PDF - Acervo Digital do violão brasileiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ESCOLA DE MÚSICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
O violão acompanhador: os arranjos do disco AfroSambas de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso
Samuel da Silva
Rio de Janeiro, Abril de 2014
II
O violão acompanhador: os arranjos do disco Afro-Sambas de
Paulo Bellinati e Mônica Salmaso
Samuel da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Música da Escola de Música
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, área de
concentração: práticas interpretativas, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre (Música).
Orientadora: Prof. Dr. Márcia Ermelindo Taborda.
Rio de Janeiro, Abril de 2014.
III
IV
V
Agradecimentos
Primeiramente, agradeço a Deus pelo dom da vida e por colocar em mim a paixão pela
música.
A minha família, por todo apoio e suporte enquanto me dedico à minha formação acadêmica.
A professora Dra. Márcia Taborda, pela orientação, atenção, companheirismo, paciência e por
acreditar no meu projeto.
Aos professores Dr. Fábio Adour e Dra. Regina Meirelles pelas preciosas sugestões dadas no
exame de qualificação.
A banca examinadora: Profa. Dr. Regina Meireles e Prof. Dr. Nicolas de Souza Barros.
A todos os colegas, alunos e professores do Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ
e demais envolvidos com a arte da música, com os quais, de alguma forma, aprendi valiosas
lições.
Aos amigos Victor Lobo de Almeida (In memoriam) e Gustavo Costa, que me incentivaram
nas primeiras caminhadas no estudo da música.
A Capes, pelo apoio financeiro nos 12 meses finais deste estudo.
E finalmente, ao violonista Paulo Bellinati pela grande colaboração dada a esta pesquisa.
VI
RESUMO:
A pesquisa aborda a trajetória histórica e musical do violão acompanhador no âmbito da
música popular brasileira com vista a elaborar um estudo de caso do disco Afro-sambas do
violonista Paulo Bellinati em parceria com a cantora Mônica Salmaso. Foram ressaltados o
trânsito e a presença ativa do violão por diversas classes sociais assim como os executantes
que se dedicaram ao instrumento desde os primeiros registros fonográficos; a pesquisa em
fontes discográficas permitiu-nos retratar características do acompanhamento realizado por
intérpretes representativos do cancioneiro popular ao longo do século XX. Para a análise dos
arranjos das canções Labareda, Consolação e Canto de Xangô, foi adotada a metodologia
proposta pelo musicólogo Phillip Tagg (1982 e 1999). O perfil dos arranjos relevou que o
disco pode ser considerado fruto de uma mediação cultural entre as duas tradições principais
do instrumento, a do violão solista e de acompanhador.
Palavras- chave: violão, Música popular brasileira, acompanhamento, afro-sambas.
VII
ABSTRACT
The research approaches the guitar accompanist historical and musical journey in the context
of Brazilian popular music intending to develop a case study of the compact disc Afro-sambas
by the guitarist Paulo Bellinati with the singer Mônica Salmaso. It was put in evidence the
transit and active presence of the guitar in different social classes as well as the performers
who have dedicated themselves to the instrument since the first phonograph records were
highlighted; the record sources research allowed us to portray accompaniment characteristics
conducted by representative interpreters of popular music throughout the twentieth century.
To analyze the arrangements of the songs Labareda, Consolação e Canto de Xangô, we
adopted the methodology proposed by the musicologist Philip Tagg (1982 and 1999). The
arrangements profile showed that the compact disc can be considered the result of a cultural
mediation between the two main traditions of the instrument, the soloist guitar and the
accompanist one.
Keywords: Guitar, Brazilian popular music, accompaniment, african-sambas.
VIII
Listas de figuras.
Fig.1. Isto é Bom. Eduardo das Neves. Compasso 1 a 8.................................................23
Fig. 2. Violão percutido. Canhoto...................................................................................25
Fig.3. Rogério Guimarães. Anoitecer. Compasso 1 a 20................................................28
Fig.4. Adeus Eulina. Rogério Guimarães. Compasso 1 a 16..........................................29
Fig.5. Levada do samba.................................................................................. ................32
Fig.6. Levada do partido alto...........................................................................................34
Fig.7. Guinga. Choro Réquiem. Compasso 1 e 2............................................................38
Fig.8. Guinga. Catavento e Girassol. Compasso 1 e 2....................................................39
Fig.9. Guinga. Melodia Branca. Compasso70.................................................................40
Fig.10.Guinga. Cine Baronesa. Compasso 8...................................................................40
Fig.11. Bellinati. Labareda. Compasso 1 a 4...................................................................74
Fig.12. Bellinati. Labareda. Compasso 17 a 20...............................................................74
Fig.13. Gilberto Gil. Expresso 2222................................................................................74
Fig. 14. Guinga. Nítido e obscuro...................................................................................74
Fig.15. Bellinati. Choro Sapeca. Compasso 34 a 42.......................................................76
Fig.16. Bellinati. Labareda. Compasso 33 a 36...............................................................76
Fig.17. Bellinati. Choro Sapeca. Compasso 80 a 86.......................................................77
Fig.18. Garoto. Lamentos do Morro. Compasso12 a15..................................................77
Fig.19. Bellinati. Labareda. Compasso 48......................................................................77
Fig.20. Bellinati. Labareda. Compasso 49 a 52..............................................................78
Fig. 21. Bellinati. Labareda. Compasso 65 a 68.............................................................79
Fig. 22. Bellinati. Labareda. Compassos 82 e 83............................................................79
Fig. 23. Bellinati. Consolação. Compasso 1 e 2..............................................................83
Fig.24. Bellinati. Consolação. Compassos 23 a 26.........................................................84
IX
Fig. 25. Bellinati. Consolação. Compasso 27 a 30..........................................................85
Fig. 26. Bellinati. Consolação. Compasso 41..................................................................86
Fig. 27. Bellinati. Cordão de Ouro. Compasso 50 a 52...................................................86
Fig.28. Pereira. Samba-canção........................................................................................86
Fig. 29. Rítmica do pandeiro. Exemplo próprio..............................................................88
Fig. 30. Bellinati. Consolação. Compassos 59 e 60........................................................88
Fig. 31. Bellinati. Consolação. Compassos 62 e 63........................................................89
Fig. 32. Powell. Consolação. Compassos 101 a 112.......................................................90
Fig.33. Bellinati. Canto de Xangô.Compasso 1 e 2........................................................93
Fig.34. Sobreposição melódica de Canto de Xangô e Summertime...............................94
Fig. 35. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 37 a 40...................................................95
Fig. 36.Villa Lobos. Prelúdio No 1. Compasso 1 a 3.......................................................95
Fig. 37. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 29 a 32...................................................96
Fig.38. Villa Lobos. Prelúdio No11. Compasso 36 a 38..................................................96
Fig.39. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 57 a 59....................................................96
Fig.40. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 60 a 64....................................................97
Fig. 41. Gismonti. Frevo. Arranjo de Ulisses Rocha. Compasso 1 a 3...........................97
Fig.42. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 65 a 68....................................................98
Fig.43. Bellianti. Jongo. Compasso 220 a 224................................................................98
Fig.44. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 113 a 118................................................98
Fig.45. Jobim. Passarim. “mão direita” do piano. Compasso 1 e 2.................................99
Fig. 46. Bellianti. Jongo. Compasso 220 a 224...............................................................99
X
Listas de Quadros
Quadro 1. Bellinati arranjador, produtor e diretor musical.............................................45
Quadro 2. Correspondência hermenêutica por meio de comparação inter-objetos.........69
Quadro 3. Correspondência hermenêutica por meio de comparação inter-objetos.........70
Quadro 4. Modelo de partitura gráfica usada por Tagg..................................................71
Quadro 5. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de Labareda....81
Quadro 6. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de
Consolação.......................................................................................................................91
Quadro7. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de Labareda....101
Lista de Gráficos:
Gráfico 1- representação musemática de Labareda.........................................................72
Gráfico 2- representação musemática de Consolação.....................................................82
Gráfico 3- representação musemática de Canto de Xangô..............................................92
XI
Sumário
Introdução.......................................................................................................1
Capítulo I Violão acompanhador: Uma vocação através dos séculos.......................12
1.1- O acompanhamento violonístico no século XX..................................................20
1.1.1- Eduardo das Neves...........................................................................................21
1.1.2- Américo Jacomino (Canhoto)...........................................................................23
1.1.3- Rogério Guimarães…………….......................................................................25
1.1.4- Baden Powell…………………........................................................................29
1.1.5- Raphael Rabello…..…......................................................................................32
1.1.6- Guinga...............................................................................................................36
Capítulo II Os músicos e os discos: Bellinati e Salmaso e os Afro-sambas.............41
2.1- Paulo Bellinati, Breve perfil biográfico e musical...............................................41
2.2- Os Afro-Sambas: Os Discos.................................................................................46
2.2.2- A regravação de Baden Powell - Afro- Sambas 1990.......................................53
2.2.3 A releitura - Afro- Sambas 1997.........................................................................54
Capitulo III O acompanhamento nos Afro-sambas (1997)......................................60
3.1 Algumas considerações sobre o Acompanhamento................................................60
3.2 Metodologia analítica..............................................................................................65
3.3 As análises de labareda, Consolação e Canto de Xangô.........................................71
3.3.1 Análise de Labareda..............................................................................................71
3.3.2 Análise de Consolação..........................................................................................82
3.3.2 Análise de Canto de Xangô........................................................................................91
Considerações Finais...................................................................................................102
Referências Bibliográficas.........................................................................................107
XII
ANEXOS...................................................................................................................111
Entrevista com Paulo Bellinati...................................................................................111
1
Introdução
Incentivado pelo interesse no repertório de música popular e através da prática
violonista em conjuntos musicais amadores, fui levado primeiramente a estudar o violão
e a aprender “os segredos” que envolviam a realização do acompanhamento em diversos
gêneros e estilos musicais, buscando subsídio teórico em métodos que abordassem
principalmente os conteúdos relativos à técnica, harmonia e improvisação.
Quando iniciei o estudo do repertório de concerto do instrumento, sofri o
impacto de perceber que o violão dispunha de recursos técnicos e expressivos que não
eram de praxe no repertório da música popular por mim praticado e vi ali um universo a
ser explorado. Com isso, percebi gradativamente toda a gama de conhecimento relativo
ao acompanhamento relegar-se a um segundo plano. Para mim, eram universos
apartados e estanques e não conhecia formas de aproximação entre eles. Ao ingressar
no curso de graduação da Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ, fui
selecionado para exercer a função de músico acompanhador junto à classe de canto
popular e quase durante toda a graduação permaneci na referida função. Dada a
diversidade do repertório cantado pelos estudantes, percebi que não dispunha de
ferramentas necessárias para dar conta da tarefa e procurei auxílio junto à orientadora da
disciplina (prof. Dra. Thaís dos Guimarães) e a professora de violão (prof. Dra. Márcia
Taborda). Foi partir do contato com elas percebi que a música popular brasileira possui
uma enorme tradição construída por nomes importantes como Eduardo das Neves, Dino
Sete Cordas, Meira, Baden Powell, João Gilberto, Djavan, Toninho Horta, Guinga e
outros que deixaram um enorme legado ao ofício do acompanhamento e que constituem
fontes preciosas de conhecimento e pesquisa.
Nos últimos anos da graduação fui apresentado pelo professor de violão (prof.
Dr. Guilherme Vincens) ao cd Afro-sambas (GSP, 1997) de Paulo Bellinati e Mônica
Salmaso, com o qual me surpreendi grandemente e percebi que, no âmbito da canção
popular brasileira, as duas tradições de estudo musical com as quais eu tivera contato
(do violão solista e do acompanhador) poderiam convergir mutuamente. Identifiquei as
similaridades com outros trabalhos de voz e violão, como os discos de Raphael Rabello
com os cantores Ney Matogrosso e Elizeth Cardoso, e com acompanhamentos
realizados por violonistas como Marco Pereira e Guinga, nos quais a parte realizada
pelo instrumento explorava de forma especial os recursos técnicos musicais que, muita
2
das vezes, apresentam um grau de dificuldade de execução análogo às peças do
repertório solista. Percebi nos arranjos violonísticos do álbum uma oportunidade de
pesquisa para o mestrado que viria de encontro às minhas experiências musicais e
abriria uma porta para compreender de que maneira os caminhos do violão de
acompanhamento e solista poderiam não mais apartar-se, mas dialogar.
Para melhor abordar nosso objeto de estudo foi necessário delimitar as
observações à formação voz e violão, dada à diversidade de funções musicais que o
instrumento pode assumir dentro dos mais variados tipos de conjunto. Em seguida,
delineou-se que o tema de pesquisa seria o violão em seu ofício de acompanhador no
âmbito da música popular brasileira tendo como estudo de caso os arranjos realizados
pelo violonista Paulo Bellinati na releitura do antológico disco Os Afro-sambas de
Baden Powell e Vinicius de Moraes (Forma, 1966).
O músico Paulo Bellinati (1950) destaca-se no cenário da música brasileira por
sua atuação como intérprete, arranjador, compositor e multi-instrumentista que transita
com facilidade por gêneros populares e eruditos. Seus primeiros estudos musicais foram
realizados através de seu pai. Aos 13 anos, começou a estudar teoria e solfejo em uma
escola de música no Bairro da Mooca, São Paulo. Mais tarde, ingressou no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, tendo aulas de violão com o uruguaio
Isaias Sávio. Nessa mesma época, atuava como guitarrista num conjunto que tocava em
bailes e churrascarias.
Apresentou-se como concertista e ministrou masterclasses de violão em vários
países da Europa, Ásia e América. Como compositor, escreveu diversas peças para
violão solo, duo, trio, quartetos, viola caipira, guitarra e contrabaixo. Suas obras
possuem forte influência de gêneros musicais brasileiros como lundu, modinha,
schottisch, choro, seresta, maxixe, jongo, samba, baião, maracatu, frevo, e xaxado.
Algumas de suas composições foram gravadas e executadas por vários violonistas
reconhecidos no cenário mundial tais como John Williams (que gravou Jongo em seu
álbum The Mantis & the moon), The Los Angeles Guitar Quartet, Costas Costsiolis,
Quaternaglia, Badi Assad, os irmãos Assad, Cristina Azuma, Shin-Ichi Fukuda e Carlos
Barbosa Lima, entre outros.
Bellinati realizou turnês e gravou com diversos artistas dentre os quais podemos
destacar o baixista americano Steve Swallow, o flautista Antônio Carrasqueira, Carla
Bley, Gal Costa, Leila Pinheiro, João Bosco, César Camargo Mariano, Edu Lobo, Chico
3
Buarque, grupo Pau Brasil e a cantora Mônica Salmaso, com a qual em 1997 lançou o
disco Afro-sambas, foco do presente trabalho.
A primeira gravação dos Afro-sambas foi lançada em 1966. O disco de Baden e
Vinicius apresenta a fusão de elementos e sonoridades da temática religiosa do
candomblé com o samba. Insatisfeito com a qualidade sonora das gravações, em 1990,
10 anos após a morte de Vinicius de Moraes, Baden Powell regravou o disco e
acrescentou três faixas (Abertura, Labareda, Variações sobre Berimbau) às oito do
lançamento original. As palavras contidas no texto da contracapa afirmam que a ligação
de Baden com a Bahia, e, sobretudo com a África, “permitiram realizar uma espécie de
sincretismo e carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afrobrasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal” (Moraes, 1966). O
álbum de Paulo Bellinati com Mônica Salmaso (Afro-sambas, GSP, 1997) constitui uma
releitura de obras de grande influência na MPB.
Considerando as limitações do violão diante da grande quantidade de
instrumentos presentes nos arranjos originais (atabaque, bongô, agogô, afoxé, baixo,
bateria, flauta, saxofone etc..) podemos considerar os arranjos de Bellinati como uma
valiosa referência para violonistas e arranjadores, na medida em que ele procura suprir a
densidade e diversidade sonora das versões originais por meio da criação de arranjos
que trazem uma exploração sistemática dos recursos do violão. Em vários momentos o
músico explora as potencialidades e meios de execução pouco comuns no uso do
instrumento como acompanhador. Isto pode ser explicado pela necessidade, em alguns
momentos, de que os arranjos violonísticos dessem conta de representar toda a grande
densidade sonora e timbrística presentes no disco original. Um bom exemplo dessa
utilização pode ser encontrado na canção Canto de Pedra Preta, onde Bellinati realiza o
acompanhamento com a utilização de recursos percussivos ao violão, remetendo ao
naipe de percussão utilizado na gravação original. Outros recursos técnico-musicais da
linguagem violonística explorados no disco são arpejos, campanellas, harmônicos, uso
de corda soltas, paralelismo1, pizzicatos, entre outros.
Outro ponto de interesse é o posicionamento do violonista como arranjador e
intérprete frente ao disco original. Através do estudo de caso, procuraremos analisar e
compreender o resultado das escolhas interpretativas e identificar como os elementos
1
Recurso idiomático ao violão resultado do deslocamento de fôrmas de mão esquerda pela escala do
instrumento
4
musicais na gravação original foram tratados na releitura. Foi possível notar que em
determinados momentos, o arranjador usufrui de uma maior liberdade de criação diante
da concepção original alterando aspectos formais, harmônicos, melódicos chegando até
mesmo a utilizar uma composição de sua autoria como base para o arranjo2.
No acompanhamento de canções é comum o uso do violão como um
instrumento rítmico-harmônico, responsável pela execução dos acordes e pela
estruturação rítmica característica de cada gênero musical. Essa forma de utilização da
textura homofônica é bastante consagrada na MPB sendo facilmente exemplificada pelo
violão de João Gilberto e a batida da bossa nova. Em sua releitura, Bellinati explora
outras texturas musicais nos acompanhamentos violonísticos como a contrapontística,
monofônica e harmonizações em blocos.
Ao observarmos os arranjos, podemos notar que eles foram construídos com os
cuidados e concepção de uma obra de câmara para duo. Diversos parâmetros musicais
se encontram em grande parte pré-determinados, havendo um espaço muito restrito para
possíveis intervenções na performance além das já previamente combinadas. Com esse
nível de planejamento, o violonista pode explorar de forma mais sistemática as diversas
possibilidades texturais, idiomáticas e técnicas que o violão oferece. O instrumento não
fica unicamente com a tarefa de realizar o acompanhamento rítmico-harmônico da
canção, mas divide e alterna com a voz o foco do discurso musical através de
contracantos, solos, dobramentos, efeitos percussivos entre outros.
A pesquisa partiu de um levantamento bibliográfico em torno da temática do
violão brasileiro, o acompanhamento na música popular brasileira, o universo dos três
discos integrais com o repertório dos afro-sambas, os violonistas Baden Powell e Paulo
Bellinati. Uma das dificuldades desta etapa foi a carência de trabalhos sobre o músico
Bellinati. Para colher informações que viabilizassem a construção de um pequeno perfil
biográfico-musical do violonista, buscou-se dados junto às seguintes fontes: sítio
eletrônico do violonista, depoimentos e entrevista extraída de programas radiofônicos
da série Violão brasileiro, produzido pelo violonista Fábio Zanon, um release
profissional fornecido por Bellinati e finalmente a entrevista pessoal realizada para este
trabalho a partir do questionário semi-estruturado com o propósito de elucidar questões
2
Na faixa 11 do disco Afro-Sambas (GSP, 1997) de Paulo Bellinati e Mônica Salmaso, o violonista
utiliza a canção de sua autoria Cordão de Ouro como introdução e arranjo para o acompanhamento da
canção.
5
com relação à sua formação como músico, a carreira e os procedimentos adotados na
realização e construção dos arranjos do disco Afro-sambas (GSP, 1997).
Outras importantes fontes que subsidiaram nossas observações referem-se à
pesquisa fonográfica e hemerográfica. Quanto à primeira, as gravações dos três álbuns
com o repertório dos afro-sambas, gravados nos anos de 1996, 1990 e 1997, foram um
importante ponto de partida para as atividades de análise auditiva e comparativa e
transcrição dos trechos musicais que poderiam serem utilizados como exemplo. Ainda
com relação ao material auditivo, foi feito uma busca na biblioteca musical disponível
no site do Instituto Moreira Sales, que viabilizou nosso acesso às gravações históricas
de importantes acompanhadores como os violonistas Eduardo das Neves, Américo
Jacomino e Rogério Guimarães3. A consulta hemerográfica foi feita junto ao acervo
digitalizado e disponibilizado pela Fundação Biblioteca Nacional e pelo jornal Folha de
São Paulo, materiais essenciais para que pudéssemos colher informação do ponto de
vista da crítica publicada em jornais e periódicos. No procedimento analítico adotado
para foram utilizados alguns aspectos centrais da metodologia proposta pelo musicólogo
Phillip Tagg (1982,1999) que tem por base a perspectiva da semiótica musical.
Para o capítulo inicial, realizou-se uma abordagem histórico-analítica do violão
acompanhador com o intuito de demonstrar o quão representativo foi este ofício, assim
como ressaltar a presença do instrumento ao lado de artistas representativos desde os
primeiros anos de difusão da música popular brasileira. Por meio da consulta
bibliográfica a autores que se dedicaram à historiografia da música popular brasileira foi
possível investigar o uso do instrumento na função de acompanhador de alguns nomes
representativos do nosso cancioneiro popular.
No capítulo seguinte procurou-se contextualizar e situar alguns pontos que se
encontram diretamente relacionados ao nosso objeto de estudo. Primeiramente
procurou-se realizar um pequeno perfil biográfico/musical do violonista Paulo Bellinati
e da cantora Mônica Salmaso. Posteriormente adentramos no universo do disco original,
discorrendo brevemente sobre as questões do conjunto de composições denominados
afro-sambas, frutos de um período de intensa produção da dupla Baden Powell e
Vinicius de Moraes.
3
Devido a baixa qualidade técnica da maioria das gravações destes músicos admitimos que em alguns
momentos não foi possível determinar a escuta e transcrição das obras destes violonistas com total
precisão.
6
Por fim, no capítulo III, nos debruçaremos sobre o acompanhamento no âmbito dos
Afro-sambas (1997). Primeiramente, apresentaremos alguns pontos, baseados na
entrevista, relativos à concepção de Bellinati sobre o acompanhamento de uma forma
mais abrangente e no que tange ao repertório do disco mais especificamente. Na seção
relativa às análises, inicialmente serão discutidos alguns pontos da metodologia
analítica baseada no modelo do musicólogo Phillip Tagg (1982 e 1999), posteriormente
aplicados nas canções Labareda, Consolação e Canto de Xangô, obras cujas partituras
nos foram cedidas pelo próprio arranjador.
