Jerusalém, a cidade então cresceu muito em importância eclesiástica. Com esse novo status o Patriarcado de Jerusalém desenvolveu-se rapidamente, adquirindo muito prestígio e aumentando o número de dioceses, igrejas, mosteiros e instituições religiosas sob sua autoridade. Embora o Concílio de Niceia, em 325, não tivesse como objetivo principal a autonomia da Igreja de Jerusalém, foi nesse Concílio Ecumênico que a cidade de Jerusalém recebeu privilégio eclesiástico especial, como declara o eminente professor de História da Universidade de Bolonha Dr. Giusepppe Alberigo: Nitidamente diferentemente em relação ao resto é, porém, o caso de Jerusalém, tema do c. 7, que reconhece à Cidade Santa um privilégio de honra especial, também ele de difícil esclarecimento quanto ao seu conteúdo preciso. Jerusalém era diocese sufragânea da sede metropolitana de Cesareia. É provável que o bispo da Cidade Santa, embora mantendo-se intacta a jurisdição provincial, devia gozar de direito de precedência (ainda que puramente honorífico) em relação ao metropolita – por exemplo, por ocasião dos sínodos realizados fora da 35 Anástasis – palavra grega que significa não a morte, ressurreição, nome dado a Igreja do Santo Sepulcro. 73 Palestina, especialmente nos concílios ecumênicos. Se se observam as prática conciliares entre os séculos IV e V, parece ser essa a explicação mais adequada. Quanto às circunstâncias históricas que levaram à sua formulação, não é descabido pensar numa ligação com dupla ordem de ideias: de um lado, a alta consideração de Constantino pelos lugares sagrados de Jerusalém, que o imperador privilegiará com uma política de construção monumental; por outro, a iniciativa político eclesiástica do bispo Macário, que se alinhou com Alexandre de Alexandria contra o seu metropolita Eusébio de Cesareia. Mesmo com os limites acenados, o c. 7 é o preâmbulo da futura criação do quarto patriarcado oriental, cujo reconhecimento se dará no concílio de Calcedônia (ALBERIGO, 1995, p. 39). A respeito do Concílio de Calcedônia, em 451, o professor Dr. Giuseppe Alberigo, declara: Já na sessão de 23 de outubro (CPG 9006), e depois na do dia 26 (CPG 9009), o concílio teve que se ocupar da questão dos direitos jurisdicionais da sede jerosolimitana. Juvenal acertou um acordo com Máximo de Antioquia que, embora restituindo à sede antioquena as duas províncias da Fenícia e da Arábia, adquiridas recentemente, confirmava a autoridade de Jerusalém sobre a Palestina. A sanção oficial da assembleia marcava a constituição formal do quarto patriarcado do Oriente (ALBERIGO, 1995, p. 98-99). Do ano 326 até o ano 451 a cidade de Jerusalém havia se transformado totalmente; de Aélia ou apenas Jerusalém, uma simples diocese de Cesareia, passara agora a chamar-se a Nova Jerusalém, um patriarcado, guardião dos lugares santos e Igreja mãe. De cidade culpada, para cidade do Senhor, a culpa recaíra sobre os judeus. A arquitetura da cidade foi totalmente mudada. Foram construídas muitas igrejas, mosteiros e outras instituições religiosas, e acima de todas as edificações, a majestosa Igreja Anástasis (Santo Sepulcro). A cidade tornara-se totalmente cristianizada e era visitada por todos os homens ilustres da cristandade. O local onde havia sido erigido o antigo templo judaico era um local desprezado pelos cristãos, símbolo da rejeição de Deus, local maldito, além de simbolizar o velho Israel. A Igreja Anástasis era o grande símbolo e o triunfo da 74 verdadeira fé, do Verus Israel. Mircea Eliade aponta sobre a profundidade religiosa desse imaginário cristão focado no Gólgota, onde se construiu Anástasis – Igreja do Santo Sepulcro: Para os cristãos, é o Gólgota que se encontra no cume da Montanha cósmica. Todas essas crenças exprimem um mesmo sentimento, que é profundamente religioso: “nosso mundo” é uma terra santa porque é o lugar mais próximo do Céu, porque daqui, dentre nós, pode-se atingir o Céu; nosso mundo é, pois, um “lugar alto”. Em termos cosmológicos, essa concepção religiosa traduz se pela projeção do território privilegiado que é o nosso no cume da montanha cósmica (ELIADE, 2012. p. 39-40). Assim, de cidade culpada e rejeitada pelos cristãos, Jerusalém transformou-se numa cidade santa para todo o mundo cristão. Ela tornou-se o local onde milhares de peregrinos realizavam as festas cristãs, os muitos serviços religiosos. Jerusalém até o ano 638 foi uma cidade totalmente cristã, o local mais santo para o cristianismo, o local onde estavam os lugares e objetos mais sagrados do mundo cristão, em especial a Igreja Anástasis, o túmulo vazio de Jesus Cristo, e a relíquia da verdadeira cruz, além de muitos outros lugares e objetos sagrados. Muitas outras igrejas foram construídas em louvor aos santos e a Virgem Maria, declarada pelo Concílio de Éfeso como a Theotókos “mãe de Deus”. Essa fantástica mudança dos cristãos a respeito de Jerusalém, de cidade culpada, para cidade santa, revela entre muitas coisas o poder de domínio da religião cristã, bem como sua nova ideologia e a criação de uma simbologia concreta através dos locais santos, um imaginário cristalizado nos locais sagrados, a geografia sagrada, e esse imaginário católico ideologizado na Teologia da Substituição vinha sendo gestado desde os séculos anteriores, como bem pontuou James Carroll: ... desde Santo Agostinho pelo menos, de que o banimento dos judeus de Jerusalém era desejado por Deus, sendo o exílio (“errância”) judaico 75 comprovação da verdade das acusações dos judeus contra Jesus. Essa tradição era essencial para a teologia católica romana da “substituição” – os judeus incrédulos pagando essas acusações com o castigo, de acordo com as promessas de Deus (CARROLL, 2013, p. 248). 2.4.- A Derrota Cristã Para os Persas Após aproximadamente 300 anos de domínio cristão e consolidação de seu imaginário sobre Jerusalém, o mesmo entrou em colapso com a invasão persa. A grande derrota cristã durante esse período se deu em 611, com a invasão persa, chefiada pelo general Shahrbaraz, sob as ordens do rei dos reis, Cosroés II. Em 611 o exército persa atinge Antioquia na Síria, e em 614 Jerusalém é atacada, a cidade resiste apenas três semanas. Alexandria e todo o Egito são conquistados em 618-619. Os exércitos persas avançam facilmente por todo o território do império cristão de Bizâncio e chegam a acampar nas margens do Bósforo. Na Palestina, os exércitos persas destroem as muralhas das cidades, os conventos e as igrejas cristãs, a estrutura de irrigação, além de massacrar a população e levar grande parte para o cativeiro. Jerusalém foi à ruína, sua indústria e seu comércio quase desapareceram, sua agricultura e seus campos de cereais foram abruptamente abandonados. Também no sentido religioso a devastação da região foi terrível, além de saquearem e queimarem as igrejas e mosteiros, e de massacrar milhares de cristãos, levaram a preciosa e sagrada relíquia da verdadeira cruz e outros objetos sagrados, como a lança que perfurara o lado de Jesus, a esponja e a taça de ônix que ele teria usado na última ceia. Todos esses objetos foram roubados e dados de presente para a rainha cristã nestoriana36 da Pérsia, Meryam (Shirin). 36 Igreja Cristã Nestoriana – A Antiga Igreja Católica e Apostólica (nestoriana: termo a ser evitado) pertence ao rito Caldeu e é uma das herdeiras da antiga Igreja da Pérsia... uma das primeiras igrejas cristãs e, segundo a tradição, 76 Segundo a tradição, a única igreja cristã desse período que não foi destruída foi a Igreja da Natividade em Belém, isso porque nesse templo há pinturas dos magos visitando o menino Jesus, e os magos eram da Pérsia, possivelmente os persas confundiram o templo como sendo algo ligado a eles, daí a sua não destruição; essa terrível destruição abalou o imaginário cristão. O historiador Dr. David Levering Lewis assim descreveu a queda da Jerusalém cristã para os persas: ...Firme ao lado de seu patriarca, a população de Jerusalém aguentou dois meses de cerco dos especialistas militares iranianos e seus auxiliares judeus antes de aceitar os termos de rendição de Shahrbaraz, que, de acordo com alguns relatos, foram muitos generosos. Pela primeira vez desde a destruição do Segundo Templo e de sua expulsão por Tito, em 70 EC, os judeus conquistaram o direito de ocupar Jerusalém. O resultado pavoroso foi tão sufocado sob hipérboles tendenciosas que hoje não se pode dizer muita coisa além do fato de que a cidade mais santa da cristandade se transformou em um ossuário de ruínas em brasa após vários dias de estupros, pilhagens e massacres. De acordo com uma estimativa, foram cavados túmulos para 33 mil corpos. Algumas fontes afirmam que foi infligido o castigo draconiano (um tanto incomum para os sassânidas) depois que os cristãos se ergueram contra a guarnição de ocupação, dizimando-a até o último homem, assim como todos os judeus que conseguiram encontrar. No local da grandiosa Igreja da Ressurreição – cujo tabernáculo abrigava a Cruz Verdadeira – restaram apenas escombros. Esse esplendor de arquitetura helenística foi um presente de Constantino, o Grande, que ordenou sua construção em 326, quatorze anos depois de a prática do cristianismo ter sido autorizado no Império... A selvageria persa se manifestou com a notícia de que o já idoso patriarca Zacarias tinha sido mandado para Ctesifonte como prisioneiro de guerra, junto à Cruz Verdadeira e à Esponja e à Lança Sagrada como troféus de vitória. Com a disseminação da horrível notícia da demolição da Igreja e da remoção da Cruz Verdadeira, greco-romanos de todos os lugares temia o fim das bênçãos divinas (LEWIS, 2010, p. 63-64). Para administrar a cidade os persas entregaram o governo aos judeus, seus aliados. Os judeus jamais esqueceram Jerusalém e sempre procuraram fundada pelo apóstolo São Tomé e Tadeu, os evangelizadores da Mesopotâmia... A Igreja Assiríaca reunia os cristãos do império sassânida, os quais tentavam sobreviver diante do masdeísmo e se afastar de Roma e Constantinopla, em constante guerra com os persas. Os cristãos assiríacos não participaram do Concílio de Éfeso (431), que condenou Nestório por crer na separação das duas naturezas divina e humana do Cristo e recusaram seus anátemas, constituindose em igreja independente (KHATLAB, Roberto. Arábes Cristãos? São Paulo – Editora Ave Maria, 2009, p. 95). 77 estar presentes nela, mas foram violentamente perseguidos, intolerados e espoliados pelos cristãos, pagavam caro para poder visitar e chorar sobre as ruínas do seu amado templo. Os judeus nunca se esqueceram de sua cidade amada e sofreram terrivelmente ao ver sua cidade sagrada sendo apossada pelo cristianismo, que desprezava a fé judaica e se considerava herdeira dela. Todavia, com o advento dos persas, logo ressurgiria a esperança de reconstruir o templo e santificar Jerusalém. A invasão persa de 614 contou com o auxílio dos judeus, animados pela esperança messiânica da libertação. Em gratidão pela ajuda judaica o governo persa concedeu o comando de Jerusalém para os judeus, nomeando como governador da cidade, o judeu Neemias. Esse período durou apenas dois anos, mas trouxe para os judeus grande euforia com a possibilidade de reconstruírem o templo. Os judeus refletiam: não haviam sido os persas que outrora decretaram a reconstrução do segundo templo? Não foi Neemias que reconstruíra os muros da cidade de Jerusalém e tornara-se o governador da cidade? Na percepção judaica estava repetindo-se a mesma história. No entanto, em 616, aconteceu uma mudança totalmente inesperada, os persas retornaram à cidade e assumiram o governo. Os conquistadores persas logo perceberam que para governar a cidade tinham que fazer concessões aos cristãos, que eram a maioria da sua população na época. Essa nova situação acabou com as aspirações e profundas esperanças dos judeus de novamente assumir e recuperar a sua amada cidade, mas serviu para alimentar ainda mais o ódio dos cristãos em relação aos judeus. Foi no ano de 622 que o imperador cristão Heráclio 37 conseguiu desferir uma grande ofensiva contra os invasores persas derrotando-os totalmente. O historiador francês Jacques Heers, em sua obra, escreve a respeito da reação dos bizantinos: 37 Flávio Heráclio Augusto (575-641) – Conhecido como Heráclio, o jovem, foi imperador do Império Cristão de Bizâncio, no seu reinado, ocorreu a grande guerra contra o Império Sassânida dos Persas (611- 627), que acabou enfraquecendo ambos os impérios, que não teve forças para resistir o avanço islâmico de 632. 78 A reação de Heráclio, violenta, assume o aspecto de uma guerra religiosa. O imperador afirma-se como o campeão da cristandade: exige de todas as igrejas do império o sacrifício de suas riquezas convertidas em lingotes de ouro e de prata. Após duas campanhas difíceis na Armênia e na zona próxima do Cáucaso, as tropas bizantinas infligem aos persas, em 627, nas margens do Tigre, perto da antiga Nínive, uma derrota decisiva. Pouco depois, perseguem seu rei conquistador, Cosroés, e reclamam a paz. Todas as províncias perdidas dez anos antes retornam ao império. Heráclio conduz solenemente a relíquia da Santa Cruz, de Ctesífon a Jerusalém, e aí celebra, em meio à alegria geral, o triunfo dos cristãos. Assume então, oficialmente, o título de basileus até essa data usado somente pelo rei da Pérsia. De fato, desde há muito tempo, os gregos assim designavam seu imperador; mas interpreta-se frequentemente, a decisão de Heráclio com o desejo de melhor assinalar a vitória sobre os persas e o sinal de uma ruptura mais nítida ainda com as tradições da antiga Roma. O triunfo de Heráclio foi, em seguida, celebrado em Constantinopla mesmo; a massa popular vem a Santa Sofia escutar a longa narração de seus feitos de guerra, prontamente cantados pelos poetas e os cronistas... (HEERS, 1977, p. 255). Para apaziguar os cristãos que estavam ressentidos com os judeus por estes colaborarem com os persas, Heráclio baniu os judeus de Jerusalém. Para os cristãos, novamente a religião de Cristo triunfara. Karen Armstrong declara: A experiência de viver em Jerusalém levara os cristãos a desenvolver uma geografia sagrada com base no tipo de mitologia que antes desprezavam. Agora viam Jerusalém como o centro do mundo, a fonte da vida, da fertilidade, da salvação e da luz. Agora que morreram em tão grande número por sua cidade, amavam-na como nunca. A restituição de Jerusalém ao imperador cristão parecia um ato divino (ARMSTRONG, 2000, p. 254). O triunfo dos cristãos, porém, teve curta duração: em 634, os árabes atacavam as fronteiras do Império Cristão de Bizâncio, e uma nova realidade estava por surgir. No entanto, o imaginário cristão já estava consolidado e passara da ojeriza de uma Jerusalém amaldiçoada para o mesmo imaginário primordial judaico de cidade santa, santificadora do cosmo, sendo simbolizada e materializada em todo mundo cristão através das belas basílicas e catedrais: 79 A basílica cristã, e mais tarde a catedral, retoma e prolonga todos esses simbolismos. Por um lado, a igreja é concebida como imitação da Jerusalém celeste, e isto desde a antiguidade cristã; por outro lado, reproduz igualmente o Paraíso ou o mundo celeste. Mas a estrutura cosmológica do edifício sagrado persiste ainda na consciência da cristandade: é evidente, por exemplo, na igreja bizantina. “As quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo. O interior da igreja é o Universo. O altar é o paraíso, que foi transferido para o oriente. A porta imperial do altar denomina se também porta do paraíso. Na semana da Páscoa permanece aberta durante todo o serviço divino; o sentido desse costume expressa se claramente no cânon pascal: 'Cristo ressurgiu do túmulo e abriu nos as portas do paraíso.’ O ocidente, ao contrário, é a região da escuridão, da tristeza, da morte, a região das moradas eternas dos mortos, que aguardam a ressurreição do juízo final. O meio do edifício da igreja representa a Terra. Segundo a representação de Kosmas indikopleustes, a Terra é quadrada e limitada por quatro paredes, rematadas por uma cúpula. As quatro partes do interior da igreja simbolizam as quatro direções do mundo”. Como Imagem do Mundo, a igreja bizantina encarna e santifica o Mundo (ELIADE, 2012, p. 57 - 58). Portanto, o imaginário cristão ao se cristalizar deslocou o altar primordial, o centro sagrado do imaginário judaico, que situava no monte do Templo, transferindo-o para o Gólgota, a Anástasis - Catedral do Santo Sepulcro. Para o imaginário católico, a Igreja de Cristo é o Verus Israel, toda tradição judaica da antiga Jerusalém foi apropriada e eclipsada pelo imaginário religioso católico. 80 3.- A Jerusalém Islâmica Entre oito a nove anos após a vitória do imperador cristão Heráclio sobre os persas e sua triunfal entrada em Jerusalém com a relíquia da verdadeira cruz, que posteriormente foi levada para a capital do Império em Constantinopla, o exército árabe, sob a bandeira do islamismo38, avançou por toda a Palestina: Após a morte de Abu Bakr, o califa Omar, um dos mais austeros e fervorosos Companheiros do Profeta, deu continuidade às campanhas militares na Pérsia e em Bizâncio. Os muçulmanos começavam a enriquecer, porém Omar levava a mesma vida simples de Maomé. Usava sempre uma túnica de lã vermelha e remendada; carregava sua própria bagagem, como qualquer soldado, e exortava seus oficiais a imitá-lo. Assim, o islamismo chegou à Palestina como uma fé vigorosa, preservando todo o ardor de seu entusiasmo inicial. Já o imperador bizantino Heráclio se malquistara com muitos de seus súditos e, deprimido, debatendo-se numa crise espiritual, temia que a invasão islâmica fosse um sinal da desaprovação divina. As forças árabes avançaram pela Palestina. Em 20 de agosto de 636, derrotaram as tropas de Bizâncio na batalha de Jarmuc. No meio do combate a tribo de Gassan desertou das fileiras imperiais e se uniu a seus compatriotas, que, com o apoio dos judeus, começaram a subjugar o restante do país. Heráclio fugiu, detendo-se rapidamente em Jerusalém para apanhar a Verdadeira Cruz. Em julho de 637, o exército do Islã acampou junto às muralhas da Cidade Santa (ARMSTRONG, 2000, p. 267). 38 Islamismo vem da palavra árabe Islam que também significa submissão, o ato de sujeição existencial a Alá (Alá era uma antiga divindade da tribo dos coraixitas, tribo do fundador do islamismo) – atualmente a palavra Alá é utilizada para Deus na língua árabe. Islâmico, muçulmano ou maometano são palavras sinônimas para designar os seguidores do Islã. 81 Em 638-9 o patriarca de Jerusalém Sofrônio39 organizou a defesa da cidade com o apoio dos soldados bizantinos que resistiram a um cerco de dois anos e só abriram as portas de Jerusalém após o tratado que assegurava aos cristãos algumas garantias religiosas. Segundo Montefiori: Na Palestina, só Jerusalém resistia, sob o comando do patriarca Sofrônio, intelectual grego que a louvava em sua poesia, chamando-a de “Sião, radiante Sião do Universo”. Ele mal podia acreditar no desastre que atingira os cristãos. Pregando na igreja do Sepulcro, denunciou os pecados dos cristãos e as atrocidades dos árabes, a quem chamava de sarakenoi (palavra grega para sarracenos): “De onde vêm estas guerras contra nós? De onde vêm as múltiplas invasões bárbaras? A escória dos sarracenos infiéis capturou Belém. Os sarracenos se levantaram contra nós, com impulso bestial, por causa dos nossos pecados. É hora de nos corrigirmos”. Tarde demais. Os árabes convergiram sobre a cidade que chamavam de Ilya (Aélia, o nome romano). O primeiro de seus comandantes a cercar Jerusalém foi Amr ibn al-As, que, depois de Khalid, era seu melhor general e outro irreprimível aventureiro exibicionista da nobreza de Meca. Amr, como os demais líderes árabes, conhecia muito bem a área: até possuía terras nas proximidades e visitara Jerusalém na juventude. Mas aquela luta não visava apenas o butim. “Aproxima-se a Hora”, diz o Alcorão. O fanatismo militante dos primeiros crentes muçulmanos era atiçado pela crença no Julgamento Final. O Alcorão não declarava especificamente, mas eles sabiam, pelos profetas judaico-cristãos, que o julgamento teria de ocorrer em Jerusalém. Se a Hora se aproximava, então precisavam de Jerusalém. Khalid e os outros generais juntaram-se a Amr em volta das muralhas, mas os exércitos árabes talvez fossem pequenos demais para invadir e não parece ter havido muita luta. Sofrônio simplesmente não aceitou render-se sem uma garantia de tolerância dada pelo próprio Comandante dos Fiéis. Amr sugeriu que o problema fosse resolvido fazendo Khalid passar pelo comandante, mas Khalid foi reconhecido, e por isso Omar foi chamado de Meca. O comandante inspecionou o restante dos exércitos árabes em Jabya e Golã, e os hierosolimitas provavelmente tiveram um encontro com ele para negociar a rendição. Os cristãos monofisistas, maioria na Palestina, odiavam os bizantinos, e parece que os primeiros crentes muçulmanos ficaram felizes de permitir liberdade de culto a seus camaradas monoteístas. Segundo o Alcorão, Omar ofereceu a Jerusalém um Acordo – dhimma – a Capitulação, que prometia tolerância religiosa aos cristãos em troca do pagamento do imposto de submissão, ou jizya. Fechado o acordo, Omar partiu para Jerusalém, um gigante em mantos esfarrapados e remendados, montado numa mula, acompanhado de apenas um criado (MONTEFIORI, 2013, p. 232-233). 39 Sofrônio (560-638) – Foi um monge sírio, fervoroso e famoso pela extrema dedicação a sua igreja. Escritor prolífico foi um importante Patriarca da Igreja de Jerusalém entre os anos 633-638, durante sua liderança a cidade de Jerusalém foi conquistada pelos árabes muçulmanos. É venerado como santo pela Igreja Católica Ortodoxa. 82 Segundo a tradição40, o patriarca teria declarado que só entregaria a cidade santa para o califa Omar41. Omar foi o segundo califa, um dos primeiros companheiros de Maomé42 e seguia o modelo de vida de seu líder. Maomé não havia determinado a forma de sucessão, assim, seguindo as tradições, em que a escolha do líder do clã era em função da experiência, sabedoria e prestígio, escolheram Abu Bakr43 para ser o primeiro califa. Embora tenham ocorrido algumas reações, não houve uma declarada oposição à indicação. Com a morte de Abu Bakr, assumiu o califado Omar ibn al-Khattab. Durante seu período, o império expandiu-se com as conquistas do Iraque, Palestina, Pérsia, Síria e Egito. O califa Omar foi assassinado por um desafeto seu. O atendimento do pedido do patriarca Sofrônio pelo califa Omar revela a importância da cidade de Jerusalém para o islã primitivo, pois Omar, naquele momento, se encontrava em Meca, mas viajou para Jerusalém para receber a cidade. Ainda segundo a tradição, o patriarca bizantino Sofrônio, com sua comitiva vestida luxuosamente, foi se encontrar com Omar, que vivia simplesmente, se cobria com uma túnica remendada de lã vermelha. Alguns 40 Segundo a tradição porque: Os primórdios da história do Islã, incluindo a rendição de Jerusalém, são misteriosos e contestados. Os mais destacados historiadores islâmicos escreveram um ou dois séculos depois, e longe de Jerusalém ou Meca. Ibn Ishaq, o primeiro biógrafo de Maomé, escrevem em Bagdá, e morreu em 770; al-Tabari, alBaladhuri e Al-Yaqubi viveram todos na Pérsia ou no Iraque do fim do século IX (MONTEFIORI, 2013, p. 231). 41 Umar Ibn Al Khattab (586-644) – Foi escolhido como sucessor de Maomé, governou a comunidade muçulmana como segundo califa entre os anos 634 a 644, quando morreu assassinado. 42 Abú al-Qãsim Muhammad ibn ´Abd Allãh al-Mattaib ibn Hãshim (570-632) – Muhammad em português Maomé, era da Tribo dos coraixitas, influente tribo árabe. Maomé nasceu em 570 d.C. e começou ter experiências religiosas a partir de 610, quando tinha 40 anos de idade. Sua religião cresceu e ele com seus discípulos foram expulsos de Meca para Medina em 622. Essa fuga é conhecida com a Hégira (fuga de Maomé de Meca para Medina – 622 d.C.) essa data inicia a contagem do Calendário Islâmico. Em 632 Maomé morreu e sua religião já havia convertido toda a Arábia. “Era um visionário edificante, que pregava a submissão – islã – ao Deus único em troca de salvação universal, dos valores de igualdade e justiça e das virtudes da vida pura, com rituais de fácil apreensão e regras para a vida e a morte. Ele recebia com prazer os convertidos. Tinha reverências pela Bíblia e via Davi, Salomão, Moisés e Jesus como profetas, mas sua revelação substituía as anteriores. De grande importância para o destino de Jerusalém foi o fato de o Profeta ressaltar a vinda do Apocalipse – que chamava de Julgamento, Último Dia ou simplesmente a Hora -, e essa urgência inspirou o dinamismo do Islã dos primeiros tempos. “O conhecimento disso só Deus tem”, diz o Alcorão, “mas o que te fará saber que a Hora está próxima! Todas as Escrituras judaico-cristãs diziam que isso só podia ocorrer em Jerusalém” (MONTEFIORI, 2013, p. 228). 43 Abu Bakr – Abdu Ka’aba (570 – 634) – Uns dos primeiros companheiros e sogro de Maomé. Era um rico e respeitado comerciante mecano. Com a morte de Maomé em 632, tornou-se o primeiro Califa, foi o consolidador do islamismo na Arábia. 83 observadores cristãos da época se chocaram ao ver a cena e criticaram Omar como se ele fosse hipócrita; outros admiraram que um líder muçulmano pudesse estar mais próximo do ideal de pobreza santa que eles próprios pregavam. Omar, como um político hábil, sabedor da existência da maioria cristã que habitava em Jerusalém, procurou ser benevolente com seus moradores. Segundo Montefiori: Quando viu Jerusalém do monte Scopus, Omar ordenou a seu muezim que conclamasse à oração. Depois de rezar, vestiu os mantos brancos do peregrino, montou num camelo branco e cavalgou ao encontro de Sofrônio. Os hierarcas bizantinos esperavam o conquistador, cuja simplicidade no vestir contrastava com as túnicas cravejadas de joias daqueles... Sofrônio deu de presente a Omar as chaves da Cidade Santa (MONTEFIORI, 2013, p. 233). Entrando em Jerusalém, os muçulmanos ficaram admirados com o desprezo dos católicos em relação ao monte do templo; segundo o historiador muçulmano Majir al-Din, a sujeira era tamanha: ...que se espalhava então por todo o nobre santuário, acumulara-se nos degraus das portas de tal modo que ganhava as ruas e quase alcançava o teto do umbral (STRANGE, 1965, p. 141-142). O monte do Templo havia sido abandonado desde que o imperador Juliano44, o Apóstata, havia tentado reconstruir o Templo para os judeus; a partir de então o local foi usado pelos habitantes bizantinos como depósito de lixo. Para o imaginário católico, crente na Doutrina ou Teologia da Substituição, transformar o local do templo judeu em um depósito de lixo foi a forma explícita de demonstrar a rejeição de Deus àqueles que haviam matado seu Filho Jesus Cristo, e a definitiva passagem do Velho Israel para o Novo Israel, a substituição 44 Flávio Cláudio Juliano (331-363) – Foi o último imperador pagão de Roma, por isso ficou cognominado de “o apóstata”. Reinou do ano 361 a 363 era um intelectual que pretendia harmonizar a cultura e a justiça com os valores do paganismo de Roma. Para afrontar os cristãos, prometeu reconstruir o Templo dos judeus em Jerusalém, mas morreu na expedição contra os persas em 363, não conseguindo materializar seu propósito com os judeus. 