Moralidade Hotentote

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Moralidade Hotentote
15-Set-2008
"Se ele rouba minha vaca, é errado. Se eu roubo a vaca dele,
é certo". Essa regra moral foi atribuída pelos europeus racistas aos Hotentotes,
antiga tribo do Sudeste da África.
Difícil não lembrar dessa regra, quando os EUA e os países europeus esbravejam
por a Rússia ter reconhecido a independência da Ossétia do Sul e da Abkházia,
as duas províncias que resultaram da divisão da República de Sacartvelo,
conhecida no Ocidente como "Geórgia".
Não faz muito tempo, os países ocidentais reconheceram a
República do Kossovo, que resultou da divisão da Sérvia. O Ocidente argumentou
que a população de kossovo não é sérvia, nem a língua nem a cultura são
sérvias; portanto a República do kossovo tinha direito de tornar-se
independente da Sérvia. Sobretudo depois de a Sérvia ter movido violenta
campanha de opressão contra os sérvios. Apoiei essa ideia com todo o empenho.
Diferente de vários de meus amigos, até apoiei a operação militar que ajudou na
independência dos kossovares.
Molho para ganso, molho para gansa, como diz o povo. Verdade
para kossovo não passa a ser mentira para Abkházia e Ossétia do Sul. As
populações, nessas províncias, não são georgianas, têm as suas próprias línguas
e respectivas antigas civilizações. Anexaram-se à Geórgia quase por capricho e
não têm vontade alguma de continuar a ser georgianas.
Então, que diferença há entre os dois casos? De fato, a
diferença é enorme: a independência do kossovo é apoiada pelos EUA, e os russos
são contra. Então é certo. A independência da Abkházia e da Ossétia do Sul é
apoiada pelos russos, e os EUA são contra. Então é errado. Como diziam os
romanos: Quod licet Iovi, non licet bovi, i.e. o que se aplica a Júpiter, não
se aplica ao boi.
Não aceito esse código moral. Apoio decididamente a independência
de todas essas regiões.
Na minha opinião, há só um princípio e aplica-se a todos:
qualquer província que se queira separar de qualquer país tem o direito de
fazê-lo. Quanto a isso, acho eu, não há diferença entre kossovares, abkhazianos,
bascos, escoceses e palestinos. A regra é uma para todos.
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Houve tempo em que tal princípio não poderia ser
implementado. Um Estado de apenas algumas centenas de milhares de nacionais não
seria economicamente viável nem poderia defender-se militarmente.
Foi a era dos "Estados-nação", quando um grupo mais forte
impunha-se, com a sua cultura e as suas línguas, a grupos mais fracos, para
assim criar um grande Estado, suficientemente forte para garantir padrões de
segurança, ordem e condições satisfatórias de sobrevivência. Assim a França
impôs-se aos bretões e corsos, a Espanha aos catalães e bascos, a Inglaterra
aos galeses, escoceses e irlandeses, e assim por diante.
Isso já passou. A maior parte das funções do "Estado-nação"
passaram ao âmbito de estruturas supranacionais: grandes federações, como os
EUA; ou grandes blocos, como a União Europeia (UE). Nelas há lugar para países
pequenos, como Luxemburgo, e grandes, como a Alemanha. Se a Bélgica dividir-se
e surgir um Estado flamengo, ao lado de um Estado valão, ambos poderão ser
recebidos na União Europeia, e ninguém perderá nada. A Jugoslávia
desintegrou-se e todas as novas unidades poderão, algum dia, ser incluídas na
UE.
Aconteceu também com a União Soviética. A Geórgia separou-se
da Rússia. Pelo mesmo direito e pela mesma lógica, a Abkházia pode declarar-se
independente da Geórgia.
Mas, então, como um país pode evitar a pulverização? Muito
simples: basta que os pequenos povos que vivem sob asas maiores convençam-se de
que é melhor ficar onde estão. Se os escoceses sentirem que gozam de plena
igualdade no Reino Unido, que gozam de suficiente autonomia e recebem fatia
justa do grande bolo comum, que sua cultura e suas tradições são respeitadas,
e, sim, podem decidir permanecer onde estiverem. Esse debate prossegue há décadas
na província canadense francófona do Quebec.