A presença do violão em diferentes contextos sociais assim como a identificação
do trânsito cultural dos gêneros a que deu suporte, serão analisadas e compreendidas a
partir dos conceitos propostos por Peter Burke (2010) em sua obra Cultura popular na
idade moderna, adotando-os como referencial teórico para esta pesquisa. Pretende-se
assim compreender a trajetória do violão e sua função como acompanhador de gêneros
fundamentais da música urbana praticada no Rio de Janeiro e, em relação ao estudo de
caso, verificar a hipótese de que o disco Afro-sambas (GSP, 1997) seja fruto de uma
mediação cultural entre a tradição do violão solista e de acompanhador. Burke toma
como base para suas considerações o modelo de cultura apresentado pelo antropólogo
social Robert Redfield (1930). De acordo com Burke (2010, p.51), Redfield considera a
existência de duas tradições culturais, a “grande tradição” pertencente à minoria culta e
a “pequena tradição” dos demais. A “grande tradição” refere-se ao conhecimento
cultivado em escolas, templos, universidades, à filosofia escolástica e teologia medieval
e a alguns movimentos intelectuais que por certo só afetaram a minoria culta como a
Renascença, a Revolução Científica do século XVII e o Iluminismo. Ao passo que a
“pequena tradição” opera sozinha e se mantêm na vida dos iletrados e nas comunidades
aldeãs por meio das canções, contos populares, farsas, folhetos, os livros de baladas e
principalmente as festividades.
Para Burke, o modelo de Redfield é um ponto de partida útil, mas passível de
críticas por ser, paradoxalmente, ao mesmo tempo amplo e estreito demais. A definição
de “pequena tradição” é estreita demais por omitir a participação das classes altas como
membros da nobreza e do clero na cultura popular. Para o historiador, esse foi um
fenômeno importante na vida europeia e extremamente visível nas festividades e nos
sermões das cidades. O autor sugere a reformulação do modelo, pois considera a
existência de duas tradições culturais nos inícios da Europa moderna, mas que não
7
correspondiam simetricamente aos dois principais grupos sociais, a elite moderna e o
povo comum.
A elite participava da pequena tradição, mas o povo comum não participava
da grande tradição. Essa assimetria surgiu porque as duas tradições eram
transmitidas de maneiras diferentes. A grande tradição era transmitida
formalmente nos Liceus e universidades. Era uma tradição fechada, no
sentido que as pessoas que não frequentavam estas instituições, que não eram
abertas a todos, estavam excluídas. Num sentido totalmente literal elas não
falavam aquela linguagem. A pequena tradição, por outro lado, estava aberta
a todos, como a igreja, a taverna e a praça do mercado, onde ocorriam tantas
apresentações (BURKE, 2010, p.56).
A definição de pequena tradição é também considerada como sendo ampla
demais pela falsa impressão de homogeneidade que o termo denota. Para o autor dada a
grande variedade de expressões seria mais coerente referir-se ao termo culturas das
classes populares. Burke (Ibid., p.93) não desconsidera a dicotomia cultural nos inícios
da Europa moderna, porém valoriza o olhar em direção à interação entre elas afirmando
a existência de um “tráfego de mão dupla”. O historiador critica o transito cultural visto
somente pelo olhar da cultura dominante que descende para a cultura das massas e
desconsidera a possibilidade de apropriação de elementos da cultura no sentido oposto.
Para ele a “teoria do rebaixamento é tosca e mecânica demais, sugerindo que as
imagens, estórias ou ideias são passivamente aceitas pelos pintores e cantores populares
e seus respectivos espectadores e ouvintes.” (Ibid., p 96)
Sabemos que Rabelais bebeu na cultura popular; a primeira parte do
seu Pantagruel, em particular, baseou-se no folheto popular; Grandes
et inestimables chroniques de l’enorme géant Gargantua. Por outro
lado, Bruscambille e Tabarin, palhaços do século XVII, basearam-se
em Rabelais. No século XIX, as tradições orais bretãs incluíam muitas
lendas sobre Gargântua e é impossível dizer se essas tradições recuam
para antes de Rabelais ou refletem para o impacto do seu livro.
Ariosto é um outro exemplo de duplo tráfego. Ele extraiu sua estória
dos épicos orais tradicionais dos cantadores italianos de estórias e
elaborou-a [...] segundo as ideias das classes sofisticadas. [...] Canções
francesas iam das ruas à corte e da corte voltavam às ruas. A poesia
pastoral bebeu na cultura dos pastores, mas também encontramos
autênticos pastores a cantar canções influenciadas pelas convenções
das pastoris eruditas. (BURKE, 2010, p. 98)
As formulações que engendram o modelo de cultura popular proposto pelo
historiador se mostram bastante úteis como referencial teórico para a compreensão da
dinâmica cultural que cerca nosso objeto. No âmbito do violão brasileiro é notória a
existência de duas tradições distintas representadas pelo violão solista e o
acompanhador, cada qual operando com suas respectivas peculiaridades, podendo ser
8
analogamente comparadas à “grande tradição” e “pequena tradição”, respectivamente.
Como acompanhador, o instrumento se estabeleceu desde o inicio de nossa história
musical e sua vocação sedimentou-se nas mais diversas camadas sociais e do ponto de
vista musical sempre permitiu uma maior acessibilidade abarcando um grande
contingente de praticantes principalmente músicos amadores, poetas, palhaços,
barbeiros entre outros. Seus métodos de transmissão e ensino sempre se pautaram pela
oralidade e informalidade das práticas coletivas e do aprendizado por meio da imitação.
Por outro lado, o violão solista, que veio a consolidar-se apenas a partir da primeira
metade do século XX, sempre teve respaldo pedagógico junto as tradicionais
abordagens consagradas do violão moderno e da técnica apregoada pelos ensinamentos
de Francisco Tárrega, Andrés Segóvia e outros violonistas de renome internacional.
Reconhecer esta dualidade não significa que devamos considerar os dois polos
como mundos apartados, mas sim que operam em uma um tráfego de mão dupla que
paulatinamente veio se consubstanciando. O baixo cantante, que tem sua propagação e
identificação junto à estética dos músicos do choro, irá mais tarde reaparecer na
linguagem violonista das obras para violão solo de Heitor Villa-Lobos como no
Prelúdio n°1. Vários outros compositores para violão solo, como Garoto, empregaram
elementos caracterizadores da base rítmico-harmônica típica dos acompanhamentos do
choro, jazz e de outros gêneros. Em sentido oposto, observa-se que os elementos da
técnica de execução sedimentados no repertório solista gradualmente começaram a
ganhar espaço na performance de músicos acompanhadores, principalmente daqueles
que vivenciavam as duas tradições, o que na realidade do violão brasileiro constitui-se
via de regra e não exceção. O processo torna-se evidente ao observarmos a atuação de
músicos como Américo Jacomino, Rogério Guimarães, Baden Powell, Raphael Rabello,
Marco Pereira, Guinga, Paulo Bellinati e muitos outros.
O papel destes músicos pode ser melhor contextualizado por meio de outra
ferramenta fundamental desenvolvida por Peter Burke que é a figura do mediador.
Deste modo, cabe ao mediador a função de agenciamento entre as diferentes tradições
colaborando para a diluição das fronteiras.
Assim podemos lançar um olhar sobre o perfil musical do violonista Paulo
Bellinati sobre a ótica da mediação cultural por tratar-se de um indivíduo que não se
localiza de forma fixa junto a uma única tradição cultural. Desde o processo de
formação do músico que fazia aulas de violão com o mestre Uruguaio Isaias Sávio, no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, estudando obras dos principais
9
compositores do repertório do instrumento, ao mesmo tempo em que tocava guitarra em
grupos de baile e procurava aperfeiçoamento nos métodos de jazz. A observação da
carreira profissional de Bellinati também justifica esse olhar de mediador, pois da
mesma forma como já teve ampla atuação como concertista e compositor de obras para
violão solo, já acompanhou e realizou arranjos para inúmeros cantores.
Deste modo, pretendemos direcionar nossa compreensão para a releitura dos
afro-sambas e averiguarmos a hipótese de o consideramos como fruto desta mediação
cultural entre o violão solista e o acompanhador. A julgar pelo repertório em questão,
constituído de canções, poderíamos supor imediatamente que o papel do intérprete
/cantor é preponderante diante da parte instrumental que deveria fornecer–lhe suporte,
entretanto, o que fica caracterizado pelo grau de elaboração dos arranjos do disco é que
o violão ganhou destaque com a incorporação de vários procedimentos típicos da
linguagem do violão solista, tornando-se assim tão protagonista quanto à cantora.
No terceiro e último capítulo, buscaremos analisar e identificar os recursos de
realização do acompanhamento violonísticos, partindo do pressuposto de que se trata de
um cruzamento de elementos da tradição popular realizado através de procedimentos
técnicos desenvolvidos no repertório de concerto. Pareceu-nos fundamental investigar o
conceito de arranjo tão importante ao processo de elaboração deste repertório. Para
melhor compreender este aspecto, o trabalho de Aragão (2001) nos fornecerá
ferramentas teóricas para as questões acerca do estudo do arranjo. Na dissertação
Pixinguinha e a gênese do arranjo musical brasileiro, o autor procura realizar um
mapeamento das práticas aplicadas aos arranjos musicais entre os anos de 1929 a 1935
por Pixinguinha, considerado pelo autor como um dos grandes arranjadores brasileiros e
referência no surgimento e consolidação do arranjo brasileiro. De acordo com o
trabalho, podemos perceber que a gênese do arranjo musical brasileiro relaciona-se
diretamente com a criação de acompanhamentos instrumentais para servirem de suporte
harmônico para as canções dos diversos gêneros de nossa música. No capítulo intitulado
Considerações Sobre o Conceito de Arranjo, o autor faz um estudo musicológico sobre
os significados do termo arranjo procurando entender as diversas imbricações que a
palavra pode sugerir em cada contexto específico. Como ponto de partida para a
reflexão o autor utiliza dois verbetes extraídos do New Grove Dictionary e do New
Grove Dictionary of Jazz, que possibilitaram a comparação entre a natureza do arranjo
no universo da música clássica e popular. Após analisar as diversas proposições
advindas das dinâmicas de produção características dos universos da música clássica e
10
popular, o autor destaca o fato de o arranjador popular gozar de uma maior liberdade
diante o original da obra. Contudo as maiores diferenças estariam camufladas na palavra
“original” que aparece em ambos os verbetes.
[...] Podemos visualizar na partitura os elementos que podem ser
considerados como constituintes do original de uma obra clássica, tais
como alturas, ritmos, dinâmicas ou indicações de expressividade. Pois
bem, é a partir desses elementos que poderá ser elaborado um arranjo
de uma obra clássica. (ARAGÃO, 2001, p. 16)
Quanto à música popular, Aragão reconhece a dificuldade de se determinar o
que poderia ser considerado como instância de representação do original de uma obra.
Em alguns casos padronizou-se o formato “melodia + letra”. Em outros poderíamos
considerar a melodia e a harmonia cifrada de uma música e há ainda casos como obras
de Ernesto Nazareth em que o material está representado de uma forma mais efetiva
através da partitura. A não exigência de uma definição acerca da constituição do
original, associada à música popular, levou o autor a pensar no original popular como
um “conceito virtual”, justamente porque ele necessita não apenas de uma execução
para se potencializar, mas também de um arranjo. Logo, Aragão considera o arranjo
com uma etapa essencial e sempre presente entre os processos de composição e
execução na música popular, e não opcional como acontece na dinâmica de produção da
música clássica.
Em seguida, o autor sugere dois parâmetros de classificação da etapa arranjo na
dinâmica musical popular que serão de grande valia para nosso trabalho: o grau de
predefinição dos arranjos e o grau de interferência do arranjador. Com relação ao
primeiro parâmetro teríamos em um polo os arranjos considerados fechados, isto é, os
arranjos que determinam a priori todos os elementos a serem executados pelos
intérpretes. Em contrapartida temos os arranjos considerados abertos que apresentam
pouco ou nenhum grau de predeterminação, podendo ser executados de forma
totalmente improvisada. Com relação ao segundo parâmetro, teríamos de um lado os
arranjos que mantêm boa parte das características do original da obra e de outro lado
teríamos as recriações, arranjos com elementos inteiramente novos em relação ao
original. Esses critérios de classificação propostos por Aragão se mostram muito úteis
para compreendermos o posicionamento de Bellinati diante da obra original dos Afrosambas e a maneira como ele procura conceber a estrutura de cada arranjo com maior
11
ou menor grau de predefinição e analisar sobre seu grau de interferência na obra
decidindo pela permanência, reformulação ou recriação.
12
Capítulo I – Violão acompanhador: Uma vocação através dos séculos
No Brasil, ao contrário do violão solista, cuja produção só irá consolidar-se na
primeira metade do século XX, a utilização do instrumento na função de acompanhador
remonta aos primórdios de nossa música. O violão pode ser considerado um legítimo
herdeiro da tradição de acompanhamento da viola seiscentista que chegou ao Brasil
pelas mãos dos colonos portugueses. O cordofone possuía, então, quatro
(posteriormente cinco) ordens de cordas e foi amplamente difundido entre os curumins e
demais colonos portugueses, como o autor da Prosopopeia Bento Teixeira, que o tinha
como fiel companheiro de suas cantorias pela Pernambuco do século XVI.
(TABORDA, 2011, p. 9)
Na obra História Social da Música Popular Brasileira, Tinhorão (1998) conta
que, por volta de 1580, Bento Teixeira criticou Antônio da Rosa, que entoava uma
cantiga e se acompanhava à viola. Catorze anos mais tarde, seu irmão, o então tabelião
de Olinda, João da Rosa, denunciou Bento Teixeira ao tribunal de inquisição em função
de sua suposta declaração de que a proposição de fé declarada nos versos era falsa.
Como não ficou claro se o comentário referia-se à qualidade da música ou ao mérito da
letra, o réu obteve absolvição. Graças a esta denúncia, temos Antônio da Rosa como o
primeiro violonista acompanhador documentado da música popular brasileira.
(TINHORÃO, 1998, p.44)
Podemos testemunhar a popularidade da viola e sua vocação para o
acompanhamento de canções na publicação de um dos métodos mais antigos em língua
portuguesa para o instrumento denominado Nova arte da viola (1789), de Manuel da
Paixão Ribeiro. No prólogo do método o autor revela um dos motivos que o levaram a
publicar a obra: O ardente desejo e paixão por saber tocar bem a viola e a escassez de
mestres do ofício que se faziam disponíveis na cidade de Coimbra daquela época.
Mesmo não sendo professor da arte, mas, em suas palavras, um simples curioso, ele
formula seu pensamento recorrendo a obras como a Enciclopédia Pariziense, o
Dicionário de música de Rousseau, e os Elementos de Música Rameau. Não sendo essa
bibliografia, porém, suficiente para fornecer subsídios ao acompanhamento, combinou
13
as observações que tivera feito a partir da prática de um dado professor às suas próprias
concepções musicais.
Inicialmente, a obra era destinada a uso próprio, mas para atender a demanda de
algumas pessoas que lhe importunavam para que lhes ensinassem os mistérios com que
já acompanhava algumas modinhas, resolveu dar à luz a referida coleção.
Ribeiro afirma, modestamente, que não publicou o escrito por presunção de
saber tocar bem a viola e nem por almejar fazer-se reconhecido. Defendendo-se de
possíveis críticos, o autor diz não merecer ser tachado de incipiente por duas razões:
pelo motivo de não ser professor da arte e por desconhecer qualquer bibliografia no
assunto que o antecedesse, justificando assim o ineditismo no assunto expresso no título
pelo atributo “nova”. Não obstante, o autor se mostra receptivo a críticas de qualquer
possível mestre, afim de que possa descobrir algum equívoco nos preceitos teóricos ou
práticos por ele postulados.
Na obra Violão e Identidade Nacional, Taborda (2011) investiga a questão
referente aos métodos práticos na qual observa que a origem desta tradição de escrita
remota às antigas tablaturas de vihuela do século XVI. A difusão dos métodos práticos
se relaciona diretamente a ampla utilização do instrumento junto às classes populares
que o tinham preferencialmente como acompanhador de canções. Em seu livro
encontramos referência a essa nova abordagem pedagógica apregoada por Juan Carlos
Amat na obra Guitarra española e vandola, datado de 1596.
Ainda no que se refere aos métodos práticos, segundo Taborda (2011) a primeira
publicação do gênero no Brasil é de Rodrigues Vieira (Pernambuco, 1851) intitulado:
Indicador dos acordes para violão tendo por fim adestrar em mui pouco tempo a
qualquer individuo ainda sem conhecimento de música, no acompanhamento do canto e
instrumentos. Em seguida, José Antônio Pessoa de Barros teve sua obra publicada por
H. Laemmert e Cia no Rio de Janeiro, em 1876, cujo título é Methodo de violão – guia
material- para qualquer pessoa aprender em muito pouco tempo, independente de
mestre, e sem conhecimento algum de música.4
Os registros dos primórdios da canção popular trazem referência ao poeta
satírico Gregório de Matos Guerra (1636-1696), o “Boca do Inferno”, que entoava seus
4
No Brasil, grande parte dos violonistas de prestígio no cenário musical publicaram seu método prático, a
exemplo de Américo Jacomino (Canhoto) e Aníbal Augusto Sardinha (Garoto).
14
versos dissolutos, dedicados a seduzir as mulatas do recôncavo baiano, ao som de uma
viola de arame. Um pesquisador que se debruçou sobre as questões da época foi
Rogério Budasz em sua obra intitulada a Música no tempo de Gregório de Matos
(2004). Sobre a viola seiscentista, Budasz a define como:
Principal instrumento acompanhador dos romances, cantigas, tonos e modas,
além de ótimo veículo para a música solo, a viola de mão tinha na
versatilidade sua maior virtude. Suas variantes no século XVI incluíam um
instrumento de quatro ordens de cordas, de seis ordens (conhecida na
Espanha como vihuela) e, no século seguinte de cinco ordens (muitas vezes
chamada guitarra barroca) (BUDASZ, 2004, p. 9).
Tinhorão (1998, p. 57-58) afirma que, ao contrário do que alguns estudiosos
postulam, a obra de Gregório de Matos deveria ser estudada como versos de música
popular urbana e não somente como obra poética. De acordo com o pesquisador, das
mais de seiscentas composições de Gregório de Matos recolhidas em Portugal, Bahia,
Angola, e Pernambuco, apenas duzentos e sete constituem sonetos, gênero poético cuja
forma não convidava à dança.
Sob a pena do irreverente poeta barroco brasileiro estavam as sátiras, o erotismo
e as duras críticas à política e economia da sociedade do recôncavo baiano, causando
alguns dissabores às autoridades mais conservadoras.
Porém, eu me persuado que a maior parte destas modas lhes ensina o
demônio: porque é ele grande poeta, contrapontista, músico e tocador de
viola e sabe inventar modas profanas, para as ensinar àquelas que não temem
a Deus. (PEREIRA, apud BUDASZ, 2004)
Segundo Budasz (2004), a citação deixa claro que, para Nuno Marques Pereira
(1652-1728), a proliferação de canções profanas ao toque dos violeiros da época
relacionava-se diretamente a uma boa parte dos males que afligiam a colônia no início
do século XVIII. Contudo, o alarde apontava mais em direção ao repertório do que ao
instrumento em si, pois o próprio Pereira entoava cantigas devocionais acompanhandose à viola. A julgar pela temática que permeia grande parte da obra literária de Gregório
de Matos, o mesmo encarnava os piores medos de Pereira “e se sua língua ferina
granjeou-lhe inimigos e problemas no Brasil e em Portugal, ainda hoje suas
profanidades e obscenidades melindram muita gente.”(Ibid., p.7)
Ainda no que se refere ao caráter das canções, o pesquisador conta que, de
acordo com Pereira, um célebre músico e tocador de viola chamado João Furtado teria
caído morto, fulminado, após cantar a canção Para que nascestes, Rosa, se tão depressa
15
acabastes. A canção já assumira popularidade na época do “Boca do Inferno”, que a
usou como mote em um de seus poemas.
Das três canções apontadas como hereges por Pereira em seu Compendio
Narrativo do peregrino na América duas eram citadas apenas por suas ofensas a
preceitos religiosos: A primeira o estribilho “Oh, diabo!”, a segunda o praguejo “Berra a
tua alma”. Porém a terceira envolvia um conceito mais sutil de heresia ao por em dúvida
a justeza dos próprios desígnios do Criador discutindo a transitoriedade da vida através
do questionamento “Para que nasceste, rosa/ se tão depressa acabastes?” (TINHORÃO,
2008, p.64).
Budasz confere a Gregório de Matos um importante papel de informante da
música do Brasil seiscentista ao retratar portugueses e baianos de todas as esferas, além
de comentar funções musicais e teatrais e citar nomes de instrumentistas, cantores,
peças instrumentais e de descrever coreografias (Ibid.,p.7). O pesquisador conta que
durante a festa de Nossa Senhora de Guadalupe, Gregório de Matos viu Luísa Sapata
bailar o cãozinho:
Tomou a Garça no ar
a sapata incontinenti,
e indo arreganhar-lhe o dente,
não teve, que arreganhar:
porém por se desquitar
foi-se bailar o cãozinho,
e como sobre o moinho
levou tantas embigadas,
deu em sair às tornadas
a puro vômito o vinho. (BUDASZ, 2004, p.29)
Budasz atenta para o fato de o poeta mencionar aqui um importante elemento
coreográfico afro-brasileiro, a umbigada. De acordo com o pesquisador, a dança pode
ser caracterizada pelo “toque entre o abdome do dançarino e daquele que ele escolhe
para substituí-lo” este movimento está presente em várias danças importadas da região
do Congo e Angola para o Brasil e Portugal”.
O instrumento acompanhador esteve ao lado de outros personagens
representativos da música popular brasileira como o padre mulato Domingos Caldas
Barbosa (1740–1800) que preconizou o sucesso preambular de nossa música na Europa.
Sandroni (2001, p. 41) o cita como o primeiro personagem histórico da música
brasileira considerando-o como um nome importante nas discussões que fazem
referência à dança do lundu na virada do século XVIII para o XIX e ao aparecimento
dos lundus-canção na imprensa por volta de1830. Segundo Sandroni, Caldas Barbosa é
16
tido pelos estudiosos como o introdutor em Portugal não só do lundu, mas também da
modinha. Taborda (1995, p.30) afirma que no século XVIII, Caldas Barbosa
acompanhava-se à viola nos saraus da corte de D. Maria I em Lisboa. No século XX, na
grande maioria das publicações dedicadas à música popular onde nome de Caldas
Barbosa é mencionado, sua atuação estará sempre vinculada à modinha e ao lundu,
gêneros que teria praticado acompanhando-se de uma viola (Idem, 2011, p. 46).