84 plena do Povo Judeu (Velha Aliança) para a Igreja Cristã (Nova Aliança), assim, os cristãos construíram a magnífica Igreja Anástasis e outras belas igrejas como a prova do favor de Deus, com seu novo Israel, a Igreja Católica. Esse era o imaginário cristão sobre Jerusalém na época, fervorosamente defendido por seu patriarca Sofrônio. Segundo o historiador Dr. David Levering Lewis, coube ao patriarca Sofrônio essa terrível decisão de rendição: Ser levado a abrir o Portão do Arrependimento para Omar era equivalente, na cabeça de Sofrônio, a estender o tapete vermelho para o Anticristo. Eles percorreram lado a lado as ruas estreitas, de calçadas com seixos, do Jardim do Getsêmani até a colina deserta e coberta de esterco, conhecida como Monte do Templo, acima da Igreja da Ressurreição. Era ali que tinha existido o que Omar chamou de “mesquita de Davi”, o Segundo Templo destruído por Tito. Para ofender os judeus, os cristãos usavam o Monte do Templo como depósito de lixo. Em uma noite como nenhuma outra em sua vida, Maomé tinha montado um cavalo alado, sob as instruções de Gabriel, e ido de Meca a Jerusalém. Lá, ele ascendeu de uma pedra no Monte do Templo para o Paraíso, a fim de se encontrar com figuras do Antigo e Novo Testamento e receber mais instruções de Alá. Dizem que Omar ficou encolerizado com a profanação do Monte do Templo e ordenou que camponeses cristãos fossem reunidos para limpar o lugar. Enquanto Omar caminhava pensativo pelas ruínas do Templo de Salomão, diz a lenda que o patriarca finalmente perdeu a compostura e resmungou: “Contemple a abominação do desolamento citada pelo profeta Daniel, daquele que está no Local Sagrado”. Apócrifa ou não, a história deve ter sido um reflexo preciso da indignação do patriarca e de sua comunidade enquanto o conquistador reivindicava esse pedaço negligenciado de terreno para o islã. Omar ordenou que uma pequena mesquita de madeira fosse erguida até que uma estrutura adequada pudesse ser construída... (LEWIS, 2010, p. 81). Reza a tradição, que os muçulmanos, quando chegaram em Jerusalém e se depararam com esse desprezo cristão do Monte do Templo, passaram a chamar a Igreja da Ressurreição Anástasis de al-qumamah “o monturo”, como uma punição contra o comportamento ímpio dos católicos em transformar o Monte do Templo em uma lixeira. O escritor e jornalista Simon Sebag Montefiori descreve o interesse de Omar em relação ao local do Templo: 85 ...Omar sabia que Maomé tinha venerado Davi e Salomão. “Leve-me ao santuário de Davi”, ordenou a Sofrônio. Ele e os guerreiros entraram no monte do Templo, provavelmente pelo portão dos Profetas no sul, e encontraram o lugar contaminado por “um monte de excrementos deixados pelos cristãos para insultar os judeus”. Omar pediu para ver o Santo dos Santos. Um judeu convertido, Kaab al-Ahbar, conhecido como Rabino, respondeu que se o comandante preservasse “o muro” (referindo-se talvez às últimas ruínas herodianas, incluindo o Muro das Lamentações), “eu lhe revelarei onde ficam as ruínas do Templo”, Kaab mostrou a Omar a pedra angular do Templo, a rocha que os árabes chamavam de Sakhra. Ajudado pelos soldados, Omar começou a limpar os destroços para criar um espaço de oração. Kaab sugeriu que isso fosse feito ao norte da pedra angular, “para ter duas qiblas, uma de Moisés e outra de Maomé”. “Tu ainda te inclinas para os judeus”, teria dito Omar a Kaab, situando sua primeira casa de oração ao sul da pedra, mais ou menos onde está hoje a mesquita de al-Aqsa, para ficar voltada na direção de Meca. Osmar seguira o desejo de Maomé de ir além do cristianismo para restaurar e cooptar esse lugar de antiga santidade, fazendo dos muçulmanos os legítimos herdeiros da santidade judaica e passando à frente dos cristãos. As histórias de Omar em Jerusalém datam de mais de um século depois, quando o islã tinha formalizado seus rituais de modo bem distinto dos rituais do cristianismo e do judaísmo. Mas a história de Kaab e outros judeus, que mais tarde formaram a tradição literária islâmica dos Israiliyyat, grande parte dos quais dizendo respeito à grandeza de Jerusalém, prova que muitos judeus, e provavelmente muitos cristãos, aderiram ao islã. Jamais saberemos ao certo o que aconteceu naquelas primeiras décadas, mas os descontraídos arranjos em Jerusalém e noutros lugares sugerem que pode ter havido um surpreendente grau de mistura e compartilhamento entre os Povos do Livro (MONTEFIORI, 2013, p. 234-235). Jerusalém, depois da conquista muçulmana, mudou profundamente, pois a cidade tinha muito prestígio para o islamismo; muito antes da conquista, os muçulmanos tinham-na como uma cidade santa, pois era a cidade dos profetas e dos grandes reis fiéis ao Deus único. Segundo Karen Armstrong: Um dos lugares mais santos, depois de Meca, era Jerusalém. Os maometanos nunca esqueceriam que a cidade santa dos ahl al-Kitãb fora sua primeira qiblah. Fora um símbolo que os ajudou a construir uma identidade islâmica diferenciada, a abandonar as tradições pagãs de seus ancestrais e a buscar uma nova família religiosa. Decisiva em seu doloroso processo de ruptura, Jerusalém sempre ocuparia um lugar especial em sua paisagem espiritual. Continuava simbolizando seu senso de continuidade e parentesco com os ahl al-Kitãb, independentemente do reconhecimento de judeus e cristãos. Os muçulmanos a chamavam de madinat bayt al-maqdis, a Cidade do 86 Templo. Durante muito tempo ela foi um centro espiritual de seus predecessores monoteístas. Ali rezaram e reinaram os grandes profetas Davi e Salomão – o qual construiu uma mesquita sagrada. A cidade estava associada a alguns dos profetas mais santos, inclusive a Jesus, que os islamitas prezavam muito, embora não o vissem com Deus (ARMSTRONG, 2000, p. 263). Com o passar do tempo, a tradição muçulmana passou a interpretar a sura 17.1 do Alcorão como uma referência a Jerusalém: Glorificado seja Aquele Que, durante a noite, transportou Seu servo, tirando-o da Sagrada Mesquita (em Maaca) e levando-o à Mesquita de Alacsa (em Jerusalém), cujo recinto bendizemos, para mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é o Oniouvinte, o Onividente (ALCORÃO, 1986, p. 212). Essa passagem corânica só passou a ter a interpretação que essa Mesquita distante se referia indubitavelmente à Mesquita da Esplanada em Jerusalém, muitos anos após a chegada do Islã na cidade santa; esse é um dos elementos que gestará no imaginário islâmico no decorrer de seu domínio na região. Na atualidade essa crença está fervorosamente aflorada na tradição muçulmana: A “inviolável Casa de Adoração” era certamente a Caaba, porém no Alcorão não existe nada que relacione a “Remota Casa de Adoração” com Jerusalém. Mais tarde, entretanto, provavelmente algumas gerações depois de Maomé, os muçulmanos fizeram essa identificação. Disseram que certa noite, por volta de 620, antes da hijrah, Maomé estava orando junto à Caaba e o anjo Gabriel o transportou para Jerusalém no dorso de Burãq, um cavalo alado. Os dois pousaram no monte do Templo, sendo recebidos por uma multidão de profetas, predecessores de Maomé. Depois galgaram os sete céus, subindo uma escada (al-mi’rãj) que os levou até o divino Trono. Cada uma das esferas celestes era presidida por um profeta – Adão, Jesus, João Batista, José, Henoc, Aarão, Moisés -, e Abraão postava-se no limiar do reino divino. Lá no alto Maomé recebeu a revelação final, que o fez ultrapassar os limites da percepção humana. Sua ascensão ao céu supremo foi o ato decisivo do islãm, o retorno à unidade da qual deriva todo ser. A história de sua Viagem Noturna (al-isrã’) e de sua. Ascensão (al-mi‘rãj) remete claramente às Visões do Trono dos 87 místicos judeus. O mais importante é que simbolizava a convicção dos muçulmanos acerca da continuidade e da solidariedade com as religiões mais antigas. O vôo de seu Profeta, desde a Caaba até o monte do Templo, revelava também a transferência da santidade de Meca para Jerusalém, al-masjid al-aqsã. Havia entre as duas cidades uma conexão divinamente estabelecida. No entanto, Jerusalém ocupava o terceiro lugar na hierarquia de santidade do mundo islâmico (ARMSTRONG, 2000, p. 263-264). A veneração islâmica por Jerusalém existente anterior à conquista, posteriormente amalgamando-se a percepção islâmica de ser uma religião de continuidade do monoteísmo, restauradora do verdadeiro culto ao Deus único, da fé de Abraão, portanto, herdeira das tradições judaicas e cristãs, gestou novas percepções nos primeiros quarenta anos após a conquista de Jerusalém; desde o início do Islã sua escatologia ficou umbilicalmente ligada a Jerusalém, pois será nela que ocorrerá o Último Dia ou simplesmente, a Hora, uma crença herdada da teologia judaico-cristã. Simon Montefiori, comentando sobre a importância de Jerusalém para o Islã primitivo, assim declarou: De grande importância para o destino de Jerusalém foi o fato de o Profeta ressaltar a vinda do Apocalipse – que chamava de Julgamento, Último Dia ou simplesmente a Hora -, e essa urgência inspirou o dinamismo do Islã dos primeiros tempos. “O conhecimento disso só Deus tem”, diz o Alcorão, “mas o que te fará saber que a Hora está próxima!” Todas as Escrituras judaico-cristãs diziam que isso só podia ocorrer em Jerusalém. Certa noite, conforme acreditavam seus seguidores, Maomé teve uma visão enquanto dormia ao lado da Caaba. O arcanjo Gabriel o despertou, e juntos fizeram uma Jornada Noturna montados em Buraq, cavalo alado com rosto humano, para o anônimo “Santuário Mais Distante”. Ali Maomé encontrou seus “pais” (Adão e Abraão) e seus “irmãos” Moisés, José e Jesus, antes de subir uma escada para o céu. Diferentemente de Jesus, ele se intitulava apenas o Mensageiro, ou Apóstolo de Deus, e não afirmava ter poderes mágicos. A rigor, a Isra (Jornada Noturna) e a Mira (Ascensão) foram suas únicas façanhas milagrosas. Jerusalém e o Templo jamais são mencionados, mas os muçulmanos acabaram acreditando que o Santuário Mais Distante era o monte do Templo (MONTEFIORI, 2013, p. 228-229). 88 3.1.- O Domo da Rocha e a Construção do Imaginário Islâmico Sob o governo de Muawiya45, que tinha a cidade santa em grande estima, o imaginário islâmico sobre Jerusalém desabrochou. Montefiori, descreveu: Muawiya tomou de empréstimo as tradições judaicas sobre o monte do Templo para declarar que Jerusalém era a “terra da safra e da ressurreição no Dia do Juízo”. E acrescentava: “A área entre os dois muros desta mesquita é mais cara a Deus do que o resto do mundo” (MONTEFIORI, 2013, p. 239). Outra informação interessante apresentada por Montefiori é sobre a construção do Domo da Rocha no monte do Templo: Muawiya foi provavelmente o verdadeiro criador do monte do Templo islâmico atual. Foi ele quem de fato construiu ali a primeira mesquita, nivelando a pedra da velha fortaleza Antônia, ampliando a esplanada e acrescentando um hexágono aberto, o Domo da Corrente; ninguém sabe para que servia, mas, como fica exatamente no meio do monte do Templo, pode ser que fosse para celebrar o centro do mundo. Escreve um contemporâneo que Muawiya “talha o monte Moriá e o torna plano e constrói uma mesquita na rocha sagrada”. Ao visitar Jerusalém, um bispo gaulês chamado Arculf viu que “no lugar antigo onde ficava o Templo, os sarracenos agora frequentam uma casa de orações oblonga, construída com tábuas eretas e grande vigas, sobre alguns restos arruinados, e que, segundo consta, abriga 3 mil pessoas”. Mas dava para reconhecê-la como mesquita, mas é possível que ficasse onde hoje está al-Aqsa (MONTEFIORI, 2013, p. 239). Com a ascensão de Abd al-Malik46, Jerusalém nunca mais seria a mesma. Ele, como Muawiya, amava Jerusalém e resolveu transformar o Domo da Rocha numa verdadeira joia do império islâmico. Um novo santuário foi construído para 45 Mu’awya ibn Sakhr ibn Harb bin Abd Shams ibn Abd Manaf Al Qurashi Umayyad (602-680) – foi o primeiro califa da dinastia Omíada de Damasco, foi coroado califa numa cerimônia em Jerusalém em 661. 46 Abd al-Malik ibn Marwan (685-705) – Foi califa da dinastia Omíada, muito bem educado e um competente administrador, durante seu reinado a língua oficial passou a ser o árabe, foi o primeiro califa a cunhar moedas e a organizar um serviço postal regular. 89 rivalizar com a Igreja Anástasis, local da Ressurreição de Cristo - a Cúpula da Rocha no monte do Templo. Antes da cidade de Jerusalém tornar-se, junto com Meca e Medina, um dos três locais mais sagrados e de peregrinação para a fé islâmica é importante registrar que a cidade de Jerusalém nunca foi nominalmente citada no Alcorão, historicamente houve duas tentativas frustradas no início do Islã de fazê-la o centro da adoração muçulmana, mas essas tentativas foram rapidamente rejeitadas, uma pelo próprio fundador do islamismo e outra pelo mundo muçulmano em geral. A primeira tentativa de transformar Jerusalém em qiblah47 foi com Maomé. Karen Armstrong assim descreveu esse episódio: Todavia, quando ensinou seus primeiros discípulos a prostrarem-se diante de Alá para demonstrar o islãm interior, Maomé lhes ordenou que dessem as costas à Caaba e virassem o rosto na direção de Jerusalém. A Caaba estava então poluída de ídolos, e os muçulmanos precisavam voltar-se para o centro espiritual dos judeus e dos cristãos, que adoravam unicamente Alá. Essa qiblah (“direção da prece”) assinalava sua nova orientação: o afastamento de sua tribo rumo à fé primordial de toda a humanidade. Também expressava a solidariedade de Maomé e seu senso de continuidade em relação aos ahl al-Kitãb. E então, em janeiro de 624, quando se tornou evidente que a maioria dos judeus de Yathrib nunca aceitariam Maomé, a ummah se declarou independente das tradições mais antigas. O Profeta fez os fiéis rezarem com o rosto voltado para Meca (ARMSTRONG, 2000. p. 261). Maomé substituiu a qiblah de Jerusalém por Meca porque não tolerava a explícita rejeição do Povo do Livro, especialmente as tribos árabes judaizadas. James Carrol assim declara: Os judeus da Arábia rejeitaram a revelação a Maomé, sustentando que ela não procedia do Deus deles, o que demonstrava – assim concluíram os muçulmanos – que Israel havia traído sua própria revelação. Depois dessa rejeição Maomé mudou a direção a ser adotada para rezar, que passou a ser para a Caaba de Abraão em Meca, e não mais para Jerusalém (CARROL, 2013, p. 150). 47 Qiblah – “direção da prece”. 90 A segunda tentativa foi com Abd Al Malik, segundo o historiador Will Durant: Em 684, quando o rebelde Abd Allah al-Zubayr controlou Meca e recebeu os impostos de seus peregrinos, Abd-al-Malik, ansioso por atrair um pouco dessa renda sagrada, decretou que a partir de então essa rocha [onde Abraão havia oferecido Isaque e o templo havia se situado em Jerusalém] deveria substituir a Caaba [em Meca] como o objeto da peregrinação sagrada. Sobre aquela rocha histórica seus artesãos ergueram [em 691] no estilo sírio bizantino o famoso “Domo da Rocha”, que logo passou a ocupar o terceiro lugar entre as “quatro maravilhas do mundo muçulmano... O plano de Abd-al-Malik de fazer esse monumento substituir a Caaba fracassou; se tivesse tido sucesso, Jerusalém teria sido o centro de todas as três religiões que competiram pela alma do homem medieval. Mas Jerusalém não era nem a capital da província da Palestina [sob os árabes]... (DURANT, 1950, p. 229 – vol. IV). Abd Al Malik promoveu grandes mudanças no nascente Império Islâmico com sede em Damasco; pelas medidas tomadas por ele, compreende-se que o Domo da Rocha surgiu como símbolo da importância religiosa baseada em Jerusalém. O historiador James Carrol apresenta as seguintes considerações sobre a disposição do califa omíada48 em promover a cidade de Jerusalém: Ao patrocinar essa transição do antigo local sagrado judaico para o islâmico, pode ser o que o motivo de Al Malik tivesse menos a ver com a rivalidade com as religiões monoteístas do que com seus confrades muçulmanos. Al-Malik introduziu uma moeda corrente, arte, arquitetura e idioma peculiarmente muçulmanos..., o califa al-Malik estava à frente de mudança de um movimento carismático para uma instituição, do patriarcado do deserto para uma potência imperial... Enaltecendo o significado religioso de Jerusalém para os muçulmanos, ele podia reduzir o significado religioso do centro sagrado que ele ousara abandonar na Arábia. Especialmente notável é o projeto do interior do Domo de Jerusalém, que comporta o movimento em círculo – Sol ao redor da Terra – que por tanto tempo caracteriza o ritual devocional da Caaba em Meca... como a Síria substituiu a Arábia como locus do 48 _ Califado Omíada - Trata-se duma dinastia de califas muçulmanos do clã dos Coraichitas, que reinaram em Damasco de 661 a 750 e em Córdova de 756 a 1031. 91 império islâmico, a importância religiosa de Jerusalém ficou ainda mais reforçada por declarações (Hadith) atribuídas ao Profeta. Ele era lembrado dizendo que no Último Dia a Caaba seria levada de Meca para Jerusalém: Jerusalém seria o paraíso. Essa também era uma visão ecumênica, uma colheita do Fim dos Tempos não apenas dos muçulmanos, ou do Povo do Livro, mas de todos os seres humanos (CARROL, 2013, p. 154-155). Cinquenta anos depois da conquista islâmica, o califa omíada Abd alMalik construiu sobre a rocha do antigo Templo judaico esse majestoso santuário – o Domo da Rocha; a tradição judaico-cristã apontava como local do paraíso de Adão, local do altar primordial de Abraão, onde jaziam as pedras do Templo de Herodes e local onde Maomé havia ascendido ao céu em sua viagem noturna. Obra com traçado matemático perfeito e com decoração tão maravilhosa que dava a impressão aos judeus e aos cristãos que suas respectivas religiões haviam sido suplantadas pelo islamismo. Montefiori descreve da seguinte maneira o Domo: Depois que o Domo acabou de ser construído entre 691 e 692, Jerusalém nunca mais foi a mesma. A assombrosa visão de Abd alMalik capturou o perfil do horizonte de Jerusalém para o islã com a construção na montanha desprezada pelos bizantinos, que tinham governado a cidade. Fisicamente, o Domo reinou sobre Jerusalém e eclipsou a igreja do Santo Sepulcro – e esse era o objetivo de Abd alMalik, segundo acreditavam hierosolimitas posteriores, como o escritor Al-Muqaddasi. Funcionou: desde então, até o século XXI, os muçulmanos zombam do Santo Sepulcro (a Kayamah em árabe), chamando-o de Kumamah (monte de esterco). O Domo complementou e superou as reivindicações rivais, porém relacionadas, de judeus e cristãos, e assim Abd al-Malik enfrentou ambos com a novidade superior do islã. Ele circundou o edifício com 244 metros de inscrições que denunciam a ideia da divindade de Jesus com uma franqueza que sugere a estreita relação entre as duas fés monoteístas: elas compartilham muita coisa, exceto a Santíssima Trindade. As inscrições são fascinantes porque nos oferecem o primeiro vislumbre do texto do Alcorão ao qual Abd al-Malik dava forma final (MONTEFIORI, 2013, p. 243). 92 Comentando sobre a mensagem escrita no Domo, o escritor Piers Paul Read, assim registrou: Esses símbolos de outra fé lá estão como troféus de um Islã triunfante: e para fazer a mensagem ser compreendida por quem porventura não a tivesse compreendido, há uma inscrição onde se lê: ‘Ó vós, povo do Livro, não ultrapasseis as fronteiras de vossa religião e de Deus dizei somente a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, é apenas um apóstolo de Deus e de sua Palavra, que Ele transmitiu a Maria, e de um Espírito que dele se originou. Acreditai, portanto, em Deus e em seus apóstolos, e não digais: Três. Será melhor para vós. Deus é apenas um Deus. Que esteja longe de sua glória ter um filho’. Como Jerome Murphy-O’Connor escreve ao citar essa inscrição em seu inestimável guia da Terra Santa, “Um convite para abandonar a crença na Trindade e na divina Filiação de Cristo dificilmente poderia ser expresso em termos mais claros” (READ, 2001, p. 66). Dos anos 638/9 até 1099, aproximadamente 460 anos, os muçulmanos sob o governo dos vários califados49 iriam governar, islamizar e fomentar a santidade de Jerusalém, mantendo um relativo respeito aos lugares de culto cristãos e judaicos. Jerusalém tornou-se uma cidade com forte presença islâmica, desenvolvendo seu poderoso imaginário de que era a terceira cidade mais importante do Islã. O islã desenvolve uma teologia apocalíptica diretamente ligada a Jerusalém. Montefiori apresenta o resumo da crença do apocalipse islâmico: Os omíadas cobriram o monte do Templo de novas cúpulas, todas antes ligadas a tradições bíblicas, de Adão a Abraão, passando por Davi e Salomão até Jesus. Seu cenário do Juízo Final ocorria no monte do Templo, quando a Caaba iria para Jerusalém.* “Toda alma provará o sabor da morte, e só no Dia da Ressurreição sereis recompensados integralmente pelos vossos atos”, diz o Alcorão. Os muçulmanos criaram uma geografia do Apocalipse em Jerusalém. As forças do mal perecem no portão Dourado. O Mahdi – o Escolhido – morre quando a Arca da Aliança é posta diante dele. Ao verem a Arca, os judeus se convertem ao Islã. A Caaba de Meca vem para Jerusalém com todos aqueles que já fizeram a peregrinação a Meca. O céu desce sobre o monte do Templo com o inferno no vale de Hinom. O povo se reúne 49 Califados Islâmicos: Omíada (644-750), Abássida (750-1.258; 1261-1519) e Fatimida (910-1.171). 93 fora do portão Dourado na planície – al-Shahira. Israfil, o Arcanjo da Morte (um dos portões do Domo leva o seu nome), toca sua trombeta: os mortos (especialmente os que estão sepultados perto do portão Dourado) ressuscitam e passam pelo portão, o portal para o Fim dos Dias (com seus dois pequenos portões da Misericórdia, dotados de cúpula, ou o da Penitência), para serem julgados no Domo da Corrente, onde estão penduradas as balanças da justiça (MONTEFIORI, 2013, p. 246). No entanto, como bem acentua Karen Armstrong, a percepção do “sagrado” era diferente para os muçulmanos: Os muçulmanos tinham uma geografia sagrada diferente da de seus predecessores. Já que tudo vinha de Deus, todas as coisas eram boas e, portanto, não existia uma dicotomia essencial entre o “sagrado” e o “profano”, como no judaísmo. O objetivo da ummah consistia em alcançar tal integração e tal equilíbrio entre o divino e o humano, o mundo interior e o exterior, que essa distinção se tornaria irrelevante. Não havia “mal” intrínseco, nem reino “demoníaco” opondo-se ao “bem”. No fim dos tempos até Satã seria perdoado. Tudo era santo e tinha de concretizar seu potencial sagrado. Assim, todo espaço era sagrado e não existia lugar mais santo que outro. O islamismo é, porém, uma religião realista, e Maomé sabia que os seres humanos precisam de símbolos. Por conseguinte, desde o início seus seguidores aprenderam a considerar três locais como centros sagrados do mundo (ARMSTRONG, 2000, p. 259-260). Um dos lugares mais santos, depois de Meca, era Jerusalém. Os maometanos nunca esqueceram que a cidade santa dos ahl al-Kitãb fora sua primeira qiblah. Fora um símbolo que os ajudou a construir uma identidade islâmica diferenciada, a abandonar as tradições pagãs de seus ancestrais e a buscar uma nova família religiosa. Decisiva em seu doloroso processo de ruptura, Jerusalém sempre ocuparia um lugar especial em sua paisagem espiritual. Continuava simbolizando seu senso de continuidade e parentesco com os ahl al-Kitãb, independentemente do reconhecimento de judeus e cristãos. Os muçulmanos a chamavam de madinat bayt al-maqdis, a Cidade do Templo. Durante muito tempo ela foi um centro espiritual de seus predecessores monoteístas. Ali rezaram e reinaram os grandes profetas Davi e Salomão – o qual construiu uma mesquita sagrada. A cidade estava associada a alguns dos profetas mais santos, inclusive a Jesus, que os islamitas prezavam muito, embora não o vissem como Deus. Mais tarde diriam que Maomé também visitou Jerusalém, transportado miraculosamente por Alá (ARMSTRONG, 2000, p. 263). 94 Além dos judeus e cristãos de todo mundo olharem para Jerusalém como um local santo, sendo o centro do seu imaginário religioso e local de contínua peregrinação, a fé islâmica também construiu seu imaginário sobre a cidade santa, ou seja, até a chegada dos cruzados em Jerusalém em 1099, já estavam gestados três imaginários específicos que viam a cidade como santa: o imaginário Judeu, o imaginário Cristão católico e o imaginário Islâmico. 3.2.- Os cruzados e a decadência da região nos séculos seguintes Jurando libertar Jerusalém do islã, os nobres cruzados e seus exércitos plebeus partiram da Europa em 1096. A conquista da cidade em 1099 foi acompanhada pelo massacre de seus habitantes judeus e muçulmanos. O historiador Christopher Tyerman apresenta a seguinte descrição da tomada de Jerusalém pelos cruzados: O massacre em Jerusalém poupou poucos. Judeus foram queimados dentro de sua sinagoga. Muçulmanos foram indiscriminadamente esquartejados, decapitados ou torturados devagar pelo fogo (isso dito com base em evidências cristãs). Tamanha foi a escala e horror da carnificina que uma testemunha judaica registrou com aprovação que pelo menos os cristãos não estuprava suas vítimas antes de matá-las, como os muçulmanos faziam. A cidade foi toda saqueada: ouro, prata, cavalos, alimentos, o que havia dentro das casas, tudo foi tomado pelos conquistadores, numa pilhagem completa quanto qualquer outra da Idade Média. O lucro rivalizava com a destruição; alguns livros judaicos sagrados foram mais tarde resgatados pela comunidade sobrevivente no exílio. A violência superou os negócios a 16 de julho, quando os prisioneiros de Tancredo na mesquita de al-Aqsa foram massacrados a sangue-frio, no que tudo indica por provençais, que haviam perdido a ação do dia anterior. As ruas estreitas da cidade ficaram atulhadas de cadáveres e partes de corpo esquartejado, inclusive de alguns cruzados, vitimados em seu afã de perseguir e matar os defensores. As pilhas de mortos acarretaram um problema imediato para os conquistadores; a 18 de julho, muitos da população muçulmana sobrevivente foram obrigados a limpar as ruas e levar os cadáveres para fora das muralhas, a fim de serem queimados em enormes piras. Depois, eles próprios foram massacrados, uma prévia 95 assustadora de práticas posteriores de genocídio (TYERMAN, 2010, p. 192-193). Durante quase um século, Jerusalém foi a capital exclusiva do Reino Latino50 da Terra Santa, foi um período onde os líderes católicos europeus dominavam a região litorânea da palestina protegidos em seus castelos e fortalezas, até que o líder Saladino51, muçulmano do Curdistão, unificando o mundo muçulmano em torno de si, conquistasse Jerusalém em 1187, permitindo o retorno dos judeus à cidade. De 1187 até 1517, a cidade santa viveu períodos de muita decadência, saques, terremotos, abandono e contínua tensão entre os muitos credos religiosos oriundos das matrizes Judaica, Cristã e Islâmica. 3.3.- O Domínio Otomano De 1517 a 1917, sob o domínio do Império Otomano52, Jerusalém teve basicamente apenas um momento de esplendor; foi em 1541, quando o Sultão Suleiman53, o Magnífico, concluiu a construção dos muros da cidade, como ainda se pode observar hoje. Karen Armstrong assim escreveu sobre esse período: 50 Reino Latino de Jerusalém (1099-1291) – Foi um estado cruzado criado no Levante, cuja capital era Jerusalém, com a queda de Jerusalém em 1187, a capital foi transferida para Acre, finalmente os cruzados foram expulsos da região com a queda de Acre em 1291. 51 Saladino - Salãh ad-Din Yusuf ibn Ayyub (1138-1193) – Chefe militar curdo que tornou-se sultão do Egito e Síria. Liderou o mundo islâmico contra os cruzados. Foi o responsável pela reconquista de Jerusalém em 1187, tornou-se célebre entre os cronistas cristãos como exemplo dos princípios da cavalaria medieval. 52 Império Otomano – fundado por Ertughrul e seu filho Osman, em árabe Otman, de onde vem o termo “Otomano”, sua ascensão foi entre 1299 a 1453, quando os otomanos conquistaram Constantinopla e a fizeram em sua capital. Foi uma das maiores potências do mundo, seu auge foi no século XVII. O califado otomano foi abolido em 1924, dando lugar a moderna República da Turquia. 53 Solimão ou Suleiman I, o Magnífico (1520-1566) – Foi o décimo sultão do Império Otomano e o de mais longo reinado, subiu ao trono em 1520 até sua morte em 1566. Durante seu reinado, o Império Otomano alcançou o seu apogeu. 96 Jerusalém floresceu sob o sultão Solimão, o Magnífico (1520-66). Depois de guerrear na Europa e expandir o Império para o oeste, Solimão concentrou-se no desenvolvimento interno e seus domínios. O Império Otomano conheceu um renascimento cultural, e Jerusalém foi um dos principais beneficiários. As guerras turcas naturalmente reacenderam o ódio da Europa pelo Islã. Surgiram rumores de uma nova Cruzada e dizia-se que o sultão sonhara com o Profeta ordenando-lhe que organizasse a defesa de al-Quds. Verdade ou não, em 1536 Solimão decidiu reerguer as muralhas de Jerusalém. Tratavase de um projeto ambicioso, que envolvia gastos imensos e muita habilidade. Em poucos lugares os otomanos construíram fortificações tão primorosas. Com três quilômetros de extensão, cerca de doze metros de altura, 34 torres e sete portas, a muralha contornava inteiramente a cidade – e sobrevive até hoje. Consta que, ao passar por lá, Sinan, o grande arquiteto da corte, concebeu a Porta de Damasco, no norte de al-Quds. Quando se concluiu a obra, em 1541, Jerusalém estava fortificada devidamente pela primeira vez em mais de trezentos anos (ARMSTRONG, 2000, P. 371). Após o reinado de Suleiman, nos 350 anos seguintes pouca importância foi dada para a região, ficando entregue a administrações decadentes, corrompidas, incompetentes e a cidade ficou sujeita aos contínuos ataques dos beduínos do deserto. No início do século XIX, Jerusalém possuía cerca de 8750 habitantes, sendo 4 mil muçulmanos, 2750 cristãos católicos e 2 mil judeus. Já no inicio do século XX, especificamente em 1922, Jerusalém possuía 62600 habitantes, sendo 34400 judeus, 14700 cristãos católicos e 13500 muçulmanos. Portanto, a estrutura da atual cidade de Jerusalém, cidade antiga, é obra do sultão muçulmano Suleiman, o Magnífico; não há nada que possa lembrar a Jerusalém da época de Davi, nem da época de Jesus: Suas realizações em Jerusalém obtiveram tanto êxito que a Cidade Velha hoje pertence mais a ele do que a qualquer outro: os muros têm aparência antiga e, para muita gente, definem a cidade tanto quanto o Domo, o Muro ou a igreja do Santo Sepulcro – mas esses muros e a maioria dos portões foram criação desse contemporâneo de Henrique VIII, tanto para tornar a cidade segura como para incrementar seu próprio prestígio. O sultão adicionou uma mesquita, uma entrada e uma torre à Cidadela; construiu um aqueduto para trazer água à cidade e nove fontes das quais se podia beber (inclusive três no monte do Templo); e, finalmente, substituiu os mosaicos gastos do Domo da Rocha por azulejos esmaltados decorados com flores-de-lis e lótus em 97 turquesa, cobalto, branco e amarelo, como são hoje 54 (MONTEFIORI, 2013, p. 374-375). Portanto, a Jerusalém que conhecemos em Israel é uma construção otomana islâmica, reconstruída sobre as ruínas das outras Jerusalém: Enquanto os muros eram erguidos, ...milhares de operários trabalhando, novas pedras sendo extraídas, pedras velhas furtadas de igrejas em ruínas e de palácios herodianos, e os taludes e portões fundindo-se cuidadosamente com os muros em volta do monte do Templo da época de Herodes e dos omíadas (MONTEFIORI, 2003, p. 373). Em 1914-1917 ocorreu a Primeira Guerra Mundial, o Império Otomano perdeu vários territórios com a derrota da Tríplice Aliança, a Palestina ficou sob mandato britânico. Pela primeira vez, depois de aproximadamente mil anos, a Palestina voltava ao domínio cristão, mas por um novo ramo do cristianismo, o protestantismo. Assim, de 3.000 a.C. até 136 d.C., o imaginário judeu se cristalizou; de 313 até 638 o imaginário cristão se cristalizou e finalmente de 638 até 1.187 o imaginário islâmico se cristalizou, deslocando-se do eixo sagrado do cristianismo, da Anástasis - Igreja do Santo Sepulcro para retomar o altar primordial do imaginário judaico, o monte do Templo, o nobre santuário - AlHaram ash-Sharif. O imaginário religioso islâmico sobre Jerusalém, apropriou-se da tradição judaica-cristã, transformando Jerusalém na terceira cidade mais importante do mundo islâmico. 54 Difundiu-se uma lenda de que Suleiman considerava aplainar Jerusalém, até que ele sonhou que seria comido por leões caso o fizesse, e então construiu o portão dos Leões. Isso baseia-se num mal entendido; ele construiu o portão dos Leões, mas seus leões são na verdade as panteras do sultão Baibars de trezentos anos antes, tomadas por empréstimo de sua Khanqah sufi que um dia se localizou a noroeste da cidade. Suleiman usou o espólio de Jerusalém: sua fonte do portão da Corrente é encimada por uma roseta dos cruzados e a cuba é um sarcófago cruzado. Os novos muros não envolveram o monte Sião. Conta-se que Suleiman ficou tão furioso ao olhar numa xícara mágica e ver que o túmulo de Davi estava fora da cidade que executou os arquitetos. Guias de turismo apontam seus túmulos perto do portão de Jafa – mas isso também é mito: os túmulos pertencem a dois eruditos de Safed (MONTEFIORI, 2013, p. 375). 98 O último imaginário que tardiamente se construirá em Jerusalém será o protestante. A partir dessa realidade histórica, novos imaginários irão surgir sobre Jerusalém, mas sempre fora do seu contexto geográfico-religioso-cultural. 4.- Jerusalém Na Construção Do Imaginário Protestante A Reforma Protestante, tendo como ponto de partida as 95 Teses de Lutero, fixadas na Igreja de Wittenberg em 31 de outubro de 1517, irá apontar para a exclusividade da Bíblia Sagrada como única regra de fé; até hoje este brado da Reforma é anunciado: Sola Scriptura. Karen Armstrong em sua obra Em Nome de Deus. O Fundamentalismo no Judaísmo, no Cristianismo e no Islamismo, apresenta a atitude dos reformadores protestantes como uma busca de resposta para um mundo instável e mutável: 99 ...os reformadores protestantes se voltaram para o passado na tentativa de encontrar uma nova solução para uma época de mudança. Martinho Lutero (1483 - 1556), João Calvino (1509-64) e Huldrych Zwingli (1484 – 1531) reportaram-se às fontes da tradição cristã... Lutero também atacou os teólogos escolásticos medievais e procurou retornar ao cristianismo puro da Bíblia e dos Padres da Igreja. Os reformadores protestantes eram, pois, revolucionários e reacionários... (ARMSTRONG, 2001, p.84). Mas ao proclamar “somente a Escritura” como regra de fé, Lutero, por inferência, indica a inerrância da mesma, levando a crença da literalidade das Sagradas Escrituras num patamar inigualável no mundo cristão. Os reformadores diziam, como os conservadores, que estavam retornando à fonte primária, à Bíblia, mas a liam à maneira moderna. O cristão reformado devia postar-se sozinho diante de Deus, contando apenas com a Bíblia, porém isso não seria possível sem a invenção da imprensa, que permitia a todos os fiéis terem seu próprio exemplar das Escrituras, e sem a difusão da alfabetização. Cada vez mais se lia a Bíblia literalmente, à cata de informação, mais ou menos como os protestantes modernizadores estavam aprendendo a ler outros textos (ARMSTRONG, 2001, p. 86). Neste contexto histórico, os reformadores sentiram necessidade do estudo das línguas bíblicas, especialmente o hebraico. O historiador Paul Johnson assim analisou esse período: A Reforma, operando na obra de eruditos do Renascimento, fomentou também um interesse renovado por estudos hebraicos e, em particular, pelo Velho Testamento. Muitos apologistas católicos censuravam os judeus, e ainda mais os marranos, por ajudarem e inspirarem pensadores protestantes (JOHNSON, 1995, p. 251). Enquanto Lutero apontava para a literalidade da Bíblia e tinha uma visão negativista do mundo, Calvino, diferentemente, não estava desencantado com o mundo natural e possuía uma percepção diferente das Sagradas Escrituras, embora a tivesse como única regra de fé: 100 Não via contradição entre a ciência e as Escrituras. Em sua opinião a Bíblia não fornece informações literais sobre geografia ou cosmologia, mas tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados seres humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma simplificação deliberada de uma verdade complexa demais para ser articulada de outro modo. Os grandes cientistas de inícios da modernidade partilhavam a confiança de Calvino e também situavam suas pesquisas e discussões num plano religioso e místico (ARMSTRONG, 2001, p. 87). A Reforma Protestante irá desconstruir a velha cosmovisão cristã católica romana de mundo. O protestantismo permitirá uma nova abordagem de interpretação, em busca de respostas para as novas inquietações da humanidade da época. 