A tendência planetária global é ampliar as funções dos
grandes blocos regionais e, ao mesmo tempo, permitir a secessão entre os povos
e as nações-mãe, estabelecendo Estados próprios. Já aconteceu na União Soviética,
na Jugoslávia, na Checoslováquia, na Sérvia e na Geórgia. E pode acontecer em
muitos outros países.
Os que queiram andar na direcção oposta e estabelecer, por
exemplo, um Estado bi-nacional Israel-Palestina, andarão contra o Zeitgeist, "o
espírito do tempo" - para dizer o mínimo.
Esse é o panorama histórico em que se inscreve a recente
disputa entre a Geórgia e a Rússia. Não há ‘certos' nem ‘errados' aqui. Chega a
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ser cómico ouvir Vladimir Putin, cujas mãos ainda pingam de sangue dos
combatentes chechenos, enaltecer o direito da Ossétia do Sul à independência. E
também é cómico ouvir Micheil Saacachvili comparar a luta de independência das
duas regiões separatistas à invasão soviética na Checoslováquia.
A disputa fez-me lembrar a história de Israel. Na primavera
de 1967, ouvi um prestigiado general israelita dizer que rezava todas as noites
para que o líder egípcio Jamal Abd-al-Násser enviasse suas tropas para a
península do Sinai. Ali, dizia ele, Israel as aniquilaria. Meses depois, Nasser
fez exactamente o que Israel pedia a Deus. O resto é história.
Agora, Saacachvili fez exactamente o que fez Nasser. Os
russos rezavam para que ele invadisse a Ossétia do Sul. Quando caiu na armadilha,
os russos fizeram a ele o que Israel fez aos egípcios. Russos e israelitas,
aliás, precisaram do mesmo tempo para a operação: seis dias.
Ninguém pode saber o que passa pela cabeça de Saacachvili. É
governante inexperiente, educado nos EUA, político que ascendeu ao poder porque
prometera reintegrar as regiões separatistas à pátria-mãe. O mundo está cheio
de demagogos desse tipo, que constroem carreiras à base de ódio, super-nacionalismo
e racismo. Há muitos deles, também, em Israel.
Mas nem por ser demagogo é indispensável ser idiota. Terá
suposto que o presidente Bush, falido em todos os campos, correria a ajudá-lo?
Não considerou que os EUA não têm soldados para desperdiçar? Que a fala
belicista de Bush fala para o vento? Que a NATO é tigre de papel? Que o
exército georgiano derreteria como manteiga, sob o fogo da guerra?
Estou curioso sobre o papel de Israel nessa história.
No governo da Geórgia há vários ministros que foram criados
e educados em Israel.
Parece, além disso, que o ministro da Defesa e o ministro da
Integração (das regiões separatistas) são também cidadãos israelitas.
E o mais importante: que a elite das unidades do exército da
Geórgia foi treinada por oficiais israelitas, inclusive pelo que foi
considerado responsável pela derrota de Israel na Segunda Guerra do Líbano. E
os EUA também investiram muito trabalho no treino do exército da Geórgia.
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Sempre me espanta a ideia de que alguém creia na
possibilidade de treinar um exército estrangeiro. Pode-se ensinar técnicas, é
claro: como usar determinadas armas ou como comandar um batalhão em manobras. Mas quem
tenha experiência de guerra real (muito diferente de vigiar e punir populações
mantidas sob ocupação) sabe que os aspectos técnicos são secundários. O que faz
diferença é o espírito dos soldados, a disposição para arriscar a vida pela
causa, a motivação, a qualidade humana das unidades de combate e do comando.
Nada disso se aprende de estranhos e estrangeiros. O
exército é uma parte da sociedade, e a qualidade da sociedade determina a
qualidade do exército. Isso é especialmente verdade em guerra na qual o inimigo
seja numericamente muito superior. Foi o que aprendemos na guerra de 1948,
quando David Ben-Gurion quis impor, ao exército de Israel, oficiais treinados
pelo exército britânico; e nós, os combatentes, preferimos os nossos
comandantes, treinados na clandestinidade e que, em toda a vida, jamais haviam
posto os pés numa academia militar.