A exemplo da obra de Gregório de Matos, alguns pesquisadores levantam
dúvidas sobre a dimensão musical da obra de Barbosa restringindo-a somente ao âmbito
poético. Em seu livro Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do
lundu (1740-1800), Tinhorão (2004) procura expor várias indicações que atestam que
Caldas Barbosa interpretava à viola composições de sua autoria. Para Tinhorão, a
modinha Recado traz em seus versos fortes indícios da popularidade dos poemas de
Caldas, principalmente entre as jovens mulheres. A pergunta formulada por ele mesmo:
“E que modinhas cantou? lembrou-se das minhas?” serve como testemunho de que a
obra do poeta não se restringia somente ao âmbito poético, mas também musical.
Cantou algumas Modinhas?
E que Modinhas cantou?
Lembrou-se alguma das minhas?
Não, não; Nem de mim mais se lembrou. (BARBOSA apud TINHORÃO,
2004, p.73)
Para o pesquisador, o poeta mulato possuía, estilisticamente, duas faces literárias
distintas, uma cultivadora de formas do neoclassicismo horaciano, outra como criador e
improvisador de versos para cantar (TINHORÃO, 2004, p.111). Seria através dos versos
em redondilhas das cantigas, modinhas e lundus, acompanhados à viola, que Domingos
Caldas Barbosa daria, de forma pessoal e original, suas contribuições mais
significativas. Neste sentido o historiador relata o impacto causado pelas novidades
brasileiras da modinha e do lundu, introduzido pelo poeta desde meados de 1760 até o
fim do século, caracterizando seu papel de precursor no lançamento dos dois primeiros
gêneros de canto urbano que tipificariam o que se convencionou denominar
modernamente de música popular.
Na parte poética representada pelos versos das suas composições enfeixadas
nos dois volumes da Viola de Lereno, nada havia na literatura do tempo que
se comparasse à naturalidade com que o mulato brasileiro usava o tom
coloquial e direto, naquele seu “versejar para as mulheres” desde logo
antecipador da linguagem pessoal a ser instaurada pelo romantismo.
(TINHORÃO, 2004, p.112)
17
Para Tinhorão, a arte de Domingos Caldas Barbosa, o poeta árcade e autorcantor de modinhas e lundus acompanhados à viola, sintetiza o espírito das novas
criações que emergiam da cultura popular urbana baseada na espontaneidade da
improvisação poético-rítmico-melódica (Ibid., p.75).
Com a introdução do violão no Brasil em princípios do século XIX, o
instrumento se reveste da tradição de acompanhador dos gêneros populares apregoada
pela viola enquanto a mesma fica relegada às manifestações de identidade mais regional
e interiorana (TABORDA, 2002, p.1).
No início da editoração musical no Rio de Janeiro, em torno de 1830, uma boa
parte das modinhas de salão eram publicadas com o acompanhamento de piano. O
violão irá ter seu espaço amplamente consolidado fora do ambiente de salões e teatros.
Como a maioria desses músicos populares desconheciam a escrita musical o mercado
editorial abarcou a produção de modinhas com edições de coletâneas em que não
constavam parte musical, contendo apenas o texto das canções. A enorme produção de
modinhas alavancou o surgimento de novos espaços que beneficiariam não só o cantor
popular, mas também o público que não podia arcar com as despesas nos locais
tradicionais. Taborda (2011, p. 125) destaca a importância que o circo adquiriu como
difusor da cultura e da canção popular. Eduardo Sebastião das Neves, o Crioulo Dudu,
teve carreira de cantor violonista, compositor e palhaço de circo, espalhando, ao longo
de suas inúmeras andanças pelo Brasil, suas modinhas e lundus, gênero no qual era
especialista.
No final do século XIX, o instrumento marcou seu papel junto aos conjuntos de
choro e na consequente tarefa de abrasileirar as recém chegadas danças europeias
(valsas, polcas, xótis, mazurcas etc.). Desde os primórdios do gênero, juntamente com
o cavaquinho, ele estava presente na base de sustentação harmônica do grupo do
flautista Joaquin Antônio da Silva Callado, o Choro Carioca.
Uma importante fonte para pesquisa e melhor compreensão do ambiente social
dos chorões da velha guarda é a obra O Choro – Reminiscências dos chorões antigos
(1936) escrita pelo carteiro aposentado Alexandre Gonçalves Pinto, designado pela
alcunha de “Animal”. O discurso deste memorialista nos dá acesso a uma coletânea dos
perfis dos chorões da velha guarda e, sob sua ótica, pode-se colher preciosas
informações sobre a prática musical urbana do Rio de Janeiro no final do século XIX ao
18
início do século XX, em especial, o choro, além de fatos e costumes relacionados ao
ambiente sociocultural da época.
Na tese de doutorado intitulada O Baú do Animal: Alexandre Gonçalves Pinto e
O Choro, Pedro Aragão defende uma interpretação do livro sob o ponto de vista
etnográfico e o caracteriza da seguinte maneira:
Como já sugerido, sua escrita é uma trama polifônica e complexa que traz em
seu bojo numerosos elementos: ela mistura fragmentos da imprensa
carnavalesca da belle époque, elementos da oralidade, gírias, fragmentos de
conceitos e ideias de diferentes extratos sociais da época (incluindo temas
como nacionalidade, identidade e indústria cultural), referências a fatos
históricos, políticos e cotidianos, tudo isso unido por um único fio condutor:
a paixão de seu autor por uma música. (ARAGÃO, 2011, p.4)
Pelo primeiro perfil editado no livro, perfil do próprio “animal”, percebe-se que
Alexandre Gonçalves Pinto era um chorão acompanhador; e com o “pinho” e o cavaco
em suas mãos viveu uma odisseia pelos choros de diversos cantos da cidade
maravilhosa, a qual com saudosismo e paixão seria relembrada nas crônicas de sua obra.
De acordo com Aragão (2011, p. 4) o livro traz a descrição de mais de duzentos
“personagens”, de ambientes musicais da época, das festas, danças etc. Em
levantamento por nós realizado, encontramos cerca de 120 nomes de violonistas que se
prestavam ao oficio do acompanhamento. A maioria, ilustres desconhecidos que o autor
faz questão de imortalizar. Pela descrição de alguns perfis, observa-se qualidades
musicais de alguns violonistas como Lily S. Paulo descrita como exímia instrumentista
e musicista de grande valor: “violão nos dedos de Lily, não toca, chora e diz as mágoas
que sente”, além de ser considerada especialista nos acordes (PINTO, 1936, p.63).
Temos também o aposentado guarda municipal nascido nas proximidades de Santa
Rosa, Niterói-RJ, chamado Neco, que o autor aponta como sendo um dos veteranos
violonistas acompanhadores de choro.
O nome de Néco, na roda do choro, é um santuário. É uma veneração na
formação dos seus acordes maravilhosos e embriagantes de harmonia, nas
passagens das tonalidades das musicas difíceis, que sem lisonja, só ele sabe
fazer. E de um ouvido apurado, de um mecanismo fácil, tirando infinidades
de sons sem esforço por ser tudo isto executado pelo seu dom favorável na
magia do violão. Catullo, Pernambuco, o inesquecível Quincas Laranjeira, Zé
Rabello, Galdino, e muitos outros, tem por ele um verdadeiro culto como um
dos primeiros acompanhadores de choro ao violão. (Ibid., p.70)
Outra habilidade característica das práticas musicais no ambiente do choro é
descrita no perfil do violonista Ventura Careca que tamanha era a confiança que possuía
em seus “ouvidos” que ao acompanhar não admitia que lhe dessem o tom (Ibid., p.86).
19
Em sua obra, observa-se a preocupação do autor em retratar também os artistas de
menor prestígio considerados por ele como tendo habilidades musicais mais modestas.
Dentre eles podemos citar Romualdo Caboclo descrito por ele como um “caboclo bom
até á ultima gota” que apesar de tocar pouco violão, era de agradar devido o gosto que
ele tinha pelo instrumento (Ibid., p.82). Ou ainda Joaquim Fialho que em suas palavras
“não é lá dos grandes violões, mas o que toca, faz graça no que canta” (Ibid. p.174).
Alguns dos personagens descritos nas crônicas de Alexandre Gonçalves Pinto
ficariam consagrados na historiografia da música popular urbana como Quincas
Laranjeira (1873 – 1935), Américo Jacomino (1889 – 1928), João Pernambuco (1883 –
1947), Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959), Eduardo das Neves (1874 – 1919) e Sátiro
Bilhar (1860 – 1926). Sobre o último, apresenta as seguintes qualidades como
acompanhador:
“um chorão que tinha primazia entre outros chorões nos acordes, nas
harmonias, no mecanismo da dedilhação com que manejava agradavelmente
o seu violão. Quando um flauta tocava um chôro ele dizia: “Virgem Maria,
isso pra mim é água com açúcar”. [...] As posições com que o Bilhar tirava os
seus acordes eram tão difíceis que só ele sabia fazer [...], pois os grandes
chorões ainda não conseguiram imitá-lo e reconhecem que Bilhar, foi o rei
dos acordes. (Ibid. p. 52)
Além da modinha e do lundu, o violão esteve na base das mais variadas
manifestações da música popular brasileira e muitas vezes o ostinato rítmico-harmônico
presente em seu acompanhamento se torna um dos elementos fundamentais na
caracterização de um dado estilo ou gênero musical. Em sua pesquisa sobre as
transformações do samba do Rio de Janeiro (1917-1933), Sandroni (2001) atesta o papel
do violão como confidente do compositor, onde muitas vezes o instrumento é
humanizado e se torna um ouvinte compreensivo que permite ao compositor expressarse. No entanto, para o pesquisador, o violão seria um confidente indiscreto trazendo luz
a alguns segredos do ofício que lhe fora confiado pelos compositores. Sandroni explica
que as questões que o instigaram a pesquisar as transformações no samba no Rio de
Janeiro partiram da constatação de um modelo de acompanhamento violonístico de
execução do samba diferente do qual estava familiarizado. Fato esse justificado pelo
potencial de “ressonância” do violão onde se amplificam não somente as queixas e
lamúrias do compositor, mas como sua execução é revestida de um extraordinário poder
de síntese, se presta como uma valiosa ferramenta ao musicólogo. Para o pesquisador, a
batida não é simples fundo neutro sobre o qual a canção passearia com indiferença. Mas
uma dos principais elementos identificadores de um dado gênero.
20
Neste país, e certamente em outros também, quando escutamos uma canção,
a melodia, a letra ou estilo do cantor permitem classificá-la em um gênero
dado. Mas antes mesmo que tudo isso chegue a nossos ouvidos, tal
classificação já terá sido feita graças à batida que, precedendo o canto, nos
faz mergulhar no sentido e a ela literalmente deu o tom. (SANDRONI, 2001,
p.14)
Observa-se a presença ativa do instrumento acompanhador na gênese da
indústria do disco já nas primeiras gravações da Casa Edison. Ainda na fase mecânica
do processo de gravação (1902 -1927), “é importante salientar que os primeiros 100
registros fonográficos foram realizados pelas vozes dos cantores Baiano e Cadete,
acompanhados exclusivamente de um violão” (TABORDA, 2011, p.133). Na maioria
dos registros sonoros dessa fase inicial a presença do violão só se comparava com a
utilização das bandas de música. Na fase posterior, com o advento do processo elétrico
de gravação, o instrumento irá manter sua cadeira cativa no rol que frequentava os
estúdios das rádios como integrante dos conjuntos regionais, que em muito contribuíram
para o funcionamento das mesmas no período conhecido como “Época de Ouro”.
A consequente popularização do instrumento e o seu largo emprego junto ao
cancioneiro acabaram por incentivar a difusão dos métodos práticos endereçados
principalmente a músicos amadores que desconheciam a leitura e escrita musical. Os
métodos práticos tinham uma abordagem pedagógica bastante objetiva, privilegiando o
conteúdo que qualifique o músico para a prática do acompanhamento de canções como
o aprendizado de acordes, cifragem, tonalidades, clichês harmônicos, batidas, etc.
1.1 - O acompanhamento violonístico no século XX
Propusemo-nos a delinear as características musicais dos acompanhamentos
violonísticos realizados desde princípios do século XX sob a ótica de determinados
músicos que tiveram contribuição expressiva na discografia do violão brasileiro. A
escolha dos mesmos privilegiou os seguintes critérios: 1) músicos que realizaram um
bom número de registros fonográficos como único acompanhador de cantores; 2)
músicos que tivessem alguma relação com o universo do violão de concerto, a fim de
observar se o tratamento e exploração técnico-instrumental empregado em uma obra
solista seriam compartilhados no acompanhamento. Essa delimitação se fez necessária
para que o perfil do material observado se relacionasse diretamente como nosso objeto
de estudo, uma vez que o violão em um conjunto musical que tende a se diferenciar de
21
quando está como acompanhador único. Outro fato que procurou-se privilegiar nas
escutas foi a escolha de fonogramas que o músico não acompanhasse a si próprio, pois
consideramos que a natureza deste tipo de performance envolve outros parâmetros
que merecem ser observados não contribuindo diretamente com o nosso objeto de
estudo.
1.1.1 - Eduardo das Neves
Para investigar a trajetória do acompanhamento violonístico no século XX,
pareceu-nos imprescindível tratar do momento documentado por meio da fase inicial do
processo de gravações no Brasil. Dessa forma o primeiro músico a ser investigado
acompanhava-se a si próprio e o violão solista ainda estava em um período embrionário.
Sua forma de tocar pode ser considerada um paradigma e sua arte é um retrato para
compreendermos o cenário violonístico na gênese da indústria fonográfica, bem como
de seus contemporâneos como Baiano, Cadete e Mário Pinheiro.
Eduardo Sebastião das Neves, também conhecido como Dudu das Neves ou
Crioulo Dudu, viveu na cidade do Rio de Janeiro no período compreendido entre 1874 e
1919. Em sua carreira artística atuou como palhaço, cantor, compositor, poeta e
violonista de circo. Seu repertório era bastante diverso e incluía vários gêneros e estilos
musicais do cancioneiro popular no início do século XX como lundus, modinhas,
marchas, canções sertanejas. Ao lado de Baiano (1870 - 1944), Cadete (1874 - 1960) e
Mário Pinheiro (1880 – 1923)
o “trovador da malandragem” obteve reconhecida
importância para a canção popular brasileira dado o pioneirismo de suas gravações
numa ainda incipiente indústria fonográfica da era mecânica. Algumas de suas
gravações como o lundu Isto é Bom de Xisto de Paula Bahia (1841 – 1894) e Oh, Minas
Gerais, sua própria adaptação à melodia dos versos da canção italiana Vieni sur Mare,
se tornaram representativas em sua discografia.
Um dos aspectos importantes que devemos relevar em sua performance é que
cantava acompanhando-se ao violão. Observa-se que seu acompanhamento tinha um
caráter bastante funcional e tinha como principal objetivo dar suporte à sua
interpretação vocal, ocasionalmente intercalada por falas entre os versos e repleta de
nuances que ressaltavam o caráter e significado textual das canções às vezes lúdicas,
irônicas ou até cômicas.
22
Muitos de seus acompanhamentos se estruturavam de forma bastante simples e
possuíam vários pontos em comuns com outros violonistas de sua época. Inicialmente
era de praxe haver uma pequena introdução onde o músico procurava ambientar o
ouvinte no universo da canção apresentando a levada do gênero e uma pequena
progressão harmônica constituída de uma cadência que conduziria à entrada da voz. Em
alguns momentos a introdução é mais breve notando-se a presença de um acorde tocado
ao inicio apenas para “dar o tom” ao cantor. Em contrapartida, encontramos gravações
que apresentam uma introdução com uma maior densidade sonora caracterizada por
uma movimentação dos baixos mais intensa e um número maior de acordes em relação
ao restante do acompanhamento. Muitas vezes este trecho se repete nos interlúdios e ao
final da canção, o que nos leva a crer que ao deixar de cantar o cantor-instrumentista se
via com mais segurança e liberdade técnica para explorar o instrumento. Era nítida a
divisão do acompanhamento violonístico em dois planos bastante claros: 1) os baixos 2)
os acordes com sua respectiva levada.
De
modo
geral,
os
baixos
executados
apresentavam
um
papel
predominantemente rítmico não chegando a constituir linhas melódicas independentes
como ocorria nas “baixarias” dos choros.
O baixo rítmico é o tipo mais comum de linha de baixo, ele é encontrado em
todo tipo de música, particularmente nas melodias acompanhadas. Formado
basicamente através da aplicação de um determinado padrão rítmico aos
baixos dos acordes, o baixo rítmico geralmente utiliza padrões que se
repetem a cada um, ou a cada dois compassos. Esse tipo de linha de baixo
facilita a estruturação do acompanhamento, pois conduz ritmicamente a base
através das repetições, e define claramente os acordes e a marcha harmônica,
já que apenas os baixos dos acordes com algumas poucas notas de passagem
são utilizados. (CARVALHO, 2006, p.23)
O padrão das notas do baixo mais utilizado era o constituído pela fundamental e
quinta dos acordes presentes na condução harmônica. A harmonia era essencialmente
baseada em tríades do campo harmônico e ocasionalmente ocorria o emprego da sétima
nos acordes dominantes. Alguns lundus tocados por Eduardo das Neves se estruturavam
somente com acordes do I e V graus sobre os quais se aplicava a condução rítmica que
caracterizava a levada do gênero.
Na fig.1, observa-se uma transcrição do acompanhamento elaborado por
Eduardo Das Neves na gravação do lundu Isto é Bom5. Nos quatro compassos iniciais
que constituem a introdução a harmonia baseia-se nos acorde do I e V graus construída
5
Gravação feita em voz e violão por Eduardo das Neves pertencente ao acervo digital do Instituto
Moreira Sales.
23
sobre uma linha de baixo predominantemente rítmico formado por notas da tríade ou
tétrade. Do compasso 5 ao 8, temos um modelo de acompanhamento que será
conduzido pela maior parte da canção com o baixo mantendo um padrão baseado em
notas do acorde no ritmo em semínimas tocados sobre a levada do lundu.
Fig.1. Isto é Bom. Eduardo das Neves. Compasso 1 a 8.Transcrição própria
1.1.2 - Américo Jacomino (Canhoto)
Filho de imigrantes napolitanos, o paulistano Américo Jacomino (1889 – 1928)
recebeu o cognome de Canhoto por tocar o violão na posição espelhada sem invertar a
ordem usual das cordas. Sua técnica possuía uma enorme peculiaridade por tanger as
cordas agudas do violão com o dedo polegar enquanto os dedos indicador, médio e
anular tocavam as mais graves. Em sua dissertação de mestrado, Antunes (2002, p.96)
demonstra como a técnica do músico se conecta com a escola do violonista espanhol
Fernando Sor pelo fato de Jacomino tocar com o dedo mínimo junto ao tampo do
instrumento, com o violão na perna esquerda e sem o uso das unhas.
Em sua carreira, atuou como cavaquinista, compositor e violonista sendo|
considerado um pioneiro da tradição do instrumento solista no Brasil. Como outros
violonistas de prestígio da época, Canhoto elaborou seu método prático “voltado
basicamente para o acompanhamento, mas com informações úteis para os compositores
e uma visão essencialmente inspirada nos métodos clássicos para violão então
disponíveis”6 (Ibid., p. 97). Acompanhou cantores de prestígio de sua época como Roque
6
Apesar de canhoto, o Método de Prático de Violão de Américo Jacomino foi elaborado para pessoas
destras.
24
Ricciardi, também conhecido como Paraguassu e Francisco Alves. Sua valsa Acordes
do violão tornou-se sua obra de maior prestígio, sendo regravada posteriormente sob o
título de Abismo de Rosas.
Em fevereiro de 1927 ele participou do concurso O que é nosso, realizado no
teatro lírico do Rio de Janeiro. Como vencedor, recebeu o titulo “o rei do violão”. Além
dele participaram do concurso Manuel de Lima, violonista cego integrante do conjunto
regional Turunas da Mauricéia, e a violonista Carioca Ivonne Rabello. Taborda (2011,
p.96) observa que o perfil dos concorrentes de Jacomino apontam para o panorama do
nível técnico do violão carioca da época. Com aproximadamente 11 anos de idade,
Ivonne Rebello foi a única a apresentar alguma obra do repertório tradicional de
concerto tocando em um violão feito exclusivamente para ela, com as dimensões
reduzidas. A violonista ficou em segundo lugar recebendo o Prêmio Quincas Laranjeira.
Como terceiro colocado, Manuel de Lima ficaria com o Prêmio Levino da Conceição,
chamando a atenção principalmente pelo aspecto exótico de sua performance por tocar
com o violão repousado sobre ambas as pernas.
Passado o Concurso, Jacomino entra no estúdio para gravar novamente, desta
vez pelo sistema elétrico de gravação, o que preservaria de modo fiel a
maneira como Canhoto interpretava ao violão. Pelas gravações que o
violonista faz nesta época, é justo dizer que Jacomino atravessava a melhor
fase de sua carreira. Todas as gravações elétricas demonstram um alto nível
de aprimoramento técnico-musical, muito por conta das regravações de
antigos sucessos como Abismo de Rosas, Marcha Triunfal Brasileira e
Arrependida. E pela gravação da peça Viola, Minha Viola, que tanto agradou
o público do concurso, em que o violonista utiliza efeitos inusitados para a
descrição de uma cena de vida sertaneja, como rasqueados à maneira da viola
caipira e um curioso efeito tocado na região da boca do violão, soando como
uma fala de caboclo, efeito único no repertório violonístico brasileiro até
hoje, não é difícil perceber o porquê de ele ter ganho o prêmio principal. As
gravações elétricas também favorecem uma avaliação de como era o
violonista na época de O Que é Nosso. Abismo de Rosas e Marcha Triunfal
Brasileira mostram aspectos relevantes da técnica alcançada pelo músico. A
Marcha demonstra, por exemplo, o violão soando com efeitos de caixa-clara,
flautins e trombones, lembrando a formação de uma banda marcial completa.
(ANTUNES, 2002, p.78)
Com relação aos acompanhamentos, o arranjo violonístico era estruturado sob
uma trama bastante consagrada em acompanhamentos de canções de diversos gêneros e
formações instrumentais. A introdução, intermezzo e codas eram momentos
exclusivamente instrumentais em que o músico procurava explorar maiores recursos
técnico-musicais. Ao entrar o canto a densidade do acompanhamento se tornava mais
rarefeita de modo a deixar a voz em primeiro plano.