4.1.- Distinção entre o imaginário protestante e católico O protestantismo se levantará contra o imaginário místico do catolicismo romano. João Calvino, em sua obra Institutas ou Tratado da Religião Cristã, Volume I, Edição Clássica (Latim) apresenta os capítulos IX a XII para explicar e combater sistematicamente o erro do culto às imagens do catolicismo romano, bem como um duro golpe ao mundo mágico criado por séculos de predomínio do catolicismo romano na Europa. O combate radical ao misticismo católico, às peregrinações e culto às imagens reduziu o protestantismo ao mesmo nível de percepção semítica judaica. Peter L. Berger assim percebeu essa realidade no protestantismo: Se observarmos mais cuidadosamente essas duas constelações religiosas, porém, o protestantismo poderá ser descrito como uma 101 imensa redução do âmbito do sagrado na realidade, comparado com o seu adversário católico... Simplificando-se os fatos, pode-se dizer que o protestantismo despiu-se tanto quanto possível dos três mais antigos e poderosos elementos concomitantes do sagrado: o mistério, o milagre e a magia (BERGER, 1985, p. 124). A bandeira protestante de Sola Scriptura levou o protestantismo inevitavelmente a despir-se radicalmente das tradições, mediações e misticismos tão presentes no catolicismo medieval. Os protestantes, como o povo de Israel no Antigo Testamento, tinham como serviço sagrado exterminar os deuses dos cananeus, os lugares de culto de ídolos e imagens em Canaã, livrar e exterminar todas as formas de cultos e imagens que não o único Deus. O protestantismo, ao se agarrar radicalmente e literalmente nas Escrituras, trilhará o mesmo caminho do Israel do Antigo Testamento, e destruirá as “janelas” ou ligações com o divino, encontradas nas intermediações dos santos e dos lugares sagrados do catolicismo. Peter L. Berger assim declara: O protestantismo aboliu a maior parte dessas mediações. Ele rompeu a continuidade, cortou o cordão umbilical entre o céu e a terra, e assim atirou o homem de volta a si mesmo de uma maneira sem precedentes na história... Fazendo isso, porém, o protestantismo, reduziu o relacionamento do homem com o sagrado ao canal, excessivamente estreito, que ele chamou de palavra de Deus... (BERGER, 1985 , p. 124-125). Mas, se o protestantismo desconstrói o imaginário católico de locus sacratus, onde estaria a importância de Jerusalém no imaginário protestante que combateu radicalmente a percepção católica de superstição e peregrinação aos lugares santos? Seguramente a resposta está no mesmo fenômeno ocorrido com o Israel do Antigo Testamento; tudo o que está na Bíblia será precioso e sagrado para a piedade protestante. Culto aos santos não está na Bíblia, e na percepção protestante é condenado por Deus; lugares sagrados para o catolicismo, como 102 Roma ou lugares da aparição da virgem Maria não estão na Bíblia e são condenados como cultos falsos na percepção protestante. Assim como o povo de Israel destruiu a antiga idolatria cananeia, mas fez de Jerusalém sua cidade santa, o mesmo fenômeno ocorrerá com o protestantismo, despindo-se radicalmente das intermediações da virgem Maria e dos santos católicos, dos lugares sagrados do catolicismo e, focados unicamente na Bíblia Sagrada, vislumbrarão um novo locus sacratus este, em sua percepção, bíblico e escolhido pelo Eterno – Jerusalém, que não é tão novo assim, pois esteve presente todo tempo no imaginário cristão europeu. Weber, Berger e outros sociólogos interpretarão corretamente o nexo histórico entre o protestantismo e o secularismo, verão nesse rompimento protestante com o misticismo católico uma porta para a secularização do mundo moderno. Berger afirma que as raízes da secularização encontram-se no Antigo Testamento, na religião do antigo Israel, posteriormente impulsionada pelo protestantismo. Mas é verdade também que a religião israelita e o protestantismo são expressões históricas com alto grau de espiritualidade e facilidade de acomodação, haja vista, a contínua e antiga religiosidade e espiritualidade milenar judaica e a contínua reinvenção da fé protestante. Marcelo Camurça em parte nos ajuda nessa questão: ...o processo de secularização não resulta na extinção da religião, mas em sua transformação, quando a ideia de religião (nas suas formas “desenvolvidas”) não se coloca como incompatível com a racionalidade. Como demonstrou Weber, substituída pela ciência como forma de conhecimento do mundo, a religião ainda pode refugiar-se como proposta racional no terreno dos valores (ou até assumir forma irracional com contornos extra-econômicos e extramundanos)... (CAMURÇA, 2008, p. 95-96). Da concepção heliocêntrica do astrônomo católico polonês Nicolau Copérnico (1473 – 1543) até a Guerra da Independência dos Estados Unidos da América (1774), são aproximadamente trezentos anos de mutações e profundas 103 mudanças políticas, científicas, filosóficas e religiosas na Europa e nas colônias inglesas do Novo Mundo. Durante esse longo período houve um lento e contínuo processo de secularização da sociedade; a religião perderá seu papel de domínio público, passando em grande parte para a privacidade, fenômeno presente especialmente nos países protestantes e na França católica, fomentado pela influência do iluminismo, racionalismo e cientificismo, tanto na Europa como nas colônias inglesas da América do Norte. O eixo definidor para esta pesquisa se desloca da Europa para a América com o reaparecimento do milenarismo existente deste o século XVI, bem como o surgimento do fundamentalismo cristão nos Estados Unidos em fins do século XIX. O fato do protestantismo ter rompido radicalmente com o misticismo católico não significa que não pode criar um novo locus sacratus, ele criará um imaginário religioso fundamentado nas Sagradas Escrituras. O imaginário sagrado sobre Jerusalém no mundo protestante, se constrói pela catalisação de vários movimentos espiritualistas e políticos, entre eles: o movimento milenarista, o pietismo, o restauracionismo ou sionismo cristão, bem como o domínio britânico de toda Palestina, e da popularização da teologia profética escatológica evangélica. 4.2.- O Milenarismo55 55 Milenarismo – No cristianismo, deve-se chamar de milenarismo a crença num reino terreno vindouro de Cristo e de seus eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente. O advento do milênio foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos já mortos – e uma segunda – a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto, intercalar-se entre o tempo da história e a descida da “Jerusalém celeste”. Dois períodos de provações irão enquadrá-lo. O primeiro verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este, triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e de felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova liberação das forças demoníacas, que serão vencidas num último combate (DELUMEAU, 1997, p. 18-19). 104 A crença no milenarismo não é um ensino estranho à igreja primitiva. Justino de Roma, o mártir (100-165) um dos primeiros apologistas da fé cristã era milenarista56: De minha parte, eu e alguns outros cristãos de mentalidade correta não só admitimos a futura ressurreição da carne, mas também mil anos em Jerusalém reconstruída, embelezada e aumentada, como o prometem Ezequiel, Isaías e os outros profetas (ROMA, 2013, p. 236). ... houve entre nós um homem chamado João, um dos apóstolos de Cristo, que numa revelação que lhe foi feita, profetizou que os que tiverem acreditado em nosso Cristo passarão mil anos em Jerusalém e que, depois disso, viria a ressurreição universal e, dizendo brevemente, a ressurreição eterna e o julgamento de todos juntos. A mesma coisa dita por nosso Senhor: “Não se casarão, nem serão dadas em matrimônio, mas serão como os anjos, pois são filhos de Deus da ressurreição” (Lc 20.35-36) (ROMA, 2013, p. 237-238). O milenarismo foi uma crença comum na comunidade cristã primitiva, outros pais da Igreja cristã também defendiam o milenarismo: Os primeiros teólogos que podem ser considerados historicistas: Justino (100-165 D.C.), Irineu (c. 130-202 D.C.), e Hipólito (c. 170-235). Todos acreditavam num milênio literal após a segunda vinda de Jesus (KOVACS & ROWLAND, 2004, p.15 Apud LIMA, 2012, p.24). O maior teólogo da antiguidade a adotar o modelo espiritual de interpretação foi Agostinho de Hipona (354-430 D.C.), mas sua primeira interpretação foi literal. Num sermão (259). Agostinho havia adotado a posição milenarista, ou seja, de que haveria mil anos literais de Cristo na terra antes do Julgamento Final (BACKUS, 2000, p. XIV Apud LIMA, 2012, p. 23). 56 Justino de Roma, o Mártir era milenarista: “Segundo Ap 20.4-5, 1-8, o milenarismo se desenvolve em duas fases: a primeira consiste num reino terrestre de mil anos de Cristo com seus eleitos, em Jerusalém, a partir da parusia; a segunda, a partir da ressurreição geral dos mortos se instalará o reino eterno na Jerusalém celeste. Essa crença difundiu-se sobretudo no ambiente asiático. Justino creu com absoluta firmeza no milenarismo, pois se indigna da suspeita de Trifão de que isso fosse apenas um truque de sua argumentação” (ROMA, 2013, p. 236 – nota de rodapé). 105 A crença milenarista desaparecerá no período do governo político da igreja católica com a interpretação de Agostinho de Hipona, como aponta o historiador francês Jean Delumeau: Escreveu-se sobre Santo Agostinho que ele foi o “liquidador do milenarismo cristão primitivo”. É verdade que ele desfechou um golpe severo ao interpretar os mil anos de Apocalipse como o período de duração indeterminada reservado ao reinado da Igreja entre a vinda do Salvador e o fim dos tempos. Durante essa fase intermediária, os santos e os pecadores estão inextricavelmente misturados na “Cidade de Deus”, será assim até o juízo final (DELUMEAU, 1997, p. 32). O milenarismo voltará com muita força pós Reforma Protestante, sendo um dos temas mais presentes e recorrentes nos países protestantes, se apresentará com faces diferentes; é notória sua radicalização na Alemanha com a fé quiliástica de mentalidade utópica racional não alienante do mundo. Segundo Karl Mannheim: A ideia da aurora de um reinado milenar sobre a terra sempre conteve uma tendência revolucionarizante, e a Igreja fez todos os esforços para paralisar esta ideia situacionalmente transcendente com todos os meios de que dispunha. Estas ideias; que intermitentemente afloravam, reapareceram novamente em Joachim das Flôres, entre outros, mas neste caso ainda não se cogitava delas como revolucionárias. Entretanto, entre os hussitas e depois em Thomas Munzer e os anabatistas estas ideias se transformaram nos movimentos ativadores de estratos sociais específicos. Aspirações que até então não se haviam apegado a um objetivo específico, ou se concentravam em objetivos extraterrenos, assumiram subitamente uma compleição mundana. Sentia-se que eram viáveis – aqui e agora – e infundiam um ardor singular à conduta social... A visão utópica provocou uma visão contrária. O otimismo quiliástico dos revolucionários veio finalmente a dar origem à formação de atitude conservadora de resignação e, na política, à atitude realista... Não se acha realmente preocupado com o milênio que há por vir; o que para ele tem importância é que isto se produza aqui e agora, e que tenha surgido da existência terrena, como se fosse um rápido volteio noutra espécie de existência (MANNHEIM, 1986, p. 235-241). 106 Diferentemente do quiliasma alemão, na Grã-Bretanha no século XVI, um país saturado de estudo escatológico, se desenvolveu o milenarismo utópico distanciador e alienante do mundo presente. Jean Delumeau assim descreveu esse período: O país do Ocidente que, no final do século XVI e até cerca de 1660, debateu com maior paixão os prazos apocalípticos foi de fato a GrãBretanha... interpretação das profecias, a dos milenaristas, não foi feita apenas por alguns espíritos excêntricos. Ao contrário, foi proposto por teólogos reconhecidos, em particular entre os puritanos. Chegou-se a escrever que “a ideia de uma rápida realização do milênio de Nosso Senhor era largamente difundida entre todas as categorias de devotos”, e mesmo entre alguns adeptos da realeza”... De maneira mais geral, é essencial perceber que os fatores teológicos desempenharam um papel importante na história política inglesa do século XVII (DELUMEAU, 1997, p. 216). Esse fervor protestante milenarista encontrará campo fértil na América do Norte, como bem pontuou Jean Delumeau: É, no entanto, na obra de Jonhathan Edwards, iniciador do “grande despertar” dos anos 1740-4, que se acha a expressão mais célebre de um milenarismo ligado à América do Norte. As convicções de Edwards esclarecem, aliás, a imbricação estreita dos temas do “despertar” com as esperanças escatológicas. É preciso citar um pouco longamente suas afirmações: Não é imprudente julgar que essa obra do Espírito Santo (o “despertar”), tão extraordinária e maravilhosa, é a aurora, ou pelo menos o prelúdio do glorioso trabalho de Deus, com frequência predito nas Escrituras, que por seu movimento e seu resultado renovará o mundo e a humanidade. (...) Não podemos razoavelmente pensar de outro modo: o começo do grande trabalho de Deus deve estar próximo. E há muitos sinais que tornam provável que essa obra terá início na América. É dito que ela começará numa parte remota do mundo com o qual o resto da terra só se comunicará pela navegação (Is 60.9). “Sim, as ilhas convergem para mim, navios de Társis à frente, para trazer teus filhos de longe”). Não pode ser mais claro que esse capítulo profetiza a prosperidade da Igreja em seu mais glorioso estado terrestre dos últimos dias; e não posso pensar senão que “as ilhas que estão ao longe” referem-se à América, de onde virão os filhos recémnascidos desse glorioso dia. (...) O que é principalmente referido (em Isaías) não são as ilhas Britânicas nem as ilhas próximas de um outro continente. Pois trata-se de uma grande distância em relação ao mundo onde a Igreja existiu até hoje. Essa profecia parece, portanto, claramente designar a América como lugar dos primeiros frutos desse glorioso dia. Deus fez, por assim dizer, dois mundos na terra, dois 107 grandes continentes habitáveis, o velho e o novo (segundo seus nomes atuais), largamente separados um do outro. Este último só foi descoberto recentemente. Era inteiramente desconhecido dos séculos passados. É como se houvesse sido criado recentemente. Ele foi até estes últimos tempos a posse inteira de Satã, a Igreja de Deus jamais tendo nele existido desde o começo do mundo, contrariamente ao que aconteceu no outro continente. Esse novo mundo provavelmente foi descoberto em nossos dias para que o novo e mais glorioso estado da Igreja de Deus na terra pudesse ter início aqui e para que Deus fizesse começar aqui um novo mundo espiritual, criando os novos céus e a nova terra. Deus já havia concedido ao outro continente a honra de nele ter feito nascer Cristo, no sentido literal do termo, e de ter ocasionado a redenção. Ora, como a providência observa uma espécie de igualdade na distribuição das coisas, não é insensato pensar que o grande nascimento espiritual de Cristo e a mais gloriosa aplicação da redenção devam começar aqui (...) (DELUMEAU, 1997, p. 243-244). Essa percepção milenarista passará por várias mutações, e os cristãos na América deixariam de esperar nesse milênio de Edwards para uma nova percepção mileranista, como afirmou Jean Delumeau: A revista do “despertar”, The Christian History, deixou de ser publicada em 1745, por falta de assunto. Depois dessa data, Edwards não acreditou mais ver produzir-se na América o milênio que ele esperava. Mas uma dinâmica de base escatológica subsistia, transformando-se progressivamente para dar lugar ao que se chamou o “milenarismo civil” americano. No interior desse movimento geral, o “despertar” adquiriu então uma significação parcialmente diferente daquela que Edwards queria lhe dar. Parece-nos que esse movimento contribuiu a seu modo para criar o nacionalismo americano (DELUMEAU, 1997, p. 244-245). Essas mutações no pensamento milenarista permanecerão e terão grande importância na construção do pensamento evangélico e na elaboração do dispensacionalismo. 4.3.- O Protestantismo Evangélico nos Estados Unidos da América 108 O excesso emocional caracteriza a vida religiosa dos americanos no século XVIII. Evidenciou-se sobretudo no Primeiro Grande Despertar, que teve lugar em Northampton, Connecticut, em 1734 e foi registrado pelo douto ministro calvinista Jonathan Edwards (1703-58). A população de Northampton nunca foi particularmente devota, diz ele, mas em 1734 dois jovens morreram de repente, e o choque (reforçado pelo sermão emocional de Edwards) despertou na cidade um fervor religioso que, como uma epidemia, logo se espalhou para Massachusetts e Long Island. Em vez de trabalhar, as pessoas passavam o dia lendo a Bíblia. Ao cabo de seis meses trezentos moradores experimentaram uma violenta conversão, um “renascimento” Alternavam estados de intensa euforia e de profunda depressão; às vezes ficavam arrasados e “mergulhavam num abismo, como uma sensação de culpa que lhes parecia ultrapassar a misericórdia divina”. Outras vezes “punham-se a rir; ao mesmo tempo vertendo lágrimas aos borbotões e chorando alto”. O fervor reavivado arrefecia quando o inglês George Whitefield (1714-70), pregador metodista, visitou as colônias e acendeu uma segunda chama. Durante seus sermões os fiéis desmaiavam, choravam, gritavam; as igrejas estremeciam com os brados dos que se imaginavam salvos e os gemidos dos infelizes que se julgavam condenados. A comoção não se limitava a indivíduos simples e incultos. Whitefield teve uma entusiástica recepção em Harvard e Yale e encerrou sua turnê, em 1740, com uma enorme concentração popular na praça central de Boston, onde falou para 30 mil pessoas (ARMSTRONG, 2001, p. 99100). Embora o Primeiro Grande Despertamento57 não tivesse objetivos políticos explícitos, o sentimento de liberdade espiritual desfrutado pelos que experimentaram esse fervor religioso será como semente de liberdade no imaginário dos americanos que lutaram pela independência das 13 colônias inglesas da América do Norte. Comentando sobre os elementos motivadores que levaram os colonos a separarem da Inglaterra, Karen Armstrong diz: Os que escolheram lutar pela independência seriam tão motivados pelos velhos mitos e sonhos milenaristas do cristianismo quanto pelos ideais seculares dos Fundadores. Tornou-se difícil separar o discurso religioso político (ARMSTRONG, 2001, p. 103). 57 Grande Despertamento (1730-1740) – Se refere aos períodos de grande e dramático avivamento religioso presente na história norte-americana. 109 Vê-se então que desde o nascimento dos Estados Unidos há forte presença do pensamento cristão milenarista, amalgamado ao pensamento secular, não necessariamente consciente dessa ideia política porque os fiéis, teoricamente, estavam se envolvendo em uma obra divina: Assim em muitas das principais igrejas (inclusive a anglicana) os ministros cristianizavam a retórica revolucionária de líderes populistas como Sam Adams. Ao discorrer sobre a importância da virtude e da responsabilidade no governo, o corroboravam as denúncias de corrupção dos funcionários britânicos apresentados por Adams. O Grande Despertar já levara os Novas Luzes calvinistas a desconfiar do establishment e a contar com sua própria capacidade de efetuar mudanças de peso. Quando falavam em “liberdade”, os líderes revolucionários utilizavam um termo que já possui forte conotação religiosa. Relacionavam-se com a graça, com a liberdade do Evangelho e dos Filhos de Deus, com temas como o Reino de Deus, no qual toda opressão terminaria, e com o mito de um Povo Eleito que se tornaria o instrumento divino na transformação do mundo. Thimothy Dwight (1752-1817), reitor da Universidade de Yale, referia-se entusiasticamente à revolução como o caminho para a “Terra de Emanuel” e aos Estados Unidos como “a sede daquele Reino novo e singular, que será concedido aos santos do Altíssimo”. Em 1775 o pregador Ebenezer Baldwin, de Connecticut, assegurou que as calamidades da guerra só apressariam os planos de Deus em relação ao Novo Mundo. Jesus estabeleceria seu Reino glorioso na América: a liberdade, a religião e o saber haviam deixado a Europa e cruzado o Atlântico. (ARMSTRONG, 2001, p. 104). Portanto, o protestantismo desempenhou um papel vital, fundamental na criação da primeira república secular moderna. Nos 40 anos seguintes, os Estados Unidos floresceram como uma nação profundamente cristã, e não tardou o surgimento do Segundo Grande Despertamento58. Karen Armstrong o classificou como uma onda: ... mais radical que a primeira... Odiavam acadêmicos e repetiam que todo cristão tinha o direito de interpretar a Bíblia livremente, sem se submeter a especialistas em teologia. Em seus sermões falavam de modo inteligível às pessoas comuns, geralmente recorrendo a gestos grandiloquentes... Estavam reformando o cristianismo num estilo 58 Segundo Grande Despertamento (1790-1840) - foi a segunda onda de reavivacionismo protestante ocorrida nos Estados Unidos que consistia basicamente na salvação pessoal (novo nascimento) como experiência de fé. 110 popular muito distante do refinado etos das Era da Razão... O novo gênero “gospel” levava as plateias ao êxtase: os fiéis choravam, sacudiam-se violentamente e gritavam de alegria... Não se prendiam a tradições eruditas. Tinham a liberdade dos filhos de Deus e, com bom senso, apoiando-se nos fatos das Escrituras, podiam chegar à verdade sozinhos. Criticavam a aristocracia, o establishment e o clero letrado. Enfatizavam as tendências igualitárias do Novo Testamento, segundo o qual os primeiros seriam os últimos e os últimos seriam os primeiros na comunidade cristã. Deus se revelou aos pobres e aos analfabetos: Jesus e os Apóstolos não tinham diploma universitário (ARMSTRONG, 2001, p. 109). A contribuição dos movimentos reavivacionistas na América do Norte nos dá a compreensão histórica do pensamento presente da interpretação literal da Bíblia; essa percepção pentecostalismo é presente gestado no através fundamentalismo dos movimentos cristão e no reavivacionistas, especialmente como resultando do Segundo Grande Despertamento norteamericano. Interessante análise sociológica comparativa é demostrada por Karen Armstrong: Como muitos movimentos fundamentalistas da atualidade, esses profetas do Segundo Grande Despertar proporcionaram a pessoas que se sentiam marginalizadas e exploradas nos novos estados meios de se fazer ouvir pela elite. Mas ou menos como ocorre nos grupos fundamentalistas de nossa época, deram-lhes o que Martin Luther King chamou de “a sensação de ser alguém”. Ainda como os movimentos fundamentalistas, todas essas novas seitas se voltavam para uma ordem primitiva do passado, decididas a reconstituir a fé original; todas se apoiavam nas Escrituras, interpretando-as ao pé da letra e, com frequência, de maneira simplista (ARMSTRONG, 2001, p. 111-112). Após o Segundo Grande Despertar nos Estados Unidos, será feita a análise dos protestantes evangélicos da Inglaterra, que voltaram seu olhar para a evangelização do povo judeu e o seu retorno para a Palestina e Jerusalém. Montefiori assim resumiu a ligação da Reforma Protestante com Jerusalém: Em 1517 Martinho Lutero, um professor de Teologia em Wittenberg, protestou contra a venda de “indulgências” da Igreja para limitar o tempo das pessoas no purgatório e insistiu que Deus existia apenas na Bíblia, e não por intermédio dos rituais de padres ou papas. Seu 111 corajoso protesto cutucou o difundido ressentimento em relação à Igreja, que muitos acreditavam ter perdido contato com os ensinamentos de Jesus. Esses protestantes queriam uma fé mais crua, sem mediação, e assim, livres da Igreja, eles poderiam encontrar seu próprio caminho. O protestantismo era tão flexível que logo prosperou uma variedade de novas seitas - luteranos, Igreja da Reforma, presbiterianos, calvinistas, anabatistas -, enquanto para Henrique VIII o protestantismo inglês foi um meio de afirmar sua independência política. Mas uma coisa os unia a todos: a reverência pela Bíblia, que restaurava Jerusalém como o próprio centro da sua fé (MONTEFIORE, 2013, p. 381). 4.4.- Os Protestantes Evangélicos Restauracionistas Britânicos A política diplomática britânica relativa a Jerusalém desenvolveu-se com a necessidade de ter uma ponte na região ampliando seu poder, uma vez que os franceses defendiam os católicos romanos, os russos, os ortodoxos e como havia poucos protestantes, coube aos britânicos “proteger” os judeus. Essa política objetivando diminuir a influência francesa e russa foi executada por Lorde Palmestron59, cujo genro, o Conde de Shaftesbury60, um fervoroso evangélico que queria converter os judeus a Cristo. Segundo Montefiori, o Conde Shaftesbury era um aristocrata de coração puro que: ...era também um fundamentalista que acreditava que a Bíblia “é a palavra de Deus escrita da primeira até a última sílaba”. Tinha certeza de que um cristianismo dinâmico promoveria uma renascença moral global e uma melhora da humanidade em si. Na Grã-Bretanha, havia muito que o milenarismo tinha sido sobrepujado pelo racionalismo iluminista, mas sobrevivera entre os não conformistas... Convencido de que a salvação eterna era alcançável mediante a experiência pessoal de Jesus e suas boas-novas (evangelion em grego), esses evangélicos esperavam a Segunda Vinda. Shaltesbury acreditava, como os puritanos de dois séculos antes, que o retorno e a conversão dos judeus criariam uma Jerusalém anglicana e o Reino dos Céus. Ele preparou um memorando para Palmerston: “Há um país sem nação, e 59 Lorde Palmestron - Henry John Temple (1784-1865) foi um nobre e político britânico. Foi Ministro do Interior (1852-1855), tornou-se primeiro-ministro (1855-1858 & 1859-1865). 60 Conde de Shaftesbury – Anthony Asheley-Cooper (1801 - 1885) foi um político e filantropo Inglês, um dos mais conhecidos da era vitoriana. 112 Deus, em sua sabedoria e misericórdia, nos dirige para uma nação sem país” (MONTEFIORI, 2013, p. 426). O Conde Shaftesbury acreditava sinceramente que Deus havia levantado o Império Britânico com o propósito do retorno dos judeus para Sião, e para isso, ele atuou através da diplomacia britânica. Montefiori registrou essa atuação de Shaftesbury junto às autoridades britânicas: Enquanto isso, Shaftesbury convencera o novo primeiro-ministro, Robert Peel, a apoiar a criação do primeiro bispado e da primeira igreja anglicanos em Jerusalém. Em 1841, a Prússia (cujo rei havia proposto uma Jerusalém internacional cristã) e a Grã-Bretanha nomearam em conjunto o primeiro bispo protestante, Michael Solomon Alexander, um judeu convertido. A Alemanha protestante vivenciava também um despertar evangélico. Missionários britânicos tornavam-se cada vez mais agressivos em sua missão judaica. Criaram um complexo anglicano com uma igreja – dirigida pela Jews Society – e um consulado britânico perto do portão de Jaffa, defronte à Cidadela: uma ilha de arquitetura gótica vitoriana e evangelismo missionário. No entanto, a Igreja de Cristo era – e continua sendo – única no mundo protestante: não havia cruz, apenas uma menorá (um candelabro de sete braços); tudo era escrito em hebraico, até mesmo a Oração do Senhor. Era uma igreja protestante destinada a judeus. Na abertura, três judeus foram batizados diante do cônsul Young (MONTEFIORI, 2012, p. 429). A febre pela evangelização dos judeus e por Jerusalém era tamanha que Jerusalém foi tomada por muitos evangelistas apocalípticos: “o Americam Journal of Insanity comparou essa histeria à Corrida do Ouro na Califórnia” (MONTEFIORI, 2013, p. 434). Na verdade, Jerusalém era fundamental para a visão evangélica americana e inglesa da Segunda Vinda de Cristo, daí a coqueluche evangelizadora deles. Antônio Gouvêa Mendonça, declara: Para muitos, a pregação da salvação era urgente; devia ser feita antes da segunda vinda de Cristo, do milênio portanto (GOUVÊA, 2008, p.95). 113 4.5.- O Dispensacionalismo61 O pensamento teológico do dispensacionalismo foi primeiramente formulado nos idos de 1830, nas Ilhas Britânicas, por John Nelson Darby (18001882). Várias foram as influências amalgamadas até chegar à sistematização do dispensacionalismo de Darby, sempre baseado nas abordagens mais literais da interpretação da Bíblia, em uma teologia que reconhece a distinção do plano de Deus para Israel, do plano de Deus para a Igreja, e na crença vital do Arrebatamento pré-tribulacional. Thomas Ice assim declarou: A distinção feita por Darby, entre o plano de Deus para Israel e o plano de Deus para a Igreja, formou a base de sua contribuição mais polêmica para o cristianismo evangélico – o Arrebatamento da Igreja antes da Tribulação, ou seja, o pré-tribulacionismo. Até mesmo os mais ferrenhos opositores dessa doutrina admitem a sua lógica, se Deus estiver para cumprir literalmente Suas antigas promessas a Israel. A Igreja tem de ser removida antes que Deus retorne a Sua obra para com Israel, dando condições de que os dois planos se integrem em plena participação no reino milenar (ICE, 2004, p. 64). Esse sistema teológico do dispensacionalismo chegou na América do Norte antes da Guerra da Secessão (1861-1865) através do próprio John Nelson Darby e de outros crentes da Igreja dos Irmãos. Dez anos depois da fratricida guerra, por volta de 1875, o dispensacionalismo já havia sido propagado por meio de pregações, conferências, fundações de escolas e da literatura por todo o Canadá e Estados Unidos, sendo que, no século XIX, o dispensacionalismo já havia se propagado de tal maneira, que se tornou no mais popular sistema teológico evangélico. Muitos são os motivos ou causas do crescimento do dipensacionalismo, entre eles: Primeiro, o descontentamento com as perspectivas proféticas no fim 61 Dispensacionalismo - A palavra “dispensação” vem do latim dispenso, que significa “pesar” ou “administrar”, como um mordomo... O termo grego assim traduzido é aikonomia, essa palavra é traduzido no Novo Testamento como: “administração” ou “mordomia”. (CHAMPLIM e BENTES, 1997, p. 186 - vol. 2). 