Só generais profissionais que, da guerra, só conhecem os
aspectos técnicos imaginariam que pudessem treinar soldados de outra língua e
outra cultura - no Afeganistão, no Iraque ou na Geórgia.
Traço sempre muito bem desenvolvido nos oficiais israelitas
é a arrogância. No caso de Israel, a arrogância é sempre associada a um padrão
razoável de exército. Se os oficiais israelitas contaminarem os homólogos
georgianos com essa arrogância, convencendo-os de que podem derrotar o glorioso
exército russo, estarão cometendo grave pecado contra os georgianos.
Não acredito que aí esteja o início da Guerra Fria II, como se
sugeriu. Mas não há dúvidas de que prossegue o Grande Jogo.
"Grande Jogo" é o nome que se deu à interminável guerra
secreta que se arrastou por todo o século XIX, ao longo da fronteira Sul da
Rússia, entre os dois grandes impérios do tempo: o britânico e o russo. Agentes
secretos e exércitos nem tão secretos estiveram muito activos nas regiões da
fronteira com a Índia (que incluía o actual Paquistão), Afeganistão, Pérsia
etc. A "Fronteira Noroeste" (do Paquistão), que é a estrela da hora, hoje, na
guerra contra os talibans, já era lendária, naquela época.
Hoje, o Grande Jogo entre os actuais dois grandes impérios EUA e Rússia - prossegue por toda a área, da Ucrânia ao Paquistão. O que prova
que a geografia é mais importante que a ideologia: o comunismo veio e foi-se; e
a luta prossegue, como se o comunismo jamais houvesse existido.
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A Geórgia é um mero peão no jogo de xadrez. Os EUA jogam com
as brancas e querem cercar a Rússia, expandindo a NATO, braço da política dos
EUA, ao longo da fronteira. É ataque directo contra o império rival. A Rússia,
por sua vez, tenta ampliar o seu domínio e incluir, sob o seu controle, os
recursos mais vitais para o Ocidente, gás e petróleo, além das respectivas
rotas de transporte. A disputa pode levar ao desastre.
Henry Kissinger, quando ainda era historiador de respeito,
antes de se converter em estadista maluco, expôs um importante princípio: para
manter a estabilidade no mundo, ter-se-ia de formar um sistema que incluísse
todos, sem excluir ninguém. Um que fosse excluído, e a estabilidade de todos
estaria ameaçada.
Citou como exemplo a "Santa Aliança" dos grandes poderes,
construída depois das guerras napoleónicas. Os estadistas de respeito, naquele
momento, encabeçados pelo príncipe Clemens von Metternich da Áustria,
dedicaram-se a não excluir a França; ao contrário: deram à França um lugar
importante no Concerto da Europa.
A actual política dos EUA, que tenta excluir a Rússia, põe
em perigo todo o mundo (isso, sem falar da China, poder emergente.)
Um pequeno país que se envolva na luta entre dois gigantes
corre o risco de ser esmagado. Já aconteceu com a Polónia, que parece nada ter
aprendido com a experiência. Alguém deveria aconselhar a Geórgia, e também a
Ucrânia, a não copiar os polacos, mas, sim, os finlandeses que, desde a Segunda
Guerra Mundial, praticam uma política inteligente: defendem a sua
independência, sem deixar de levar em conta o interesse dos gigantes vizinhos.
Israel também tem algo a aprender de tudo isso: não é
seguro, sendo vassalo de um grande império, pôr-se a provocar o império rival.
A Rússia está a voltar para a Região, em Israel e arredores; cada movimento que
Israel fizer para favorecer a expansão norte-americana será respondido pelos
russos, sem dúvida possível, com movimentos a favor da Síria e do Irão.
Que Israel não adopte, portanto, a "moralidade Hotentote".
Não é inteligente nem é moral.
Uri Avnery,"Hottentot Morality", em Gush Shalom [Grupo da
Paz] em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1220183141/.
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Tradução do blogue do Bourdoukan.
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