25
É notória a presença marcante dos baixos em um plano dinâmico distinto ao
restante do acorde. As linhas do baixo não exercem funções exclusivamente
harmônicas, mas chegam a constituir trechos com características melódicas similares ao
baixo cantante típico da linguagem dos chorões, e há até esporádicos dobramentos com
a melodia vocal. A execução dos baixos é, de modo geral, destacada pela dinâmica e
pelo lirismo caracterizado pelas notas ornamentadas. Sua rítmica é baseada em
semínimas, colcheias e semicolcheias combinadas com a utilização de arpejos e notas
de passagem diatônicas e cromáticas.
A condução levada rítmica é variada, não se estabelecendo sobre um ostinato
executado por todo o acompanhamento, mas alterna-se constantemente entre fórmulas
de acordes arpejados e em blocos.
Alguns recursos técnico-instrumentais, não característicos da linguagem
predominante nos acompanhamentos violonísticos, começam a se esboçar nos arranjos e
ganham espaço junto a seções instrumentais que intercalam o canto. Observa-se que
Canhoto tira proveito das tonalidades que diatonicamente incorporam o uso de cordas
soltas e acabam proporcionando uma maior desenvoltura técnica e fluência para a
exploração do instrumento. Para executar algumas notas em acordes ao final de canções
Canhoto utiliza-se de harmônicos naturais, artifício mais característico à linguagem do
violão solista. Constata-se com surpresa a utilização do violão percutido ao tampo, vide
figura 2, recurso que aparece intercalado a levada no intermezzo e final do registro
fonográfico da samba Feche a porta e leve a chave, gravada entre 1921- 1926 pelo
cantor Paraguassu.
Fig. 2. Violão percutido. Canhoto. Transcrição própria.
1.1.3- Rogério Guimarães
Nasceu em campinas (SP) no ano de 1900 e veio a falecer na cidade de Niterói (RJ)
em 1980. Atuou como violonista, compositor e diretor artístico. Rogério Guimarães
gravou seu primeiro disco pela Odeon em 1926 contendo a valsa Marta e o fox-trot
Marrinetti, ambos de sua autoria. Rogério Guimarães chegou a assumir, em 1929, a
26
direção artística da gravadora Victor. Durante os três anos em que ocupou o cargo
admitiu o primeiro sucesso comercial da Victor, a novata Carmem Miranda. O
violonista acompanhou cantores representativos da época como Francisco Alves,
Vicente Celestino e Gastão Fomenti, entre outros. Rogério Guimarães teve uma atuação
marcante nas rádios e gravações e seu nome está entre um seleto grupo de violonistas da
primeira metade do século XX que alcançaram maturidade, desenvoltura e apuro
técnico no instrumento (Taborda, 2011, p. 102). Ao apresentar-se como solista era
conhecido como Rogério Guimarães, quando tocava com o conjunto no qual era líder, O
Regional de Rogério Guimarães, identificava-se também pela alcunha de Canhoto.
Primeiramente, na busca por registros fonográficos no sítio eletrônico do
Instituto Moreira Sales em que Guimarães unicamente acompanhasse um cantor
mostrou-se escassa. Ao observar a indicação expressa nas fichas que acompanham cada
gravação, nota-se que, quando há presença de um cantor como intérprete o
acompanhamento era majoritariamente feito por um conjunto ou com a presença de
mais um violão, transcendendo o recorte aqui proposto. Porém, ao ouvir algumas
gravações que indicam um segundo violão acompanhante, percebeu-se apenas um
instrumento presente, o que nos levou a crer que houvera um equívoco na elaboração da
ficha catalográfica das mesmas. A partir de então, tivemos um volume de gravações
mais significativo para que pudéssemos examinar com mais acuidade sua forma de
tocar. O violonista Gilson Antunes comenta algumas características do estilo musical de
Guimarães no qual destaca:
Ao se escutarem algumas gravações deste violonista, percebe-se que possuía
uma técnica diversa da de Jacomino. Isso é perceptível por meio dos poucos
recursos violonísticos utilizados (pouco ou nada de trêmulos, pizzicati,
harmônicos e demais efeitos timbrísticos)7, além de gravar quase que
integralmente com acompanhamento de outro violonista, ao contrário de
Jacomino. Do mesmo modo, não é possível perceber que seja um violonista
canhoto que esteja tocando e suas peças são bastante passíveis de serem
interpretadas a partir da maneira tradicional de pinçar as cordas. Acrescentese a isto o fato de sua valsa Gotas de Lágrimas ainda permanecer no
repertório de violonistas mais antigos. (ANTUNES, 2002, p.158)
Como era de costume ao estilo de interpretação empregado em vários gêneros e
estilos da época, o músico também construía seus arranjos baseando-se na levada típica
de cada gênero somada à utilização da condução dos baixos que muitas vezes se
destacava do restante assumindo um caráter melódico. Sua abordagem de arranjo
7
Apesar de Antunes considerar, em comparação à Jacomino, o estilo de Guimarães mais escasso, em
relação aos recursos violonísticos utilizados, observaremos que no âmbito do acompanhamento sua
técnica se sobressai.
27
utilizado nos acompanhamentos por Rogério Guimarães não era uniforme, mas variava
de acordo com a canção. Apesar do destaque dado aos baixos ser uma constante em boa
parte de seus arranjos, em determinados momentos percebeu-se que ele opta por dar um
caráter mais homogêneo e estático ao arranjo dando ao baixo uma função
exclusivamente de suporte harmônico com poucas movimentações e sem destaque
dinâmico. A condução rítmica dos acordes, além de seguir o padrão característico de
cada gênero, pode apresentar-se sendo intercalada por momentos em que o
acompanhamento é realizado com acordes arpejados.
Os acordes são executados por toda a extensão do braço do violão, em inversões
e com omissões das vozes que contribuem para um colorido timbrístico e densidades
contrastantes. Com relação ao comportamento do violão nos registros sonoros
observados, nota-se uma importante contribuição estilística dada por Rogério
Guimarães no que tange à utilização de elementos técnico-instrumentais característicos
da linguagem do violão solista dialogando de forma bastante significativa com recursos
típicos já consolidadas na linguagem empregada em acompanhamentos.
Essa confluência com a linguagem do violão solista é deflagrada nas seções
introdutórias das canções e nos demais momentos instrumentais, geralmente o
intermezzo e a coda, onde o violão apresenta uma textura de melodia acompanhada se
diferenciando do restante do arranjo onde o instrumento sai de sua posição de destaque
adquirida na ausência da voz. Nestes momentos observa-se o apuro técnico e
virtuosismo do músico caracterizado pela ampla exploração da tessitura do violão, em
especial a região aguda, e pela realização de rápidas passagens escalares intercalando
acordes.
No acompanhamento da canção Anoitecer (fig.3) pode-se observar alguns
elementos identitários do estilo de Rogério Guimarães como a exploração do
instrumento em toda extensão, em especial a aguda, além do emprego de baixarias e
arpejos intercalados com a condução rítmica da canção. Nos seis primeiros compassos o
violão se comporta a maneira de um violão solista, como era de praxe em introduções,
interlúdios e codas das canções.
28
Fig.3. Guimarães. Anoitecer. Compasso 1 a 20. Transcrição própria.
Do ponto de vista interpretativo é notório a consciência e tratamento das
questões como timbre, dinâmica e agógica frutos de um preparo técnico mais
desenvolvido que permite uma maior exploração dos recursos técnico-musicais.
Na figura 4, temos o arranjo executado por Guimarães ao acompanhar a
modinha Adeus Eulina (1928) interpretada pelo cantor Gastão Formenti onde destaca-se
o cuidado tomado com a condução das vozes, a utilização de um mesmo acorde em
regiões diferentes ao longo do braço do instrumento e um cuidado com condução do
baixo dos acordes fazendo uso de inversões, notas de passagem e bordaduras.
29
Fig.4. Adeus Eulina. Guimarães. Compasso 1 a 16. Transcrição própria
1.1.4- Baden Powell
Baden Powell de Aquino nasceu no dia 06 de Agosto de 1937, no município de
Varre-Sai (RJ). Seu nome foi escolhido por seu pai em homenagem ao General britânico
fundador do escotismo Robert Thompsom S. S. Baden Powell. Com três meses de vida
sua família decidiu mudar-se para o Bairro de São Cristóvão no município do Rio de
Janeiro. Ainda com oito anos de idade seu pai o levou para ter aulas de violão com o
violonista, compositor e professor pernambucano Jayme Tomás Florence, o Meira
(1909-1982). Meira o introduziu às rodas de choro e ao repertório e técnica do violão
de concerto. No depoimento abaixo, Baden fala sobre o início de sua carreira e ressalta
a pluralidade do ambiente musical que o cercava desde menino, fato que irá transparecer
em sua obra e estilo interpretativo.
Com 10 anos, eu já viajava com tudo quanto era artista, acompanhando
música cubana, italiana, o que fosse. Já sabia acompanhar tudo. Com 12
anos, conhecia o Brasil todo. E estudava violão clássico. Meus vizinhos eram
Pixinguinha, Jacob do Bandolim. Lá na igreja, o padre contratava Cyro
30
Monteiro e Dalva de Oliveira, quem ia acompanhar era eu. (Folha de São
Paulo: Caderno Ilustrada 1999, p.1)
Magalhães (2000, p.1) pondera a importância de considerarmos ao menos três
distintas funções que o músico exerceu para construir o perfil de Baden Powell:
compositor, intérprete e arranjador. Sua discografia conta com inúmeros álbuns
lançados no Brasil e no exterior e se destacam por uma grande diversidade de gêneros
musicais como samba, jazz, choro, além de apresentar-se em formações das mais
variadas tais como violão solo, duo com voz, duo com instrumento solista, trios ao lado
de bateria e contrabaixo, e conjuntos musicais dos mais diversos.
É notório o destaque que ele alcançou como violonista solo diante de toda uma
geração de compositores-intérpretes como Paulinho Nogueira, Luiz Bonfá, Laurindo de
Almeida, Sebastião Tapajós, João Gilberto, Carlos Lyra, Toquinho, entre outros. Em
países como França, Estados Unidos e Japão, ele tornou-se uma referência do estilo
brasileiro de tocar violão (Ibid., p.2). “Baden Powell realmente foi desbravador que
mudou totalmente a relação da mão direita do violão com o ritmo, reproduzindo a
complexidade da percussão afro-brasileira num modelo compactado de seis cordas”
(ZANON, 2007a). Magalhães (2000, p. 32) explica que a sua fluência rítmica no samba,
adquirida desde sua infância tocando surdo e bateria foi, transferida para as suas
interpretações ao violão, além do tempo em que tocava violão com amigos
percussionistas da Mangueira. O vigor rítmico de sua interpretação, caracterizado por
sua levada, é uma marca pessoal inconfundível e pode ser observado quando ele está
exclusivamente acompanhando ou mesmo na execução de uma obra para violão solo. O
violonista Maurício Carrilho afirma que a batida de Baden foi desenvolvida sobre
influência de Meira.
“Baden ficava querendo passar para o violão as “levadas” dos instrumentos
de percussão, especialmente do pandeiro. Inclusive ele usa uma técnica na
mão direita de percussão de cordas de ritmo diferente. Ele usa uma coisa que
Meira usava, com três pontos para fazer a “levada”: polegar, indicador e
médio/anular (juntos). Isso dá uma velocidade para fazer ritmo que você não
consegue fazer em bloco, porque trava. Meira já fazia isso e Baden
desenvolveu a partir das percussões. O polegar, quase sempre está no tempo,
fazendo o surdo, e todo o lance sincopado tá nos outros dois pontos”
(CARRILHO apud CAIADO 2000, p. 80).
Em seu estilo violonístico encontra-se também a presença do baixo melódico
adquirida em experiência junto às rodas de choro. Da bossa nova, constata-se uma o
vocabulário harmônico mais sofisticado e da “batida” do violão tão emblemáticas nas
interpretações de João Gilberto. Sua sonoridade violonística incorpora a exploração de
31
uma gama de matizes tímbricas que foram consolidadas pelas escolas do violão
concertista, tipificadas pelo uso do violão de seis cordas de nylon utilizando as unhas
para o ferir das cordas pela mão direita, e pela tradição do violão flamenco com a
utilização de rasgueos e escalas tocadas energicamente com apoio. No choro Carinhoso,
do compositor Pixinguinha, gravado no disco Baden, Márcia, Originais do Samba –
Show/recital (PHILIPS, São Paulo, 1968) observa-se que a função do acompanhamento
não é essencialmente a de apenas fornecer o suporte harmônico à melodia. O violão
divide com a flauta o protagonismo da performance com diversas intervenções
melódicas em forma de contracanto, em terça ou uníssono com a melodia, passagens
escalares virtuosísticas entre acordes e além dos já consagrados baixos melódicos. No
mesmo álbum, observa-se na faixa n° 4, o choro Naquele tempo, do mesmo compositor.
Após um solo na introdução o violão é conduzido na primeira seção da obra a maneira
de um instrumento melódico juntamente com a melodia vocalizada pela cantora,
resultando no trecho um arranjo com uma textura contrapontística8. Em seus
acompanhamentos observa-se que o estilo interpretativo de Baden é fundamentado na
sua capacidade de síntese de elementos musicais oriundos de meios diversos como a
música brasileira, o jazz, além de procedimentos técnico-musicais típicos do violão
solista.
Temos, na figura abaixo, um exemplo musical formulado por Faria (1995, p. 44)
extraído de seu livro The Brasilian Guitar Book - samba, bossa nova and others styles.
O exemplo sugere um padrão de variação da levada do samba aplicado ao estilo
violonístico de Baden Powell.9 Dos elementos que caracterizam o estilo de Baden podese destacar a densidade rítmica e a harmonização em blocos de quartas que remetem a
procedimentos jazzísticos.
8
O procedimento textural habitualmente mais consagrado na música popular em geral é a melodia
acompanhada, exemplificada por um instrumento harmônico acompanhando a voz ou um instrumento
solista qualquer.
9
Devido ao alto grau de similaridade rítmico-harmônica, pode-se deduzir que o exemplo acima foi
transcrito quase integralmente de um trecho da segunda seção da peça instrumental O Astronauta de
Baden Powell.
32
Fig.5. Levada do samba. (FARIA, 2005, p. 45)
Ao olhar somente para a partitura, nos isentaríamos da compreensão de
elementos identitários que sublinham a sonoridade de Baden que são demarcados em
suas interpretações. A agógica, timbre violonístico e dinâmica são parâmetros musicais
que esquivam-se da notação tradicional e que a melhor da descrições textuais ou
partitura não traduziriam as idiossincrasias que tornam seu estilo inconfundível.
Baden procede dessa maneira em muitas outras ocasiões, acelerando os
andamentos, desestabilizando a métrica, borrando a plasticidade das massas
sonoras, as transições entre seções das músicas, tudo isso parecendo desafiar
os músicos que o acompanham e sua própria habilidade no instrumento. Esse
excesso, a meu ver, faz eco com as considerações de Bakhtin. Baden, ainda
que numa situação diferente daquela desenhada por Bakhtin sobre a Idade
Média, utiliza desse processo de deformação da regularidade das músicas
para “sujar” a limpeza exigida pelas regras oficiais de execução, às quais ele,
apesar de tudo, parece querer continuar atrelado. A sonoridade de seu violão,
na aceleração desmedida do andamento, fica distorcida pela inclusão
inevitável dos ruídos de raspagem das unhas nas cordas e na madeira do
violão, indo muito além do limite de sonoridade consensualmente aceita para
o instrumento (esses ruídos de excesso os violonistas chamam de
trastejamento). Limite a partir do qual os vários sons que o violão emite,
voluntaria e involuntariamente, se avolumam e quase se igualam numa
espécie indistinta de percussão violonística, em que o ataque das notas passa
a valer mais do que a ressonância; o barulho se equipara ao som.
(SCHROEDER, 2010, p. 6)
1.1.5 Raphael Rabello
33
Raphael Baptista Rabello nasceu no ano de 1962 na cidade de Petrópolis (RJ) e
faleceu no ano de 1995 na cidade do Rio de Janeiro. Nascido de uma família de
músicos, ele recebeu suas primeiras instruções musicais de seu avô materno. Suas
irmãs, a cantora Amélia Rabello e a cavaquinista Luciana Rabello, se tornaram
musicistas de renome. Foi um dos alunos de destaque do professor Jayme Florence, o
Meira. Uma grande influência para a sua carreira foi o violonista Dino Sete Cordas do
qual absorveu grande parte da linguagem de seu violão. Sua carreira como solista foi
emblematizada pela versatilidade e pela marca pessoal imprimida em suas
interpretações, das quais grande parte foi dedicada a compositores brasileiros como
Villa-Lobos, Radamés Gnattali, Garoto, Tom Jobim, entre outros. Acompanhou
diversos cantores como Gal Costa, Elizeth Cardoso e Ney Matogrosso. A incorporação
de técnicas do acompanhamento10 para o violão solo contribuiu para a consolidação de
seu estilo violonístico característico, considerando-se que seu amplo conhecimento
musical foi determinante para que se tornasse um dos maiores expoentes do instrumento
no Brasil. (BORGES, 2009, p.4)
Juntamente com Dino, Raphael Rabello foi um dos grandes representantes do
violão de sete cordas. Ambos vivenciaram as principais transformações do choro e
contribuíram sobremaneira para a trajetória e consolidação do instrumento no país.
Cazes (1998, p.170) conta que devido à preocupação dos músicos da Camerata Carioca
com os parâmetros dinâmica e sonoridade, eles desenvolveram experiências que seriam
reproduzidas posteriormente por outros músicos. Uma delas diz respeito à utilização de
um violão de sete cordas de nylon, introduzido Luiz Otávio Braga, com objetivo de
trazer maior equilíbrio ao naipe. Essa opção foi, posteriormente, adotada por Raphael
Rabello e vários outros violonistas.
Rabello destaca-se pelo alto grau de elaboração de seus arranjos ao tocar como
único acompanhador solista, em especial ao lado de Elizeth Cardoso e Ney Matogrosso,
produzindo dois discos que são referências para trabalhos dessa formação. Em 1989,
gravou com Elizeth Cardoso o disco Todo Sentimento 11(Columbia/Sony Music – 1991)
10
Borges (2009, p. 115) aponta alguns indícios referentes à fase acompanhadora no choro presente na
obra solista do mesmo como o baixo cantante, o destaque dado aos baixos pelo toque com apoio pelo
polegar e o forte apelo improvisador tão característico ao choro.
11
O álbum traz as seguintes faixas: 1 - Faxineira das canções (Joyce) / Camarim (Cartola e Hermínio
Bello de Carvalho) Refém da solidão (Baden Powell - Paulo César Pinheiro) 2 - Todo o sentimento
(Chico Buarque Cristóvão Bastos) 3 - Janelas abertas (Tom Jobim, Vincius de Moraes) / Canção da
manhã feliz (Luiz Reis Haroldo Barbosa) / Bom dia (Herivelto Martins-Aldo Cabral) 4 - Doce de coco
(Hermínio Bello de Carvalho, Jacob do Bandolim) 5 - Modinha (Tom Jobim, Vinicius de Moraes) 6 - No
rancho fundo (Ary Barroso, Lamartine Babo) 7 - Violão (Vitório Júnior, Wilson Ferreira) / Violão vadio
34
porém o mesmo só foi lançado um ano após o falecimento da cantora, em 1991.
Abrangendo da mesma forma gravações exclusivamente no formato Voz e violão,
lançou Juntamente com Ney Matogrosso o disco À Flor da Pele (Polygram, 1990)12 no
qual interpretam um repertório muito eclético que, aborda desde a canção Balada do
louco (Arnaldo Baptista, Rita Lee) a Prelúdio nº 3 /Prelúdio da solidão (Vila Lobos,
Hermínio Bello de Carvalho).
No que tange aos aspectos técnicos do músico é importante salientar que
Não é possível descrever o tipo de toque executado por ele. Para lograr uma
sonoridade semelhante à de Rabello, convém escutar suas gravações mais do
que analisar uma transcrição de uma música por ele tocada. Rabello utilizava
inúmeras técnicas de diferentes gêneros e estilos musicais. Afora o
conhecimento aprofundado do choro e do conjunto de técnicas aplicadas a
esse gênero, Rabello conhecia técnicas flamencas e o repertório erudito, o
que culminou em seu estilo extremamente peculiar.
A maneira de execução da “baixaria” também é um [sic] característica
relevante na constituição técnica de Rabello. A precisão e a potência do toque
do polegar direito guarnecem uma sonoridade típica de sua interpretação
violonística. Tal característica, de ordem técnica é aplicada tanto nos
acompanhamentos quanto em sua obra solista. (BORGES, 2009, p.104)
Borges (2009, p. 107) aponta a condução rítmica abaixo como semelhante às
levadas aplicadas por Rabello (fig.6), que por sua vez denotam uma de suas técnicas
peculiares empregadas em seus acompanhamentos. Para o autor, a utilização do polegar
é determinante na sonoridade de Rabello que é obtida mediante a alternância do polegar
para cima e para baixo de forma acentuada, sobre o baixo pedal.
Fig.6. Levada do partido alto (PEREIRA, 2006, p.17)
(Baden Powell-Paulo César Pinheiro) 8 - Chão de estrelas (Silvio Caldas, Orestes Barbosa) / Consolação
(Baden Powell-Vinicius de Moraes).
12
O referido LP traz as seguintes obras: 1 – Modinha (Tom Jobim, Vinicius de Moraes) 2 - Retrato em
preto e branco (Chico Buarque, Tom Jobim) 3 – Molambo (Jayme Florence, Augusto Mesquita) 4 Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) 5 - Da cor do pecado (Bororó) 6 - No rancho fundo (Ary Barroso,
Lamartine Babo) 7 - Último desejo (Noel Rosa) 8 - O mundo é um moinho (Cartola) 9 - As rosas não
falam (Cartola) 10 - Autonomia(Cartola) 11 - Prelúdio nº 3 /Prelúdio da solidão (Vila Lobos, Hermínio
Bello de Carvalho) 12 - Três apitos (Noel Rosa) 13 - Caminhemos (Herivelto Martins) / Segredo
(Herivelto Martins-Marino Pinto) 14 - Negue (E. de Almeida Passos, Adelino Moreira) 15 - Na Baixa do
Sapateiro (Ary Barroso) 16 - Vereda tropical (Gonzago Curiel) 17 - Balada do louco (Arnaldo Baptista,
Rita Lee).