114 do século XIX, sendo que a perspectiva dispensacionalista do Arrebatamento “iminente” proporcionava uma perspectiva bíblica mais plausível, muito mais coerente para a época. Segundo, numa sociedade em constantes mudanças e grande desenvolvimento tecnológico, cheia de complexidades, o dispensacionalismo, com suas explanações do plano de Deus na história, com seus gráficos dispensacionais, valorizava também as explanações complexas e lógicas. Segundo Karen Armstrong: Por bizarro que pareça, o programa pré-milenarista estava em sintonia com o pensamento científico do século XIX. Também era moderno em seu literalismo e em sua democracia. Não continha significados ocultos ou simbolismos acessíveis apenas a uma elite de místicos. Todos os cristãos, por mais rudimentar que fosse sua instrução, podiam descobrir a verdade, revelada claramente na Bíblia. Sob esse prisma as Escrituras querem dizer exatamente o que dizem: um milênio compreende dez séculos; 485 anos são 485 anos; ao falar de “Israel”, os profetas não se referem à Igreja, mas aos judeus; se o autor do Apocalipse prevê uma batalha entre Jesus e Satã na planície de Armagedon, nos arredores de Jerusalém, é exatamente isso que vai acontecer. A leitura pré-milenarista da Bíblia se tornaria ainda mais fácil para o cristão médio após a publicação de The Scofield Reference Bible (1909), um best-seller imediato. C. I. Scofield explica a divisão da história da salvação feita por Darby em notas detalhadas que acompanham o texto bíblico e que para muitos fundamentalistas têm quase tanta autoridade quanto o próprio texto (ARMSTRONG, 2001, p.166). Terceiro, era uma resposta contundente ao liberalismo que negava a veracidade histórica da Bíblia. Quarto, o dispensacionalismo se ajustava muito bem ao sistema de explicação da Bíblia, versículo por versículo. Quinto, o dispensacionalismo apresentava uma explicação plausível da soberania de Deus num mundo terrivelmente cruel, onde a maldade crescia cada vez mais. Sexto e último, a causa do crescimento do dispensacionalismo, o sionismo cristão, ou seja, a defesa dos dispensacionalistas ao retorno dos 115 judeus para a Palestina era um atrativo profético irresistível, pois tratava-se do futuro plano de Deus para Israel. Essa maneira clara e simplista de ler as Sagradas Escrituras permitiu atingir o maior número de pessoas, pois qualquer indivíduo alfabetizado poderia ler e compreender a Bíblia. Dentro dessa perspectiva, a Bíblia tornou-se acessível e compreensível a todos. Todos podiam acompanhar as grandes profecias bíblicas que estavam sendo cumpridas aos seus olhos, bastava ler a Bíblia com lentes dispensacionalistas. O dispensacionalismo foi a mensagem que mais se divulgou e a que teve o maior crescimento e aceitação, entre os fiéis, em todo o mundo protestante. 4.6.- Sionismo Cristão ou Restauracionismo62 Os ingleses adotaram uma postura diferente. Desenvolveram uma forma de sionismo cristão. Sua leitura da Bíblia os convencera de que a Palestina pertencia aos judeus, e já na década de 1870 alguns observadores ingleses ansiavam pelo estabelecimento de uma pátria judaica na Palestina sob a proteção da Grã-Bretanha. Esse ponto de vista permeava claramente a política dos cônsules britânicos. Na Inglaterra protestante, onde se lia a Bíblia literalmente, muita gente acreditava que um dia os judeus retornariam a Sião e que os árabes eram usurpadores temporários (ARMSTRONG, 2000, p. 412). Profundamente influenciado pelo dispensacionalismo, William E. Blackstone (1841 – 1935), metodista fervoroso, foi um dos mais destacados defensores do restauracionismo dos judeus na terra de Israel. Sua obra publicada em 1908, Jesus is Coming (Jesus Está Voltando) foi um best-seller, 62 Sionismo Cristão – O movimento sionista cristão teve seu início dentro do âmbito protestante, durante a Era Pós-Reforma, no começo do século XV. Um número cada vez maior de protestantes, principalmente Puritanos, começou a perceber que a Bíblia previa um reagrupamento dos judeus em sua pátria, na Terra de Israel, no fim dos tempos. Esse movimento foi chamado de “Restauracionismo”, antes do surgimento do sionismo moderno que se deu no fim do século XVII. O sionismo cristão é quase exclusivamente um movimento protestante, com livros inteiros escritos especificamente sobre o assunto desde os primórdios de 1620... Os cristãos sionistas foram e têm sido atuantes em ajudar para que o Estado de Israel da modernidade fosse fundado e mantido (ICE, 2010, p. 07). 116 sendo o mais aclamado expositor dispensacionalista de sua época. Conforme Thomas Ice escreveu: “Talvez você diga: ‘eu não creio que os israelitas devam retornar à terra de Canaã, nem creio que Jerusalém deva ser reconstruída’. Meu caro leitor, você já leu as declarações da Palavra de Deus sobre esse assunto? Certamente não existe nada que tenha sido afirmado com mais clareza nas Escrituras do que isso”. Após fazer tal declaração, as próximas quatorze páginas que ele escreveu praticamente só contêm citações das Escrituras que fundamentam sua convicção. Então ele conclui: “Poderíamos ter enchido um livro inteiro com explicações sobre a maneira pela qual Israel será restaurado à sua terra, mas nosso único desejo era o de demonstrar o fato inquestionável da profecia, fato esse que está intimamente relacionado com a aparição de nosso Senhor e que, segundo cremos, cumprir-se-á plenamente” (ICE, 2010, p. 11). O sionismo cristão, difundido por Blackstone, não tinha apenas o objetivo do retorno dos Judeus, mas também a evangelização deles. Segundo Thomas Ice, Blaskstone acreditava firmemente na evangelização dos judeus: Blackstone queria deixar um legado de evangelização para o povo judeu, de modo que pudesse contribuir para a salvação dele após o Arrebatamento da Igreja. Ele produziu e distribuiu material explicativo a fim de que os judeus soubessem como poderiam ser salvos depois que o Arrebatamento acontecesse. Houve ocasião em que Blackstone chegou a ter centenas de Novos Testamentos impressos em hebraico, os quais foram levados para Petra (na atual Jordânia) e lá estocados a fim de que o remanescente judeu pudesse conhecer o caminho da salvação durante o tempo da Grande Tribulação. (ICE, 2010, p. 14). William Blackstone, como cristão sionista, precede o moderno Movimento Sionista em pelo menos meio século. Como bem expressou Thomas Ice: “Não é de se admirar que “a Conferência Sionista de 1918, realizada em Filadélfia, tenha aclamado Blackstone como o ‘Pai do Sionismo’” (ICE, 2010, p. 15). 117 4.7.- Lugar Santo dos Protestantes A chegada dos protestantes em Jerusalém foi tardia, somente no século XIX, nesse período a velha cristandade já havia se apoderado dos “lugares sagrados”. Por isso, os protestantes ficaram sem “lugar sagrado” em Jerusalém, até que uma tumba antiga foi descoberta pelo major britânico Charles Gordon 63 sugerindo uma localização diferente para o Calvário e túmulo de Jesus Cristo. Um dos heróis da campanha do Egito foi o general Charles “Chinês” Gordon, morto no Sudão após a queda de Cartum. Sua principal contribuição para Jerusalém foi a descoberta da “Tumba do Jardim”. Muitos europeus tomaram-se de aversão à igreja do Santo Sepulcro: achavam que esse edifício obsoleto estava cheio de monges irritados e irritantes, inconciliáveis com os límpidos mistérios de sua fé. Ao estudar o levantamento militar de Wilson, Gordon encontrou certa semelhança entre um das curvas de nível e um corpo de mulher, cuja “cabeça” era um outeiro ao norte da Porta de Damasco. Esse devia ser o “Lugar da Caveira”. Quando descobriu no local um sepulcro de pedra aparentemente antigo, identificou o outeiro como o Gólgota e o sepulcro como o de Cristo. Após sua morte, a “Tumba do Jardim” se tornou um lugar santo dos protestantes (ARMSTRONG, 2000, p. 417418). A descoberta foi no ano de 1867. Em seu dia de folga, Gordon, andando pelos arredores da cidade velha, deparou-se com uma pequena elevação rochosa semelhante a uma caveira, o que o levou à conclusão de se tratar do lugar da crucificação de Jesus. Próximo do local encontrou um túmulo vazio. Segundo o arqueólogo Randall Price: Gabriel Barkay e Amos Kloner, arqueólogos de Jerusalém, demonstraram que a Tumba do Jardim é inegavelmente parte de um sistema de sepulcros na área, o mais proeminente dos quais está próximo à porta da Tumba do Jardim na propriedade da Escola Francesa de Arqueologia, a École Biblique. Todos os sepulcros neste complexo de sepulcros datam da época do Primeiro Templo ou da 63 Charles George Gordon (1833-1885) - foi um oficial do exército britânico. 118 Idade de Ferro II (séculos VIII-VII a.C.) Pela razão de o Novo Testamento dizer que Jesus foi enterrado num “sepulcro novo, em que ainda ninguém havia sido posto” (João 19.41), a Tumba do Jardim deve ser descartada para efeito de consideração (PRICE, 2001, p. 273). Gordon era evangélico batista e escreveu uma carta para a Inglaterra avisando a Comunidade Batista inglesa da "descoberta do sepulcro de Jesus" e o local da crucificação. Os batistas ingleses chegaram a Jerusalém para verificar o local e em seguida declararam como sendo o santo sepulcro de Jesus e o local da crucificação; assim, os protestantes passaram a ter um local santo em Jerusalém. A respeito dessa Tumba, a ex-freira católica Karen Armstrong declara: Trata-se de um monumento ao imperialismo britânico que mudaria para sempre a história de Jerusalém (ARMSTRONG, 2000, p. 418). Segundo a Associação do Jardim da Tumba64, instituição responsável pelo local: Este Jardim tem sido cuidadosamente preservado como um local santo, cristão, porque muitos acreditam que este pode ter sido o jardim de José de Arimateia no qual Jesus foi sepultado após Sua crucificação. Este túmulo foi descoberto em 1867. Infelizmente, sua entrada foi danificada, possivelmente por um terremoto e depois reparada com blocos de pedra. A datação exata do túmulo é contestada... O General Charles Gordon se tornou o maior expoente da ideia de que esta pedreira (agora uma estação de ônibus) poderia ter sido o local da crucificação de Jesus, evento que se deu fora da muralha da cidade. Nós não podemos ter certeza, mas é curiosa a semelhança com um crânio humano, esculpida sobre a face da rocha à sua esquerda... A Bíblia também nos diz que "no local onde Jesus foi crucificado, havia um jardim, e no jardim um novo túmulo, em que ninguém ainda havia sido sepultado." (João 19:41). Este túmulo (e presumivelmente também o jardim) pertencia a José de Arimateia, um 64 Associação do Jardim da Tumba - é uma associação de origem inglesa, criada em 1893 para a preservação do Túmulo e Jardim que se encontram fora das muralhas da Cidade Velha de Jerusalém, considerado, por muitos, como o Sepulcro e Jardim de José de Arimateia. 119 discípulo secreto de Jesus, a quem foi dado permissão especial para sepultar o corpo de Jesus antes do início do Sábado Judaico... Nós não temos nenhuma prova definitiva se, de fato, este seria o local da crucificação, sepultamento e ressurreição de Jesus. Tudo o que você viu aqui se encaixa nos detalhes descritos nas narrativas dos Evangelhos e ajuda as pessoas a imaginarem os eventos maravilhosos da primeira manhã da Páscoa Cristã (Associação do Jardim da Tumba, Jerusalém 91193, Israel). O arqueólogo Randall Price apresenta a seguinte consideração sobre o Jardim do Túmulo e a Igreja do Santo Sepulcro: ...quando os turistas em Jerusalém são levados para visitar o sepulcro de Jesus, em geral são lhes mostrados dois lugares que os guias dizem que competem pelo título do local do sepultamento de Jesus. Um deles é o local protestante conhecido como Calvário de Gordon, assim chamado por causa do nome daquele que o descobriu... O outro é o local tradicional da Igreja do Santo Sepulcro, cuja história remonta a pelo menos o século IV d.C. (baseado na existência de colunas ainda em uso hoje procedentes da igreja de Constantino e sua descrição em fontes bizantinas). Enquanto que a maioria dos cristãos evangélicos prefere o local sereno e calmo da Tumba do Jardim situada próxima à colina que Gordon identificou como a Colina da Caveira ou Gólgota, não há nenhuma evidência arqueológica que apoie esse local. Previamente seu principal apoio adveio do fato de que estava fora dos atuais muros da Cidade Velha, ao passo que a Igreja do Santo Sepulcro situava-se dentro. Considerando que o Novo Testamento deixa bem claro que Jesus foi crucificado “fora da porta” (João 19.20; Hebreus 13.11,12) e que foi presumido que os modernos muros seguiam o curso antigo, o apoio para a Igreja do Santo Sepulcro dependia principalmente da tradição. Porém, em fins da década de 1960, Kathleen Kenyon descobriu prova de que o muro que hoje inclui o local tradicional era um “Terceiro Muro” construído depois do tempo de Jesus (cerca de 41 d.C.) Portanto, quando Jesus foi crucificado, teria estado fora do antigo “Segundo Muro”. Além disso, em 1976, Magen Broshi desenterrou uma porção de muro herodiano em seção nordeste da igreja. Isso significa que quando Jesus foi crucificado a área na qual a igreja está construída achava-se imediatamente fora do Muro Ocidental da cidade na linha do Primeiro Muro. Outros descobriram que havia uma “Porta do Jardim” neste muro, o que concorda com as referências a um jardim nesse lugar (João 19.41; 20.15)... Em fins da década de 1970, escavações no local revelaram o fundamento do foro romano de Adriano, sobre o qual o Templo de Afrodite fora construído (cerca de 135 d.C.). Adriano tinha construído templos e santuários pagãos aqui para sobrepujar as anteriores estruturas religiosas, da mesma maneira que fizera no local do Templo Judaico. Se este fosse o local venerado pelos cristãos primitivos como 120 o sepulcro de Jesus, teríamos explicação para esta localização do edifício. Eusébio (século IV), historiador da igreja, fala que Adriano construiu enorme plataforma retangular em cima desta pedreira, “escondendo a caverna santa debaixo deste montículo volumoso”... Ainda há outra consideração a favor da Igreja do Santo Sepulcro: o tipo de sepulcro no qual Jesus foi posto. No século I, estavam em uso dois tipos de sepulcros. Um era o kokim, forma mais comum, que são nichos estreitos muito longos talhados em ângulo reto na câmara das paredes da caverna mortuária. O outro tipo, chamado arcosólia, eram saliências pouco profundas talhadas paralelas à parede da câmara com um topo na forma de arco sobre o vão. Este tipo de sepulcro eram reservados para pessoas de posse e alto nível social. Parece ter sido este o tipo de sepulcro no qual Jesus foi colocado, porque está escrito que o sepulcro de Jesus era o sepulcro de um homem rico (Mateus 27.57-60; cf. Isaías 53.9), o corpo pôde ser visto pelos discípulos quando foi colocado (possível somente num sepulcro talhado na forma de saliência, João 20.5,11) e os anjos foram vistos sentados onde haviam estado a cabeça e os pés de Jesus (João 20.12). O sepulcro gravemente erodido na Tumba do Jardim não tem nenhuma destas características, ao passo que o pretenso sepulcro de Jesus no local tradicional, embora, deformado por séculos de peregrinos dedicados, é nitidamente composto de uma antecâmara e um arcosolium talhada na pedra (PRICE, 2001, p.272-273 e 276). Independentemente, qual seja o “verdadeiro lugar sagrado”, o mundo protestante evangélico desenvolveu seu imaginário através da leitura literal das Sagradas Escrituras e aparentemente o Jardim do Túmulo se “parece” mais com o túmulo de Jesus, conforme registro bíblico65, do que a velha Basílica do Santo Sepulcro, repleta de misticismo católico, dominado por sete tradições religiosas católicas diferentes, local cheio de animosidades e rituais misteriosos, como o “fogo sagrado” dos ortodoxos, além de outros rituais religiosos místicos, intoleráveis na percepção protestante, interpretado como idolatria. 4.8.- A Conquista Britânica A Primeira Guerra Mundial eclodiu em 1914, o enfrentamento foi entre a Tríplice Aliança formada em 1882 por Itália, Império Austro-húngaro e Alemanha (a Itália saiu da Tríplice Aliança e passou para a Tríplice Entente em 1915). Do 65 João 19.20. 121 outro lado a Tríplice Entente, formada em 1907, com a participação de França, Império Czarista Russo e Reino Unido. O velho Império Otomano aliou-se à Tríplice Aliança: A Turquia aliou-se à Alemanha contra a França e a Inglaterra. Jerusalém tornou-se quartel-general do VIII Exército Turco. A tragédia que se desenrolou entre 1915 e 1918 foi o prelúdio de uma catástrofe que teria profundo impacto na história de Jerusalém... Em 1916, os ingleses chegaram à conclusão de que uma vitória espetacular no Oriente Próximo acabaria com o impasse da guerra de trincheira na França. A Força Expedicionária Anglo-Egípcia deslocou-se para a península do Sinai, mas encontrou firme resistência turca em Gaza. O general Edward Allenby, a quem o primeiro ministro Lloyd George recomendara que conquistasse Jerusalém para oferecê-la ao povo britânico como presente de Natal, substituiu o general Murray e tratou de estudar atentamente as publicações do FEP: como na conquista de Napoleão, mais de um século antes, o estudo científico preludiou a ocupação militar. Em outubro de 1917, Allenby tomou Gaza e deu início a seu avanço sobre Jerusalém. O governador Djemal Pasha ordenou que os turcos evacuassem cidade, onde a única autoridade presente em 9 de dezembro era o prefeito Hussein Selim al-Husaini. À frente de um cortejo de meninos, al-Husaini deixou a Cidade Velha pela Porta de Jafa e entregou Jerusalém a dois atônitos batedores ingleses. Quando Allenby chegou à Porta de Jafa, em 11 de dezembro, todos os sinos repicaram para saudá-lo. Por respeito à santidade da “Jerusalém Bendita”, o general apeou-se e seguiu a pé até a escadaria da Cidadela. Em nome do governo de Sua Majestade garantiu aos habitantes locais que protegeria os lugares santos e preservaria a liberdade religiosa das três crenças de Abraão. Havia completado a obra dos cruzados (ARMSTRONG, 2000, p. 423-424). Em 02 de novembro de 1917, basicamente um mês antes da entrada de Allenby em Jerusalém, o primeiro-ministro britânico Lloyd George orientou seu ministro do Exterior, Lord Balfour, a escrever uma carta a Lord Rothschild com a seguinte declaração: O governo de Sua Majestade considera favoravelmente a criação, na Palestina de um lar nacional para o povo judeu e envidará seus maiores esforços no sentido de facilitar a concretização de tal objetivo, estando claramente entendido que nada se fará para prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina ou os direitos e a situação política dos judeus em qualquer outro país (ARMSTRONG, 2000, p. 427-428). 122 A Inglaterra sempre alimentou a esperança restauracionista do retorno do povo judeu à Palestina. No final da Primeira Guerra Mundial, ela reunia todas as condições de realizar esse sonho britânico há tempos gestado no imaginário cristão protestante evangélico e nesse momento havia vantagem política nesse processo: Durante muito tempo a Inglaterra alimentara a fantasia do retorno dos judeus à Palestina. Em 1917, em plena guerra mundial, possivelmente houve também considerações estratégicas. Um protetorado britânico de judeus agradecidos poderia contrariar as ambições dos franceses na região (ARMSTROG, 2000, p. 428). Em 1917 ocorreu um fato histórico de extrema relevância para o término da Primeira Guerra Mundial - a entrada dos Estados Unidos da América ao lado da Tríplice Entente. Este fato marcou a vitória da Entente, forçando os países da Aliança a assinarem a rendição. Os derrotados tiveram ainda que assinar o Tratado de Versalhes que impunha a estes países fortes restrições e punições. O Império Otomano derrotado após a Primeira Guerra Mundial assinou, em 10 de agosto de 1920, a paz em Sèvres (Hauts-de-Seine). Os Aliados impuseram o desmembramento do Império Otomano, cujo território ficou reduzido à Anatólia e uma pequena porção europeia. A Inglaterra e França firmaram o secreto Acordo Sykes-Picot, que dividiu as províncias árabes do Império Otomano em zonas e protetorados britânicos e franceses. Entre os anos de 1917 a 1920, a Inglaterra controlou militarmente a denominada Administração dos Territórios Inimigos Ocupados, ou seja, a Palestina e Jerusalém estiveram sob o controle militar dos ingleses. Em Abril de 1920, a Inglaterra foi oficializada como responsável para administrar a Palestina: O artigo 22 do Pacto da Liga das Nações instava-a a aplicar “o princípio de que o bem estar e o desenvolvimento (do povo palestino) constituem um dever sagrado da civilização”. Instava-a também a 123 implementar a Declaração Balfour e preparar o caminho para o estabelecimento de um Lar Nacional Judaico na Palestina. Para isso seria criada uma Agência Judaica que contribuiria igualmente para o desenvolvimento do país em geral (artigo 4). Caberia ainda à Agência facilitar “a concessão da cidadania palestina aos judeus” (artigo 6) e “a imigração judaica em condições adequadas” (artigo 7) (ARMSTRONG, 2000, p. 430). Durante a Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo nazista de 1933 a 1945 exterminou seis milhões de judeus, simplesmente pelo fato de ser judeu. Anciãos, crianças, jovens, adultos foram mortos indiscriminadamente, pois os nazistas procuravam processos de exterminar o mais rápido possível a etnia judaica. Os campos de extermínios como o de Auchiwitz, Treblinka, Dachau, Soberbowr e outros usavam as técnicas de cremação e jogavam o pó nos rios, para não deixar vestígios; embora as autoridades mundiais soubessem, não se mobilizaram para fazer algo pelos judeus, alguns isoladamente procuraram fazer algo, mas foi muito pouco em relação à dimensão e à monstruosidade da máquina nazista. Quando os nazistas perceberam que iam perder a guerra, ficaram preocupados e começaram a desativar os campos de extermínios para não deixar nenhum vestígio e portanto não deixar prova, mas não houve tempo para desativar o campo de Auchiwitz na Polônia. Existia no mundo na época aproximadamente onze milhões de judeus, dos quais o regime nazista exterminou seis milhões. 4.9.- O Fim do Mandato Britânico Após dois mil anos de exílio, dispersão, sofrimento, angústias, discriminação e isolamento o povo de Israel, povo deslocado, “povo errante”, voltou a sua terra; muitos voltaram sobreviventes do holocausto, buscando 124 refúgio de um mundo que assistiu ao extermínio de seis milhões de judeus europeus. Milhares de judeus, vislumbrando vida nova na Terra Prometida, foram barrados pelos ingleses, que lhes impediam acesso à Palestina. Os ingleses não conseguiam manter a paz entre quinhentos mil judeus e um milhão de árabes, cada um com seu sonho de independência. A maioria árabe se opunha ao simples conceito de um Estado Judeu. Os ânimos ferviam em ambos os lados, povoados judeus iam se isolando devido aos frequentes ataques árabes tornando a vida impossível. Em 29 de novembro de 1947 a Palestina foi dividida em dois Estados, um judeu e outro árabe. No dia seguinte, cinco mil árabes marcharam em Jerusalém rumo ao centro judaico, destruindo tudo pelo caminho. Uma bomba colocada na rua Ben Yehuda deixou judeus soterrados sob os escombros. Atiradores árabes fizeram dos judeus seus alvos. Oitenta mil judeus de Jerusalém permanecerem na cidade santa, racionando suas reservas de água e comida. No dia 20 de abril as brigadas judaicas avançaram rumo a Jerusalém juntamente com um comboio de aproximadamente trezentos caminhões que deveriam abastecer a cidade e libertar toda Jerusalém. Após pesado combate, mil e quinhentos soldados judeus abriram caminho e conquistaram partes estratégicas de Jerusalém. Em maio de 1948, David Ben Gurion declarou a independência do Estado Judeu na terra de Israel. Enquanto as tropas britânicas zarpavam da baía de Haifa, Israel hasteava a sua bandeira no porto protegido pelo primeiro navio da marinha de Israel, mas as comemorações duraram pouco, pois os países árabes decidiram atacar a jovem nação. Toda essa história era assistida com fervorosa fé e oração pelos protestantes evangélicos dispensacionalistas do mundo todo, em especial os pentecostais do Brasil, para eles era o cumprimento das profecias da Bíblia Sagrada. 125 4.10.- O Renascimento de Israel No dia 29 de novembro de 1947, a 1ª Assembleia Ordinária da ONU aprovou a criação do Estado de Israel; na percepção profética dos evangélicos dispensacionalistas, nasceu uma nação num só dia. O dia 14 de maio de 1948 foi o prazo dado às tropas britânicas para se retirarem da Palestina e passarem a administração para os judeus assumirem seu governo. Foi quando Davi Ben Gurion fez a Declaração da Fundação do Estado de Israel, 14 de maio de 1948 a data da Independência de Israel. Os evangélicos dipensacionalistas, crentes na literalidade da Bíblia, declaravam que o Estado Judeu nascera num só dia, assim como vaticinara o Profeta Isaías: Quem jamais ouviu tal coisa? Quem viu coisas semelhantes? Poderse-ia fazer nascer uma terra em um só dia? Nasceria uma nação de uma só vez? Mas Sião esteve de parto e já deu à luz seus filhos (Isaías 66.8 - ARC). No entendimento evangélico dispensacionalista a declaração: “mas Sião esteve de parto...” foi o holocausto, a agonia, a angústia, o sofrimento do povo judeu na Europa, mas depois Sião deu à luz, depois do holocausto, depois da derrocada do nazismo, nasceu o Estado de Israel, cumprindo a palavra do profeta Isaías. Para sustentar sua teologia os evangélicos dispensacionalistas citam ainda a literalidade de Jeremias 31.15-17 e Ezequiel 36.24: Assim diz o SENHOR: Uma voz se ouviu em Ramá, lamentação, choro amargo; Raquel chora seus filhos, sem admitir consolação por eles, porque já não existem. Assim diz o SENHOR: Reprime a voz de choro, e as lágrimas de teus olhos, porque há galardão para o teu trabalho, diz o SENHOR; pois eles voltarão da terra do inimigo. E há esperanças no derradeiro fim, para os teus descendentes, diz o SENHOR, porque teus filhos voltarão para o seu país (Jeremias 31.15-17 - ARC) E vos tomarei dentre as nações, e vos congregarei de todos os países, e vos trarei para a vossa terra (Ezequiel 36.24 - ARC). 126 Os judeus vieram de todas as partes do mundo e até hoje estão voltando para a terra de Israel, a terra de seus pais, a terra dos patriarcas, para Eretz Israel; na crença dos dispensacionalistas esse é o cumprimento inequívoco e literal da Palavra de Deus. Lembrando que o primeiro país a reconhecer o estado judaico imediatamente após sua declaração de independência no dia 14 de maio de 1948, foram os Estados Unidos da América, sendo o Presidente Harry Truman o primeiro líder mundial a fazer isso; além dos interesses políticos e geopolíticos de Truman, há o motivo religioso do presidente batista, como acentuou Carroll: Truman não era filossemita, mas crucial para sua decisão a favor de Israel foi sua associação permanente, como batista (e membro do Comitê Palestino Cristão Americano), com o programa sionista cristão, como vimos, de apoiar a reintegração dos judeus a terra de Israel como precondição da Segunda Vinda de Jesus. Não havia dúvida de que, ao reconhecer o estado judaico, Truman desejava o melhor às vítimas de Hitler, mas, talvez inconscientemente, ele também considerasse natural que, ao apoiar o retorno dos judeus a Sião, eles seriam instrumentos de sua própria derrota final (CARROLL, 2013, p. 311). Esse apontamento mostra a forte presença da visão dispensacionalista nos membros das igrejas evangélicas dos Estados Unidos da América. 4.10.1.- Um “golpe” na “Doutrina da Substituição” e da “errância do povo judeu”. A volta do povo judeu para a terra de Israel foi um duro “golpe” no imaginário cristão católico, defensor da milenar doutrina da Substituição da 127 nação de Israel pela Igreja Cristã e da errância do povo judeu. Assim descreveu James Carroll: No tempo de Constantino, início do século IV, depois de duzentos anos sendo uma cidade pagã conhecida como Aelia Capitolina, Jerusalém foi reconstruída como lugar santo cristão – um símbolo da substituição de Israel pela Igreja. No local onde a mãe de Constantino “descobriu” a Cruz Verdadeira foi construída a Igreja do Santo Sepulcro, dando à cidade seu novo Templo. A teologia da Substituição inseria-se num contexto geográfico: como o sinal da aliança de Deus era “a terra que Eu te darei”, com a quebra da aliança, a terra foi tomada. Pelo final do século IV, entendia-se que Santo Agostinho considerava a quase inexistência de judeus em Jerusalém – ele citava um Salmo para ordenar “Dispersem-nos!” – como prova de que eram os cristãos que detinham o direito de posse da cidade. Começou nesse ponto “o judeu errante”. Desde então, como vimos, quando os cristãos governaram a cidade, os judeus eram proibidos de lá residir. A Igreja Católica Romana e a Ortodoxa Oriental foram as principais guardiãs dessa tradição, que não foi minimamente alterada pelas crenças restauracionistas do século XIX professadas por evangélicos protestantes na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Para os católicos e outras denominações cristãs preponderantes, “Nada de judeus em Jerusalém”: ponto (CARROLL, 2013, p. 287). Aproximadamente quarenta e quatro anos antes do restabelecimento do Estado de Israel na Palestina, o jornalista fundador do sionismo 66, o judeu Theodor Herzl67, teve um encontro com o Papa Pio X68. Carroll descreve o encontro apresentando o pensamento de Herzl sobre a frustração de seu objetivo sobre uma questão de reverência entre ele e o papa, enquanto que, o 66 Sionismo- É um movimento político e filosófico que defende o direito à autodeterminação do povo judeu e à existência de um Estado nacional judaico independente no território onde historicamente existiu o antigo Israel. Denominado de nacionalismo judaico, historicamente propõe o fim da Diáspora Judaica, com o retorno dos judeus para o Estado de Israel. O movimento defende a manutenção da identidade judaica, opondo-se à assimilação dos judeus pelas sociedades dos países onde vivem. Surgido no final do século XIX na Europa Central e Oriental como um movimento de revitalização nacional, logo foi associado pela maioria dos seus líderes, à colonização da Palestina. A Organização Sionista Mundial foi criada em 3 de setembro de 1897 durante o primeiro Congresso Sionista Mundial que se realizou em Basileia na Suíça. Esta organização, que se denominou inicialmente Organização Sionista, serviu como frente organizativa para o movimento sionista. Em 1960 a organização adotou o nome de Organização Sionista Mundial. A sede da organização está em Jerusalém (Israel). 67 Theodor Herzl (1860-1904) – Jornalista judeu austríaco foi o fundador do Sionismo político. Theodor Herzl foi eleito o primeiro presidente da Organização Sionista Mundial. 68 Papa Pio X (1835-1914) - Cardeal Giuseppe Sarto foi eleito para o Sumo Pontificado, como Pio X, foi o único Papa canonizado no século XX. 128 que estava em jogo era a “Doutrina da Substituição” e da “errância do povo judeu”: Não admira que Theodor Herzl, por seu próprio relato, se sentisse apreensivo quando chegou no Vaticano, no dia 25 de janeiro de 1904, para uma audiência particular com o papa Pio X. Herzl fora bemsucedido em atrair monarcas e autoridades governamentais para sua causa, e agora esperava obter o apoio do Vaticano. Na verdade, ele estava instigando o que um historiador chama de “revolta contra o destino judaico” – contra a febre de Jerusalém que havia muito infectara o mais sagrado nicho da imaginação ocidental. Sua iniciativa com relação ao Vaticano fora arranjada por um conde papal seu conhecido, o conde o orientara insistentemente a beijar o anel do papa. Mas Herzl não conseguiu fazer isso. Quando Pio X lhe ofereceu a mão adornada, Herzl simplesmente retribuiu em um aperto. “Creio que isso arruinou as minhas possibilidades com ele”, escreveu no seu diário no dia seguinte, mas considerando os objetivos de Herzl as possibilidades haviam sido arruinadas 1.800 anos antes (CARROLL, 2013, p. 287288). O diálogo entre Herzl e o Papa Pio X apresenta o real problema entre a petição de Herzl e a doutrina católica da substituição, ou seja, o Vaticano não poderia jamais apoiar o retorno dos judeus para a terra santa, porque contrariava a doutrina católica da substituição. Carroll descreve o diálogo da seguinte maneira: “Papa: ‘Estamos impossibilitados de apoiar esse movimento (sionismo). Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém, mas jamais poderíamos aprovar isso. O solo de Jerusalém, não fosse sagrado desde sempre, foi santificado pela vida de Jesus Cristo. Como chefe da Igreja, não posso responder-lhe de outra forma. Os judeus não reconheceram nosso Senhor, portanto não podemos reconhecer o povo judeu”. Como que tirando a escara da ferida de mil anos da cristandade, Herzl replicou, “E quanto à condição atual da cidade, Santo Padre?”