35
Em ambos os trabalhos, os arranjos denotam um comportamento violonístico
onde os elementos musicais característicos da linguagem de acompanhamento do choro
e todo o arcabouço de possibilidades técnico-instrumentais do músico se encontram
amalgamados de forma singular. Pode-se destacar o emprego de elementos musicais
como solos ao violão, contracantos melódicos, inúmeras passagens escalares
virtuosísticas intercalando os acordes da harmonia; uso de técnicas violonísticas
diversas como fortes rasgueos, arpejos, pizzicato, trêmolo, exploração do uso de cordas
soltas, harmônicos naturais e artificiais e a aplicação de recursos interpretativos como
variações timbrísticas, de dinâmica e agógica. Apesar de passar a utilizar
majoritariamente o violão de sete cordas em suas performances, observa-se a utilização
do violão de seis cordas em boa parte do disco com Elizeth e Matogrosso.
Não obstante Rabello explorar toda a gama de recursos violonísticos
característicos de sua linguagem interpretativa, nota-se no disco com Elizeth Cardoso,
um perfil interpretativo mais comedido e sóbrio em comparação ao disco com Ney
Matogrosso onde ele aparenta gozar de maior liberdade e ousadia. No segundo álbum,
além de uma presença mais marcante do instrumento em solos, a interseção com a
prática do violão solista é enfatizada por alguns casos de citações de obras típicas do
repertório de concerto em meio às canções. Em Retrato em branco e preto encontra-se a
segunda seção do Prelúdio no5 de Villa-Lobos. Da mesma forma, o Prelúdio no3 do
mesmo compositor é tocado integralmente, tendo na repetição de sua segunda seção o
dobramento melódico com a voz que canta o Prelúdio da Solidão, letra de Hermínio
Belo de Carvalho. Por fim, temos em Balada do louco, os compassos iniciais de um
prelúdio coral de Bach.13 Uma linha tênue que separa as funções de acompanhador e
solista, podendo ser até questionado a necessidade da divisão nestes polos opostos,
sendo mais produtivo observar os diversos pontos de interação entre elas.
[...] destacamos uma consideração de Luciana Rabello (entrevista concedida,
2008): “Rabello acompanha enquanto sola e sola o violão enquanto
acompanha”. Essa afirmação preceitua que os acompanhamentos de Rabello
não se restringiam a uma visão vertical da harmonia, mas sim uma visão de
solista, na qual há presença predominante das “baixarias”. Portanto, a relação
existente entre o acompanhamento e o solo reforça o argumento de que as
duas fases de Rabello são indissociáveis e podem coexistir pacificamente.
(BORGES, p. 115)
13
Refere-se ao coral Jesus, bleibet meine Freude from the Cantata Herz und Mund und Tat und Leben mov. X, BWV 147 de Johann Sebastian Bach (1685 - 1750).
36
1.1.6- Guinga
Neste capítulo, o último músico a quem dedicou-se a observar o seu modo de
acompanhar foi Carlos Althier de Souza Lemos Escobar. Ele nasceu em 1950, no bairro
de Madureira na cidade do Rio de Janeiro, e “Guinga”, versão adaptada da palavra
gringo, foi um apelido que sua tia Lígia o colocou quando ele ainda era recém-nascido.
A alcunha justificava-se pelo seu aspecto físico de pele branca e cabelo liso
(MARQUES, 2002, p.30). Pode-se considerá-lo um compositor ativo desde 1967
quando, aos 17 anos, classificou a música Sou só solidão no II Festival Internacional da
Canção. Já teve suas obras gravadas por artistas diversos como Maurício Tapajós, Paulo
César Pinheiro, Nelson Gonçalves, Clara Nunes, Rafael Rabello, Amélia Rabello, Leila
Pinheiro, Boca Livre, Mônica Salmaso, Chico Buarque, e muitos outros. Guinga atuou
também como violonista ao lado de cantores da MPB como Alaíde Costa, Beth
Carvalho, Clara Nunes, João Nogueira e Cartola.
Na tentativa de construção de um perfil musical de Guinga, Siqueira (2009,
p.02) demonstra a necessidade de considerarmos as múltiplas funções que o músico
exerce como: compositor; arranjador e intérprete (violonista e cantor). Siqueira destaca
o papel do violão na composição musical de Guinga. Ele afirma que a música “brota” de
seu violão e que o compositor utiliza de seus conhecimentos violonísticos na construção
de suas obras aplicando recursos idiomáticos ao violão.
Do ponto de vista harmônico, Guinga é reconhecidamente um compositor de
destaque e tem despertado o olhar de pesquisadores. Na tese de doutorado sobre
harmonia de Câmara (2008), encontramos trechos de suas obras analisadas e
comentadas como exemplo de sofisticação harmônica. Sobre a relação de Guinga com o
violão observa-se que em sua obra a composição, o arranjo violonístico e a execução
estão interligados. A linguagem harmônica é resultado dessa peculiaridade. Logo,
diferentemente de boa parte da prática de acompanhamentos de violão utilizados em
canções de música popular, onde a transposição é uma constante, a execução de obras
do compositor requer um cuidado muito especial quanto ao transpor, uma vez que a
dimensão harmônico-melódica se relaciona com movimentações de fôrmas especificas
de mão esquerda, aliada ao uso de cordas soltas do instrumento, configurando
encadeamentos de vozes característicos. Esse fato torna muitas vezes, impossível, a
37
tarefa de transpor suas músicas (sem capotasto)14, não apenas nas peças instrumentais,
mas também nos acompanhamentos das canções.
No caso do violão, existem três aspectos intimamente relacionados, utilizados
por compositores do século XX e que produzem um idiomatismo
instrumental do qual Guinga faz uso: 1) o deslocamento da mão esquerda,
com três planos de ação: movimento transversal, movimento vertical e
movimento horizontal; 2) o uso das fôrmas dentro desses três tipos de
movimento, ou seja, fôrma: correspondendo a apresentação de uma
determinada disposição dos dedos da mão esquerda em uma posição do
violão, escalar ou em acordes, com e sem cordas soltas, transposta para outra
região; 3) a inclusão das cordas soltas, como fator colorístico e de
possibilidades harmônicas.” (ESCUREIRO, 2010, p.5)
Na música popular não se espera que o compositor venha determinar todos os
elementos necessários para a execução. Portanto, é comum se estabelecer um processo
de três etapas: composição, arranjo e execução (ARAGÃO, 2001, p.18). Ao observar o
songbook A Música de Guinga constata-se uma importante nota deixada pelos editores Paulo Aragão e Carlos Chaves- que esclarece que o motivo das transcrições do violão
serem feitas integralmente, “nota a nota”, é por considerarem a construção dos
acompanhamentos violonísticos um dos pontos de maior interesse em sua música. O
jornalista Mário Marques dedicou uma biografia à Guinga na qual nos deixa o seguinte
relato a respeito das construções musicais do compositor: “Sua estética é fechada, vem
prontíssima. Não dá pra mexer em nada, por um acorde a mais, querer melhorar ou fazer
diferente. É cabeça, corpo, e membros. Tirou um, cai”. (MARQUES, 2002. p.18).
Na música de Guinga, elementos como harmonia, condução rítmica,
movimentação das vozes e digitações são elementos indissociáveis para preservar as
características da linguagem do compositor. Nesse ponto, sua obra se aproxima da
concepção mais formal de música clássica onde composição e arranjos estão
interligados. Na fig.7, temos um trecho de Choro Réquiem, onde nota-se que o
acompanhamento, ao dobrar-se com a melodia mostra ter uma direta relação com a
mesma e, por outro lado, o fato de conter a melodia denota a possibilidade de ser
14
O capotasto é um acessório utilizado ao violão que tem como principal função a de pressionar as cordas
como uma “pestana fixa”. Quanto maior o distanciamento em relação em relação às primeiras casas, mais
agudo se torna o violão. Portanto, em determinadas obras, o capotasto facilita a transposição fazendo com
que o violonista possa tocar com a mesma digitação e fôrma dos dedos.
38
executado de forma autônoma, que o coloca no limiar entre um acompanhamento de
uma canção e uma peça instrumental.15
Fig.7. Guinga. Choro Réquiem. Compasso 1 e 2
Apesar de Guinga ser um dos responsáveis por diversas inovações no choro,
principalmente no âmbito harmônico, alguns aspectos da linguagem tradicional do
gênero são muito claros em suas peças. Em vários momentos o compositor utiliza o
recurso de baixarias, saltos melódicos, arpejos e cromatismos que caracterizam pontos
importantes na linguagem do choro.
Em nossa investigação, encontramos o recurso da campanella16 abundantemente
aplicado às construções harmônico-melódicas na qual o compositor opta pela digitação
que privilegie os intervalos de segunda (maiores e menores) na disposição das vozes dos
acordes. Acreditamos ser esta uma das marcas características de seu estilo
composicional. A canção Catavento e Girassol fornece um bom exemplo, pois o
acompanhamento harmônico apresenta uma progressão de acordes típica da linguagem
do compositor. Uma leitura através de cifras prejudicaria aspectos fundamentais do
estilo de sua linguagem harmônica, pois as utilizações mais comuns das fôrmas dos
acordes não exploram o uso de recursos como cordas soltas e a campanella17. Conforme
15
Várias composições de Guinga foram concebidas primeiramente como peças instrumentais e
posteriormente dadas aos letristas, fato que explica essa autonomia e possibilidade de termos performance
em versões para violão solo.
16
Intervalos harmônicos de 2ª menores ou maiores tocados ao violão em cordas paralelas em escalas ou
acordes.
17
Tradicionalmente, a abordagem prática utilizada por violonistas para realização de uma leitura de cifras
adere a um conceito prático. Ao deparar-se com um determinado acorde (ex. C7M), o músico relaciona a
sua estrutura (Maior com 7ª maior) com algumas fôrmas de mão esquerda pré-estabelecidas que, ao serem
deslocadas pelo braço do instrumento, transpõem o acorde para quaisquer outras fundamentais. Esse
recurso técnico do violão facilita a leitura de harmonias mais complexas, pois ao invés de cuidar do
39
a figura 7, observamos que Guinga escreve o acorde de Dó maior com sétima maior e
terça no baixo (C7M/E) com o intervalo de segunda menor entre as notas si e dó (5ª
justa e 6ª menor). Esse efeito de Campanella é empregado largamente em sua obra e
requer um cuidado com a digitação e a disposição de cada nota. O mesmo recurso é
utilizado no acorde posterior, de Si maior com sétima e nona menor com 3ª no baixo
(B7(b9)/D#), onde a Campanella permanece entre as mesmas notas.
Fig.8. Guinga. Catavento e Girassol. Compasso 1 e 2
Através da escuta, somada as observações das partituras em songbooks18,
verifica-se o gosto do compositor pela sonoridade de determinados acordes que,
aparecem com frequência em sua obra. Esses são encontrados em contextos tonais e
harmônicos diferentes, utilizando-se da mesma configuração na disposição das vozes.
Na execução dos mesmos, ele explora as potencialidades do instrumento com a
utilização de cordas soltas, combinadas com o deslocamento de fôrmas específicas pelo
braço do instrumento. Com isso, devido às limitações físicas do violão, a transposição
da estrutura e da mesma disposição de vozes para outras fundamentais se faz
impossível, o que torna esses acordes ainda mais característicos do estilo harmônicocomposicional de Guinga. A utilização desses acordes com essa estilística se faz
presente não apenas em suas composições, mas também são observados nos
acompanhamentos de canções de outros compositores interpretados por Guinga19.
Dentro da estilística observada, destaca-se um acorde bastante representativo da
linguagem harmônica do compositor com o emprego das cordas soltas (sol e si) e a
utilização de uma fôrma fixa dos dedos da mão direita (notas ré bemol e fá natural)
deslocamento de cada nota, o acorde é pensado como um bloco indivisível. Apesar de facilitar a
execução, o procedimento limita as possibilidades de variação de escrita das vozes de um mesmo acorde.
18
Os dois songbooks que serviram de base para a pesquisa foram “Noturno Copacabana (2006)” e “A
Música de Guinga (2003)” ambos lançados pela editora Gryphus.
19
Pode-se verificar a presença desses acordes característicos do compositor nos arranjos por ele tocados
ao violão nas gravações de Chega de saudade, gravada no álbum Antônio Carlos Jobim Songbook, Vol. 3
– lumiar discos- 2009, e Mané fogueteiro do disco A música brasileira deste século por seus autores e
intérpretes vol. 6 CD 009.
40
Fig.9. Guinga. Melodia Branca. Compasso 70
Observamos na canção Choro Réquiem que a mesma fôrma dos dedos, intervalo
de terça maior, se move em outras regiões do braço do violão com a utilização do
mesmo grupo de cordas soltas (sol e si). Procedimento idiomático semelhante é
encontrado no Estudo N°11, de Heitor Villa lobos.
Fig.10.Guinga. Cine Baronesa. Compasso 8
Neste capítulo foi possível observar a trajetória do violão pelas mais diversas
classes sociais juntamente com os principais protagonistas da nossa música popular. Ao
investigar o perfil do comportamento de alguns violonistas de relevo do nosso
cancioneiro popular, foi possível perceber que houve um processo de trocas culturais
entre a linguagem do violão solo e o de acompanhamento que de forma progressiva foi
sendo consolidada. O papel destes músicos personifica a figura do mediador conforme
apontado por Peter Burke (2010), cabendo a eles a função de agenciamento entre as
diferentes tradições e colaborando para a diluição de suas fronteiras.
41
Capítulo II- Os músicos e os discos: Bellinati, Salmaso e os Afrosambas
2.1 - Paulo Bellinati, breve perfil biográfico e musical
O músico Antônio Paulo Bellinati destaca-se no cenário violonístico brasileiro
por sua atuação como intérprete, arranjador, compositor e multi-instrumentista que
transita com facilidade por gêneros e estilos musicais dos mais variados. Ele nasceu em
22 de setembro do ano de 1950 na cidade de São Paulo. Sua meninice se passou no
tradicional bairro da Mooca, localizado na região central da capital paulista. Apesar de
não ter uma tradição de músicos na família, o gosto e o apreço pela música em seu
ambiente doméstico era uma constante. O despertar para essa “veia musical” nasceu das
reuniões e almoços que aconteciam na casa de seu avô aos finais de semana, pois nesta
residência havia um violão que ficava guardado em cima do guarda roupa que não
passava despercebido aos olhos do menino e após ele insistir, o encontro com o seu
objeto de desejo se concretizou. Seu pai tomou o instrumento e começou a lhe dar suas
primeiras instruções. Bellinati relata20 que, devido a grande repercussão da bossa nova
nos anos de 1960, o violão passou a ganhar notoriedade e, entre algumas famílias,
estava muito em voga o hábito de se presentear com o instrumento, o que fez com que
sua irmã, um ano mais nova, ganhasse um violão e começasse a ter aulas. O fato
instigaria a uma saudável disputa entre irmãos acompanhada de algumas discussões a
fim de decidir sobre quem entendia mais do assunto. Na tentativa de apaziguamento,
sua mãe sugeriu que se ele realmente tivesse o interesse pela música que começasse a
estudar. O menino não titubeou confirmando seu desejo e, desta forma, sua mãe o
colocou para aprender música.
Seu desenvolvimento no instrumento foi demonstrando ser cada vez mais
satisfatório. No ano de 1967, Bellinati prestou exame de admissão para o Conservatório
Dramático e Musical de São Paulo e no ano seguinte ingressou na classe do professor
20
Entrevista concedida em 26/09/2013 em sua residência na cidade de São Paulo.
42
uruguaio Isaias Sávio21 (1900 – 1977). Segundo Bellinati, Além do estudo pautado
pelos fundamentos da técnica e execução violonísticas presentes no próprio método de
Sávio, o conteúdo abordado nas aulas do mestre uruguaio era baseado no aprendizado
de inúmeras peças do repertório canônico internacional e nacional do instrumento.
Dentre as obras estudadas o violonista destaca a dos compositores como Girolamo
Frescobaldi (1583 – 1643), Domenico Scarlatti (1865 - 1757), Isaac Albéniz (1860 –
1909), Enrique Granados (1867 — 1916), Augustín Barrios (1885 – 1944), Heitor VillaLobos (1887 – 1959), Federico Moreno Torroba (1891 – 1982) e muito do repertório
popularizado pelo intérprete espanhol Andrés Segóvia (1893 – 1987). O mestre
Uruguaio admirava a forma como ele tocava a sua peça Cenas Brasileiras e, antevendo
a vocação do aluno para interpretação da música brasileira, sugeriu que se dedicasse a
outros compositores brasileiros como Valdemar Henrique, Hekel Tavares e que
executasse alguns arranjos de música popular e folclórica.
Sua trajetória e aperfeiçoamento como intérprete do repertório popular, se deu
paralelamente ao estudo formal no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, e
se confunde com o início de sua atividade profissional de tocar em conjunto de bailes e
acompanhar cantores ao violão e guitarra desde os 15 anos. Ao ser contratado por um
grupo de baile de maior projeção ele entrou em contato com o repertório jazzístico que
o levou a buscar referências por meio da audição dos discos do Guitarrista Wes
Montgomery e, de forma autodidata, a estudar os livros da prestigiada faculdade de
música norte americana Berklee College of Music22, que lhe proporcionaram uma base
teórica e técnica para a improvisação guitarrística. A partir do seguinte relato de
Bellinati, observa-se que, até então, para ele havia uma diferenciação entre as formas de
abordar os universos da música de concerto e popular.
Durante um bom tempo em minha vida as coisas andaram separadas. Até a
posição de segurar o violão era diferente para tocar uma música ou para tocar
outra. Era uma atitude diferente, a hora de estudar as músicas, para apresentar
para o Sávio por exemplo, era uma seriedade e o popular não tinha esta
mesma seriedade. Era uma coisa separada mesmo, eram dois universos e dois
instrumentos diferentes. Mas isso lá pra frente passou a se juntar na minha
vida (ZANON, 2007b).
21
Violonista, compositor e pedagogo uruguaio que se radicou na cidade de São Paulo. Em sua notória
carreira pedagógica foi professor de importantes violonistas do cenário brasileiro como Antônio Carlos
Barbosa Lima, Maria Lívia São Marcos, Marco Pereira, Henrique Pinto e outros.
22
Bellinati parece referir-se às publicações do Método moderno Para Guitarra do professor William
Leavitt.
43
Outra atividade profissional exercida nesta época que contribuiu para o seu
contato com a diversidade do folclore das mais variadas localidades do país foi o
trabalho como músico de um navio. Assim teve a oportunidade de conhecer boa parte
do litoral brasileiro das regiões norte e nordeste do país. Durante todo percurso da
viagem, em média de 26 dias, a tripulação ficava três dias nos portos de cidades como
Belém, Recife, Fortaleza, Salvador e outras mais. Nas viagens procurava inteirar-se dos
principais pontos turísticos e teatros, além de presenciar vários grupos folclóricos
típicos destas cidades que se apresentavam aos turistas.
Mesmo tendo se formado no conservatório, decidiu que seria essencial dar
continuidade aos seus estudos e buscar aperfeiçoamento musical no exterior e, em 1975,
foi à Europa em busca de um bom instrumento e de uma escola de música para estudar.
Tendo passado por várias cidades chega a Genebra, na Suíça, e conhece a violonista
Maria Lívia São Marcos, que lhe concede uma bolsa de estudos no Conservatório da
cidade onde consolidou sua formação musical e expandiu seus conhecimentos
estudando harmonia, orquestração, composição, acústica e música antiga. Neste período
exerceu atividades didáticas no Conservatório de Lausanne. Bellinati estudou ainda com
Oscar Cáceres e Abel Carlevaro (1976) na França, onde participou do Festival
International d'Annecy e do IV ème Rencontre Internationale de La Guitare em Castres.
É na Suíça que a sua “veia composicional” aflora e concebe suas primeiras obras
para conjunto instrumental típico de jazz, inspiradas na temática musical popular
brasileira. Ao perceber a enorme receptividade com que publico estrangeiro tratou suas
primeiras obras ele, compreendeu que tinha ali algo especial a que se deveria se dedicar
com afinco.
Bellinati afirma ter ido à Suíça com objetivo de formar-se um concertista e lá
começou a realizar apresentações de violão solo. O conservatório em que estudava
adotava uma abordagem musical completamente voltada à interpretação da música
tradicional de concerto europeia e, curiosamente, neste período resolveu adquirir uma
guitarra elétrica e um amplificador. Mais tarde compreendeu que deveria direcionar sua
carreira para as atividades de compositor e violonista/guitarrista de música popular.
Quando voltou ao Brasil, em 1981, deu inicio à pesquisa sobre a obra de outro
compositor paulistano com o qual se identificava, Aníbal Augusto Sardinha, o Garoto23.
23
Não se pode deixar de mencionar a significativa contribuição de cunho musicológico de Paulo Bellinati
a historiografia do violão brasileiro pelo trabalho de pesquisa, transcrição, publicação e gravação da obra
44
Na obra de Garoto, ele percebeu que teria que unir suas experiências musicais mais
diversas para lidar com um tipo de repertório de música popular de maiores
sofisticações e toda sua a experiência musical adquirida teria que vir à tona. Neste
mesmo ano passou a integrar o conjunto instrumental Pau Brasil, do qual é membro até
os dias atuais, tocando ao lado de músicos como o maestro Nelson Ayres, o produtor e
contrabaixista Rodolfo Stroeter e o saxofonista e regente Roberto Sion. Gravou dez
discos com o grupo Pau Brasil, outra dezena de discos solo, e mais de uma centena de
participações em gravações de diversos artistas brasileiros e estrangeiros.
Trabalhou ao lado de importantes nomes da música como Steve Swallow, Carla
Bley, Renaud Garcia-Fons, Jean-Louis Matinier, Lucilla Galeazzi, Antonio Placer, Edu
Lobo, Chico Buarque, Mônica Salmaso, MPB-4, Naná Vasconcelos, César Camargo
Mariano, João Bosco, Leila Pinheiro e Gal Costa.
Seus arranjos e composições já foram prestigiados pelos maiores violonistas da
atualidade como João Luiz e Douglas Lora (Brazil Guitar Duo), John Williams,
Shinichi Fukuda, Fábio Zanon, Los Angeles Guitar Quartet, Quaternaglia, Cristina
Azuma, Carlos Barbosa Lima, Badi Assad, Duo Assad, entre outros. Sua obra se
destaca pela intensa relação com a música popular brasileira, como temas que utilizam
matrizes como samba, choro, valsa, tango, maracatu, baião, toada, seresta, lundu,
modinha, frevo, embolada, etc. outra marca de seu perfil é a diversidade de
instrumentos de corda para os quais escreve e toca além do violão (solo, duo, trio,
quarteto) como viola caipira, cavaquinho, guitarra e contrabaixo.