. Pio X respondeu: “Eu sei, é desagradável ver os turcos de posse de nossos Lugares Santos. Nós simplesmente temos de suportar isso. Mas aprovar o desejo dos judeus de ocupar esses lugares, isso não podemos fazer”. Apesar de todo o longo conflito, e mesmo ódio, da cristandade com o inimigo islâmico, não havia afronta teológica muçulmana que se comparasse com o insulto eterno que a Igreja recebera dos judeus. Como que explicando o porquê disso, o papa continuou: “A fé judaica era a base de nossa própria fé, mas foi substituída pelos ensinamentos de Cristo, e não podemos admitir que ainda goze de qualquer validade. Os judeus, que deveriam ter sido os 129 primeiros a reconhecer Jesus Cristo, não o aceitam até hoje”. O encontro do papa com o sionista assumira o caráter de uma disputa medieval. Herzl disparou de volta, “Terror e perseguição não (são) exatamente os melhores meios de converter os judeus”. Pio X aparou o golpe com uma lâmina, embainhada numa rara apreciação papal de origens históricas, “Nosso Senhor veio sem poder nenhum. Ele veio em paz. Ele não perseguiu ninguém. Foi abandonado até por seus apóstolos. Só mais tarde foi que adquiriu estatura. Foram necessários três séculos para que a Igreja evoluísse. Portanto, os judeus tiveram bastante tempo para aceitar sua divindade sem coação ou pressão. Mas optaram por não fazer isso, e ainda não, o fizeram”. E então cada homem, ao seu próprio modo, chegou ao cerne da questão. Herzl disse, “Mas, Santo Padre, os judeus se encontram numa situação terrível. Não sei se Vossa Santidade está a par da enormidade da tragédia que vivem. Precisamos de uma terra para essas pessoas expropriadas”. Reiterando a tradição fulcral, o papa perguntou: “Pecisa ser Jerusalém?”. A resposta de Herzl está impregnada da implicação de que o sionismo ainda não estava infectado pela febre da restauração religiosa. “Não estamos pedindo Jerusalém, mas a Palestina – apenas a terra secular”. “Não podemos ser favoráveis a isso”, declarou Pio X. E ameaçou com a sentença católica suprema: “E assim, se forem à Palestina e fixarem seu povo lá, estaremos prontos com igrejas e padres para batizá-los”. Depois disso, relata Herzl, o papa “pegou um pitada de rapé e espirrou num grande lenço de algodão vermelho... A audiência durou em torno de 25 minutos”. Ao retirar-se da presença do papa, Herzl passou pela galeria de arte do Vaticano. “Vi o quadro de um imperador ajoelhado diante de um papa sentado, recebendo a coroa de suas mãos. É isso que Roma quer” (CARROLL, 2013, p. 288-289). A base teológica da Igreja Católica Apostólica Romana contra o Movimento Sionista Mundial de Herzl está descrita na publicação jesuíta oficial Civilità Cattolica em 1897, conforme reproduz Carrol em seu livro: Mil oitocentos e vinte sete anos se passaram desde que a predição de Jesus de Nazaré se realizou, isto é, que Jerusalém seria destruída... que os judeus seriam levados como cativos para todas as nações e que permaneceriam na dispersão até o fim do mundo... Segundo as Escrituras Sagradas, o povo judeu deve viver sempre disperso e vagabundo (vagabundo, errante) entre as outras nações lpara dar testemunho de Cristo, não só pelas Escrituras... mas por sua própria existência. Quanto a uma Jerusalém reconstruída que poderia se tornar o centro de um Estado de Israel reconstituído, precisamos acrescentar que isso é contrário à previsão do próprio Cristo que prediz que “Jerusalém será pisada pelos gentios até que se completarem os tempos das nações pagãs” (Lucas 21.24), isto é... até o fim do mundo (CARROLL, 2013, p. 289-290). 130 A teologia católica da “substituição” e da “errância do povo judeu” reinou sem ameaça até 1948, quando foi restabelecido o Estado de Israel. Nesta questão de percepção teológica a respeito da restauração dos judeus na Palestina, podemos notar a diferença abissal da doutrina católica em relação à evangélica, como bem pontuou Carroll: Essa antiga convicção católica romana e ortodoxa oriental de que Deus proíbe a volta dos judeus a Jerusalém não poderia contrastar mais agudamente com a moderna certeza evangélica protestante de que Deus deseja a reintegração dos judeus em Jerusalém – no entanto, no fundo essas duas visões cristãs colocam a relação dos judeus com Jerusalém no centro da teologia do Fim dos Tempos... Não somente Jerusalém, a cidade eternamente judaica, desencadeou a fúria da imaginação cristã, e esse, naturalmente, é mais uma aspecto do desdém cristão pelos judeus (CARROLL, 2013, p. 290-291). O segundo “golpe” dado à “Doutrina da Substituição” e da “errância do povo judeu” foi a anexação de Jerusalém por Israel em 1967. Carroll faz a seguinte análise desta questão: Os gregos também faziam parte disso, enquanto Bizâncio levara adiante pressupostos da expulsão dos judeus da terra que Constantino e sua mãe, Helena, haviam tornado sagrada. Mas agora o Vaticano era o principal guardião da teologia do exílio e era expectativa universal que ele fosse uma das partes em qualquer arranjo de internacionalização. O desejo insatisfeito de Roma por Jerusalém era a própria gênese da mimese – da rivalidade mimética. Novamente, a justificação expressa para a política proposta apelava à razão e à equidade: a internacionalização respeitaria as necessidades religiosas dos três monoteísmos que possuíam santuários no coração da Cidade Velha. Mas também em vigência estava o dogma teológico que Pio X havia exposto tão francamente a Theodor Herzl, o qual exigia a ausência judaica de Jerusalém como prova de que os cristãos eram os verdadeiros herdeiros de Jesus, que a havia predito. Como revelaria a falta de objeções do Vaticano ao controle jordaniano da Cidade Velha, que durou de 1948 até 1967, era especialmente a soberania judaica que constituía problema. Não houvera nenhuma exigência de um corpus separatum quanto os árabes estava no controle. A rejeição ao poder judaico sobre Jerusalém estava instalada no DNA do cristianismo 131 e, portanto, em 1948, da civilização ocidental. Para a Igreja Católica, essa rejeição equivalia a um dogma. De fato, por causa de sua obrigação divinamente ordenada de se opor a volta dos judeus para a terra natal judaica, o Vaticano se recusaria a reconhecer diplomaticamente Israel por quase meio século (CARROLL, 2013, p. 310). Embora, o protestantismo tenha desenvolvido seu imaginário religioso sobre Jerusalém tardiamente, ele recuperou em parte a experiência das fés anteriores, apropriando-se da cidade santa, porém sua experiência será influenciada por uma perspectiva mais simbólica. De modo geral, o mundo protestante terá um imaginário sobre a cidade mais alegórico e transcendente, destituído da paixão mística política-religiosa. O protestantismo tradicional de maneira geral faz uma leitura augustiniana, onde a interpretação alegórica está presente, diferentemente de seus irmãos evangélicos dispensacionalistas, que criarão um imaginário mais literal das Sagradas Escrituras. 5.- A Construção Do Imaginário Evangélico Pentecostal Clássico Sobre Jerusalém 132 Os evangélicos pentecostais69 são oriundos de um vasto movimento reavivacionista de herança wesleyana e Holiness70 norte-americano, desde o fim do século XVII até sua eclosão na virada do século XX. O Dr. Gary B. McGee, catedrático de Estudos Bíblicos na Faculdade Teológica Evangel, em seu panorama histórico do pentecostalismo, assim escreveu: Com a chegada do reavivalismo, no fim do século XVII e início do século XVIII, na Europa e na América do Norte, os pregadores calvinistas, luteranos e arminianos passaram a enfatizar o arrependimento e a piedade na vida cristã. Qualquer estudo do Pentecostalismo tem de se ater aos eventos desse período, especialmente à doutrina da perfeição cristã ensinada por João Wesley, o pai do Metodismo, e pelo seu assistente João Fletcher. A publicação por Wesley de A Short Account of Christian Perfection (1760) conclama seus seguidores a buscarem uma nova dimensão espiritual. Essa segunda obra da graça, posterior à conversão, libertaria os crentes de sua natureza moral imperfeita, que os tem induzido ao comportamento pecaminoso. Essa doutrina chegou à América do Norte, e inspirou o crescimento do Movimento da Santidade. A ênfase voltada à vida santificada, mas sem mencionar o falar noutras línguas, registrado nas Escrituras (“derramamento do Espírito”, “batismo no Espírito Santo”, “línguas de fogo”), tornou-se “marca registrada” da literatura e hinódia do Movimento da Santidade. Uma das principais líderes da ala metodista do movimento, Phoebe Palmer, editou o Guide to Holiness e escreveu entre outros livros, The Promise of the Father (1859). Outro escritor popular, William Arthur, escreveu Tongue of Fire (1856) um grande sucesso literário (HORTON, 1999, p. 12-13). O professor e conferencista pré-tribulacionista71 Dr. Thomas Ice72 assim definiu o pentecostalismo: O pentecostalismo é, em seu cerne, uma suposta restauração do cristianismo apostólico que tem por objetivo produzir, na época da 69 Pentecostal – A palavra pentecostal tem suas raízes na festa dos judeus, comemorada na quinquagésimo dia posterior à Páscoa Judaica. A Septuaginta usa o termo pentêconta hêmeras como a tradução do hebraico cinquenta dias, referindo-se ao número de dias partindo da oferta do molho da cevada até o inicio da Páscoa. Ao quinquagésimo dia era a festa de pentecostes (DOUGLAS, 1997, p. 1265 apud BITUN, 2011, p. 49). 70 Herança Wesleyana e Holiness – referente à herança teológica que dá ênfase a santidade, doutrina da perfeição cristã ensinada por João Wesley, o pai do Metodismo. 71 Pré-Tribulacionista – Adepto da crença evangélica que acredita no arrebatamento dos cristãos nascidos de novo para o céu, antes da grande tribulação. 72 Thomas Ice - É diretor executivo do Pre-Tribulation Research Center (Centro de Pesquisas Pré-Tribulacionista) em Arlington, Texas (EUA). Ele é Ph.D. pelo Seminário Teológico de Dallas e pelo Seminário de Tyndale. Autor de dezenas de artigos e co-autor de mais de 20 livros, é conferencista. 133 chuva serôdia, uma colheita em preparação para a volta de Cristo. A expressão “chuva serôdia” é proveniente de Joel 2.23 e 28, e, ás vezes, de Tiago 5.7, como um designativo que descreve um reavivamento no fim dos tempos e uma colheita evangelística esperados por muitos carismáticos e pentecostais. Estes creem que o Espírito Santo, nalguma ocasião futura, será derramado de modo nunca dantes visto. O ensino da chuva serôdia desenvolve-se a partir do modelo agrícola que demonstra, por parte do agricultor, a necessidade de chuva em dois momentos cruciais do ciclo de crescimento dos vegetais a fim de produzir uma safra abundante. O primeiro momento se dá logo após o plantio da semente, quando a “chuva temporã” é necessária para a germinação da semente a fim de que a plantação seja saudável. O segundo momento em que a plantação precisa de chuva é imediatamente antes da colheita, precipitação que se denomina “chuva serôdia”, de modo que haja uma alta produção de grãos até o momento da colheita que vem logo a seguir. O pentecostalismo da chuva serôdia defende o ensino de que o derramamento do Espírito em Atos 2 foi a “chuva temporã” e que o derramamento do Espírito que diz respeito à “chuva serôdia” ocorrerá no final dos tempos” (ICE, 2004, p. 90-91). A história do pentecostalismo é bastante complexa e emblemática, uma vez que ela é resultante de vários avivamentos e movimentos espirituais de santidade oriundos do protestantismo anglo-saxônico. Thomas Ice assim resumiu a história do pentecostalismo: ...o movimento pentecostal teve início em 1 de janeiro de 1901 na cidade de Topeka, capital do estado de Kansas, quando Agnes Ozman (1870-1937) falou em línguas sob a tutela de Charles Fox Parham (1873-1929)... “o pentecostalismo, nos primeiros anos, era denominado de ‘Movimento da Chuva Serôdia’”... Isso se deve ao fato de que Parham intitulou seu registro do novo movimento de The Latter Rain: The Story of the Origin of the Original Apostolic or Pentecostal Movements (“Chuva Serôdia: A História do Nascimento dos Movimentos Pentecostais ou Apostólicos Originais”). Muitos também estão informados de que William J. Seymour (1870-1922), sob a influência de Parham, foi a Houston, no Texas, em 1905, e em seguida levou a mensagem pentecostal para a rua Azusa em Los Angeles no ano de 1906, de onde ela se disseminou para os quatro cantos da terra... Sem dúvida, a doutrina da chuva serôdia foi um dos principais componentes do pentecostalismo (ICE, 2004, p. 91). 134 Armstrong (2001), apresenta a história do pentecostalismo como uma fé “pós-moderna” que ojeriza a modernidade racional do Iluminismo, não se interessando na dogmática, mas voltando para o primitivismo eclesiástico de Atos dos Apóstolos, algo retomado na rua Azusa em Los Angeles pelo pastor afro-americano William Joseph Seymour73. O Movimento Pentecostal inicial, adepto da doutrina da “Chuva Serôdia” de herança wesleyana e holiness, propunha o aperfeiçoamento individual (santificação) e o aperfeiçoamento social no âmbito coletivo. Thomas Ice apresenta o pensamento de alguns líderes pentecostais para explicar o distanciamento do pentecostalismo da doutrina da “Chuva Serôdia” para a adesão ao dispensacionalismo: Donald Dayton declara que “o moderno pentecostalismo é a ‘chuva serôdia’, o derramamento especial do Espírito, que nos últimos dias restaura os dons como parte da preparação para a ‘colheita’, a volta de Cristo em glória”. David Weslwy Myland (1858-1943) foi um dos primeiros líderes pentecostais, sendo o autor do primeiro hino nitidamente pentecostal, intitulado The Latter Rain (“A Chuva Serôdia”) escrito em 1906. Em 1910, surgiu “a primeira teologia distintamente pentecostal, Latter Rain Covenant (“Pacto da Chuva Serôdia”), que foi amplamente distribuída. Em seu livro, Myland alega que “agora estamos no Pentecoste Gentílico, o primeiro Pentecoste deu início à Igreja, o corpo de Cristo, e este, o segundo Pentecoste, une e aperfeiçoa a Igreja para a volta do Senhor”. Dayton chega à conclusão de que “a doutrina geral da chuva serôdia estabelecia uma premissa (...) chave da lógica do pentecostalismo”. Apesar de ocupar um lugar fundamental no pensamento do pentecostalismo primitivo, “a doutrina da chuva serôdia estava fadada a desaparecer do pentecostalismo” na década de 1920, “para reaparecer, todavia, na década de 1940, por ocasião do movimento de revitalização radical da chuva serôdia”. Uma das causas do declínio dos ensinamentos da chuva serôdia em 73 William Joseph Seymour (1870-1922) - Era filho de escravos libertos após a Guerra Civil e durante muito tempo buscara uma religião mais imediata e desinibida que a praticada pelas congregações protestantes mais formais dos brancos. Em 1900 converteu-se à espiritualidade da Santidade, que acreditava que, como predisse o profeta Joel, imediatamente depois do Juízo Final o povo de Deus recuperaria os dons de cura, do êxtase, das línguas e da profecia, concedidos à Igreja primitiva. Quando Seymour e seus amigos experimentaram o Espírito, a notícia se espalhou como um rastilho de pólvora. Multidões de negros e brancos pobres acorreram em tão grande número à reunião seguinte que os pentecostais tiveram de mudar-se para um velho armazém da rua Azusa. Quatro anos depois a congregação contava centenas de grupos nos Estados Unidos e estava presente em cinquenta países. Seu primeiro boom foi mais um dos reavivamentos populares que ocorreram no período moderno quando se pressentia uma grande mudança. Para Seymour e seus adeptos o fim dos tempos começara e em breve Jesus voltaria e estabeleceria uma ordem social mais justa. Contudo, depois da I Guerra Mundial, parecia que Jesus demoraria a voltar, e os pentecostais passaram a interpretar seu dom das línguas como uma nova maneira de falar com Deus. São Paulo explica que, quando os cristãos têm dificuldade para rezar, “o Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis”. Os pentecostais procuravam um Deus que excedia o alcance da linguagem (ARMSTRONG, 2001, p. 208-209). 135 meados da década de 1920 reside no fato de que, à medida que se tornou mais institucionalizado, o pentecostalismo precisava oferecer uma resposta ao avanço do liberalismo nas suas fileiras. Como se observou anteriormente, o dispensacionalismo foi visto como um auxílio nessa área (ICE, 2004, p. 91-92). Além do problema do liberalismo teológico, o pentecostalismo da Chuva Serôdia se defrontou com um segundo problema; ora, se alguém acredita no aperfeiçoamento pessoal, individual, crerá também no aperfeiçoamento da coisa pública ou social, no entanto, se o Espírito Santo foi concedido para aperfeiçoamento individual e coletivo, por que a sociedade não mudava para melhor? Por que um dos aperfeiçoamentos, ou seja, o coletivo não se concretizava? Se Deus dá o Espírito Santo para aperfeiçoar pessoas, indivíduos, por que não a sociedade formada por esses indivíduos? A esse segundo problema Thomas Ice explica: ...na passagem do século XIX para o século XX, a mudança social relacionava-se cada vez mais com a teoria da evolução proposta por Darwin. O fundamento da lógica evolucionista foi, então, utilizado para atacar a própria Bíblia. Para a maioria dos crentes de fala inglesa, sem dúvida não parecia que a sociedade se aperfeiçoava, pelo contrário, parecia estar em declínio. Os críticos da Bíblia diziam que se alguém quisesse entender e estruturar a Bíblia, precisava, antes disso, concluir um curso de doutorado (Ph.D.) na Europa. Foi nesse clima que o dispensacionalismo adentou os Estados Unidos e esta talvez seja uma das razões de sua rápida e ampla aceitação por parte de muitos cristãos conservadores. Para estes, que realmente criam na Bíblia, o dispensacionalismo desenvolvia uma visão de mundo que fazia muito mais sentido do que as conclusões anti-sobrenaturalistas do liberalismo (ICE, 2004, p. 93). O movimento pentecostal nasceu como um grupo protestante avesso aos princípios liberais, e sem dúvida o fundamentalismo influenciou as igrejas pentecostais em seu sistema teológico básico. No período em que o pentecostalismo começou a se desenvolver era necessária uma identificação 136 firme, sendo que ou se apresentava como liberal ou como fundamentalista, mas o pentecostalismo tinha um roteiro próprio. Karen Armstrong assim escreveu: Enquanto os fundamentalistas desenvolviam sua fé moderna, os pentecostais elaboravam uma visão “pós-moderna” que correspondia a uma rejeição popular da modernidade racional do iluminismo. Enquanto os fundamentalistas retornavam ao que consideravam a base doutrinal do cristianismo, os pentecostais, que não se interessavam por dogmas, remontavam a um nível ainda mais fundamental: a essência da religiosidade primitiva que ultrapassa as formulações de um credo. Enquanto os fundamentalistas acreditavam na palavra das Escrituras, os pentecostais desdenhavam a linguagem que, como os místicos sempre enfatizaram, não podia expressar adequadamente a Realidade existente além dos conceitos e da razão. Seu discurso religioso não era o logos dos fundamentalistas, mas, extrapola as palavras. Os pentecostais falaram em “línguas” de que o Espírito Santo descera sobre eles da mesma forma que descera sobre os apóstolos de Jesus na festa judaica de Pentecostes, quando a presença divina se manifestou em línguas de fogo e conferiu aos apóstolos o dom de falar idiomas estrangeiros (ARMSTRONG, 2001, p. 208). No entanto, o pentecostalismo aceitaria do fundamentalismo o dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield74, um dos escritores do livro Os Fundamentos, editado por R. A. Torrey, que foi a base escriturística do movimento pentecostal, bem como sua Bíblia de Referências de Scofield75. Dr. Gary B. McGee assim escreveu: O evangelista, segurando um indicador, guiava o auditório através dos sete períodos dispensacionais da redenção divina, explicando as verdades bíblicas desde a Era da Inocência, no Jardim do Éden, até o Milênio. Entre os que produziram mais materiais, Finis Jennings Dake era provavelmente o pentecostal mais conhecido. De fato, suas muitas publicações, inclusive apostilas, livros e, posteriormente, Dake’s 74 Cyrus Ingerson Scofield (1843-1921) - Foi congregacional e presbiteriano, fundou a Central American Mission, conhecido mundialmente como um sistematizador que popularizou o dispensacionalismo por intermédio da Bíblia de Referências de Scofield. 75 Bíblia de Referências de Scofield - Versão das Escrituras que apresenta o método dispensacional de estudo bíblico esquematizado pelo Dr. C. I. Scofield. Ao longo da exposição das notas e comentários se observa o caráter progressivo do trato de Deus com a humanidade por meio das alianças firmadas com o homem. As notas e o sistema de referências neste método sustentam a inspiração verbal e plenária e a inerrância das Escrituras, a existência de um Deus em três pessoas - Pai, Filho e Espírito Santo -, a divindade de Cristo, sua morte substitutiva, ressurreição física e ascensão, e sua iminente volta para buscar sua noiva, a Igreja (HORTON, 1999, p. 21). 137 Annotated Reference Bible (1963), vêm ajudando a moldar a teologia de muitas pentecostais (HORTON, 1999, p. 24). O dispensacionalismo foi adotado pelo pentecostalismo em sua institucionalização como resposta ao avanço do liberalismo nas suas fileiras, mesmo sendo cessacionista76, questão que levou a Assembleia de Deus norteamericana proibir a Bíblia de Referências de Scofield por uma período77. O primeiro superintendente geral das Assembleias de Deus nos Estados Unidos declarou, em 1914, no Concílio geral da igreja em Hot Springs: Essas Assembleias opõem-se a toda Alta Crítica radical da Bíblia, a todo o modernismo, a toda a incredulidade na igreja e a filiação a ela de pessoas não-salvas, cheias de pecado e de mundanismo. Acreditam em todas as verdades bíblicas genuínas sustentadas por todas as igrejas verdadeiramente evangélicas (HORTON, 1999, p 21). Karen Armstrong apresenta a percepção do estudioso americano Harvey Cox sobre o pentecostalismo da seguinte maneira: ...o pentecostalismo constituiu uma tentativa de resgatar muitas das experiências rejeitadas pelo Ocidente moderno. “Pode-se dizer que representou uma rebelião popular contra o moderno culto da razão. Firmou-se numa época em que se começava a duvidar da ciência, em que os indivíduos religiosos constatavam que confiar apenas na razão tinha implicações alarmantes para a fé, tradicionalmente relacionada com atividade mentais mais intuitivas, criativas e estéticas. Enquanto os fundamentalistas procuravam tornar totalmente razoável e científica sua religião baseada na Bíblia, os pentecostais remontavam à essência da religiosidade, que Cox definiu como “aquele núcleo da psique em 76 Cessacionismo é o entendimento de teólogos reformados e batistas fundamentalistas, comumente de matiz puritana. Advogam que muitos dos dons do Espírito Santo foram necessários momentaneamente, apenas para os primórdios da Igreja primitiva, e que cessaram após o primeiro século do cristianismo. Os cessacionistas acreditam que o dom de línguas, na compreensão pentecostal, se encerrou nos tempos apostólicos. Entendem os cessacionistas que tais e restritos dons serviam a um propósito, a fundação da Igreja Primitiva, em momento que os apóstolos teriam que cumprir o ide sem possuir qualificação de doutores ou mestres. O encerramento do livro teria fechado toda profecia fora da palavra. 77 “Quando a Comissão Executiva reconheceu o perigo das anotações antipentecostais da Bíblia de Referências de Scofield, proibiu-se a sua propaganda no Pentecostal Evangel durante dois anos (1924-1926), antes que os seus membros se deixassem convencer de que os comentários edificantes da obra pesavam mais que aqueles” (HORTON, 1996, p. 23). 138 que se trava a luta incessante por uma noção de propósito e sentido”. “Enquanto os fundamentalistas limitavam a experiência religiosa à parte cerebral da mente, identificando a fé com dogmas racionalmente demonstrados, os pentecostais mergulhavam na fonte inconsciente da mitologia e da religiosidade. Enquanto os fundamentalistas destacavam a importância da palavra e do literal, os pentecostais desdenhavam o discurso convencional e tentavam acessar a espiritualidade primordial subjacente às formulações do credo de uma tradição (ARMSTRONG, 2001, p. 209-210). Para compreender o corpo doutrinário pentecostal é necessário identificar a influência de elementos do fundamentalismo, bem como seu repúdio ao liberalismo teológico e ao racionalismo, e sua profunda crença no dispensacionalismo. Os estudiosos evangélicos dispensacionalistas influenciaram substancialmente o ponto de vista pentecostal no tocante aos aspectos presente e futuro do Reino de Deus, conceito esse que havia recebido mera alusão na Declaração das Verdades Fundamentais. Durante muitos anos, o ensino dos primeiros pentecostais, a respeito dos eventos futuros, havia tido forte orientação dispensacionalista, pois compartilhava a crença nas sete dispensações, no Arrebatamento78 antes da Tribulação e na interpretação pré-milenarista79 das Escrituras, mas deixava de lado uma doutrina-chave do dispensacionalismo: a separação entre a Igreja e Israel. Essa doutrina foi popularizada e reforçada pelos escritos de Riggs, Boyd, Dake, Brumback, John G. Hall e T. J. Jones. As referências no Novo Testamento ao "Reino de Deus" (definido resumidamente como o senhorio ou governo de Deus) como realidade e presente nos corações dos redimidos passaram quase despercebidas, ao passo que seu futuro aparecimento milenar recebe consideração extensiva. 78 Arrebatamento - A palavra arrebatamento quer dizer arrancar; tirar com violência, levar. Na perspectiva pentecostal, o arrebatamento é o evento em que o Senhor Jesus tirará a sua igreja da face da terra, levando-a para o céu. 79 Pré-Milenista ou Pré-milenarista - É a crença literal no que está descrito na Bíblia a respeito do milênio e de acontecimentos futuros como fatos proféticos e históricos, crê no arrebatamento da igreja, antes do Milênio, é a base da teologia dispensacionalista. 139 Segundo o dispensacionalismo histórico, a promessa do reino restaurado de Davi havia sido adiado até ao Milênio, porque os judeus tinham rejeitado a oferta que Jesus lhes fizera do reino. A rejeição levou ao adiamento do cumprimento da profecia de Joel, da restauração de Israel e do derramamento do Espírito, para depois da segunda vinda de Jesus. Os eventos registrados em Atos 2, portanto, representavam apenas uma bênção inicial de poder para a Igreja Primitiva. Israel e a Igreja eram, logicamente, mantidos separados; daí surgiu a postura anti-pentecostal subjacente desse sistema da interpretação das Escrituras (HORTON, 1999, p. 33). O Dr. Charles Caldwell Ryrie, professor jubilado do Seminário de Dallas, conhecido pela famosa Bíblia Anotada80, definiu da seguinte maneira uma dispensação teológica: “...um estágio na revelação progressiva, expressamente adaptado às necessidades de uma determinada nação ou de um período de tempo... também, a era ou período durante o qual um sistema predominou” (ICE, 2004, p. 32). 5.1.- O Dispensacionalismo de Cyrus Ingerson Scofield O dispensacionalismo presente no pentecostalismo evangélico brasileiro foi elaborado por Cyrus Ingerson Scofield, cujo esquema é apresentado em sua obra Bíblia de Referências de Scofield, da seguinte forma: As sete dispensações distinguem-se nesta edição da Bíblia da seguinte maneira: Inocência (Gn 1.28); Consciência ou Responsabilidade Moral (Gn 3:7); Governo Humano (Gn 8:15); Promessa (Gn 12.1); Lei (Êx 19:1); Igreja (Atos 2:1); Reino (Ap 20:4)... 80 A Bíblia Anotada – (The Ryrie Bible) Trata-se de uma Bíblia com introdução, esboço, referências laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie, editada no Brasil pela Editora Mundo Cristão, São Paulo. 140 (Gn 1:18) A Primeira Dispensação: Inocência. O homem foi criado em inocência, colocado em um ambiente perfeito, sujeito a uma prova simples, e advertido das consequências da desobediência. Ele não foi compelido a pecar, mas, tentado por Satanás, preferiu desobedecer a Deus. A mulher foi enganada, o homem transgrediu deliberadamente (1 Tm 2:14). A mordomia da Inocência terminou na sentença da expulsão do Éden (Gn 3:24)... (Gn 3:7) A Segunda Dispensação: Consciência (Responsabilidade Moral). O homem pecou (3:6-7), a primeira promessa de redenção estava para ser feita (3:15), e nossos primeiros pais seriam expulsos do Éden (3:22-24). O pecado do homem foi uma rebeldia contra uma ordem específica de Deus (2:16-17) e marcou uma transição do conhecimento teórico do bem e do mal para o conhecimento experimental (3:22-24). O homem pecou entrando no reino da experiência moral pela porta errada, quando poderia tê-lo feito fazendo o que era certo. Assim o homem tornou-se igual a Deus, passando por esta experiência, no escolher o mal e não o bem. Assim ele foi colocado por Deus sob a mordomia da responsabilidade moral, ficando responsável de praticar todo o bem conhecido, abster-se de todo o mal conhecido e aproximar-se de Deus por meio do sacrifício sangrento aqui instituído, em perspectiva à obra consumada de Cristo. O resultado é apresentado na Aliança Adâmica (Gn 3:14-21)... O homem falhou no teste que lhe foi apresentado nesta dispensação..., como nas outras. Embora, como teste específico, este período de tempo tenha terminado com o dilúvio, o homem continuou em sua responsabilidade moral conforme Deus acrescentou mais revelação referentes a Si mesmo, e à Sua vontade nos períodos subsequentes (por exemplo, Atos 24:14-16; Rm 2:15; II Co 4:2)... (Gn 8:15) A Terceira Dispensação: Governo Humano. Esta dispensação começou quando Noé e sua família saíram da arca. Quando Noé entrou numa nova situação, Deus (na Aliança Noética) sujeitou a humanidade a um novo teste. Antes disso, nenhum homem tinha o direito de tirar a vida de outro homem (comp. Gn 4:10-11, 14-15, 23-24). Nessa nova dispensação, embora a responsabilidade moral direita do homem para com Deus continuasse (“Dai... a Deus o que é de Deus”, Mt. 22:21), Deus delegou-lhe determinadas áreas de Sua autoridade, nas quais ele tinha de obedecer a Deus através de submissão ao seus próximo (“dai, pois, a César o que é de César”, Mt. 22:21). Portanto Deus instituiu um relacionamento corporativo de homem para homem no governo humano. (Gn 12:1) A Quarta Dispensação: a Promessa. Esta dispensação estendeu-se da chamada de Abrão até a concessão da lei no Sinai (Êx 19:3 e segs.). Sua mordomia baseava-se sobre a aliança de Deus com Abrão, citada pela primeira vez aqui (Gn 12:1-3, e confirmada e ampliada em Gn 13:14-17; 15:1-7; 17:1-8, 15-19; 22:16-18; 26:2-5,24; 28:13-15; 31:13; 35:9-12)... (Êx 19.1) A Quinta Dispensação: a Lei. Esta dispensação começa com a concessão da Lei no Sinai e terminou como período de tempo com a morte sacrificial de Cristo, que cumpriu todas as suas provisões 141 e tipos. Na dispensação anterior, Abraão, Isaque e Jacó, como também as multidões de outros indivíduos, falharam nos testes de fé e obediência que eram da responsabilidade do homem (por exemplo, Gn 16:1-4; 26:6-10; 27.1-25). O Egito também falhou em atender a advertência de Deus (Gn 12:3) e foi julgado. Não obstante Deus providenciou um libertador (Moisés), um sacrifício (o cordeiro pascal) e o poder milagroso para tirar os israelitas do Egito (as pragas do Egito, livramento no Mar Vermelho). Os israelitas, como resultado de suas transgressões (Gl 3:19), foram agora colocados sob a disciplina precisa da lei... (At 2:1) A Sexta Dispensação: a Igreja. Uma nova era foi anunciada por nosso Senhor Jesus Cristo em Mt 12:47 - 13:52... O ponto de prova desta dispensação é o Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, a mensagem as boas novas sobre a Sua morte e ressurreição... A dispensação da Igreja chegará ao fim através de uma série de acontecimentos profetizados, o principal dos quais será: 1) A trasladação da verdadeira Igreja da terra para encontrar o Senhor nos ares em um momento conhecido por Deus, mas não revelado aos homens... Este acontecimento geralmente é chamado de "arrebatamento" (veja 1 Ts 4:17)...; 2) Os juízos da septuagésima semana de Daniel, chamados de "a tribulação" (Ap 7:14)... e 3) a volta do Senhor Jesus do céu à terra em poder e glória, trazendo com Ele a Sua Igreja, para estabelecer o Seu reino milenal de justiça e paz... (Ap 20.4) A Sétima Dispensação: o Reino. Esta é a última das dispensações ordenadas que condicionam a vida humana na terra. É o Reino da Aliança feita a Davi (II Sm 7:8-17; Zc 12.8)... A Dispensação do Reino une dentro de si mesmo e debaixo de Cristo as várias "épocas" mencionadas na Escritura... No final dos mil anos, Satanás é solto por um pequeno período e instiga uma rebelião final que é sumariamente abafada pelo Senhor. Cristo lança Satanás no lago de fogo para ser eternamente atormentado, derrota o último inimigo - a morte - e então entrega o reino ao Pai (I Co 15:24)... (SCOFIELD, 1983, p. 4; 7-8; 20-21; 91; 1099-1100; 1303-1304). Para ser dispensacionalista é necessário crer em ao menos três fundamentos básicos, sem os quais não é possível compreender o dispensacionalismo. O primeiro fundamento do dipensacionalismo é a interpretação literal da Bíblia Sagrada, ou como os fundamentalistas entendem, utiliza-se da hermenêutica literal coerente. Uma abordagem literal é fundamental para a teologia dispensacionalista. O dispensacionalismo não analisa a Bíblia através de uma abordagem interpretativa simbólica, mas busca aplicar o sentido original 142 do texto bíblico de acordo com o uso normal e costumeiro da linguagem, considerando as normas gramaticais, históricas e contextuais, ou seja: Um método de abordar as Escrituras que permita, através do progresso da revelação, que as próprias Escrituras interpretem a si mesmas. O dispensacionalismo não aborda a Bíblia por meio de um esquema interpretativo fantasioso, cheio de simbolismos complexos que reduzem as Escrituras a um livro de códigos místicos, dependendo de um manual de decodificação para desvendá-la (ICE, 2004, p. 43-44). O segundo fundamento do dispensacionalismo, talvez a essência dele, sendo decorrente do primeiro, é a distinção entre Israel e a Igreja. O que significa manter Israel distinto da Igreja? Os dispensacionalistas creem que a Bíblia apresenta um único programa de Deus para a história, o qual inclui um plano específico para Israel e outro diferente para a Igreja. Dois povos estão no programa de Deus: Israel e a Igreja (ICE, 2004, p. 44). No entanto, para os dispensacionalistas, o atual período dispensacional é o da graça, e nesta dispensação há somente um caminho para salvação, que é pela fé no Senhor Jesus Cristo, ou seja, pela graça, e embora Israel seja distinto da igreja, embora seja o povo eleito por Deus, nesta dispensação atual, para ser salvo é necessário converter-se ao Senhor Jesus Cristo e fazer parte da Igreja, que é formada por gentios e judeus que aceitaram a Jesus Cristo como seu Salvador Pessoal. O Dr. Thomas Ice apresenta as seis razões de Fruchtenbaum para mostrar a distinção entre Israel e a Igreja: (1) A Igreja nasceu em Pentecostes, enquanto Israel já existia há muitos séculos... (2) Certos eventos no ministério do Messias foram essenciais para o estabelecimento da Igreja – a Igreja não veio à existência até que certos eventos ocorressem... (3) O caráter de mistério da Igreja... (4) A Igreja, distinta de Israel, é o relacionamento singular entre judeus e gentios, que se denomina “um novo homem” em Efésios 2.15... (5) A diferença entre Israel e a Igreja encontra-se em Gálatas 6.16 (i.e., “o Israel de Deus”)... 143 (6) No livro de Atos, tanto Israel quanto a Igreja existem simultaneamente. O termo Israel ocorre vinte vezes e o termo ekklesia (ie., “igreja”) dezenove vezes, todavia os dois grupos são sempre mantidos distintos (ICE, 2004, p. 46-47). O terceiro fundamento do dispensacionalismo é demonstrar a soberania de Deus através da história e que o propósito final da história é a glória de Deus. O Dr Thomas Ice cita a declaração do professor Dr. Charles Caldwell Ryrie: Reconhecemos que o princípio unificador da Bíblia é a glória de Deus e que ela é levada a efeito de vários modos – o programa da redenção, o programa para Israel, o castigo dos ímpios, o plano para os anjos, e a glória de Deus revelada através da natureza. Consideramos todos estes programas como meios de glorificar a Deus, e rejeitamos a acusação de que, ao fazermos distinção entre eles (particularmente entre o programa de Deus para Israel e o Seu propósito para a Igreja), provocamos uma bifurcação no propósito de Deus (ICE, 2004, p. 47). 5.1.2.- Dispensacionalismo e Pentecostalismo No início do século XX, no auge da propagação do dispensacionalismo é que surge o movimento pentecostal nos Estados Unidos da América. Sendo um dos fundamentos do pentecostalismo a crença literal na Bíblia, já que os pentecostais acreditavam ser possível ter a mesma experiência da efusão do Espírito Santo que os discípulos de Jesus tiveram conforme registrado no livro dos Atos dos Apóstolos 2. O mesmo princípio está presente na abordagem do dispensacionalismo e do pentecostalismo, ou seja, a leitura literal das Sagradas Escrituras, possibilitando ao sistema teológico dispensacionalista encontrar solo fértil no pentecostalismo iniciante, embora o dispensacionalismo seja cessacionista, exatamente o contrário do que advoga o pentecostalismo. 144 Segundo o Dr. Thomas Ice há ainda uma outra contradição entre o dispensacionalismo e pentecostalismo: O pentecostalismo primitivo nasceu de uma motivação de visão para restaurar na Igreja o poder apostólico perdido ao longo do as anos. Agora a Igreja devia desfrutar da glória e vitória dos últimos dias, revelando-se num glorioso resplendor de sucesso. Por outro lado, o dispensacionalismo nasceu na Inglaterra no início do século XIX, lastimando a apostasia e a decadência da igreja nos últimos dias. No entanto, essas duas perspectivas divergentes se fundiram dentro do pentecostalismo (ICE, 2004, p. 94). Portanto, os elementos teológicos dos movimentos de santidade Wesleyano e Holiness; os elementos básicos do fundamentalismo evangélico; a perspectiva teológica escatológica do dispensacionalismo, em especial a distinção entre a Israel e a Igreja; o milenarismo; o restauracionismo ou sionismo cristão, amalgamaram-se na crença pentecostal tão fortemente e tão fervorosamente que gestará um imaginário próprio sobre a cidade de Jerusalém. É esse imaginário que se desenvolverá no seio teológico e doutrinário da igreja pentecostal clássica brasileira, resultando num apego e carinho pelo Estado de Israel e sua capital Jerusalém com fervor religioso, não é um simples modismo, muito pelo contrário, há uma identificação religiosa profética entre o discurso protestante evangélico dispensacionalista com a literalidade da busca dos dons espirituais para a atualidade, leitura feita pelo mundo pentecostal desde seu nascimento e seu caminho influenciado pela cultura autóctone do Brasil. O sociólogo Paul Freston81 assim descreveu o início do movimento pentecostal no Brasil: O pentecostalismo estava apenas na sua infância, quando chegou no Brasil um fato importante para sua autoctonia. Sem grandes recursos 81 Paulo Freston - Pesquisador inglês naturalizado brasileiro, é doutor em Sociologia pela UNICAMP. É professor de pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, professor Catedrático de Sociologia do Calvin College nos EUA. É colunista da Revista Ultimato, autor de vários artigos e livros, como: Religião e Política, Sim – Estado e Igreja, Não; Nem Monge, Nem Executivo – Jesus, um modelo de espiritualidade Invertida; Neemias, Um Profissional a Serviço do Reino e Quem Perde, Ganha. 145 ou denominações estabelecidas, e mais interessado numa última arrancada evangelística antes do fim do que na criação institucional, o movimento não estabeleceu as relações de dependência que caracterizavam as missões históricas (ANTONIAZZI (Org.), 1994, p. 75). 5.2.- O Pentecostalismo no Brasil O pentecostalismo chegou ao Brasil em três momentos distintos classificados como as três ondas82 por Paul Freston; a primeira onda seria os chamados pentecostais clássicos ou tradicional, o primeiro grupo que chegou ao Brasil em 1910 e 1911, representado respectivamente pela Congregação Cristã no Brasil e a Assembleia de Deus, caracterizados pela glossolalia 83, dons espirituais, santificação materializados nos usos e costumes austeros. A segunda onda, surgida na década de 1950 e início de 1960, formada por algumas dissidências, em sua maioria da primeira onda, sendo seu contexto paulista: Igreja do Evangelho Quadrangular, O Brasil Para Cristo e a Igreja Deus é Amor, caracterizados pela ênfase na cura divina e no uso do rádio, de tendas e grandes campanhas evangelísticas, e finalmente a terceira onda, também denominada de neopentecostal que surgiu na década de 1970 ganhando forças nos anos 80, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, e outras, caracterizadas pela doutrina da prosperidade, o uso da televisão e na construção ou locação de amplos espaços para templos, sendo seu contexto carioca. Como a pesquisa objetiva compreender a cidade de Jerusalém no imaginário religioso até o pentecostalismo clássico, o estudo limitar-se-á ao 82 O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três ondas (ANTONIAZZI (Org.), 1994, p. 70-71). 83 Glossolalia – Do grego γλώσσα (língua) e λαλώ (falar), falar em outras línguas, segundo o pentecostalismo é a evidência que o fiel foi batizado com o Espírito Santo. 146 imaginário da primeira onda, a Congregação Cristã no Brasil (1910) e a Assembleia de Deus (1911). A primeira consideração apresentada é o resumo histórico de cada denominação utilizando a cronologia de sua chegada ao Brasil e o apontamento de elementos do dispensacionalismo presente nos seus respectivos credos doutrinários. Considerando que nesta pesquisa será analisada apenas a Assembleia de Deus, como representante das demais igrejas depositárias do pentecostalismo clássico que apontam para uma mesma matriz evangélica pentecostal, classificadas como clássicas, e por fazer parte da primeira onda do pentecostalismo no Brasil. O motivo da escolha da Assembleia de Deus é pelo fato de ser a segunda maior denominação cristã do país e pela deficiência de material documental sobre a Congregação Cristã no Brasil, sendo abundante na Assembleia de Deus. Na verdade, o pentecostalismo clássico, em seu início, era avesso à pesquisa científica, à documentação e mais aberto ao “profetismo”, testemunho oral e experiencialismo. Isso foi muito bem apontado por Paul Freston: É verdade que a pesquisa histórica entre os pentecostais sofre da relativa escassez de fontes escritas. Alguns grupos se adéquam mais a uma “História anedótica” do que a uma “História documental”. Podemos distinguir o grau de dificuldade para se pesquisar as várias igrejas do seguinte modo: (1) considerável facilidade: Assembleia de Deus e Igreja do Evangelho Quadrangular – muitas fontes escritas, inclusive histórias domésticas e facilidade para se fazer entrevistas; (2) relativa facilidade: Brasil para Cristo e Igreja Universal do Reino de Deus – poucas fontes escritas, mas certa facilidade para se fazer entrevistas; (3) relativa dificuldade: Deus é Amor – pouquíssimas fontes escritas e dificuldade para se fazer entrevistas; (4) extrema dificuldade: Congregação Cristã – quase nenhuma fonte escrita e extrema dificuldade para entrevistas (ANTONIAZZI (org.), 1994, p.68). 5.2.1.- Congregação Cristã no Brasil (1910) 147 O principal documento para a reconstituição dos primórdios da Congregação Cristã no Brasil é o testemunho escrito por seu fundador, o ancião Louis Francescon (Luigi Francesconi), em Chicago - Illinois, EUA. Originalmente esse livreto recebeu o nome de Resumo de Uma Ramificação na Obra de Deus Pelo Espírito Santo no Século Atual, publicado pela primeira vez em 1942, na cidade de São Paulo, atualmente chama-se Histórico da Obra de Deus, Revelada Pelo Espírito Santo, no Século Atual. Louis Francescon nasceu no dia 29 de março de 1866 na Comarca de Cavasso Nuovo – Província de Udine, Itália, tendo emigrado para os EUA em 1890 para a cidade de Chicago, Estado de Illinois. No mesmo ano entrou em contato com o evangelho através da pregação de Miguel Nardi, em 1891 se converteu e no ano seguinte, juntamente com o grupo de Miguel Nardi e de algumas famílias da igreja Valdense84, fundou a Primeira Igreja Presbiteriana Italiana. Sendo eleito Filippo Grilli como pastor, Francescon foi eleito diácono e posteriormente ancião. Em 1894, Francescon, lendo Colossenses 2.12, passou a questionar a forma de batizar por aspersão e no princípio de setembro de 1903, convenceu Giuseppe Beretta a se batizar por imersão: Então, servindo-se Deus também de outros meios, convenceu-se e dois dias após fez-se batizar mesmo em Elgin, por um irmão americano pertencente à Igreja dos Irmãos (Church of the Brethren). Na ocasião lhe disse: Irmão Beretta, agora que sois batizado, na próxima segundafeira, dia 7 é o Dia do Trabalho, batizar-me-ás também (FRANCESCON, 1977, p. 09). Com a viagem do pastor Filippo Grilli para a Itália, coube a Francescon, como ancião, presidir à reunião dominical no dia 06 de setembro de 1903, oportunidade em que, após 9 anos da “revelação” acerca do batismo por 84 Igreja Valdense - Muito assemelhados doutrinariamente com o protestantismo, os valdenses devem seu nome ao fundador do movimento, Pedro Valdo, um próspero comerciante da cidade francesa de Lyon que, em 1176, influenciado por ideais monásticos e pela leitura do Novo Testamento, distribuiu seus bens aos pobres, deixando apenas o necessário para garantir a sobrevivência de sua esposa e suas filhas, iniciando a atividade de pregador leigo. No ano seguinte, já contava com um grupo de seguidores, os chamados “Pobres de Espírito” (WALKER, vol. I, 1980, p. 322) apud (SOARES, 2013, p.57). 148 imersão, falou com a Igreja acerca deste assunto, o que fez, convidando a todos os membros da Igreja Presbiteriana Italiana para assistir ao seu batismo por imersão. O batismo foi realizado no dia 07 de setembro de 1903, em Lake-front em Chicago, onde compareceram cerca de vinte e cinco irmãos, dos quais dezoito, incluindo Francescon se batizaram por imersão. Com a chegada do pastor Filippo Grilli da Itália, Francescon e seu grupo desligaram-se da igreja, estabelecendo uma pequena comunidade evangélica livre, reunindo-se na casa dos irmãos. Em fins de 1907, o grupo liderado por Francescon entrou em contato com o nascente movimento pentecostal, participando das reuniões realizadas na missão localizada na West North Avenue, 943, que tinha como pastor William H. Durham85. No dia 25 de agosto de 1907, Francescon recebeu a experiência pentecostal e algum tempo depois o pastor Durham informou a ele que o Senhor o havia chamado para levar essa mensagem à colônia italiana. O grupo de crentes italianos vinha há algum tempo reunindo-se na W. Grand Avenue, 1139, e no dia 15 de setembro de 1907 surgiu a primeira comunidade evangélica italiana de fé pentecostal: a Assembleia Cristiana. Além de Francescon, outros nomes pioneiros são: Pietro Ottolini, Giacomo Lombardi, Lucia Menna, Umberto Gazzeri e Giuseppe Petrelli86. O movimento pentecostal italiano expandiu-se, surgindo congregações na Filadélfia, Califórnia e Nova York, além de Illinois; atualmente, estas congregações formam a Igreja Cristã da América do Norte, que surgiu da junção de duas denominações pentecostais ítalo-americanas: Assembleias de Deus 85 Pastor William H. Durham (1873-1912) - Foi um líder dinâmico do início do movimento pentecostal e foi um dos proponentes da doutrina da santificação como processo contínuo e não como uma crise ou experiência, colaborando para distinguir a doutrina pentecostal da teologia Holliness originária. Tendo ouvido falar do derramamento do Espírito, que estava ocorrendo na Califórnia em 1906, Durham visitou a Missão da Rua Azusa em Los Angeles, tendo recebido a experiência pentecostal com o dom de línguas estranhas em 02 de março de 1907, momento que recebeu uma palavra profética do próprio pastor J. Saymour, que onde ele pregasse, o Espírito Santo seria derramado sobre o povo. Além de Francescon (fundador da Congregação Cristã no Brasil), muitos outros líderes, missionários e pioneiros do movimento pentecostal participaram dos trabalhos desenvolvidos na Missão da West North Avenue, tais como: A. H. Argue; E. N. Bell; Joward Goss; Daniel Berg (um dos fundadores da Assembleia de Deus); Aime Semple McPherson (fundadora da Igreja do Evangelho Quadrangular). 86 WOMACK, David e TOPPI, Francesco. Le Radici Del Movimento Pentecostale, 1989, p. 124. 149 Pentecostais Italianas87 e a Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do Norte88. No dia 04 de setembro de 1909 Francescon e Giacomo Lombardi embarcaram de Chicago para a cidade de Buenos Aires, capital da Argentina, onde em contato com familiares de membros da igreja italiana norte-americana instalaram o trabalho pentecostal entre as colônias italianas; atualmente, a igreja que ali surgiu foi incorporada pela Igreja Cristã Pentecostal da Argentina. Em 08 de março de 1910 Francescon e Giacomo Lombardi embarcaram de Buenos Aires para São Paulo; no segundo dia no Brasil, evangelizaram um italiano chamado Vicenzo Pievani na Praça da Luz. Aparentemente o início do trabalho foi pouco promissor, até que no dia 18 de abril Giacomo Lombardi partiu para Buenos Aires. Francescon foi para Santo Antônio da Platina no Paraná, chegando no dia 20 de abril de 1910 e estabeleceu ali um pequeno grupo de crentes pentecostais, os primeiros no Brasil. No dia 20 de junho de 1910, Francescon retorna para São Paulo capital, entrando em contato com a Igreja Presbiteriana do Brás, onde alguns membros aceitaram a mensagem pentecostal, bem como alguns batistas, metodistas e católicos romanos, surgindo a primeira igreja pentecostal organizada no Brasil. A partir daí o trabalho se espalhou entre as colônias italianas, notadamente na região sudeste do país, principalmente nos Estados de São Paulo e do Paraná. Seu fundador, Louis Francescon, faleceu em 07 de setembro de 1964 na cidade de Oak Park, Illinois, EUA. O sociólogo Paul Freston assim definiu a Congregação Cristã no Brasil: O iluminismo e apelo ao Espírito leva a uma rejeição da organização. O modelo das igrejas históricas e da Assembleia de Deus representa a 87 Assembleias de Deus Pentecostais Italianas - Foram fundadas por John Santamaria e seu filho Rocco, resultante do contato também com a mensagem pentecostal através do pastor William H. Durham, organizada em 1932 nos EUA. (MELTON, 1978, p. 280-281 apud MAPES, 1979, p. 168). 88 Igreja Cristã Italiana Inorganizada da América do Norte - Foi organizada em 1927 pelo próprio Francescon, defendia um ferrenho congregacionalismo, mas em 1948 somou-se à outra, atualmente essa denominação possui uma doutrina muito parecida a da Assembleia de Deus, apesar de guardar certas características étnicas italianas, seus periódicos continuam sendo editados em dois idiomas: The Ligth House em inglês e II Faro em italiano (MELTON, 1978, p. 281-281 apud MAPES, 1979, p. 168). 150 ingerência do humano na obra divina. O modelo da Congregação Cristã, segundo Nelson, é o de parentesco, ou patriarcal. A burocracia é mantida no mínimo absoluto, e não há pastores, somente anciãos não remunerados. Provavelmente a figura de Francescon ajudou a solidificar esse modelo; ele representava uma autoridade incontestável mas quase sempre ausente. Outro fator é a estrutura familiar italiana. A liderança é por antiguidade mais do que por carisma ou por competência. A dependência da tradição oral fortalece essa liderança. O modelo é reforçado pelo imaginário de uma família extensa; a igreja é conhecida como “irmandade” (ANTONIAZZI (org.), 1994, p. 105-106). A recusa à organização é uma característica do movimento pentecostal, essa ojeriza a toda forma de organização humana que pudesse abafar a atuação do Espírito Santo está presente nos primeiros pentecostais. O grande líder pentecostal sueco Lewi Petrus89, ao se referir sobre a questão da organização da Assembleia de Deus, assim declarou: Durante os últimos anos, temos sido enganados aqui na Suécia com a notícia de que os missionários e a missão no Brasil estava organizadas numa (sic) denominação bastante forte. Quem nos disse isto; mencionou que a sede da organização está no Pará e que no princípio consistia somente de três missionários, mas que depois se estendeu, dominando a obra em todo Brasil. Os missionários, estão, quando se trata do assunto da organização, inteiramente no mesmo ponto de vista que as igrejas livres da Suécia. Todos expuseram a sua perfeita aprovação sobre o pensamento bíblico de igrejas locais e independentes, entre as quais deve haver uma colaboração espiritual, mas sem a organização da qual os missionários agora tinham sido acusados que professavam e até praticavam (VINGREN, 1973, p. 157 apud ALENCAR, 2010, P. 123-124). Embora a Congregação Cristã no Brasil seja a primeira igreja pentecostal no Brasil, seu comportamento sectário não permite um estudo para a compreensão do imaginário pentecostal sobre Jerusalém, porque não há literatura e seus líderes são avessos a entrevistas; esse comportamento está presente na maioria dos membros dessa comunidade. Na década de 50 o 89 Lewis Petrus (1884-1974) – Pastor da Igreja Filadélfia de Estocolmo na Suécia. Foi um dos mais importantes líder pentecostal da Europa, escreveu mais de 50 livros, fundou um jornal e uma rádio. 151 professor Émile G. Léonard, ilustre historiador francês, já apontava para essas questões: Parece-nos, entretanto, haver nas Congregações uma profunda fraqueza, que faz com que não as possamos considerar absolutamente protestantes (o que, alias, elas não pretendem, mantendo-se afastadas de todas as igrejas), mas que nos faz desejar que o protestantismo brasileiro se interesse pelo problema que elas apresentam. Não se trata de nada relativo ao Espírito ou a essas manifestações, que atraem a atenção, e sobre as quais não insistimos; as curas miraculosas, a glossolalia, os êxtases e, eventualmente, as convulsões. Aqui não há nada desconhecido, anticristão ou antibíblico. Muitas outras denominações protestantes tiveram essas manifestações, nos seus primeiros tempos, e lamentam secretamente não serem mais privilegiadas. Entretanto, tal como na Igreja Evangélica Brasileira, o papel da Bíblia aqui também parece bem pequeno. Os fiéis parecem considerá-la mais um livro de oráculos, que se abre para encontrar a resposta do Espírito a uma questão ou a uma necessidade, do que o relato de uma Revelação que deve ser conhecida e meditada sistematicamente. As escolas dominicais são substituídas pelos “cultos para menores”, cópia dos cultos comuns, com os três cânticos de início, os testemunhos, as orações (nas quais os fenômenos de glossolalia), o sermão, novas preces e a bênção final. O conhecimento bíblico que as crianças possuem reduz-se, muitas vezes, a um certo número de passagens ou versículos particularmente comentados. Os próprios guias espirituais declaram, sem embaraço, que não leram toda a Bíblia. Suas prédicas, feitas apenas sob a inspiração do Espírito, sobre textos que lhes são “dados” naquele momento, não são preparadas. Não possuem livro algum, nem jornal de edificação, nem cultura alguma religiosa, considerando ilegitima toda literatura humana – o que é para eles, aliás, motivo de glória – o mesmo acontecendo com todos os seus fiéis. Pode-se dizer que todos os conhecimentos bíblicos mais ou menos sistemáticos que existem nas Congregações provém de prosélitos recrutados nas denominações protestantes. Felizmente eles são numerosos, pois certas comunidades evangélicas perdem importantes frações que passam para comunidade vizinha... O movimento “glória” é um fato, e fato considerável, que possui, certamente, centenas de milhares de batizados e simpatizantes. Por importante que seja o recrutamento entre protestantes, a grande maioria deles provem de meios católicos, e desses meios proletários perante os quais não se encontram muito comodamente, não obstante toda sua boa vontade. Há, aqui um grande problema. Essas almas serão abandonadas apenas às manifestações do Espírito, num conhecimento insuficiente da Revelação, da Bíblia e, através dela, do Salvador e de sua Cruz? (LÉONARD, 2002, p. 382-383). 152 Essas considerações do historiador professor Émile G. Léornad são importantes para compreender que, apesar dos membros da Congregação Cristã no Brasil não possuírem literatura ou estudos da Bíblia de maneira sistemática, foram influenciados pelo dispensacionalismo, tanto por pessoas oriundas de outras denominações dispensacionalistas, como também principalmente pelo fato de logo no início de sua organização no Brasil, o dispensacionalismo já ser muito popular nos Estados Unidos, de onde veio seu fundador Louis Francescon, como aconteceu com as demais líderes pentecostais dessa época; prova disso é a declaração de fé da Congregação Cristã no Brasil denominada como Pontos de Doutrina e da Fé90. Em seu artigo 1º e no 11º temos os elementos do pensamento dispensacionalista como a literalidade da Bíblia, sua inerrância, a crença do arrebatamento dos fiéis antes do Milênio, bem como a crença no Milênio literal: 1. Nós cremos na inteira Bíblia e aceitamo-la como infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo. A Palavra de Deus é a única e perfeita guia da nossa fé e conduta, e a Ela nada se pode acrescentar ou dela diminuir. É, também, o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê. (II Pedro 1.21; II Tm 3.16,17; Rom 1.16). 11. Nós cremos que o mesmo Senhor (antes do milênio) descerá do céu com alarido, com voz de arcanjo e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro. Depois, nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados juntamente com eles nas nuvens, a encontrar o Senhor nos ares, e assim estaremos sempre com o Senhor (I Tess., 4.16,17; ap., 20.6). Essa percepção doutrinária, apoiada por muitos adeptos oriundos de outras igrejas pentecostais, faz com que exista na Congregação Cristã no Brasil desejo entre os fiéis de visitar Israel91. Portanto, o imaginário pentecostal sobre Jerusalém é presente e existente na Congregação Cristã no Brasil, mesmo não 90 Pontos de Doutrina e Fé Que Uma Vez Foi Dada aos Santos – trata-se de 12 Artigos de Fé, presente na contra capa dos hinários da Congregação Cristã no Brasil, denominado: Hinos de Louvores e Súplicas a Deus. 91 CAPRICE TURISMO E OPERADORA INTERNACIONAL – Essa operadora de turismo leva anualmente vários grupos formados por fiéis da Congregação Cristã no Brasil para Israel, inclusive seu Diretor Geral pertence a esta denominação, e está a mais de vinte anos no mercado de viagens para a Terra Santa (http://www.capricetour.com.br). 153 possuindo literatura ou estudos bíblicos sistematizados, como é o caso da segunda igreja pentecostal mais antiga do Brasil, a Assembleia de Deus, denominação que será analisada com mais atenção. 5.2.2.- Igreja Evangélica Assembleia De Deus (1911) Trata-se da maior denominação evangélica do país e a segunda mais antiga igreja pentecostal do Brasil, se constituiu no país em 19 de junho de 1911 em Belém, no Norte do país, no Estado do Pará. Foi organizada pelos missionários suecos Daniel Berg92 e Gunnar Vingren93, ambos oriundos de um vasto movimento espiritual que ocorreu no início do século XX. Segundo Duncan Alexander Reily: As vidas de Daniel Berg (1885-1963) e Gunnar Vingren (1870-1933) são notavelmente paralelas. Nascidos na Suécia, os dois se tornaram batistas, e foram batizados por imersão no país de origem; depois emigraram para os Estados Unidos, respectivamente em 1902 e 1903. Os dois homens afirmam ter recebido o dom do Espírito Santo em 1909. De volta à Suécia para visitar seus familiares, Berg soube sobre o Batismo no Espírito Santo através de um ex-amigo de infância, agora pastor, e alega ter recebido essa graça na viagem de regresso aos Estados Unidos. Logo a seguir, passou para a Igreja batista de W. H. Durham, em Chicago. Vingren estudou teologia em Chicago de 1904 a 1909, no Seminário Batista Sueco. Foi a Chicago para assistir a uma conferência pentecostal, onde, conforme seu próprio testemunho, recebeu o Espírito e o dom de línguas. Ao voltar à sua paróquia, Vingren escandalizou sua Igreja e foi despedido, assumindo logo depois um pastorado em South Bend, Indiana, que dista uns cem quilômetros de Chicago. Foi a essa altura que os dois se julgaram chamados divinamente para a missão no Brasil. Obedientes ao chamado, embarcaram para o Brasil, aportando em Belém do Pará a 19 de novembro de 1910. Localizaram a Igreja Batista, onde foram hospedados pelo pastor; colaboraram nesta Igreja, na medida do possível. Suas práticas pentecostais resultaram em dissenções, e 92 Daniel Berg (1884-1963) – Missionário batista de origem sueca que esteve no Brasil por 52 anos, morrendo na Suécia em 1963, juntamente com Gunnar Vingren fundaram a Assembleia de Deus. 93 Gunnar Vingren (1870-1933) – Missionário batista de origem sueca que esteve no Brasil por 22 anos, morrendo na Suécia em 1933, juntamente com Daniel Berg fundaram a Assembleia de Deus. 154 depois de algum tempo Berg e Vingren foram convidados a se retirar; saíram, levando dezoito membros da Igreja Batista com eles (REILY, 1993, p. 371-372). Daniel Berg e Gunnar Vingren e os dezoito membros da Igreja Batista de Belém do Pará que os acompanharam deram à sua nova igreja a denominação Missão da Fé Apostólica e posteriormente Assembleia de Deus. O ano de 1918 foi de suma importância para a continuação do movimento pentecostal no grande país. O trabalho já contava com alguns anos. Agora chegou o tempo de registrar a igreja oficialmente, para que fosse pessoa jurídica. Isto aconteceu no dia 11 de janeiro de 1918, quando a igreja foi registrada oficialmente com o nome de ‘Assembleia de Deus’” (VINGREN, 1973, p. 91 Apud ALENCAR, 2010, p. 62). A Assembleia de Deus no Brasil cresceu de maneira extraordinária, somando mais de 12,3 milhões de membros94. Possui vários ministérios independentes, várias convenções, sendo a Convenção Geral das Assembleias de Deus do Brasil (CGADB)95 a maior e mais influente. Possui um grande parque gráfico denominado Casa Publicadora das Assembleias de Deus (CPAD)96, um incentivo ao estudo sistemático da Bíblia e produz a maior quantidade de material evangélico do Brasil. Sua crença está expressa em seu credo doutrinário denominado Cremos, onde aparece a abordagem da literalidade e inerrância da Bíblia, na ideia do arrebatamento e do milênio literal. CREMOS: 94 Censo do IBGE feito em 2010, publicado em 2012. 95 CGADB - Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, fundada em 1930 e registrada em 1946, pelos pastores Samuel Nystron, Cícero Canuto de Lima, Paulo Leivas Macalão, José Menezes, Nels Julius Nelson, Francisco Pereira do Nascimento, José Teixeira Rego, Orlando Spencer Boyer, Bruno Skolimowski, José Bezerra da Silva e outros, é uma entidade civil de natureza religiosa, com fins não econômicos, tem sua sede na Avenida Vicente de Carvalho, 1083, Rio de Janeiro - RJ. 96 CPAD - Casa Publicadora das Assembleias de Deus é a editora oficial da denominação e sempre esteve presente em todos os momentos históricos e decisivos do Movimento Pentecostal no Brasil. É uma empresa sem fins lucrativos e, em 2015, completou 75 anos. 155 2º – Na inspiração verbal da Bíblia Sagrada, única regra infalível de fé normativa para a vida e o caráter cristão. 2 Tm 3.14-17. 