Entre os projetos realizados nos anos de 2007-2008 estão o “Paulo Bellinati
Trio”, um trio de violões com Israel de Almeida - 7 cordas- e Daniel Murray - violão de
6 cordas, e o encontro do grupo Pau Brasil com a cantora Mônica Salmaso em tournée
nacional durante todo o ano de 2008 – (o cd e o DVD Noites de Gala, Samba na Rua,
lançados em 2007 e 2008 respectivamente pela gravadora Biscoito Fino). Compôs três
movimentos do Concerto Antropofágico, obra encomendada pela Orquestra Sinfônica
do Estado de São Paulo (OSESP) ao grupo Pau Brasil, que na sua primeira audição em
18 de dezembro de 2008 na Sala São Paulo, a OSESP teve como solista o próprio Grupo
Pau Brasil e a participação especial da cantora Mônica Salmaso.
de Garoto. Que depois de aproximadamente uma década de pesquisa, lançaria o disco e publicações de
um livro de partituras.
45
Dentre os principais lançamentos de sua prolífica discografia destacam-se os
títulos:
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The Guitar Works of Garoto (GSP, 1991)
Guitares du Brésil (GHA, 1991)
Serenata (GSP,1993)
Afro-sambas, com a cantora Mônica Salmaso (GSP, 1997)
Lira Brasileira (GSP, 1997)
Brazilian Guitar Virtuoso, vídeo/DVD (Mel Bay, 1998)
Paulo Bellinati plays Antonio Carlos Jobim DVD (May Bay, 2003)
New Choros of Brazil
2005 (Biscoito Fino- 2005)
A Felicidade (GSP, 2008)
Virado (2009)
Pingue – Pongue (Delira Música, 2011)
Flor do Jequi (Natura Musical, 2012)
Como produtor, arranjador e diretor musical Bellinati participou dos seguintes
trabalhos:
Título
Artista
Atividade
Cantando Caetano (Sony
Cantora Vânia Bastos.
Produção, arranjos
Music, 1991)
e execução
New Choros of Brazil (GHA,
Duo com o clarinetista americano Harvey
Produção, arranjos
1991)
Wainapel
e execução
O Sorriso do Gato de Alice
Cantora Gal Costa
Arranjos e
(BMG,1993)
Afro-sambas (GSP,1997)
execução
Duo com a cantora Mônica Salmaso
Produção, arranjos
e execução
Contatos (GSP-1998)
Violonista Cristina Azuma
Produção
Virado (Independente-2009)
Duo com o violonista Weber Lopes Bastos
Produção, arranjos
e execução
Tom Jobim para violão solo
violonista Daniel Murray
Produção
Kanimambo (Delira Música-
CD autoral do compositor/violonista
Produção
2011)
Emiliano Castro
Pingue-Pongue (Delira
Duo com Cristina Azuma
(Delira Música-2010)
Música-2012)
Cordas Brasileiras (Delira
Produção, arranjos
e execução
Quarteto TAU de violões e o violeiro
Produção
46
Música-2012)
Fernando Caselato.
Tejo-Tietê (Delira Música-
Cd da cantora portuguesa Suzana
2013)
Travassos e do violonista Chico Saraiva
Produção
Quadro 1. Bellinati arranjador, produtor e diretor musical.
Como se pode notar, Paulo Bellinati é um artista de reconhecida importância no
cenário da música brasileira e o que foi aqui apresentado se trata apenas de uma parcela
de seu trabalho, uma vez que ele se encontra em plena atividade musical.
2.2 - Afro-sambas - Os discos
No que diz respeito ao contexto histórico no qual o disco se insere, França
(2007, p. 14) contextualiza esta fase da música popular brasileira apontando, a partir do
final da década de 1950, uma tendência à valorização da cultura negra. De acordo com o
autor, esta tendência remonta à estreia do espetáculo Orfeu da Conceição no Teatro
Municipal do Rio de Janeiro em 25 de Setembro de 1956. A “tragédia carioca” foi
concebida por Vinicius de Moraes e consiste em uma adaptação do mito Grego de Orfeu
e Eurídice à realidade das favelas do Rio de Janeiro. A peça é um marco inicial do
encontro artístico do autor com o músico Antônio Carlos Jobim (1927 -1994) que
participou como diretor musical e arranjador do espetáculo. Mais tarde ela servirá de
inspiração para o filme do francês Marcel Camus chamado Orfeu Negro (1959) que
ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1959 e o Oscar de melhor filme
estrangeiro em Hollywood. Também demonstrando engajamento com o universo de
valorização da temática afro-brasileira o músico Moacir Santos (1924 - 2006) lançou a
série de dez composições sob o título de Coisas (Forma, 1965) pela gravadora que um
ano depois lançaria o disco de Baden e Vinicius.
A bossa nova já eclodira em 1958 com o lançamento do Lp da cantora Elizeth
Cardoso Canção do Amor Demais com temas da dupla Tom Jobim e Vinicius de
Moraes. Trata-se de um álbum exclusivamente com canções da parceria onde pela
primeira vez aparece a “batida” do violão de João Gilberto, um dos elementos
identitários do movimento que influenciou toda uma geração de músicos e
compositores. Apesar de não estar diretamente relacionado aos principais expoentes do
movimento, elementos da estética bossa novista estão presentes em composições e no
estilo interpretativo de Baden Powell.
47
Há algumas controvérsias a respeito de qual teria sido o primeiro encontro entre
Moraes e Powell, mas o essencial é que, tendo ocorrido, proporcionou uma das
parcerias mais bem sucedidas da canção popular brasileira. Somente alguém que
acreditasse na vida como “a arte do encontro” poderia vivenciar por intermédio da
música a aproximação de duas pessoas com origens sociais e culturais tão distintas.
Vinicius de Moraes (1913–1980) era poeta, escritor e compositor. Já bacharel em
direito, estudou língua e literatura inglesas em Oxford. Trabalhou como jornalista e
crítico de cinema e na época de seu encontro com o violonista ocupava o cargo de
diplomata junto ao Itamaraty. Uma trajetória de vida bem distante de Baden Powell, um
jovem músico suburbano oriundo de uma classe socioeconômica inferior.
Não eram desconhecidos um para o outro. Sylvinha Telles já vinha há tempos
falando de Baden para Vinicius e de Vinicius para Baden. [..] O Poetinha,
cheio de talento para perceber o dos outros, se encantou com o violonista de
quem já conhecia o Samba Triste com Billy Blanco, assim como a reputação
de cobra no violão (DREYFUS, 1999, p.75).
A partir deste momento, o violonista passou a frequentar o amplo e belo
apartamento do parque Guinle, localizado no bairro de Laranjeiras, Zona Sul da cidade
do Rio de Janeiro, onde Vinicius de Moraes vivia com Lucinha Proença. A parceria
musical abriu as portas para uma grande amizade que também tinha por enlace o forte
gosto pela boemia. As divergências também cercam os relatos sobre quando teriam sido
compostas as canções do disco Afro-sambas (1966). No texto da contracapa Vinicius
apresenta o seguinte relato:
Quando há quatro anos atrás, Baden Powell e eu começamos a compor pra
valer (ficamos praticamente sem sair durante três meses. "Samba em
Prelúdio", "Só por amor", "Bom dia, Amigo", "Labareda" e "O Astronauta"
são dessa safra), uma das coisas que mais o fascinava era ouvir um disco que
meu amigo Carlos Coqueijo me trouxera da Bahia, uma gravação ao vivo de
sambas de roda e cultos de candomblé com várias exibições de berimbau em
suas diversas modalidades rítmicas. Nesse meio tempo, Baden deu um pulo a
Salvador, onde teve a oportunidade de ver e ouvir candomblé e conviver com
gente "por dentro" do assunto. A Bahia fez-lhe impressão enorme. Foi
quando saiu nosso samba "Berimbau", que só por ser demais conhecido não
consta desta série, embora a ela pertença, e o "Samba da Benção", de balanço
nitidamente baiano. (MORAES, 1966)
Com relação à composição dos Afro-sambas , a jornalista francesa Dominique
Dreyfus confirma na biografia escrita sobre o violonista o impacto que o LP
presenteado por Coqueijo teve sobre as composições da dupla no período relatado por
Vinicius.
48
Nesse mesmo período em que Baden ficou no parque Guinle, um grande
amigo de Vinicius, o baiano Carlos Torrão, ministro do tribunal superior do
Trabalho e grande aficionado de música, que fazia letras sob o pseudônimo
de Coqueijo, presenteou o poeta com um disco folclórico, no qual havia
pontos de candomblé, rodas- de- samba, toques de capoeira. Para Vinicius o
disco foi uma verdadeira revelação. Fascinado ele descobriu ali uma fase da
expressão musical brasileira que jamais tinha se aproximado. Em
compensação, para Baden, a cultura afro-brasileira não era totalmente
desconhecida. Desde a infância, ele tinha uma certa familiaridade com a
macumba, ainda que de longe. Nunca frequentara os terreiros nem seguira o
culto.[..] contudo, ao evidenciar os ritmos, os sons, os instrumentos da cultura
afro-brasileira fora de seu contexto místico, o disco enviado por coqueijo
enfatizou na consciência de Baden o valor puramente musical, rítmico e
melódico e dessa expressão, chamando-lhe sem dúvida a atenção.
Entusiasmados, os parceiros interrompiam o trabalho para escutar, reescutar
o disco que foi a pedra de toque dos Afro-sambas compostos entre 1962 e
1965. (DREYFUS, 1999, p. 82 - 83)
Com relação à viagem de Baden à Bahia, Dreyfus afirma que ao ser apresentado
ao capoeirista Canjiquinha, o músico teve a oportunidade de se aprofundar na cultura
afro-brasileira. “Canjiquinha o levou aos terreiros de candomblé e às rodas de capoeira
sem que se tratasse de uma “viagem de estudos” ou de uma “pesquisa”, como reza a
lenda. A jornalista Dreyfus ressalta que embora o violonista tenha adquirido um grande
conhecimento do candomblé seu maior deleite tenha ficado por conta do lado musical
das manifestações que presenciara. Desse modo o aprendizado esboçado pela audição
do disco enviado por Coqueijo adquire maior consistência ao assimilar os elementos
musicais afro-baianos.
Castro (1990, p. 306) em sua obra a respeito da história da bossa nova, conta que
o ciclo de composições fora resultado do “retiro etílico-musical” de quase noventa dias
que Baden e Vinicius passaram trancados no parque Guinle do qual sairiam com 25
canções e uma nova carreira pela frente. De acordo com o mesmo “Baden conseguiu dar
um clima tão baiano aos Afro-sambas sem nunca ter indo a Bahia”. Sendo assim a
inspiração seria fruto unicamente do disco de folclore baiano que o poeta recebera de
seu amigo Carlos Coqueijo de onde constavam sambas-de-roda, pontos de candomblé e
partes de berimbau. Para ele, Baden só iria à Bahia, pra valer, muito tempo depois em
1968, quando passaria seis meses por lá e voltaria com “Lapinha”.24
Outro acontecimento que teria contribuído para a inspiração do ciclo de
composições foram as aulas com o compositor Moacir Santos.
24
De acordo com Castro (1990, p. 306), daquele “retiro etílico-musical” nasceram, entre outras,
Consolação, Samba em prelúdio, Só por amor, Labareda, O Astronauta, Samba do Veloso, em
homenagem ao bar da rua Montenegro, Berimbau e quase todos os afro-sambas, Inclusive os “ Cantos”:
o de Ossanha, o de Xangô, e o de Iemanjá.
49
Eu fazia umas composições para o maestro ler. E eu percebi que os cantos
africanos tinham muitíssima semelhança com os cantos gregorianos. Para
mim, são iguais. Eu dei então uma levantada num tipo de samba mais negro,
que tem um lamento próximo do dos cantos africanos, que parecem com os
cantos gregorianos. Nesse trabalho com Moacyr Santos, eu compus uns
temas partindo dessas semelhanças entre os modos litúrgicos e o africano, e
aproveitei alguns para a parceria com Vinicius. (POWELL apud DREYFUS
1999, p. 151)
Em outro momento, em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo, Baden
Powell relatou que à época realizava exercícios de composição tendo como base os
“modos gregorianos, os modos litúrgicos”. Os mesmos o teriam inspirado, porém, ele
diz ter sido orientado musicalmente pelo maestro Guerra Peixe em vez de Moacir
Santos (Folha de São Paulo, Ilustrada, 1999, p. 4). A questão do emprego deliberado do
modalismo se mostra como uma referência direta a música sacra afro-baiana que,
juntamente com a seção rítmica dos arranjos, constituem os aspectos musicais
idiossincráticos das canções.
O LP antológico intitulado Os Afro-sambas (FORMA, 1966) foi gravado no
período de 3 a 6 de Janeiro do ano de 1966 na cidade do Rio de Janeiro. Criada nos anos
1960 pelo jovem produtor Roberto Quartin, a gravadora Forma já havia lançado
discos representativos como Inútil paisagem (1964), o primeiro da carreira de Eumir
Deodato, Quarteto em Cy (1964), Coisas (1965) de Moacir Santos, Bossa 3 em Forma
(1965); entre outros. Todas as oito faixas são de autoria de Baden Powell e Vinicius de
Moraes e se dispõem na seguinte ordem:
1. Canto de Ossanha
2. Canto de Xangô
3. Bocoché
4. Canto de Iemanjá
5. Tempo de amor
6. Canto do Caboclo Pedra-Preta
7. Tristeza e solidão
8. Lamento de Exu
Ao observar o conjunto de composições o poeta as denominou de afro-sambas.
Moraes (2006) afirma que por serem demasiadamente conhecidas as canções Berimbau
e Samba da Benção não entraram na série que constituiu o disco, embora tenham a
estrutura e temática que a ela pertença. Para Powell as composições se tratariam de uma
50
vertente estilística dentro do samba assim como o “samba lento, o samba canção, o
samba de carnaval, o samba-choro, o samba-lamento. Esse último ligado ao afro-samba,
que tem aquela escuridão do afro, o lamento. Ficou esse estigma, mas nossos afrosambas não inventaram nada.” (Folha de São Paulo, Ilustrada 1999, p.14). Outro
trabalho que também contribui para consolidar o estilo foi o LP Coisas (1965) de
Moacir Santos no qual relata: “O afro-samba nasceu de mim e Baden, com aquele
modalismo todo. Desde os anos 40 eu fazia música assim” (SANTOS apud Folha,
Ilustrada, 1992, p. 8).
Há outras composições que por suas características musicais ou por abordarem a
temática do candomblé em suas letras poderíamos chamá-las de Afro-sambas como
Sorongaio (Baden Powell), Consolação (Baden Powell/Vinicius de Moraes) e
Candomblé (Baden Powell), além de A Benção Bahia, Tatamirô e Canto de Oxum da
dupla Vinicius/Toquinho, Ginga Muxique (Maurício Tapajós/ Hermínio Bello de
Carvalho), entre outras.
No texto escrito na contracapa o poeta declara que Baden Powell realizou um
novo sincretismo que o fez “carioquizar” dentro do espírito do samba moderno,
o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal.
Os arranjos e regência foram realizados pelo maestro César Guerra-Peixe
(1914-1993)
que
forneceu
uma
vestimenta
à
seção
rítmica
que
indubitavelmente remete ao ambiente dos terreiros pretendido pelos autores.
Junto a instrumentos de uso mais consagrado como o Sax, Flauta, violão,
contrabaixo e bateria os arranjos exploram de forma bastante densa o uso de
ataques, bongôs, pandeiro, agogô e afoxé. Ao vocal temos Vinicius de Moraes,
a participação do grupo feminino Quarteto em Cy e um Coro misto.
As fontes que serviram de inspiração poética para a construção das letras são
baseadas na tradição mitológica do candomblé. Para os povos africanos iorubás e os
seguidores de sua religião nas Américas, os orixás são deuses que receberam a
incumbência de criar e governar o mundo ficando cada um responsável por algum
aspecto da natureza e certas dimensões da vida em sociedade e da condição humana
(PRANDI, 2001, p. 20). Os ritmos são também chamados de “pontos”; as cantigas e as
danças desses rituais representam um meio de chamada e comunicação com as
divindades religiosas. (KUEHN, 2002, p. 3).
Para ilustrar o aspecto literário tão peculiar e a alusão ao universo mitológico do
candomblé observaremos a letra de Canto de Ossanha. Severiano e Mello (1998, p. 98)
51
colocam a canção como uma das melhores e mais conhecidas dos afro-sambas devendo
muito de seu sucesso a interpretação empolgante de Elis Regina nas diversas
performances que o apresentou no programa musical da TV Record chamado O Fino da
Bossa. Ao se referir à canção na contracapa do LP o Poeta a exalta ao dizer que, nela,
Baden atingiu o “máximo de profundidade em sua carreira de compositor.” Na canção
observa-se a alusão ao Orixá Ossain, conhecido por sua relação com as plantas, as matas
e florestas, as ervas medicinais e o curandeirismo.
O homem que diz “dou”, não dá
Porque quem dá mesmo não diz
O homem que diz “vou”, não vai
Porque quando foi, já não quis
O homem que diz “sou”, não é
Porque quem é mesmo é “não sou”
O homem que diz tô, não tá
Porque ninguém tá quando quer
Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha traidor
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, não vou / Vai, vai, vai, não vou
Eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Amigo senhor Saravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá
Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu orixá
Amor só é bom se doer
Vai, vai, vai, vai, amar / Vai, vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar / Vai, vai, vai, vai, dizer
Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Kuehn (2002) aponta para o conteúdo dialético dos primeiros versos criando um
movimento pendular baseado nas ações entre o “dizer” e o “fazer” que, por sua vez, é
representado no jogo musical responsório entre o canto do solista e o coro do Quarteto
em Cy. Na obra Mitologia dos Orixás, Prandi (2006) reuniu uma série de mitos do
candomblé entre os quais um nos parece estar em consonância com os atributos do orixá
apresentados pelo Poeta em Canto de Ossanha.
52
Um rei decidiu casar a sua filha mais velha. Dá-la-ia em casamento ao
pretendente que adivinhasse o nome de suas três filhas. Ossaim aceitou o
desafio. À tarde, Ossaim saiu sorrateiro por trás do palácio. Subiu no pé de
obi e se escondeu entre seus galhos. Quando as três princesinhas saíram para
brincar, foram surpreendidas por um canto que vinha daquela árvore. Era o
canto de pássaro irresistível, de um passarinho das matas de Ossaim. Mas o
canto era de Ossaim, imitando o pássaro. O passarinho brincou com as três
princesas e conseguiu saber o nome delas: Aio Delê, Omi Delê e Onã Iná,
eram estes os nomes das filhas do rei. Sua esperteza havia dado certo. No dia
seguinte Ossaim foi ao rei e declamou a ele o nome das princesas. Ossaim,
então, casou-se com a mais velha. Sua esperteza havia dado certo. Ossaim
desde então é identificado com o pássaro. (PRANDI, Op. cit., p.156).
Conforme observado, o mito ressalta a habilidade musical expressa no canto
persuasivo e realista de Ossaim ao imitar o pássaro e sobretudo o seu caráter astuto ao
preparar a artimanha que enganaria as princesas remetendo diretamente aos versos:
“Coitado do homem que cai/ No canto de Ossanha traidor”; e posteriormente em: “Se é
canto de Ossanha, não vá /Que muito vai se arrepender”
Outra constante não menos evidente e já sublinhado por Baden anteriormente é a
relação dos Afro-sambas com temática que envolve os sentimentos da dor, lamento e o
sofrer até mesmo em meio ao amor como apresentado nos dizeres dos seguintes versos:
“Mas amar é sofrer / Mas amar é morrer de dor” (Canto de Xangô), “ O tempo de amor
é tempo de dor” (Tempo de Amor) ou ainda nos versos que expressam o lamento
causado pelo canto sedutor e hipnótico da deusa que atraia suas vítimas para o mar
“Iemanjá, Iemanjá, Iemanjá é muita tristeza que vem” (Canto de Iemanjá).
No que tange aos aspectos interpretativos do disco, pode-se dizer que o ideal
estético almejado por Powell e Moraes buscou padrões que remetessem a uma
rusticidade e simplicidade da música típica dos terreiros de candomblé, tornando-o
assim um trabalho idiossincrático do ponto de vista do acabamento e revestimento
sonoro. Ao observarmos um fragmento do texto da contracapa do LP vemos que o poeta
deixa clara a sua suposta intenção de produzir um trabalho com propósitos meramente
“artísticas” e isento de interesses “comerciais”.
Quanto Roberto Quartin nos procurou, interessado em gravar esta série,
combinamos com o jovem e talentoso produtor que o disco seria feito com
um máximo de liberdade criadora e um mínimo de interesse comercial. Não
nos interessava fazer um disco "bem feito" do ponto de vista artesanal, mas
sim espontâneo, buscando uma transmissão simples do queriam nossos
sambas dizer. Gravaríamos, inclusive, faixas mais longas do que gostam os
homens de rádio e, consequentemente, a maior parte dos nossos intérpretes. E
embora não sejamos cantores no sentido profissional da palavra, preferimos
gravá-las nós mesmos a entregá-las a cantores e cantoras que realmente
53
distorcem a melodia e o ritmo das canções em benefício de seu modo
comercial de cantar ou de suas deformações profissionais adquiridas no
sucesso efêmero junto a um público menos exigente. (MORAES, 1966)
Nota-se um certo radicalismo quanto à produção do trabalho, e de acordo com a
dupla para “desprofissionalizar ao máximo” optaram pela escolha de cantores amadores,
com exceção do quarteto em Cy e da cantora Dulce Nunes. O coro misto também ficou
conhecido como “o coro da amizade”, formado com as vozes de Eliana Sabino (filha de
Fernando Sabino), Betty Faria (dançarina e atriz), Teresa Drumond, Nelita (mulher de
Vinicius), o psiquiatra Dr. César Augusto Parga Rodrigues, Oto Gonçalvez filho e
Dulce Nunes.
Em uma crítica publicada pelo jornal Correio da Manhã no ano de lançamento
do disco observa-se que apesar de elogiar o trabalho em seus aspectos gerais o colunista
João Maurício põe em relevo as questões interpretativas fazendo ressalvas
principalmente quanto à falta de profissionalismo do “coro da amizade”.