11º – Na segunda vinda premilenial de Cristo, em duas fases distintas: Primeira – invisível ao mundo, para arrebatar a Sua Igreja fiel da terra, antes da grande tribulação; Segunda – visível e corporal, com Sua Igreja glorificada, para reinar sobre o mundo durante mil anos. 1 Ts 4.16,17; 1 Co 15.51-54; Ap 20.4; Zc 14.5; Jd 14. O Credo doutrinário das Assembleias de Deus é dispensacionalista, prétribulacionista e milenarista, solo fértil para a negação da doutrina da substituição da velha cristandade e para desenvolver a crença na distinção de Israel e Igreja, materializando seu imaginário sobre a cidade de Jerusalém como a capital do mundo no Milênio. O Mensageiro da Paz97 publicou matéria com o título Concepção Escatológica dos Cristãos, de autoria de Wagner Tadeu dos Santos Gaby, em agosto de 2002, com a seguinte redação: Das três concepções escatológicas acima descritas, a que mais se harmoniza com a exegese bíblica é a da Escola Pré-Milenista Dispensacionalista. É a posição mais condizente com os ensinamentos dos profetas, de Jesus e dos apóstolos. A Declaração de Fé das ADs no Brasil, em seus itens de 11 a 14, norteia sua concepção escatológica na perspectiva da Escola Pré-Milenista Dispensacionalista. A Declaração de Verdades Fundamentais aprovada pelo Concílio Geral das ADs nos EUA, de 2 a 7 de outubro de 1916, também acompanha a mesma perspectiva escatológica em seus itens de 14 a 17. Na contracapa do livro Manual de Doutrina das Assembleias de Deus no Brasil (CPAD), elaborado pelo Conselho de Doutrina da CGADB, lê-se a advertência: “as doutrinas fundamentais nunca foram tão atacadas como agora. Modismos revestidos de misticismo e superstição têm investido contra a Igreja com a impetuosidade de uma tormenta. São ventos de doutrina, mas eles estão conseguindo arrancar do coração dos crentes o que deveriam ser sólidas convicções. E por que essas convicções se tornaram tão frágeis? Porque nossos crentes – e até alguns líderes – se acostumaram a escutar e a reproduzir tudo o que lhes chega aos ouvidos como Palavra de Deus sem confrontar o que estão ouvindo com o texto sagrado. Assim, a sua fé enfraquece e as nossas igrejas ficam expostas aos movimentos espúrios, às teologias deturpadas e às falsas revelações”. Todos que amam a Vinda do Senhor devem se voltar ao estudo sistemático da Palavra de Deus, principalmente da Escatologia, a fim de não se descuidar acerca da verdade incontestável: Jesus breve virá (Mt 24.44-51). Maranata! (MP, 2000, p. 248-249, Vol. 3). 97 Jornal Mensageiro da Paz - Órgão oficial das Assembleias de Deus no Brasil editado desde 1930. 156 5.2.3.- Outras fontes de divulgação do dispensacionalismo. Além das denominações pentecostais clássicas terem herdado e absorvido a perspectiva escatológica dispensacionalista que origina seu imaginário sobre Jerusalém, há, sem dúvida, pelo menos dois fatores extremamente relevantes que manterão essa crença, especialmente nas igrejas e escolas teológicas pentecostais que são: as pregações de Billy Graham 98 e de outros pregadores midiáticos e a Obra Missionária Chamada da Meia Noite99. O primeiro fator é a mensagem de Billy Graham, que surge num contexto histórico específico e adquire uma impressionante unanimidade entre os evangélicos pentecostais no Brasil. Oriundo de uma ebulição teológica ideológica dos cumprimentos proféticos e do início da guerra fria surge o grande pregador evangélico batista Billy Graham, cuja mensagem influenciará e marcará profundamente o imaginário evangélico pentecostal brasileiro. James Carroll assim relata: Durante alguns anos anteriores, o ministro itinerante havia atiçado o fervor cristão em estilo fundamentalista habitual ao longo da trilha da serragem, atraindo pequenas multidões em áreas rurais e em pequenas cidades americanas. Foi coincidência ele encontrar-se numa cidade grande naquela semana de setembro, e logo ficou evidente, ao 98 William Franklin "Billy" Graham Jr. - pregador batista norte-americano. Foi conselheiro espiritual de vários presidentes norte-americanos. Foi o mais proeminente pregador evangélico do mundo, pregou para mais de 2,2 bilhões de pessoas. 99 Obra Missionária Chamada da Meia Noite - é uma missão sem fins lucrativos, com o objetivo de anunciar a Bíblia inteira como infalível e eterna Palavra de Deus escrita, inspirada pelo Espírito Santo, sendo o guia seguro para a fé e conduta do cristão. Todas as atividades da "Obra Missionária Chamada da Meia-Noite" são mantidas através de ofertas voluntárias dos que desejam ter parte neste ministério, as atividades são organizacionalmente independentes de igrejas ou denominações religiosas. 157 receber a informação dos pastores do sul da Califórnia, que sua tenda não seria suficientemente grande. Milhares de pessoas afluíam para ouvi-lo no seu acampamento revivalista ampliado. Nos dias seguintes, centenas de milhares chegaram, talvez a maior demonstração de religiosidade espontânea na história americana. O nome do evangelizador era Billy Graham. A angústia de um povo em pânico com as notícias da Bomba-A Comunista projetou-o na sua carreira como o revivalista mais famoso na história dos Estados Unidos. Ele se tornou a personificação da virtude americana, o pastor da Casa Branca, um fiador da escolha divina da nação... A genialidade de Graham consistiu em santificar a proximidade do Armagedom pela guerra nuclear, mesmo enquanto ainda soavam os alarmes, e transformar esse fervor impregnado de destruição em matéria-prima da sua pregação. Mais do que qualquer pregador cristão, Graham conferiu relevância religiosa à ameaça da aniquilação nuclear. Segundo a pregação de Graham, somente categorias religiosas, especialmente aquelas extraídas do Livro de Apocalipse poderia dar ao povo um modo de conviver com o pavor nuclear... tudo em confronto com o ato da volta de Jesus... Está longe de ser acidental para essa longa história que Billy Graham então e depois do princípio do fim da Guerra Fria, denominasse sua missão de “cruzada”. A febre de Jerusalém ao estilo americano alcançara o seu grau máximo (CARROLL, 2013, p. 270-271). Segundo fator relevante é no campo da literatura com o surgimento da Associação Evangélica denominada Obra Missionaria Chamada da Meia Noite, instituição sem fins lucrativos, que apresenta sua perspectiva pré- tribulacionista/Pré-milenista/Dispensacionalista, que é a visão majoritária entre as igrejas evangélicas pentecostais brasileiras edita mensalmente as revistas Chamada da Meia Noite e Notícias de Israel, bem como vídeos de várias temáticas em conexão com profecias bíblicas alusivas a Israel de acordo com sua escatologia100. Entre seus doze pontos doutrinários temos: 1. Cremos em toda a Sagrada Escritura (Antigo e Novo Testamento) como infalível Palavra de Deus, inspirada pelo Espírito Santo e autoridade máxima em todas as questões de fé (2 Pe 1.21; 2 Tm 3.1617). 100 Todos os anos a Obra Missionária Chamada da Meia Noite realiza uma Conferência Profética com ênfase no dispensacionalismo. Entre os dias 21 a 24 de Outubro de 2015 será realizada em Águas de Líndóia-SP o 17º Congresso Internacional Sobre a Palavra Profética, com o tema principal: O Arretabatamento. Você está preparado? 158 8.- Cremos na volta de Jesus Cristo para o arrebatamento da sua Igreja comprada pelo seu sangue e na Sua volta, com a Igreja, em grande poder e glória (1 Ts 4.13-17; 1 Co 15.51-53; Mt 24.30; Zc 14.5b; Jd 14). 11.- Cremos no cumprimento da palavra profética e, portanto, na restauração de Israel em nossos dias (2 Pe 1.19; Am 9.11; At 15.1416). Existe uma intensa distribuição de materiais que mantém acesa a perspectiva dispensacionalista nas maiores igrejas evangélicas pentecostais do Brasil. Como se pode observar, as igrejas pentecostais clássicas, embora possuam liturgias e costumes diferentes, todas têm uma mesma percepção teológica dispensacionalista presente em suas respectivas declarações de fé. Além dos dois fatores apresentados: as mensagens de Billy Graham e Obra Missionária Chamada da Meia Noite, é essencial na construção e consolidação do imaginário que o pentecostalismo clássico brasileiro tem a respeito de Jerusalém, a interpretação e crença literal na Bíblia. Essa percepção da interpretação literal de toda Bíblia, está a visão que incentiva o retorno dos judeus para Israel, mesmo antes da criação do moderno Estado de Israel; restauracionistas ou restauracionismo, têm esse nome derivado do objetivo desses evangélicos em restituir os judeus para a Terra Santa de Israel e sua capital Jerusalém. O Professor James Carroll assim descreve: ...Com a volta de todos os judeus a Jerusalém e o restabelecimento da política que vigorava na época do próprio Jesus, cumprir-se-ia a última condição para o retorno do Messias, e todos – judeus, cristãos e muçulmanos – veriam a luz. “O Olhar de cada um” disse o pregador, “está fixo em Jerusalém”. Uma leitura literal da Bíblia gerou a crença de que o retorno do Messias começaria na cidade e de que dependia da volta prévia dos judeus à sua terra natal – e de sua conversão há muito protelada: A salvação virá de Sião (CARROLL, 2013, p. 247). 159 5.3.- A Teologia Escatológica Pentecostal da Assembleia de Deus na Construção do Imaginário Sobre Jerusalém O movimento pentecostal clássico nasceu saturado de escatologia apocalíptica: O significado de Azusa foi centrifugal - aqueles que eram tocados por ele levavam suas experiências para outros lugares e tocavam a vida de outras pessoas. Reunidos pela crença e pelos conceitos teológicos de salvação pessoal, de santidade, de cura divina, do batismo com o Espírito Santo como autoridade para o ministério, e pela expectativa do iminente retorno de Jesus Cristo, eram amplamente providos de uma grande motivação para dar ao despertamento verificado entre eles um impacto de longo alcance (BURGESS; DER MASS, 2002, p. 955). Estes movimentos relacionavam escatologia e pneumatologia, gestando uma nova percepção nas atividades proselitistas e missionárias. A crença na atualidade da experiência com o Espírito Santo, à semelhança dos tempos da igreja primitiva, torna-se um sinal claro, que os últimos dias estão próximos. Assim o nexo escatologia e pneumatologia contribuiu solidamente para um urgente, incansável movimento missionário que se alastrou dos EUA, atingindo todo o mundo, nas duas primeiras décadas do século XX. A escatologia é muito presente no imaginário da Assembleia de Deus101. O pesquisador Gedeon Alencar, declara: No primeiro momento, as marcas do pentecostalismo eram glossalalia (falar em línguas estranhas como resultado do batismo com o Espírito Santo), cura divina e por escatologia. Com uma interpretação bíblica fundamentalista e espaço apenas para uma moral individual puritana (ALENCAR, 2010, p. 21). 101 O Hinário Oficial da Assembleia de Deus é a Harpa Cristã, 37% dos hinos são escatológicos, e apenas 7% de natureza pentecostal. Portanto, os assembleianos cantam mais sobre escatologia, que sobre o pentecostalismo. 160 Ademais, o mundo está na iminência de ser destruído. Esse escatologismo não é tão anacrônico ou atemporal assim, … Porque a Igreja deveria se preocupar com as questões do mundo, se sua destruição é irreversível e qualquer tentativa infrutífera? Ademais, “nossa missão” é mais importante e até mais eficiente (ALENCAR, 2010, p. 14-1-142). A escatologia pentecostal da Assembleia de Deus é profundamente influenciada pela ideia das dispensações. No início de sua institucionalização, a liderança pentecostal da Assembleia de Deus norte-americana proibiu a Bíblia de Referência de Scofield, porque seus comentários eram cessacionistas, doutrina contrária ao pentecostalismo. A Assembleia de Deus no Brasil inicialmente desenvolveu um dispensacionismo diferente de Scofield, mas com a mesma ideia de dispensação, conforme declaração de Emílio Conde no Mensageiro da Paz em 1930: Os teólogos dividem a história das Escrituras em sete dispensações, nós, porém, falamos só de três: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo. A dispensação do Pai abrange todo o Velho Testamento e termina com o profeta Malaquias. A dispensação do Filho começa com o Evangelho de Mateus e vai até o dia de Pentecostes. E a dispensação do Espírito Santo começou no Pentecostes e só terminará com a volta do Senhor Jesus. Vivemos, portanto na última, mas gloriosa dispensação mais ampla da obra expiatória de Jesus Cristo, e o Consolador, o Espírito Santo, tem através dos tempos convencido muitos do pecado, da justiça e do juízo, e despertado os homens para buscarem a Deus (MP, 2004, p. 54-55 – vol. I). Posteriormente, a Assembleia de Deus liberou102 a Bíblia de Referência de Scofield, a partir daí, o dispensacionalismo de Scofield está presente na Assembleia de Deus. Como o dispensacionalismo tem como um de seus pontos fundamentais a separação da Igreja de Israel, a teologia pentecostal assembleiana se firmará na literalidade da palavra de Paulo em Romanos 11: 102 Sobre a proibição e liberação da Bíblia de Referência de Scofild na Assembleia de Deus norte-americana, veja nota de rodapé 77 – pag. 137. 161 Digo, pois: Porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum! porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou o seu povo, que antes conheceu. Ou não sabeis o que a Escritura diz de Elias, como fala a Deus contra Israel, dizendo: Senhor, mataram os teus profetas e derribaram os teus altares; e só eu fiquei, e buscam a minha alma? Mas, que lhe diz a resposta divina? Reservei para mim sete mil varões, que não dobraram os joelhos a Baal. Assim, pois, também agora neste tempo ficou um resto, segundo a eleição da graça. Mas se é por graça, já não é pelas obras; de outra maneira, a graça já não é graça. Pois quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram endurecidos. Como está escrito: Deus lhes deu espírito de profundo sono: olhos para não verem, e ouvidos para não ouvirem, até ao dia de hoje. E Davi diz: Torne-se-lhes a sua mesa em laço, e em armadilha, e em tropeço, por sua retribuição; escureçam-se-lhes os olhos para não verem, e encurvem-se-lhes continuamente as costas. Digo, pois: porventura tropeçaram, para que caíssem? De modo nenhum! Mas pela sua queda, veio a salvação aos gentios, para os incitar à emulação. E, se a sua queda é a riqueza do mundo, e a sua diminuição a riqueza dos gentios, quanto mais a sua plenitude! Porque convosco falo, gentios, que, enquanto for apóstolo dos gentios, glorificarei o meu ministério; para ver se de alguma maneira posso incitar à emulação os da minha carne e salvar alguns deles. Porque, se a sua rejeição é a reconciliação do mundo, qual será a sua admissão, senão a vida dentre os mortos? E, se as primícias são santas, também a massa o é; se a raiz é santa, também os ramos o são. E se alguns dos ramos foram quebrados, e tu, sendo zambujeiro, foste enxertado em lugar deles e feito participante da raiz e da seiva da oliveira, não te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti. Dirás, pois: Os ramos foram quebrados, para que eu fosse enxertado. Está bem! Pela sua incredulidade foram quebrados, e tu estás em pé pela fé, então não te ensoberbeças, mas teme. Porque, se Deus não poupou os ramos naturais, teme que te não poupe a ti também. Considera, pois, a bondade e a severidade de Deus: para com os que caíram, severidade; mas, para contigo, a benignidade de Deus, se permaneceres na sua benignidade; de outra maneira também tu serás cortado. E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar. Porque, se tu foste cortado do natural zambujeiro e, contra a natureza, enxertado na boa oliveira, quanto mais esses, que são naturais, serão enxertados na sua própria oliveira! Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E assim, todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E este será a meu concerto com eles, quando eu tirar os seus pecados. Assim que, quanto ao evangelho, são inimigos por causa de vós; mas, quanto à eleição, amados por causa dos pais. Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento. Porque assim como vós também antigamente fostes desobedientes a Deus, mas agora alcançastes misericórdia pela desobediência deles, assim também estes agora, foram desobedientes, para também alcançarem misericórdia pela 162 misericórdia a vós demonstrada. Porque Deus encerrou a todos debaixo da desobediência, para com todos usar de misericórdia. Ó profundidade das riquezas, tanto da sabedoria, como da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos! Por que quem compreendeu a mente do Senhor? ou quem foi seu conselheiro? Ou quem lhe deu primeiro a ele, para que lhe seja recompensado? Porque dele e por ele, e para ele, são todas as coisas; glória, pois, a ele eternamente. Amém (Romanos 11:1-36 ARC). No entender dos evangélicos pentecostais clássicos, de acordo com sua interpretação literal da Bíblia, Deus não rejeitou o povo de Israel, conforme afirmação do apóstolo Paulo: Digo, pois: porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum! Porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não rejeitou ao seu povo, que antes conheceu... (Romanos 11.1-2 - ARC). De acordo com essa interpretação pentecostal, a declaração de Paulo no capítulo 11 da Epístola aos Romanos aponta para as seguintes considerações: ele se referia à nação de Israel, ele fala de sua etnia, “sou israelita”, fala de seu antepassado, “da descendência de Abraão”, fala de sua família tribal, “da tribo de Benjamim” e fecha sua consideração declarando "Deus não rejeitou ao seu povo, que antes conheceu". Os escritos de Paulo aos Romanos capítulos 9 a 11, nessa perspectiva, tratam da eleição de Israel no passado, da sua rejeição do evangelho no presente, e da sua salvação no porvir. O pentecostalismo infere que havia, naquela comunidade, ou entre algumas pessoas, o seguinte questionamento: como as promessas de Deus feitas a Abraão, a Isaac e a Jacó, feitas a seus descendentes, ou seja, a toda nação de Israel, poderiam permanecer válidas, quando o povo judeu, ou a nação de Israel, como um todo, não aceitava as boas novas de salvação? Seriam mesmo inimigos perseguidores do Evangelho de Jesus, o Messias? Algum tipo de pensamento ou ideia que implicava a rejeição 163 dos judeus, devido à oposição contínua, a perseguição e rejeição dos judeus aos primeiros cristãos levou a essa disposição, sugestionando-os a concluírem precipitadamente que o povo judeu teria sido rejeitado, já que não conseguiam conciliar a nação de Israel e a Igreja de Cristo. Mas para essa pergunta especificamente "Porventura rejeitou Deus o seu povo?", em Romanos 11.1, a teologia dispensacionalista e pentecostal concebem os escritos de Paulo com uma tríplice resposta? Uma primeira resposta negativa: "... não rejeitou ao seu povo...". Uma segunda resposta, fazendo a justaposição dos termos "Deus" e "seu povo", obviamente jamais o Eterno rejeitaria seu povo que de antemão o conheceu, ou escolheu, e o fez por uma ação totalmente independente de qualquer valoração. Veja o que Deus fala a Israel através de Moisés: O SENHOR não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos, mas porque o SENHOR vos amara; e, para guardar o juramento que jurara a vossos pais, o SENHOR vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito (Deuteronômio 7.7,8 - ARC). Uma terceira resposta à promessa de Deus a Israel, ele não rejeitou o seu povo, como podemos ler na promessa da Antiga Aliança, Salmo 94.14 e 1º Samuel 12.22: Pois o SENHOR não rejeitará o seu povo, nem desamparará a sua herança (Salmo 94.14 - ARC). Pois o SENHOR não desamparará o seu povo, por causa do seu grande nome, porque aprouve ao SENHOR fazer-vos o seu povo (1º Samuel 12.22 – ARC) A percepção pentecostal lê na declaração de Paulo uma enorme aversão à rejeição do povo judeu: "...De modo nenhum...", parafraseado como "Não 164 aconteceu sob hipótese alguma", "Deus proíba" ou "longe de nós tal possibilidade ou pensamento". Assim o pentecostalismo compreende que a aversão à ideia de rejeição do povo judeu é definitiva, não podendo admitir que a vontade e o plano divino pudessem mudar de tal modo que aqueles que antes haviam sido povo de Deus, agora pudessem vir a ser final e totalmente rejeitados por Deus: “Porque os dons e a vocação de Deus são sem arrependimento” (Rm 11.29). Na Epístola aos Hebreus capítulo 6 e versículos 17 a 18 lemos: Pelo que, querendo Deus mostrar mais abundantemente a imutabilidade do seu conselho aos herdeiros da promessa, se interpôs com juramento. Para que por duas coisas imutáveis, nas quais é impossível que Deus minta, tenhamos a firme consolação, nós, os que pomos o nosso refúgio em reter a esperança proposta (Hebreus 6.1718). Para os pentecostais clássicos, na exposição teológica dos capítulos 9 a 11 aos Romanos, o apóstolo Paulo estaria elencando três elementos distintos de Israel no plano salvífico de Deus. Primeiramente (9.6-26) ele analisa a eleição de Israel no passado. Em segundo lugar (9.30 a 10.21) Paulo analisa a rejeição de Israel em relação ao evangelho e, finalmente, em terceiro lugar (11.1-36) explica que o endurecimento a Israel veio em parte, portanto era parcial e temporário. No dispensacionalismo, a teologia da rejeição à nação de Israel é totalmente impossível, Deus não rejeitou seu povo, Paulo em Romanos 11 evoca sua etnicidade judaica, e em seguida explica que ele não era o único judeu cristão, mas havia um remanescente fiel em Israel, como nos dias do Profeta Elias, quando o Eterno conservou sete mil homens para si. Essa é uma analogia interessante, Paulo estava ensinando que embora o profeta Elias se considerasse o único israelita fiel de sua época, o único que não negara sua fé, Deus testemunha contra essa ideia declarando: 165 Também eu fiz ficar em Israel sete mil; todos os joelhos que se não dobraram a Baal, e toda boca que o não beijou (1 Reis 19.18 - ARC). O argumento de Paulo é o mesmo, ele estava dizendo que o mesmo acontecia naquela época, existe um remanescente fiel de Israel (Romanos 11.4). Finalmente Paulo declara que, depois da entrada da plenitude dos gentios, Deus salvará todo o Israel e Jerusalém será a capital do reino terreno do Messias: 0 Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E, assim todo o Israel será salvo, como está escrito: De Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E este será o meu concerto com eles, quando eu tirar os seus pecados (Romanos 11.25-27 – ARC - grifo nosso). São inúmeras as profecias bíblicas que apontam para um reino terreno do Messias com capital Jerusalém. A teologia evangélica pentecostal acredita literalmente no milênio de Apocalipse 20, como expressou o conferencista Dave Hunt103 em seu artigo: Jerusalém, Jerusalém!104 diz: Duas vezes na Bíblia Jerusalém é chamada “cidade do nosso Deus” (Salmo 48.1,8); duas vezes, “cidade de Deus” (Salmo 46.4 e Salmo 87.3); oito vezes, “santa cidade” ou “cidade santa” (Neemias 11.1; Isaías 48.2; Isaías 52.1; Mateus 4.5; etc.). Deus decretou que jamais existirá uma cidade igual a Jerusalém! Ela é mencionada 811 vezes na Bíblia... Toda a história de Jerusalém, inclusive sua destruição (em 70 d.C.) e sua restauração “nos últimos dias”, foi predita pelos profetas hebreus e por Jesus Cristo: “Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada” (Mateus 24.2) –“...esta cidade será reedificada... Jerusalém jamais será desarraigada ou destruída” (Jeremias 31.38-40). Ainda em processo de realização, em 103 Dave Hunt (1926-2013) – Teólogo dispensacionalista, escritor e apologista, escreveu 20 livros, com tiragem de mais de 4 milhões de exemplares. 104 Artigo: Jerusalém, Jerusalém! - www.beth-shalom.tv.br/artigos/jerusalém_jerusalem.html 166 face da ferrenha oposição do mundo e de Satanás, a caminhada rumo ao cumprimento das profecias de restauração (nenhuma delas podendo ser aplicada à Igreja) é a maior prova que Deus dá de Sua existência e de que a Bíblia é a Sua Palavra infalível (HUNT, 2011). A percepção dos evangélicos pentecostais da Assembleia de Deus em relação à questão profética pode ser constatada em escrito de um de seus fundadores, o sueco Gunnar Vingren, em sua Monografia de graduação em Teologia intitulada O Tabernáculo e Suas Lições, apresentada em 1909 no Seminário Teológico Sueco de Chicago (EUA): Já quem observa o Novo Testamento pode contemplar uma cidade de imensas dimensões geográficas, também chamada de tenda de Deus, a nova Jerusalém, em cujo nome está contido o mesmo pensamento fundamental, o de um tenda do testemunho no deserto. Onde vemos o término de uma era, temos o começo de outra. Na cidade de Deus, com sua tenda celestial, contemplamos a consumação do conselho de Deus à humanidade, de forma que a tenda do testemunho não deve ser vista apenas como símbolo, e sim como o início do reino do Senhor junto ao povo eleito (VINGREN, 2011, p. 82). Outra citação interessante encontra-se no artigo A Palestina de Hoje, de Alice E. Luce, publicado no órgão oficial da Assembleia de Deus, o jornal Mensageiro da Paz da primeira quinzena de 1941, antes mesmo da fundação do moderno Estado de Israel: A figueira é a primeira das três árvores que representam a nação judaica e tipifica sua organização política e econômica. A videira representa a vida religiosa e cerimonial (Is 5.1-7), a oliveira é usada para demonstrar o aspecto espiritual diante de Deus (MP, 2000, p. 186187 – Vol I). Essa interpretação profética assembleiana está em simetria com a declaração a respeito de Jerusalém exposta pelo Dr. Wim Malgo: 167 Israel é o centro do mundo; Jerusalém é o centro de Israel; o templo é o centro de Jerusalém; o Santo dos Santos é o centro do templo; a Arca da Aliança com o sangue espargido é o centro do Santuário, e esse é o Cordeiro! Cantares 6.4 diz: És “...aprazível como Jerusalém”. Isaías 40.2: “Falai ao coração de Jerusalém (com isso se faz referência também a Israel), bradai-lhe que já é findo o tempo da sua milícia, que a sua iniquidade está perdoada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor, por todos os seus pecados”. Façamos mais uma vez a pergunta: por que Jerusalém? Para isso existe uma resposta curta do Senhor, mas que diz tudo: “...habitarei no meio de Jerusalém” (Zc 8.3) Deus o Senhor nunca muda sua vontade e seu conselho. Por isso, sob todos os aspectos, Jerusalém era e será o centro deste mundo. Até mesmo geograficamente o Senhor localizou Jerusalém em posição central. Isso pode ser visto claramente num mapa-múndi. É o que está também escrito na Bíblia: “Assim diz o Senhor Deus: Esta é Jerusalém; pu-la no meio das nações e terras que estão ao redor dela” (Ez 5.5). Deus o Senhor mesmo, e assim também como centro da sua ação com este mundo. Por isso, toda comparação política de qualquer nação com Israel e com Jerusalém é desacertada. Pois Deus age em e através de Jerusalém, ou seja, Israel é algo bem diferente do que os outros povos, e deveria ter a coração de ser Israel. Todas as questões políticas, religiosas e militares mundiais são por isso cada vez mais respondidas a partir de Jerusalém. Partindo de Jerusalém a justiça penetrará por todo o mundo. De Jerusalém procederá também a paz para todo o mundo. Isso está escrito, por exemplo, em Isaías 2.2-4, onde se fala do futuro. Essas palavras são inequívocas. Elas igualmente não devem ser espiritualizadas. “Nos últimos dias acontecerá que o monte da casa do SENHOR será estabelecido no cume dos montes, e se elevará sobre os outeiros, e a ele afluirão os povos. Irão muitas nações, e dirão: Vinde, e subamos ao monte do Senhor, e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e a Palavra do Senhor de Jerusalém. Ele (o Rei e Messias que então terá vindo) julgará entre os povos, e corrigirá muitas nações; estes converterão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças em podadeiras: uma nação não levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra”. Encontramos o mesmo também em Miqueias 4.1-3. Esse é o futuro! A partir de Jerusalém haverá na terra um reino de paz sob o abençoado domínio do Messias, do Senhor Jesus Cristo. (MALGO, 1999, p. 47-49). O escritor assembleiano pastor Claudionor Corrêa de Andrade assim sintetizou a crença pentecostal do que acontecerá a Jerusalém nos últimos tempos: 168 Estamos vivendo os estertores da dispensação da graça. Cumprem-se as profecias; os sinais da volta de Cristo tornam-se ainda mais evidentes. A areia não para de fluir na ampulheta escatológica. Os oráculos de Moisés, Isaías e Daniel materializam-se na tela da soberania divina. Ganham corpo, no presente século, os eventos preditos do atual período probatório. O Rei está voltando! A mais forte profecia do retorno de Cristo já se cumpriu, Israel, a figueira seca e sem flores, frutifica advertências. O arrebatamento da Igreja é mais que iminente. Mas o que reserva Deus à sua amada cidade? Neste capítulo, veremos que, não obstante o ardor da Grande Tribulação, Jerusalém há de resplandecer. Apesar da rapacidade e sanguinolência das tropas de Gogue e Magogue, Sião não será subvertida, nem cairá no fosso do esquecimento. No auge de suas dores, dará à luz uma fé viva em seu desprezado e humilhado Messias: Jesus Cristo... O clímax da Grande Tribulação, os israelitas converter-se-ão a Cristo, conforme os oráculos que Deus transmitiu ao profeta Zacarias: “Mas sobre a casa de Davi, e sobre os habitantes de Jerusalém, derramarei o Espírito de graça e de súplicas; e olharão para mim, a quem traspassaram; e prantearão sobre ele, como quem pranteia pelo filho unigênito; e chorarão amargamente por ele, como se chora amargamente pelo primogênito. Naquele dia será grande o pranto em Jerusalém, como o pranto de Hadade-Rimom no vale de Megido”. Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi, e para os habitantes de Jerusalém, para purificação do pecado e da imundícia. E acontecerá naquele dia, diz o Senhor dos Exércitos, que tirarei da terra os nomes dos ídolos, e deles não haverá mais memória; e também farei sair da terra os profetas e o espírito da impureza” (Zc 12.10-11; 13.1,2). Com o arrependimento nacional de Israel, será instaurado o Milênio na Terra. ... “Ele (o anjo que desceu do céu) prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e amarrou-o por mil anos. E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele, para que não mais engane as nações, até que os mil anos se acabem. E depois importa que seja solto por um pouco de tempo” (Ap 20:2-3)... Inspirado pelo Espírito Santo, narra-nos o profeta Isaías como será este reino, que terá por capital a Cidade de Jerusalém: “E acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes, e se elevará por cima dos outeiros; e concorrerão a ele todas as nações. E irão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos nas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor” (Is 2:2-3) (ANDRADE, 1997, p. 169-173). O Mensageiro da Paz, em abril de 2002, publicou matéria intitulada Conflito do Oriente Médio no contexto bíblico de autoria de Paulo Roberto Freire da Costa, presidente da Assembleia de Deus de Campinas-SP, com a seguinte afirmação: 169 Para que as Escrituras continuem se cumprindo será necessário que haja uma união entre as nações, o que, por sinal, já vem ocorrendo... Temos assim, a continuação do cumprimento da Palavra do Senhor. Por mais que as nações queiram ignorar ou menosprezar o povo de Israel, a sua capital – Jerusalém – continuará sendo o local mais disputado da Terra. Enquanto Yasser Arafat e todos os palestinos desejam-na como capital, outras nações e instituições pedem a sua internacionalização. Esquecem que foi em Jerusalém que Davi governou como rei durante 33 anos sobre todo o Israel e Judá (2 Sm 5.5). Também esquecem que Jerusalém é a terra escolhida pelo Senhor como habitação (Zc 8.3) e que foi por ela que Jesus chorou (Lc 19.41). Por fim, será em Jerusalém travada a grande luta em que todas as nações guerrearão e se ferirão, e lá, finalmente, haverá a conversão do remanescente de Israel, por ocasião da vinda de Jesus (Zc 14.4) (MP, 2000, p. 231-232 – Vol. I). Essa teologia pentecostal clássica é completamente diferente da velha cristandade como bem observou o Professor James Carroll: …antiga convicção católica romana e ortodoxa oriental de que Deus proíbe a volta dos judeus a Jerusalém não poderia contrastar mais agudamente com a moderna certeza evangélica protestante de que Deus deseja a reintegração dos judeus em Jerusalém – no entanto, no fundo essas duas visões cristãs colocam a relação dos judeus com Jerusalém no centro da teologia do Fim dos Tempos. Para os católicos, os judeus só voltarão a Jerusalém no momento do fim do mundo; para os protestantes a volta acontecerá antes do final, como instrumento causal desse clímax. Mas ambos preveem a destruição da Jerusalém terrestre como prelúdio para o estabelecimento da Jerusalém celeste (CARROLL, 2013, p. 290). Para o imaginário escatológico pentecostal, a cidade de Jerusalém (atual capital do moderno Estado de Israel) tem e terá um papel fundamental no plano divino para o futuro. As profecias encontradas na Bíblia Sagrada a respeito de Jerusalém são aceitas literalmente, tais como: Isaías 60-61, Zacarias 12 e 14 e Apocalipse 20-22. Mesmo após o arrebatamento da igreja, segundo a escatologia pentecostal, Jerusalém estará no centro dos propósitos de Deus na terra, quando ocorrerá a grande tribulação (Apocalipse 6, 8 e 9; Ezequiel 38.17-23; 170 Zacarias 12. 8-9; 14.1-2; Daniel 9.24-27; Mateus 24.15-22). O templo judeu será reconstruído no atual monte do templo em Jerusalém, local da esplanada das mesquitas (Mesquita de Al-Acsa – cúpula preta e Domo da Rocha – cúpula dourada), a base bíblica citada pelo pentecostalismo está em Daniel 9.27; Mateus 24.15-16; 2 Tessalonicenses 2.3-4; e Apocalipse 11.1-2. Em Apocalipse 11.3-14, haverá duas testemunhas singulares em Jerusalém pregando o Evangelho por 1260 dias. Durante três anos e meio eles ministrarão na cidade de Jerusalém, eles serão mortos pelo Anticristo e seus corpos serão expostos nas ruas de Jerusalém (Apocalipse 11.1-8). No final desse período haverá guerra intensa em Jerusalém (Zacarias 14.1-3). Essa leitura do livro de Apocalipse é feito pelo pentecostalismo na perspectiva literal. Como o pentecostalismo clássico acredita que a vinda de Cristo se dará em duas fases, na segunda fase Cristo retornará com sua igreja raptada da terra no Monte das Oliveiras em Jerusalém conforme profecia de Zacarias: Naquele dia estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente; e o monte das Oliveiras será fendido pelo meio, para o oriente e para o ocidente, e haverá um vale muito grande; e metade do monte se apartará para o norte, e a outra metade dele para o sul (Zacarias 14.4 - ARC). Cristo voltará em Jerusalém para julgar o mundo e estabelecer seu Reino Milenal, reinará no trono de Davi em cumprimento às profecias do Antigo Testamento sobre o Messias da linhagem de Davi. Segundo o Dr. Walvoord: Seu reinado sobre a casa de Israel será a partir de Jerusalém (Isaías 2.1-4), e do mesmo local em que reinará como Rei dos Reis e Senhor dos Senhores sobre toda a terra (Salmo 72.8-11, 17-19)... O Milênio será a hora da restauração final de Israel. No começo do reino milenar Israel terá seu ajuntamento final e permanente (Ezequiel 39.25-29: Amós 9.15). O reinado de Cristo sobre Israel será glorioso e um cumprimento completo e literal de tudo que Deus prometeu a Davi (Jeremias 23.5-8). (ICE e DEMY, 2000, p. 55). 171 Finalmente, qual é o futuro de Jerusalém no Estado Eterno na concepção pentecostal e dispensacionalista? Segundo Thomas Ice e Timothy Demy: ...Deus quer continuar usando o nome amado de Jerusalém, já que este nome está associado à Sua glória e presença. A Nova Jerusalém de Apocalipse 3.12 e 21-22 (e Hebreus 11.0-10; 12.22-25) descerá do céu e continuará pela eternidade. Será a habitação dos redimidos de todas as eras, quer servirão a Deus eternamente (Apocalipse 22.3)... Em João 14.2-3, Jesus disse aos Seus discípulos que iria para o céu preparar um lugar para os crentes. Parece que este lugar que Ele está preparando é a Jerusalém Celestial (ICE, DEMY, 2000, p. 55). O apóstolo João após fazer uma detalhada descrição da Nova Jerusalém, declara que ela desce do céu, segundo sua visão descrita no livro do Apocalipse temos: Vi um novo céu, e uma nova terra. Porque já o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. E eu, João, vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que de Deus descia do céu, adereçada como uma esposa ataviada para o seu marido. E ouvi uma grande voz do céu, que dizia: Eis aqui o tabernáculo de Deus com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e o mesmo Deus estará com eles, e será o seu Deus (Apocalipse 21:1-3). Em um cântico evangélico muito presente na liturgia pentecostal no Brasil intitulado Cidade Santa (Jerusalém) expressa a essência dessa crença: Dormindo no meu leito, em sonho encantador, Um dia eu vi Jerusalém e o trono do Senhor. Ouvi cantar crianças e em meio ao seu cantar Rompeu a voz dos anjos, no céu a proclamar Rompeu a voz dos anjos, no céu a proclamar Jerusalém, Jerusalém Cantai oh Santa Grei! Hosanas nas alturas! Hosana sem cessar! Então o sonho se alterou, não mais o som feliz Ouvia das hosanas, dos coros infantis. 172 O ar em torno se esfriou Do sol faltava a luz E no alto e tosco monte vi o vulto de uma cruz E no alto e tosco monte vi o vulto de uma cruz Jerusalém, Jerusalém Aos anjos escutei! Hosanas nas alturas! Hosana ao vosso Rei! Ainda a cena se mudou, surgia em resplendor A divinal cidade, morada do Senhor. Da luz não brilhava a luz, nem sol nascia lá Mas só fulgia a luz de Deus mui pura em seu brilhar. E todos que queriam sim, podiam logo entrar Na mui feliz Jerusalém, que nunca passará Na mui feliz Jerusalém, que nunca passará Jerusalém, Jerusalém Teu dia vai raiar Hosanas nas alturas! Hosana sem cessar! Hosana sem cessar! Trata-se, de um imaginário próprio construído paulatinamente e plenamente cristalizado nas muitas comunidades evangélicas brasileiras, especialmente as que derivam das Assembleias de Deus. 5.3.1.- Outros aspectos da construção do imaginário pentecostal assembleiano sobre Jerusalém Após analisar a perspectiva histórica, teológica escatológica do pentecostalismo clássico, é necessário analisar outros aspectos da construção e fomento desse imaginário, primeiro porque a maioria dos pentecostais clássicos, sejam da Assembleia de Deus ou da Congregação Cristã no Brasil, não possuem uma prática doutrinária teológica totalmente homogênea, ou seja, há diferença entre o que a denominação declara oficialmente e o que os fiéis em seu cotidiano acreditam; segundo, porque os membros, de modo geral, não 173 possuem conhecimento histórico teológico aprofundado de suas crenças e doutrinas, algo notável na Congregação Cristã no Brasil, e em menor dimensão nas Assembleias de Deus; e terceiro, porque o modelo administrativo eclesiástico de autonomias de campos e ministérios, especificamente nas Assembleias de Deus, permite uma diversificação de possibilidades e pluralidade de interpretações. Pode-se afirmar que o imaginário pentecostal clássico sobre Jerusalém não é fruto ou herança do catolicismo brasileiro, não há paralelo no catolicismo brasileiro para fazer uma ponte com o que ocorre no pentecostalismo clássico ou da primeira onda pentecostal com alguma crença preexistente no catolicismo brasileiro. Lembrando que o pentecostalismo clássico não aceita objetos santificadores ou mágicos, elementos presentes no catolicismo, presentes em parte, tanto no pentecostalismo da segunda onda, como no neopentecostalismo. O pentecostalismo clássico não aceita a água do rio Jordão como milagrosa, óleos de oliveiras de Jerusalém, arca da aliança, sal do Vale do Sal, trombetas de Gideão, o cajado de Moisés, ou qualquer outro kit milagroso de Israel. Como bem apontou o escritor Pierre Sanchis: Para o pentecostalismo ‘clássico’ dito, às vezes e já, ‘tradicional’ a unicidade da mediação (o Cristo) é proclamada e ciosamente mantida. O encontro que salva é direto, sem intermediários, e procurado exclusivamente. O resto são consequências: dons, curas, milagres, falar em línguas... (SANCHIS, 1994, p. 51). O imaginário evangélico pentecostal clássico não é herança dos movimentos messiânicos presentes no catolicismo e no protestantismo étnico no Brasil, até porque o pentecostalismo nasceu antipolítico e alienante do mundo. Gedeon Alencar em sua obra Assembleias de Deus: Origens, implantação e militância (1911-1946), declara 174 A AD tem um seu ethos uma natureza de “aversão do mundo” que se justifica por razões internas: sua escatologia iminente não lhe dá tempo para pensar no presente (ALENDAR, 2010, p. 49). Não se trata de judaização identificada em parte nas igrejas da segunda onda do pentecostalismo e entre as igrejas neopentecostais, no uso de objetos do judaísmo, como Kipá, talit, candelabros, chofar, arca da aliança, uso de barba e linguagem hebraica, entre outros. Como afirmou Antonio Gouvêa Mendonça, o pentecostalismo clássico está mais próximo do protestantismo que as outras ondas pentecostais: Hoje, o pentecostalismo clássico não difere tanto do protestantismo, a não ser na sua insistência na repetição da experiência do Pentecoste que o protestantismo recusa. O pentecostalismo posterior, cuja explosão e expansão se deu nos anos 50, enfatizou a cura divina, o que o afastou ainda mais do protestantismo. Os posteriores movimentos, que têm recebido o nome genérico de neopentecostalismo, representam uma ruptura final com o protestantismo (GOUVÊA, 1998). 5.3.2.- A mercantilização editorial e turística no fortalecimento desse imaginário O mercado irá explorar e fomentar o desejo do fiel pentecostal no fortalecimento de seu imaginário, reforçando questões teológicas escatológicas do pentecostalismo para seu proveito, potencializando o desejo do fiel em materializar sua fé, caminhando nas terras bíblicas, conhecendo a cidade de Jerusalém, a futura capital do reino milenar na percepção pentecostal. O mercado contribuirá para afirmação e materialização do imaginário evangélico pentecostal, mas o mercado não irá criar o imaginário, ele explorará e 175 potencializará uma demanda preexistente, o mercado criará necessidade no fiel e será um facilitador para materializar seus sonhos, ele amalgama-se num imaginário confessional, espiritual, transformando-o numa necessidade material, palpável e possível de realizar-se, mas não é o criador do imaginário porque ele já existia. Se o mercado não cria o imaginário pentecostal clássico sobre a cidade de Jerusalém, mas fomenta-o, dando uma enorme importância a ele, então onde está a gênese da construção desse imaginário e sua fomentação? A gênese desse imaginário, como foi dito, é teológica escatológica, está presente na declaração de fé do pentecostalismo clássico. Portanto está no campo da crença, de sua esperança escatológica. No entanto, há um tripé elementar que precisamos considerar para a compreensão desse imaginário especialmente nas Assembleias de Deus: primeiro, houve na Assembleia de Deus um longo período de afirmação escatológica; segundo, muita publicação editorial sobre escatologia e terceiro, empresas turísticas facilitadoras que, impulsionadas pela estabilidade econômica desde o plano real, adentraram nas igrejas para concretizarem o desejo de conhecer a terra santa. O primeiro elemento trata-se da doutrina escatológica ou apocalíptica presente desde a origem do pentecostalismo clássico; a escatologia está no DNA do pentecostalismo, como bem apontou o pesquisador Gedeon Alencar: A AD tem um seu ethos uma natureza de “aversão do mundo” que se justifica por razões internas: sua escatologia iminente... (ALENDAR, 2010, p. 49). A teologia escatológica é a responsável pelo imaginário pentecostal sobre Jerusalém. Desde sua fundação até hoje, a escatologia está muito presente nas Assembleias de Deus, mas é entre as décadas de 70 a 90 que irá acontecer a massificação da escatologia, com muitos preletores pregando essa temática através de ensinos e publicações de livros: como o testemunho e o livro Milênio do pastor João de Oliveira, que foi um dentre os pastores que ajudaram no 176 fomento e construção do imaginário assembleiano sobre Jerusalém, como a capital literal do reino milenal de Cristo na terra, tanto nas igrejas como nos institutos de ensino teológico; o livro Israel, Gogue e o Anticristo, de Abraão de Almeida com mais de 250 mil cópias vendidas, obra publicada pela Casa Publicadora da Assembleia de Deus (CPAD); e os estudos do pastor Antonio Gilberto da Silva, considerado um dos maiores ensinadores pentecostais do Brasil, autor de vários livros como: “Daniel & Apocalipse”, “O Calendário da Profecia”, “A Bíblia: o livro, a mensagem e a história”, “Verdades Pentecostais”, “A Bíblia através de séculos”, “Manual de Escola Dominical”, todos títulos da CPAD, sendo este último o seu maior best-seller, com mais de 200 mil exemplares vendidos. Além de outros autores assembleianos, ensinadores, pregadores e escritores que abordaram e fomentaram essa temática escatológica em seus ensinos, apresentando Israel e Jerusalém como fundamentais em sua teologia apocalíptica, no imaginário pentecostal, Israel é como uma bússola, que deve ser continuamente observada. Tanto o mercado editorial, alavancado pela CPAD – Casa Publicadora das Assembleias de Deus, como as agências de turismo que, se aproveitaram da estabilidade econômica e do crédito fácil105, passam a apresentar pacotes específicos para os assembleianos, com facilidade no pagamento, levando muitos grupos de crentes pentecostais a realizarem viagem para Israel. Essas empresas106 aproveitaram-se do imaginário existente na teologia escatológica assembleiana, trabalhando com líderes de destaque na Assembleia de Deus, e catalisaram o desejo de muitos pentecostais de realizarem viagens para Israel, e nesses anos de estabilidade econômica muitos viajaram para lá. 105 Plano Real a partir do ano de 1993 no governo de Itamar Franco, levou a estabelização da economia do país e no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2002-2010) aconteceu a valorização do salário do trabalhador e a criação de crédito fácil para grande parcela da população brasileira, inclusive para os aposentados. 106 Empresas como: Us Travel Operadora de Turismo; Viagens Bíblicas Agências de Turismo e Operadora; Caprice Tour Operadora entre outras, que possuem grande trânsito entre as lideranças pentecostais e nas igrejas evangélicas. 177 Não se trata de um consenso homogêneo o desejo de viajar para Israel e conhecer a cidade de Jerusalém, mas esse imaginário está presente em muitos pentecostais assembleianos, consequência desse tripé: o prolongado período escatológico, muita publicação editorial sobre o assunto e o incentivo das empresas de turismo, sempre representadas por líderes carismáticos e de grande prestígio na igreja. Cânticos alusivos a Jerusalém e a Israel fazem sucesso no mercado fonográfico de produtos evangélicos, livros e materiais a respeito de Jerusalém têm mercado. Até mesmo revistas com abrangência nacional, que discorrem exclusivamente sobre Israel, encontram espaço no mercado, camisetas e símbolos de Israel são apreciados. A revista de Escola Bíblica Dominical das Assembleias de Deus, ligadas a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (CGADB), para Jovens (2º Trimestre de 2015) teve por Título: Jesus e o seu tempo — Conhecendo o contexto da sociedade judaica nos tempos de Jesus e na lição 02 declara: Hoje, os cristãos devem orar pela paz na região e interceder pela nação de Israel, pois eles são o relógio escatológico de Deus referente ao mundo, principalmente acerca da Grande Tribulação (Ap 16.12-21). Esse evento escatológico será terrível e indescritível para o povo de Israel. Ele estará mobilizado para a grande batalha do Armagedom. Os reis da terra, isto é, os governantes do mundo todo estarão reunidos com seus exércitos e armas destrutivas para o maior combate já registrado na história mundial; será no clímax dessa batalha que Jesus, o Messias, anteriormente rejeitado pelos israelitas, virá e destruirá os inimigos do seu povo, e implantará o seu reino milenial (Ap 19.11-21) (LIÇÃO BÍBLICA, 2015, p. 23). Trata-se da construção de um imaginário próprio das igrejas evangélicas pentecostais clássicas que faz da cidade de Jerusalém e de Israel, um elemento fundamental de sua teologia e em especial sua escatologia. Não podemos ainda desconsiderar as contínuas orações, seminários, congressos e cultos realizados nas milhares de igrejas evangélicas, seminários, centros missionários e escolas 178 teológicas sobre Israel e Jerusalém, ou em favor de Israel, pela “Paz de Jerusalém”. 5.3.3.- Reflexos políticos do imaginário pentecostal clássico Esse contexto traz reflexos políticos derivantes da percepção pentecostal acerca de Jerusalém. Sobre a defesa incondicional de Israel feita pelo dispensacionalismo herdado pelo pentecostalismo, sabemos que o sionismo é um movimento essencialmente político, mas que implica, especialmente para os pentecostais, numa perspectiva religiosa escatológica. Os pentecostais apoiaram os sionistas por um estado judeu, uma pátria israelense antes mesmo da fundação de Israel. Em 1948 continuaram apoiando o Estado de Israel, essa posição é interpretada no pentecostalismo, como espiritual, embora na prática seja política. Obviamente, o pentecostalismo se baseia na literalidade da Bíblia Sagrada que contempla a natureza incondicional da promessa de Deus feita a Abraão, Isaac e Jacó da terra que “mana leite e mel”107 - Canaã. É relevante salientar que embora os pentecostais apoiam o Estado de Israel, numa perspectiva profética, bíblica, literalmente, não se trata de um apoio acrítico, pois há discordância em relação a certas políticas estabelecidas por partidos políticos que ocupam o governo israelense. Não é fácil para os pentecostais distinguir o povo escolhido de Deus, o povo judeu, das políticas de governo, implementadas pelos líderes eleitos pelos partidos políticos da atualidade. Ter censo crítico para separar o povo eleito, das políticas dos atuais governantes do Estado de Israel, é uma posição considerada 107 Terra que mana leite e mel – expressão comum no Antigo Testamento para designar a terra de Canaã ou a terra prometida. 179 equilibrada de muitos pentecostais, obviamente não é uma unanimidade, uma vez que a teologia escatológica pentecostal faz de Jerusalém literalmente um “cálice de tontear”; é impossível exercer fé plena nessa teologia sem defender Israel e Jerusalém. Ainda no campo político, nota-se a grande diferença no imaginário evangélico pentecostal por Jerusalém em relação à velha cristandade, já que esses evangélicos não defendem a ideia de internacionalizá-la, como declarou a ONU108 e ainda aspira o Vaticano109; e muito menos apoia a ideia de Jerusalém ser a capital de dois Estados, um judeu e outro palestino, posição do governo brasileiro, que em agosto de 2015, retirou do passaporte dos brasileiros nascidos em Jerusalém o nome de Israel110 O pentecostalismo clássico brasileiro, em sua maioria, crê que Jerusalém é a capital indivisível do povo judeu por direito divino e histórico, apoia explicitamente o “status” atual de Jerusalém; sua base teológica é milenarista e dispensacionalista, e esse é um dos motivos de grande importância para o estudo e a análise desse imaginário evangélico pentecostal clássico; é fundamental, pois destoa frontalmente da velha cristandade, partindo de um outro princípio, totalmente diferente da visão e ideologia adotadas pelo catolicismo e até mesmo de muitos protestantes tradicionais que advogam teologicamente a Doutrina da Substituição (a igreja como substituta de Israel em todos os aspectos) e são simpatizantes da proposta palestina, que é ter como capital a parte oriental árabe de Jerusalém. A posição evangélica pentecostal clássica apoia a posição judaica de que Jerusalém é a capital eterna e indivisível do Estado de Israel. Essa posição 108 Resolução da ONU 181 de 29 de novembro de 1947 - O plano consistia na partição da banda ocidental do território em dois Estados – um judeu e outro árabe -, ficando as áreas de Jerusalém e Belém sob controlo internacional. A Resolução 478/1980 do Conselho de Segurança da ONU, declarou anulada a anexação da parte Oriental de Jerusalém por Israel depois da Guerra dos Seis Dias (1967) e ordenou que todo aos países membros da ONU que retirassem suas embaixadas de Jerusalém. 109 110 A posição do Vaticano não mudou - http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/1840/33/ A Embaixada do Brasil retira o nome do Estado de Israel nos passaportes das pessoas nascidas em Jerusalém: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2015/08/1665384-brasil-retira-mencao-a-israel-de-passaportes-denascidos-em-jerusalem.shtml 180 defendida pelos pentecostais é uma posição política, (embora seja também uma posição teológica, religiosa, para os pentecostais clássicos, uma posição bíblica e até mesmo espiritual com base em Romanos 11.26-27), que os colocam abertamente contra a posição do Vaticano e de muitos outros cristãos que defendem a tese da internacionalização de Jerusalém, ou a divisão de Jerusalém em duas capitais, a parte judaica para o Estado de Israel e a parte árabe para um Estado Palestino. Entre os cristãos do Brasil os evangélicos pentecostais tiveram um importante papel em favor de Israel para que a ONU declarasse que: “Sionismo não é racismo” na década de oitenta111, assim eles participaram ativamente de um enorme abaixo assinado, que foi passado em todos os seus templos espalhados no Brasil e assinado pelos fiéis demonstrando explicitamente sua postura política favorável a Jerusalém judaica e ao retorno dos judeus para a terra de Israel. Todos os anos a Bancada Evangélica realiza Sessão Solene na Câmara dos Deputados (Câmara Federal) pela passagem do aniversário do Estado de Israel112. Todos esses elementos elencados são resultados de uma construção desenvolvida pela teologia evangélica pentecostal clássica brasileira no decorrer de sua estruturação ou institucionalização nesse último século. A essência da questão é teológica escatológica, com fomento mercadológico e político. A maioria das igrejas pentecostais clássicas no Brasil acreditam na Bíblia como única regra infalível de fé normativa para a conduta cristã. Essa crença na infalibilidade da Bíblia leva à aplicação literal da mesma, este é o fundamento do imaginário evangélico pentecostal sobre Jerusalém, fomentado pelo mercado editorial e turístico. 111 112 “Sionismo não é igual a racismo” - ONU – site: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u28044.shtml Sessão Solene em Homenagem à Data Nacional da Criação do Estado de Israel http://www.camara.leg.br/internet/lideres/reunioes/mapames.asp 181 Esses elementos elencados e amalgamados são resultados de uma construção desenvolvida pelo imaginário evangélico pentecostal sobre a cidade de Jerusalém, que em parte, é herdeira de vários imaginários préexistentes derivado da enorme significância religiosa e espiritual que Jerusalém tem na escatologia de todas as religiões monoteístas. Jerusalém não é somente mais uma cidade, mas sim, um lugar carregado de profecia, na perspectiva pentecostal, muitas cumpridas e outras por cumprir. A Bíblia Sagrada está repleta de referências a Jerusalém e todas as confissões cristãs possuem em sua escatologia menção de Jerusalém, seja a terrestre ou a celeste. Considerações Finais Jerusalém é centro primordial e mítico de todas as religiões monoteístas. Cada uma delas construiu acerca dessa cidade um imaginário próprio. Os judeus declaram que Jerusalém é o seu eterno lar, é o centro da sua vida 182 espiritual, local onde foi construído o majestoso Templo ao Deus único, o local mais sagrado da face da terra; ali está o muro Oriental ou das Lamentações (Qotel HaMa'aravi em hebraico), resquício do segundo Templo construído por Herodes há dois mil anos. Em 1967 quando os soldados de Israel tomaram e reunificaram a cidade de Jerusalém, se defrontaram e tiveram uma experiência extasiástica, a sombra do monumental Muro das Lamentações, uma sensação de pertencimento existencial, aquelas antiquíssimas pedras, faziam parte do seu mais sagrado imaginário, o altar primordial de Abraão. Os soldados de Israel, paraquedistas religiosos ou seculares tocaram reverentemente no emblemático resquício do segundo Templo, o Muro das Lamentações, e como um sonho milenar, ouviram o chofar tocado pela rabino Shlomo Goren que cantou os salmos em meio as lágrimas e abraços dos soldados, até mesmo alguns oficiais ateus se alegraram e se abraçaram nesse momento de júbilo místico. Nesse lugar sagrado e nesse momento ímpar, acabava definitivamente a ideia do “judeu errante”, em fim, o povo judeu estava de volta em sua cidade ancestral, crença presente no imaginário mítico judaico por milênios: “...ano que vem em Jerusalém”113. A famosa cantora e compositora judia Naomi Shemer114 poeticamente canta a ligação umbilical do povo de Israel com a cidade santa: “Teu nome está para sempre em meus lábios como o beijo de um Serafim, se eu te esquecer, cidade dourada, Jerusalém de ouro. Ó Jerusalém de ouro, de cobre e de luz...”. Para os cristãos, ali o Filho de Deus, Jesus Cristo, apresentou suas credenciais de messias, viveu, andou, ensinou seus discípulos, carregou a cruz, foi crucificado para a redenção da humanidade e ressuscitou ao terceiro dia. Ali está a grande e imponente Basílica do Santo Sepulcro (Anástasis em grego). No ano 629 d.C., após os católicos recuperarem Jerusalém dos persas, o fervoroso 113 “Ano que em Jerusalém” em hebraico: “Leshana habaa b' Yerushalayim”, é a expressão proferida pelos judeus após a festa da Páscoa. 114 Naomi Shemer (1930-2004) – famosa cantora judia, considerada a Maior Dama da Música de Israel até hoje. 183 monge Sofrônio, que viria a ser patriarca de Jerusalém em 633, expressou o grande amor católico por essa cidade: Ó Tumba luminosa, és o mar da vida eterna, e o verdadeiro rio do Esquecimento. Prostrado, beijo esta pedra, o centro sagrado do mundo, onde se fixou a árvore que afastou a maldição da árvore [de Adão] [...] Salve, Sião, esplêndido sol do mundo, por quem anseio e padeço dia e noite” (Anacreônticos, Canto 20, PPTS, vol. 11, p.30). Milhares de protestantes evangélicos visitam e realizam seus cultos, a Jesus, com fervor no Jardim do Túmulo em Jerusalém. Um cântico evangélico pentecostal em alusão a Jerusalém celeste, ainda cantado atualmente em seus cultos diz: Jerusalém, mansão de luz, Jerusalém de meu Jesus! Cidade que para nós fez Deus; eterna glória para os filhos seus” (Harpa Cristã, cântico nº 494 – CPAD). Para os muçulmanos é o lugar escolhido por Alá, local da passagem dos grandes profetas, considerada a terceira cidade mais importante do islã. Segundo a tradição islâmica a cidade é sagrada especialmente pelo fato de Maomé ter subido numa noite para os céus quando voltou da viagem noturna de Meca para Jerusalém. Declara o Alcorão, livro tido pelos muçulmanos como literalmente sagrado, na sura 17.1: Glorificado seja Aquele Que, durante a noite, transportou Seu servo, tirando-o da Sagrada Mesquita e levando-o à Mesquita de Alacsa, cujo recinto bendizemos, para mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Sabei que Ele é o Oniouvinte, o Onividente (ALCORÃO, 17.1). Segundo a tradição islâmica o local da “Sagrada Mesquita” seria em Meca e o local da “Mesquita de Alacsa” seria em Jerusalém. Ali ainda hoje está o 184 magnífico Domo da Rocha, também conhecido como mesquita de Omar, símbolo de uma religião triunfante. Muçulmanos xiitas e de outros grupos liderados pelo líder xiita iraniano, o grande aiatolá Sayyid Ruhollah Musavi Khomeini consagraram a última sexta-feira do mês sagrado muçulmano do Ramadã como o Dia Mundial de Al Quds (Jerusalém). Gestado no ventre do imaginário católico romano, o imaginário protestante nasceu e foi profundamente influenciado pelo milenarismo, dispensacionalismo e restauracionismo, resultando no imaginário evangélico que se desenvolverá e se consolidará no pentecostalismo brasileiro com características próprias. O crescimento das igrejas evangélicas pentecostais clássicas no Brasil, que declaram possuir a Bíblia como única regra de fé, trouxe grande interesse por Israel, especialmente pela cidade de Jerusalém, porque sua escatologia está intimamente inter-relacionada. A pesquisa apresentou historicamente a construção do imaginário religioso sobre Jerusalém, começando pelo Judaísmo até chegar no pentecostalismo clássico, cujo elemento fundamental de sua teologia escatológica é a cidade de Jerusalém, atual capital de Israel. O imaginário pentecostal clássico fomentado nas Assembleias de Deus se deve há um longo período de ensinos escatológicos, de publicação de livros e facilidades apresentadas pelas empresas de turismo catalisadas no período de estabilidade econômica pela qual o país passou. Assim, bebendo do antiquíssimo imaginário judaico sobre Jerusalém, com base nas profecias do Antigo Testamento, recusando o antigo imaginário católico com sua teologia da “Substituição”, acolhendo e aceitando as formas geográficas construídas durante o período islâmico, como suas muralhas e sua esplanada, em sintonia com os novos locais sagrados do protestantismo e fundida nas ideias que fomentaram o mundo protestante entre os séculos XVII ao XX, como o movimento da santidade Wesleyano/Holiness, restauracionismo, fundamentalismo, dispensacionalismo, e fomentado pelo mercado literário e 185 turístico, o pentecostalismo clássico construiu seu imaginário singular sobre Jerusalém. Portanto, a cidade de Jerusalém, capital do Estado de Israel, segundo a perspectiva pentecostal, graças às profecias literalmente cumpridas a partir de 1948, alcançando seu ápice em 1967, é uma realidade profética. Há uma identificação concreta entre a crença pentecostal e os acontecimentos históricos a respeito da cidade de Jerusalém. Embora Jerusalém seja um centro geográfico meramente simbólico e reconstruído sob diversas cosmovisões, está presente no imaginário religioso monoteísta como se fosse uma realidade suprema. Jerusalém como um poderoso símbolo religioso é um local onde os fiéis monoteístas se localizam, criaram uma identidade utópica, simbólica ou escatológica, por isso é amada, cantada, reverenciada e desejada, como dizem as Sagradas Escrituras: ...alegria de toda a terra é o monte Sião sobre os lados do norte, a cidade do grande Rei. ...Porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor (Salmo 48:1b-2; Isaías 2:3b). Assim, o imaginário religioso sobre Jerusalém é poderoso e vivo, uma realidade sagrada, profundamente influenciador de toda crença monoteísta, tanto no presente, como no porvir. A Jerusalém celeste foi criada por Deus ao mesmo tempo que o Paraíso, portanto in aeternum (ELIADE, 2012, p. 57). É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência (ELIADE, 2012, p. 85). Referências Bibliográficas AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus. Lisboa: Serviço de Educação Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. 186 ALBERIGO, Giuseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995. ALCORÃO SAGRADO, Tradução: Prof. Samir El Hayek, São Paulo – Brasil. 1986. ALENCAR, Gedeon. Assembleias de Deus: Origens, implantação e militância (1911-1946). São Paulo: Arte Editorial, 2013. ALMEIDA, João Ferreira de Almeida. Bíblia Sagrada - ARC. São Paulo: SBB, 1996. ALMEIDA, Dirceu F. de. O Reino Messiânico – As Nações, Israel e a Igreja. Porto Alegre: Actual Edições, 2014. ANDERSON, Robert Mapes. Vision of the Disinherited: The Making of American Pentecostalism. EUA: Oxford University Press, 1979. ANDRADE, Claudionor Corrêa. 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