A ideia de levar ao disco uma seleção de Afro-sambas de Baden e Vinicius
foi muito boa. A execução, porém uma lástima. Vinicius na contracapa
escreve que “não interessava fazer um disco bem feito do ponto de vista
artesanal, mas sim espontâneo, buscando a transmissão simples do que
queriam nossos sambas dizer”. O fato de ser “espontâneo” não obriga a ser
mal feito. A impressão que nos dá é que o disco que era a princípio para ser
uma coisa séria, foi levado na brincadeira. O “coro da amizade” que Vinicius
organizou não tem qualidades para ser gravado, com exceção do Quarteto em
Cy e Dulce Nunes, os amigos do poeta podem ser de boa amizade, mas em
matéria de canto deixam muito a desejar.
[...] É uma pena que músicas de boa qualidade não tenham tido uma
interpretação à altura. Não há de ser dessa maneira que retornaremos a
mediocridade musical em que estamos atolando. Procuremos fazer a coisa o
mais perfeito possível, com da vez em que o Poeta, Tom e Elizete deram o
impulso inicial na reforma da nossa música popular, com o LP Canção do
Amor Demais (CORREIO DA MANHÃ, 4º CADERNO, 1966, p.5).
2.2.2 A regravação de Baden Powell - Afro- sambas (1990)
Ao que parece, o resultado sonoro não agradou a Baden Powell e o fez realizar
uma regravação do disco em 1990, dez anos após a morte de Vinicius de Moraes. Desta
vez o violonista assumiu o vocal, regência, arranjos e ainda participou da seção rítmica
tocando percussão. Como na versão anterior, o Quarteto em Cy participou deste projeto.
Em Novembro, Baden entra no estúdio Sinth, no Rio de Janeiro e grava os
Afro-sambas. Punha um ponto final em 24 horas de frustação: “gravação feita
em 1966 era de péssima qualidade sonora, pois na época só existiam dois
canais estéreo. Além do mais, no dia em que gravamos teve um tremendo
temporal, a chuva inundou o estúdio. Os músicos tocavam sentados em
54
caixas de cerveja e uísque que nós tínhamos bebido. Estávamos bastante
inspirados, mas também muito bêbados. Pouco profissionais, a bem dizer.
Mas a gravação tinha que sair naquele dia. Todo mundo participou do disco,
esposas, namoradas, amigos.” (DREYFUS, 1999, p 322)
Quando o Cd saiu em novembro de 1990, apenas três mil cópias foram lançadas
em um formato de disco comemorativo. Seis meses mais tarde o disco foi
comercializado na Europa e no Japão pelo selo JSL. A nova versão agora contava com
11 faixas. Powell incluiu Labareda e duas faixas instrumentais: A Abertura, uma
espécie de medley onde violonista incorpora temas de vários afro-sambas como Canto
de Iemanjá, Tristeza e Solidão, Berimbau, Consolação, e "Variações sobre Berimbau"
somada as oito faixas do antigo LP.
2.2.3 A releitura-Afro-sambas (1997)
O referido Cd aparece como fruto de uma parceria entre a cantora e o violonista
Bellinati. Seu maior contraste em relação aos anteriores se refere ao caráter camerístico
caracterizado principalmente pela presença de uma formação instrumental concisa, voz
e violão, e o tratamento técnico interpretativo que é dado às canções. Os parâmetros
como agôgica, dinâmica, e timbre são incorporados a estrutura do arranjo sendo
conscientemente exigidos pela performance. Nas práticas musicais desta natureza a
importância da escolha dos elementos da parceria é fundamental, pois na medida em
que dividem a produção do disco, longos períodos de ensaio, gravação, recitais, e outras
questões musicais a observação da compatibilidade do perfil profissional é
imprescindível para que o projeto prospere até o fim. Assim sendo, uma breve descrição
da carreira da cantora intérprete deste álbum se mostra enriquecedora.
A cantora paulistana Mônica Salmaso (1971 -)25 vem cada vez mais adquirindo
prestígio e admiração junto aos compositores, público e crítica especializada desde
quando começou a cantar aos 18 anos na peça O concílio do amor dirigida por Gabriel
Villela. No mesmo período cantava em bares até ser “descoberta” pelo Compositor
paulista Eduardo Gudin, que a convidou para participar do seu disco Noticias dum
Brasil e mais tarde para, juntamente com Paulo Bellinati, Lançarem no ano de 1997 o
primeiro disco solo da cantora, Afro-sambas. Aliado ao lançamento deste álbum, a
cantora começou a ganhar maior projeção e visibilidade com a indicação para o Prêmio
25
As informações sobre a cantora foram baseadas no conteúdo exposto em seu site pessoal disponível
em: <http://www.monicasalmaso.mus.br/new/Paginas/PORTUGUES%20anterior.asp>, acessado em
31/09/2013.
55
Sharp – 1997 como revelação na categoria MPB e com a vitória do premio Visa MPB
edição vocal. A discografia da cantora conta com sete trabalhos: Afro-sambas (1997)
Trampolim (1998), Voadeira (1999), Iaiá (2004), Noites de Gala, Samba na Rua 2007, Nem Um ai (2008), Noites de Gala - ao vivo (2009), Alma Lírica Brasileira
(2011), trabalho na formação trio em conjunto com Nelson Ayres e Teco Cardoso.
Uma característica digna de nota é que toda a discografia da cantora é pautada
pela ausência de canções estrangeiras visitando, até então, exclusivamente compositores
brasileiros das mais diversas gerações desde o início do século XX. Chico Buarque,
Baden Powell, Dorival Caymmi, Maurício Carrilho, Paulo César Pinheiro, Jair do
Cavaquinho, Xangô da Mangueira, Zagaia, Silvio Caldas, Carusinho, Rodolfo Stroeter,
Joyce, Vanessa da Mata, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, José Miguel Wisnik, Tom
Zé, Heitor Villa-Lobos figuram entre os nomes gravados por ela. O ecletismo estilístico
do repertório de seus discos abarcou até mesmo canções do domínio público como
Canto dos Escravos, O minha Gente e Determinei.26
A maneira particular como se apropria das canções recriando o arranjo com
modernidade e sofisticação é uma marca evidente em todos os seus trabalhos. Muitas
vezes a concepção de arranjo adotada coloca sua voz dentro de uma perspectiva
camerística onde, mesmo sendo a interprete da letra da canção, ela não está sempre
como única protagonista, constituindo uma textura onde os instrumentos não estão
exclusivamente com a função de dar-lhe suporte, mas de diálogo. O consagrado suporte
rítmico-harmônico dado pelo violão ou piano pode ser substituído por texturas em que a
voz realiza contrapontos com outro instrumento melódico ou de percussão, criando um
ambiente sonoro rarefeito quase à capella. Pode-se dizer que uma característica de sua
discografia quanto à instrumentação é a utilização de diversas e variadas formas de
exploração de texturas e técnicas de execução. Nota-se desde formações mais
convencionais ao cancioneiro popular como os duos com o piano e violão, este último
presente em todo o seu disco inaugural, ou combinações mais ousadas como o quinteto
de clarinetas presente na gravação da canção Cidade Lagoa (Sebastião Fonseca/Cícero
Nunes) onde a primeira exposição da canção é marcada unicamente pelo contraponto
entre a voz e uma clarineta. Quanto à exploração variada de técnicas de execução
instrumental aplicados em seus arranjos poderíamos exemplificar com o arranjo de
26
As três faixa são parte do Lp Trampolim (2008). Em Iaiá, Mônica rende homenagem a Clementina de
Jesus, com a canção “Moro na Roça”.
56
Assum Branco27 (José Miguel Wisnik) onde a canto quase à capela do início da canção é
acompanhado pela percussão feita ao violão por Bellinati juntamente com notas pedais e
contracantos realizados pelo violoncelo e o contrabaixo acústico tocado com arco.
A proposta dos arranjos somada à alta qualidade e o apuro de sua técnica vocal
faz com que muitos críticos coloquem seu trabalho um pouco distante do que
poderíamos chamar de “popular”, ocupando uma zona fronteiriça e realizando um
diálogo com o “erudito”. Esse hibridismo pode ser notado já na manchete Mônica leva
Mpb ao erudito matéria publicada no Jornal do Estado - Curitiba28. Observa-se que, ao
comentar sobre o repertório do então lançamento do disco, o autor deixa transparecer
sua admiração pela cantora e admite a importância de seu trabalho diferenciado.
É um trabalho difícil, uma vez que a música brasileira vem sempre numa
obrigatoriedade insana, associada à indolência, à malemolência, ao deixa
disso. Pode ser, mas por trás dessas coisas há toda uma complexidade
rítmica, harmônica e dos arranjos em geral. Por isso mesmo as
engraçadíssimas Cidade Lagoa, de Sebastião Fonseca e Cícero Nunes, e
cabrochinha, de Mauricio Carrilho e Paulo César Pinheiro, são cantadas com
um cuidado extremamente estudado, como quem bota os pingos nos is. Por
isso, a bela Vingança, Francisco Mattoso e José Maria de Abreu, é
praticamente uma ópera. Por isso Sinhazinha, de Chico Buarque, Com um
piano completamente dissonante e moderno. Porque Mônica Salmaso, neste
Iaiá faz um trabalho de formiguinha, tentando sozinha elevar a música
brasileira ao patamar erudito do qual, desde a década de 90, quiçá de antes,
vem despencando. (Jornal do estado – Curitiba 04 abr. 04)
Como produtor, Eduardo Gudin apostou nos talentos desta cantora para que
juntamente com o violonista Paulo Bellinati, com uma carreira musical já consolidada,
revisitassem a obra de Baden de Vinicius gravada em 1966 e 1990.
A ideia de lançar o disco partiu de um convite feito a ela por Eduardo Gudin. O
projeto constituiria o 1º disco solo da cantora que seria lançado pela gravadora Velas.
De início, ela julgou prematura a ideia por não ter um trabalho preparado para que
pudesse constituir em disco, até que, em uma ocasião, o produtor lhe apresenta como
proposta de repertório os Afro-sambas.
[..] Aí um dia ele sugeriu. “Você conhece os Afro-sambas?” Eu conhecia os
mais conhecidos. Mas eu não sabia que eles eram uma fase da produção do
Baden com o Vinicius, com uma temática fechada. Então, ouvi o primeiro
disco que eles – o Baden, o Vinicius e o Quarteto em Cy – fizeram, que é
o Afro-sambas, que tem oito faixas. Aí eu chapei, né?! “Pô, isso é muito
legal!” Isso foi gravado em 1966, 67, e nunca ninguém havia gravado a
27
A referida canção é a 7ª faixa do CD Iaiá (2004) da cantora.
A cantora disponibiliza em seu site, seção Impressa, varias críticas e matérias de jornais publicados.
Disponível em: http://www.monicasalmaso.mus.br/new/Paginas/Press%20BRASIL%20iaia.html> acesso
de 31/09/2013.
28
57
íntegra de novo. Ficou. O “Canto de Ossanha” a Elis fez e ficou famoso com
ela. O “Berimbau”, “Consolação’, mas havia lá outros que são jóias e que
estavam… Ficaram lá na gaveta da editora e nunca mais ninguém pegou. E
aquilo ali “euzinha” podia fazer, então, pô, falei, “Já! Eu quero
imediatamente isso. Rápido! Antes que alguém faça isso.” [ri] Fiquei super a
fim. Aí o Gudin sugeriu que a gente convidasse o Bellinati, porque ele tem o
trabalho do Garoto, e o Gudin adora o jeito que o Bellinati toca. Daí eu
conheci o Bellinati nessas. “Ó, essa aqui é a cantora, esse aqui é o trabalho.
Quer fazer?” E ele falou, “Ah! Topei.” E a gente começou a ensaiar
29
(SALMASO, 2003).
Com relação às versões anteriores, esta releitura se mostra bem distinta por
vários aspectos bem fundamentais dentro os quais o mais obvio é a instrumentação.
Gravado unicamente no formato voz e violão, o cd não traz a forte referência em seus
arranjos ao ambiente musical dos cultos afro-brasileiros do candomblé fortemente
caracterizado nos arranjos gravados em 1966 e 1990. A presença de elementos
marcantes como instrumentos de percussão, coro, a rítmica do violão de Baden e o
coloquialismo do canto de Vinicius de Moraes são substituídos por um violão e voz
com parâmetros que remetem a uma sonoridade polida, resultado de uma alta
preocupação com o acabamento e “limpeza” sonora típica das tradições do bel canto e
do violão de concerto. O tratamento dado aos arranjos nas gravações coloca o álbum em
relação direta com trabalhos, sob a mesma formação, que o antecederam como as
parcerias de Raphael Rabello com Elizeth Cardoso e Ney Matogrosso.30 Neles o violão
ocupa um papel de protagonista ocupando uma posição especial junto aos intérpretes
cantores.
De acordo com Bellinati, as ambições artísticas e conceituais do duo não
estavam em consonância com a proposta do produtor e da gravadora que primavam por
uma estética de maior apelo ao público.
Esse disco começou como um disco da Mônica com uma produção do
Eduardo Gudin, que era pra gravadora velas, e a gente começou a fazer os
arranjos e quando agente apresentou os primeiros arranjos eles sentiram que
estava muito complicado. Eles falaram: isso ai está muito difícil, não vai
vender nada. As pessoas não vão gostar deste negócio, tem que por um
tamborzinho, tem que por um tecladinho. E a gente ficou super ofendido,
tanto eu como a Mônica, que comprou essa ideia, é uma pessoa muito
musical, ela falou: Não, vamos na sua, vamos na qualidade. Fazer um
negócio revolucionário. (BELLINATI, 2013)
29
Entrevista com a cantora disponível em: <http://gafieiras.com.br/entrevistas/monica-salmaso/8>
acessado em 06/10/2013.
30
Em entrevista pessoal concedida para esta pesquisa, Bellinati (2013) afirma que um disco que o
influenciou bastante quando estava fazendo seu trabalho foi o Cry me river da cantora Julie London com
o guitarrista Barney Kessel.
58
Desta forma eles ficaram sem o suporte da gravadora e decidiram levar a diante
o projeto de forma independente. Como alternativa, Bellinati sugeriu que realizassem o
cd pela gravadora/editora americana Guitar Solo Publications (GSP), que já havia
produzido outros trabalhos do violonista como o cd The Guitar Works of Garoto. O
violonista propôs um cd com uma alta qualidade de violão que o justificasse ser
incluído em seu catalogo discográfico. As gravações foram feitas aqui no Brasil em
1995 e no ano seguinte foram enviadas para mixagem e masterização em Los Angeles.
Após a finalização houve o lançamento nos EUA em 2007 e, no mesmo ano, foi lançado
no Brasil pela Atração fonográfica. Das oito faixas que constituem a edição de 1966
foram acrescidas Consolação, Labareda e Cordão de Ouro/ Berimbau, que se dispõem
da seguinte maneira.
1. Consolação
2. Labareda
3. Tristeza e solidão
4. Canto de Ossanha
5. Canto de Xangô
6. Bocoché
7. Canto de Iemanjá
8. Tempo de amor (Samba do Veloso)
9. Canto de Pedra-Preta
10. Lamento de Exu
11. Cordão de ouro / Berimbau
Como constatamos, o disco é fruto de uma parceria de dois músicos que se
assemelham em muitos aspectos como a intensa relação com a música brasileira e o
transito por gêneros e estilos musicais dos mais variados, o alto apuro técnico, gosto por
arranjos musicais mais sofisticados e de caráter experimental, e o fato de a crítica
posicionar seus trabalhos em uma zona fronteiriça dialogando com elementos
comumente relacionados à estética da música popular e a erudita. Até mesmo o fato de
gerirem suas carreiras de acordo com suas convicções artistas e musicais, mesmo que
elas os afastem dos interesses, muitas das vezes, exclusivamente mercantis da indústria
fonográfica. No capítulo que segue nos dedicaremos à análise musical dos arranjos
violonísticos presentes no cd da parceria.
59
60
Capítulo III - O acompanhamento nos Afro-sambas (1997)
Neste capítulo, estudaremos alguns aspectos interpretativos do processo de
criação do arranjo das canções Labareda, Consolação e Canto de Xangô presentes no
disco Afro-sambas (1997) do violonista Paulo Bellinati e Mônica Salmaso.
Apresentaremos
alguns
pontos
relativos
à
concepção
de
Bellinati
sobre
acompanhamento de uma forma mais abrangente e no que tange ao repertório do disco
mais especificamente. Na seção relativa às análises, inicialmente será discutido alguns
pontos da metodologia analítica baseada no modelo do musicólogo Phillip Tagg (1982 e
1999) e, posteriormente, o aplicaremos nas três canções escolhidas.
3.1 Algumas considerações sobre o Acompanhamento
Em outubro de 2013, o violonista Paulo Bellinati recebeu-me gentilmente em
sua residência na cidade de São Paulo para uma entrevista na qual abordou várias
questões referentes a seus dados biográficos, musicais, sua formação como músico, sua
carreira como compositor e violonista e, tangendo a temática central desta dissertação,
expôs sua visão sobre o acompanhamento musical e sobre a sua releitura dos Afrosambas ao lado da cantora Mônica Salmaso.31
No âmbito da música popular, o violonista afirma crer que a função do
acompanhamento, acima de tudo, é a de fornecer suporte ao canto e de ser o principal
responsável pela caracterização de um dado gênero musical podendo defini-lo ora como
baião, maracatu, xaxado, valsa, rock, entre outros, porém não o restringindo somente a
isto. Ele pode manifestar–se sob diversas formas e modalidades de escrita ao constituirse num arranjo com trama polifônica (a duas ou mais vozes), basear-se em acordes no
estilo homofônico de melodia acompanhada ou até mesmo guardar-se em completa
quietude por algum momento para que, ao aparecer, possa gerar um contraste de
densidade. Como exemplo de uniformidade, Bellinati cita o emblemático modelo de
acompanhamento realizado por João Gilberto, baseado em acordes sobre variantes de
31
A entrevista se encontra integralmente transcrita nos anexos desta dissertação.
61
sua famosa “batida”, que são aplicados a toda canção e não raro a um disco todo. Fato
este que não vai de encontro ao seu estilo por acreditar ser o contraste musical um dos
principais responsáveis por tornar a interpretação de uma obra mais interessante; e por
ser um músico que possui um “arsenal muito maior de ferramentas” como compositor,
arranjador, orquestrador que foram usadas a seu favor na constituição do disco.
Com relação aos atributos e ao processo de formação do músico acompanhador,
ele considera a vivência e a prática (“horas de voo”) como fatores determinantes na
qualidade deste tipo de profissional.
[...] Ser acompanhador não está nos livros. Eu estou tocando com o Israel de
Almeida que é um violonista “sete cordas” importante aqui de São Paulo,
toca sete cordas em grupo de choro faz sessenta anos. O cara tem um metier.
É uma vivência. Não dá pra ensinar isso que ele sabe. Como é que sai um
acompanhamento daquele assim, instantâneo, em qualquer tom e qualquer
música? É muita vivencia. São muitas horas de voo. (BELLINATI, 2013)
Na formação de um músico concertista há várias propostas pedagógicas
bastantes consolidadas desde os métodos de Fernando Sor, Mauro Giuliani, Francisco
Tárrega, Abel Carlevaro entre outros, nas quais o violonista se apropriará dos
fundamentos da técnica, sonoridade e execução que servirão de alicerce para seu
aprendizado. Em contrapartida, na música popular o instrumentista procurou suprir-se,
na falta de uma pedagogia tradicionalmente consolidada, através de meios empíricos
resultantes do conhecimento acumulado, principalmente, com a atividade prática.
O violonista afirma que no período em que atuou mais intensamente como
professor, o maior interesse por parte dos estudantes era pela abordagem do instrumento
como acompanhador, o que o persuadia a dedicar-se à causa almejando, sobretudo, uma
metodologia satisfatória para o processo de ensino-aprendizagem. O violonista Bellinati
acredita que a vivência por meio da escuta, audição e performance são os alicerces do
processo de assimilação das diferentes linguagens da música popular valorizando assim
os métodos baseados na oralidade e imitação.
Quer aprender a tocar bossa nova, tem que comprar todos os discos do João
Gilberto e tirar todos os acompanhamentos que estão lá. Assim simples.
Analisar e entender como o João Gilberto tocava. Ai você vai ter uma mão
direita de bossa nova mais ou menos legal. [..] É assim. Tem que ouvir muito.
É assim que os jazzistas aprenderam e que os músicos populares aprendem.
Os caras aprendem ouvindo muito, vivendo, é preciso tocar, ouvindo demais.
Tem que ouvir bastante. (BELLINATI, 2013)
Outro aspecto relatado que pareceu-nos imprescindível abordar refere-se ao seu
discurso sobre a etapa primordial na qual procura orientar-se na elaboração de um
62
acompanhamento, onde a audição e o estudo, conforme o registro dos primeiros
fonogramas de uma referida canção, constituem o ponto de partida. Ele estabelece seu
posicionamento pela condição de que, na música popular, as diversas gravações de uma
mesma obra carregam em si o resultado do processamento de contribuições dos
diferentes intérpretes e arranjadores que ao longo do tempo fizeram com que os
elementos estruturais como harmonia, e até mesmo a melodia, sejam transformados. O
violonista admite que essa preocupação com o resgate do original de uma obra se fez
desde seu trabalho de pesquisa, transcrição e gravação da obra do violonista Garoto no
qual ao sentir-se insatisfeito com as interpretações feitas por Geraldo Ribeiro, Laurindo
de Almeida, Baden Powell, Paulinho Nogueira e outros, decidiu buscar como referência
os manuscritos e registros fonográficos feitos pelo próprio compositor. Na releitura dos
afro-sambas, semelhantemente, ele afirma que o ponto de partida para a criação de algo
mais sólido foi a pesquisa e estudo das gravações originais, com o escopo de
compreender a concepção dos autores em cada gravação, pesquisando os arranjos e
assimilando todos os elementos da maneira como foram tocados por Baden; e só então,
criar algo pessoal.
No que tange à estruturação dos arranjos, observa-se respaldo nos princípios
expostos por Almada (2011, p.101) onde outorga aos conceitos de forma e
planejamento como dois dos mais importantes da construção musical estando
interligados de modo indissolúvel. Em seu dizer, a concepção de um bom arranjo é
muito difícil sem que uma arquitetura formal seja predeterminada com um minucioso
planejamento.
É interessantíssimo observar as semelhanças que esta tem com a morfologia
biológica: como em um ser vivo (considerando- se sua forma e conteúdo),
também uma peça musical, desde sua concepção cresce organicamente, ao
contrário do crescimento vegetativo observado em uma duna de areia, por
exemplo (apesar de vez ou outra nos depararmos com verdadeiros arranjosdunas, construídos por compassos acrescentados a outros ao “sabor do
vento”, sem que se tenha ideia de seus limites formais). (Ibid., p. 102, itálico
do autor)
Bellinati afirma que tratou exaustivamente o arranjo de cada canção do álbum,
levando de três a quatro anos para conclusão de todo o trabalho, tecendo não somente
cada faixa de maneira isolada, mas arquitetando-as numa consciente perspectiva global
pertinente ao disco, a fim de evitar a reiteração desnecessária de determinados recursos
composicionais já utilizados.
63
Em sua concepção, criar um arranjo de acompanhamento assemelha-se ao
processo de composição de uma obra musical, sendo, muitas vezes, o primeiro de
natureza mais complexa por apresentar um material predefinido pertencente à canção no
qual este deverá corresponder em maior ou menor grau. Ele reafirma a importância dos
conhecimentos de orquestração na estruturação dos arranjos por possibilitarem uma
visão da obra tanto no plano vertical (acordes) como no horizontal (melódico) sendo
que ambas são conscientemente verificadas com a finalidade de evitar, sobretudo,
indesejáveis dissonâncias com a voz. “Muita coisa com técnica de orquestração você
resolve no violão, que é a mesma coisa, música é música, é igual. Dó maior na orquestra
sinfônica e no violão é a mesma coisa” (BELLINATI, 2013).
O violonista destacou ainda a valorização de aspectos intrínsecos à natureza do
violão tendo como pressuposto a escolha das tonalidades.
No caso do Afro-sambas, violão e voz com esse grau de escrita, tinha uma
negociação com a tonalidade. Não dava pra fazer um arranjo em Ré bemol
por exemplo. Você mata o violão. Você não sai do 3ª compasso. Então tinha
uma coisa de negociar com a voz da Mônica, com a tessitura dela pra
escolher as tonalidades que fizessem o instrumento render. Isso veio um
pouco da viola caipira. Os caras tocam o “cebolão”, o “rio abaixo”;32 ou em
ré ou mi e pronto. Tem que ser naquele tom. Se for em Mi bemol não vai
acontecer coisa nenhuma. O instrumento não vai soar. Então a voz, meio que
se encaixa. Nas duplas sertanejas, por exemplo, o cara tem a viola, o
“cebolão”, e todas as músicas eram feitas daquele jeito, naquela tessitura e eu
trouxe um pouco desta informação também. Tem cantor que é muito estrito
“– não, eu canto só em si bemol, eu canto só em ré bemol, lá bemol, eu canto
essa música em lá bemol-”. Vamos tentar lá ou sol, não é. O violão vai render
muito e a música vai ficar mais bonita. (BELLINATI, 2013)
Lima Junior (2003, p. 44) explica que a incidência de certas tonalidades nas
escolhas dos compositores demonstra que há uma preferência por aquelas nas quais as
funções harmônicas principais utilizem o maior número possível de cordas soltas como
as que têm como fundamental as notas mi (Mi maior ou Mi menor), lá (Lá maior ou Lá
menor) e ré (Ré maior ou Ré menor)33 que acabam por facilitar o emprego de vários
recursos composicionais sem impor ao executante um grau exagerado de dificuldade.
32
Tratam-se de duas possibilidades distintas de afinação das cordas da viola. No modo “cebolão em mi”
as cordas ficam na seguinte maneira: 1ª mi, 2ª si, 3ª sol sustenido, 4ª mi e 5ª si, podendo apresentar uma
variante em ré com todas as cordas um tom abaixo. Na afinação “rio acima” as alturas são 1ª ré, 2ª si, 3ª
sol, 4ª ré, 5ª sol.
33
Lima Junior (Ibid., p. 44) lembra-nos que Villa-Lobos ao compor os 12 Estudos, mesmo estando
inserido em um contexto estético de maiores liberdades, privilegiou o uso, no violão, das tonalidades de
Mi menor (Estudos I, VI e XI), Lá maior (Estudo II), Ré maior (Estudos III); Sol maior (Estudo IV), Dó
maior (Estudo V), Mi maior (Estudo VII), Si menor (Estudo X), Lá menor (Estudo XII), e as tonalidades
de Dó sustenido menor para o estudo VII e Fá sustenido menor para o IX.
64
Outras tonalidade que guardam elementos comuns às já citadas são Sol
maior, Dó maior e Si menor, [...] É importante ressaltar aqui que, 1º) aquelas
tonalidades nas quais se têm um grande número de acordes utilizando-se de
pestanas, oferecem maior dificuldade de execução, pois além de exigirem
muita resistência física do instrumentista, o resultado geral em termos da
realização do arranjo é de menos fluência digital; 2°) tonalidades nas quais se
têm um grande número de acordes utilizando-se de pestanas encerram em si
limitações de natureza textural, não permitindo ao arranjador a mesma
liberdade em termos da tessitura geral explorada na realização do arranjo e
3º) tonalidades com um maior número de sinais de alteração (acidentes) de
clave, dificultam a própria leitura musical para o instrumento, característica
esta de natureza idiomática do violão. (Ibid., p. 45)
Esta tendência pode ser verificada na canção Canto de Iemanjá onde o violonista
constrói o arranjo na tonalidade de Si maior e faz uso do recurso de scordatura
alterando a afinação convencional da sexta corda de mi para si (4ª justa abaixo) e da
quinta corda de lá para fá sustenido (3ª menor abaixo) obtendo assim, respectivamente,
as notas da fundamental e 5ª justa dos acordes das funções Tônica e Dominante do tom
podendo ser tocadas em cordas soltas. Há uma transposição realizada no arranjo de
Berimbau que demostra que a questão da escolha da tonalidade teve primazia sobre
outros aspectos musicais como a própria estrutura da melodia da canção. O violonista
toca a seção A da canção em Ré menor (eólio/dórico) e na seção B em vez de modular
para o relativo maior (Fá maior), como previsto no arranjo original, opta por Si bemol
maior. A escolha desta tonalidade se deu em razão da necessidade de ajustes aos limites
da tessitura da voz da cantora, que passa a entoar a melodia uma 5ª justa abaixo, e com a
finalidade de manter todo arcabouço da seção A do arranjo de Berimbau, que faz uso
integral da peça instrumental Cordão de Ouro com a scordatura da 6ª corda em ré.
Bellinati se mostra seguro ao dizer que a colaboração da cantora Salmaso ao
projeto foi decisiva desde a sua flexibilidade nas escolhas das tonalidades até a
aceitação de uma concepção de arranjo que proporciona uma maior valorização do
violão que, não raro, assume um papel de protagonista em determinados momentos.
Para o músico este é o principal diferencial do trabalho, e toda notoriedade do mesmo se
deve, principalmente, aos arranjos violonísticos que se esquivam do padrão.
Ele crê que o fato de estar no projeto com Salmaso, que à época estava em seu
primeiro trabalho solo e ainda sem gozar de muito prestígio nacional, foi um fator
facilitador que proporcionou a ele total liberdade criativa sem lhe impor restrições,
principalmente de ordem musical, que talvez experimentasse se estivesse ao lado de
cantoras mais consagradas como Gal Costa ou Leila Pinheiro. O violonista chega a
supor que se o disco fosse feito no momento atual com a própria Salmaso, considerando
65
a consolidada carreira de cantora e sua grande notoriedade como intérprete no contexto
da música popular brasileira, ele não conseguiria fazer o disco como antes.
Um elemento identitário do aspecto interpretativo do disco refere-se à técnica e
sonoridade instrumentais empregadas que claramente remetem ao ambiente da tradição
da música de concerto onde se valoriza um trabalho muito consciente no controle das
diversas nuances do timbre, acabamento (principalmente a negação do ruído), dinâmica
e projeção acústica. A questão se mostra mais evidente ao observamos os detalhes da
produção técnica do disco em que o músico fez uso de seu violão Fleta, modelo de
violão consagrado no universo da música de concerto que já foi usado por músicos de
prestígio da história do violão como o espanhol Andrés Segóvia (1893- 1987) e o
Australiano John Willians (1941-).
Bellinati (2013) deixa claro que, mesmo se tratando de uma releitura de uma
obra que em sua essência remete ao ambiente rústico dos cultos afro-brasileiros,
procurou dar à gravação o que, em sua concepção, simbolizava o conceito “ideal” de
realização sonora: “O violão tinha que render o máximo, como um violão de concerto.
O violão tem que soar 100 por cento, ‘explodir’, corda nova, tudo a mil”.
3.2 Metodologia analítica
No procedimento analítico adotado foram utilizados alguns aspectos centrais da
metodologia proposta pelo musicólogo Phillip Tagg34 (1982,1999) que tem por base a
perspectiva da semiótica musical.
Na comunicação intitulada Análise da música brasileira popular (1999a) a
musicóloga e pesquisadora Martha Ulhôa propõe uma discussão sobre alguns princípios
norteadores para a formulação de uma metodologia de análise que possa se adequar ao
estudo de nossa música popular da qual procura colocar em prática alguns aspectos do
modelo desenvolvido por Tagg.
Ele [Tagg] atualmente se dedica à pesquisa da música popular dentro de uma
perspectiva semiótica. A semiótica da música tem muito a ver com a
realidade histórica das pessoas e do seu mundo artístico. Em outras palavras,
o significado da música vai depender das biografias, das visões de mundo,
34
Phillip Tagg nasceu no ano de 1944 na cidade de Northamptonshire (Reino Unido). Já atuou como
professor de musicologia em importantes universidades como Gotemburgo (Suécia), Universidade de
Liverpool (Inglaterra) e Universidade de Montreal (Canadá); trabalhou e produziu uma significativa
bibliografia voltada para o estudo da música popular. Ele mantem um site <http://tagg.org/index.html>
onde encontram-se disponíveis informações pessoais, bibliográficas, curriculares, textos publicados entre
outros.
66
das opções ideológicas e da formação musical de todos que compartilham de
um mesmo entendimento do que seja música. (ULHÔA, 1999a, p. 61).
De acordo com Ulhôa, (Ibid., p. 62) na formulação de sua metodologia, Tagg
desenvolveu um vocabulário próprio no qual os conceitos norteadores do processo
analítico referem-se aos termos musema e anafonia. O primeiro é definido como
unidade mínima de significado musical (motivos, riffs, timbres, gestos, texturas,
cadências, levadas, etc.). Magalhães (2000, p.7)35 esclarece que os musemas são
identificados por sua semelhança com itens de código musical pertencentes a outras
músicas e, em geral não aparecem isolados, mas combinados num tecido sonoro mais
amplo percebido como um todo. Este conceito se mostrou devidamente apropriado à
nossa perspectiva analítica pela abrangência que o termo denota não restringindo o olhar
somente a parâmetros já comumente explorados em outras formas de análise como o
das alturas e das durações, mas podendo por em relevo aspectos intrínsecos ao nosso
objeto de estudo como o timbre violonístico, o caráter interpretativo, a articulação dos
sons, entre outras.
Neste léxico proposto por Tagg, outro conceito de igual importância refere-se ao
termo anafonia. O termo propõe uma associação com o vocábulo analogia, seu
significado refere-se ao uso de modelos sonoros já existentes na formação de sons
musicais. Elas se dividem em três categorias principais (sonora, tátil, e cinética). As
“anáfones sonoras” constituem uma estilização de sons não musicais podendo ser
caracterizada pelo caráter descritivo e onomatopeico. Como ilustração, pode-se citar o
som do acompanhamento das cordas que aludem ao barulho de uma locomotiva que
corre pelos trilhos presentes no quarto movimento da Tocata O trenzinho do caipira
(Bachianas, nº2). Um segundo tipo, refere-se a “anáfones táteis” como sons que
sugerem algo suscetível ao toque e que podem ser entendidas pelo efeito sonoro que
corresponde a sensações como o timbre “áspero” ou “doce” de um instrumento ou voz,
o caráter “aveludado” de uma orquestração interpretada por um naipe de cordas, o som
“rasgado” de um naipe de metais ou uma guitarra elétrica com o uso do “efeito
distorcido” no contexto do heavy metal. Por último, temos as “anáfones cinéticas” que
tratam da relação do corpo humano com o tempo e o espaço podendo o movimento ser
literalmente visualizado como que de um ou mais indivíduos (andando, dirigindo,
caminhar, correr, passear, etc.,) em relação a um determinado ambiente ou de um
35
A dissertação de mestrado intitulada O perfil de Baden Powell através de sua discografia (2000),
orientada Professora Dr. Martha Ulhôa, serviu-nos grandemente como exemplo prático da aplicação desta
metodologia de Tagg ao contexto da música popular brasileira conforme sugerido pela pesquisadora.
67
ambiente para o outro. No entanto, pode ser visualizada nos movimentos de certos
animais representados por meio de estruturas rítmicas que remetem a “galopes” de
cavalos; obras que mimetizam o movimento de insetos como o Voo da Mosca (Jacob do
bandolim, voo do besouro (Nicolai Korsakov), As abelhas (Agustín Barrios) ou até
mesmo objetos e elementos da natureza como o sopro do vento ou o movimento das
ondas do mar.
Tagg (1999, p.26) adverte-nos para a natureza flexível destas classificações e o
caráter composto das anáfones, não sendo possível posicioná-las em categorizações
estanques, pois nenhuma é necessariamente apenas sônica, tátil ou cinética e a sua
classificação admite um certo grau de hermenêutica fruto da subjetividade relativa ao
universo e experiências musicais do ouvinte.36
Na realidade, é frequentemente impossível isolar o significado de qualquer
estrutura musical a somente um destes aspectos - anafônico e gestual ou tátil
e cinético, social (através de sinédoque de gênero) ou sintática. Não existe
nunca uma maneira 100% segura de dizer que esta ou aquela explicação é
definitivamente a verdade. Tudo que se pode fazer é sugerir explicações
prováveis ou menos prováveis para os aspectos semióticos dos sons musicais.
Penso que muito deste tipo de análise precisa ser feita sob circunstâncias
culturais particulares antes que possamos tirar conclusões gerais sobre como
a música funciona em bases genéricas. (TAGG apud ULHÔA, 1999b, p. 95)
Outra categoria de sinais musicais proposta por Tagg (1999) refere-se a
“sinédoque de gênero”. Este neologismo é de igual modo derivado do vocabulário
gramatical onde o termo sinédoque denota uma figura de linguagem onde uma parte
substitui o todo. Uma sinédoque musical consiste na utilização de qualquer conjunto de
estruturas musicais de um determinado gênero ou estilo aplicado em outro qualquer, de
caráter diverso, sendo interpretado dentro daquele outro contexto como um elemento
importado. De acordo com Ulhôa (1999a, p. 62) o conceito de gênero usado por Tagg
baseia-se na definição do musicólogo italiano Franco Fabri que considera gênero um
conjunto de comportamentos e regras sociais incluindo as normas que regem os estilos
musicais específicos.
Uma ilustração para “sinédoque de gênero” encontrada nos arranjos da releitura
dos Afro-sambas pode ser observada na canção Tristeza e solidão onde, em um
36
De acordo com Tagg (1999, p. 26), Todas as anáfones são simultaneamente cinéticas, pois todos os
sons são ouvidos em distâncias específicas da fonte sonora ou em relação espacial de um para o outro e
porque a relação espacial de ambos sugerem movimento. Anáfones táteis são também cinéticas porque
implicam movimento de um corpo em relação a outro (por exemplo: ao encontro, fora de, indo á, distante
de, junto, passado, em baixo, etc.). Anáfones táteis não são, entretanto, necessariamente sonoras.
68
acompanhamento violonístico baseado na condução rítmica semelhante à “batida” da
bossa nova empregada por João Gilberto, temos a melodia do canto harmonizada em
blocos de acordes. Por aludir a uma técnica grandemente empregada na linguagem
jazzística, no presente contexto, a apropriação deste “elemento isolado”, por ser
considerado como importado de outra tradição musical, remetendo diretamente a “um
Todo”, o jazz.
Segundo Tagg (1982), o eterno dilema a respeito da necessidade de usar palavras
em uma arte não verbal e denotativa pode transformar-se em vantagem se descartamos
as palavras como metalinguagem e as substituirmos por outras músicas. Deste modo a
comparação interobjetiva significa descrever música por meio de outra música
comparando o objeto de análise (OA) com outras obras de estilo e funções semelhantes.
Ulhôa (1999a, p.63) propõe uma síntese para o modelo de analise semiótica de
Tagg podendo ser resumido da seguinte maneira: identificam-se na obra analisada (OA)
as unidades mínimas de significação musical (musemas). Dentro de uma conjuntura
cultural específica, esses musemas são relacionados a significados paramusicais por
anafonia sonora, cinética ou tátil dando origem a um campo de associações
paramusicais (CAPm1). Do mesmo modo esses itens do código musical (ICM) são
semelhantes a outros itens pertencentes a outras músicas, compondo o material de
comparação entre objetos (MCeO) que por sua vez também são relacionados a
significados paramusicais (CAPm2). O significado de uma dada ocorrência sonora (OA)
pode ser encontrado na correspondência hermenêutica, através da comparação entre
itens do código musical (ICM) deste objeto sob análise (OA) com outros eventos
sonoros semelhantes (MCeO) e seus respectivos campos de associações paramusicais
(CAPm1 e CAPm2).
Abaixo, temos uma representação metodológica do modelo de Tagg adaptado e
traduzido para o português pela pesquisadora.
69
Quadro 2. Correspondência hermenêutica por meio de comparação inter-objetos.
A seguir, propomos uma pequena exemplificação do modelo acima exposto
aplicado à canção labareda na qual será posteriormente detalhada na seção relativa às
análises deste mesmo capítulo. Magalhães (2000, p.13) lembra-nos que este modelo de
exercício utilizado na busca por correspondência hermeneutica para esta obra constitui
uma versão bem simplificada da maneira como aplicado originalmente por Tagg que
explora de forma exaustiva as possíves relação de significantes de uma peça musical.37
37
Ver o trabalho publicado do musicólogo intitulado Fernando the Flute (2000). New York: Mass Media
Music Scholars’ Press (144 pp.) ISBN 0-9701684-1-1.
70
Quadro 3. Correspondência hermenêutica por meio de comparação inter-objetos.
Outro elemento a ser destacado refere-se à proposta de elaboração de uma
partitura gráfica38. No trabalho de Tagg (2000) encontramos exemplos de utilização
desta forma de representação musical. No referido trabalho, ela é apresentada no
formato de um quadro constituído a partir de uma listagem dos musemas de uma
determinada obra organizados verticalmente em uma coluna à esquerda. A partir dela,
partem as colunas horizontais (da esquerda para direita) nas quais são anotadas as
informaçoes relativas as seções formais da peça e de acordo com as partes da música,
temos indicados o número de compassos e a minutagem referente a ocorrência destes
musemas.
Os diferentes musemas são distribuídos em sentido horizontal representados por
um ícone específico preestabelecido na legenda. Como os limites destes não são
necessariamente correspondentes aos da forma, eles excedem as céluluas do quadro,
ficando o momento exato de sua incidência de difícil interpretação visual na figura.
38
Por conter uma gama de musemas muito maior, na representação da análise de Fernando, Tagg (2000)
utiliza um “quadro musemático” bem mais complexo do que encontrado em Magalhães (2000).
71
Quadro 4. Modelo de partitura gráfica usada por Tagg.
Partindo deste modelo, elaboramos uma tabela própria para apresentar os
elementos constitutivos da análise musical. Optamos por substituir o quadro por um
gráfico com duas funções principais (musemas e compassos). No ponto de interseção
entre esses dois eixos, dispersos no espaço interno do gráfico, marcamos cada musema
com a indicação exata de minutos de sua ocorrência correspondente à gravação e abaixo
do linha representativa dos compassos sinalizamos as seções formais da obra. Em nosso
trabalho, esta forma de exposição das informações pertinentes à análise se mostrou mais
simples, no ponto de vista da minutagem, e de interpretação visualmente mais clara39.
3.3 As análises de labareda, Consolação e Canto de Xangô
3.3.1 Análise de Labareda
39
Os gráficos serão visualizados na seção subsequente deste mesmo capítulo preliminarmente a cada
análise.
72
Gráfico 1- representação musemática de Labareda.
M.1 Tema melódico em intervalos paralelos (região aguda do violão).
M.2 Tema melódico em intervalos paralelos (região médio-grave do violão).
M.3 Acompanhamento de partido Alto com baixo pedal.
M.4 Arpejos “estendidos”
M.5 Levada rítmica de samba
M.6 Melodia acompanhada
M.7 “Breque” de escola de Samba
Adiante discutiremos alguns “musemas” apresentados anteriormente na partitura
gráfica e, sempre quando possível, usaremos a notação convencional para a
exemplificação dos mesmos, uma vez que a partitura gráfica não descarta a utilização da
partitura tradicional que ao serem apontadas as ocorrências musicais podem ser
exemplificadas em notação tradicional. (MAGALHÂES, 2000, p.13)
M.1 Tema melódico em intervalos paralelos (região aguda do violão).
O primeiro musema apresentado na partitura gráfica trata-se de um solo de
violão construído sobre intervalos paralelos que partem da região mais aguda do
instrumento e progride de forma descendente até a primeira posição, deste modo,
abrangendo quase toda a tessitura do violão. (vide fig.11)
73
Fig.11. Bellinati. Labareda. Compasso 1 a 4
Um fator essencial para uma execução fluente da passagem é a utilização da
digitação de mão direita conforme indicado na partitura onde o polegar toca novamente
a nota mais grave do intervalo harmônico precedente, executado pelos dedos i e m,
dando-lhe um destaque dinâmico e tímbrico. Esta introdução possui um caráter
virtuosístico que contrasta sobremodo com violão de Powell na gravação do disco Afrosambas (1990). O depoimento de Bellinati se mostra bastante elucidativo para
compreendermos o processo criativo que o inspirou à construção do trecho do arranjo
em questão.
Claro, a Labareda é uma canção que precisa ter muita técnica pra tocar, é
muito difícil. Tem uma coisa visual. A labareda original é fogo, a labareda
pulando - “O labareda me chamou”- o negócio está pulando ali na sua frente
e eu falei: o que eu vou fazer? A gravação original é paupérrima neste
quesito! Dois acordes. E tem muito pouco do violão do Baden, mais para um
terreiro, é um negócio bem rústico, bem simples. E foi nesta música mais
rústica, mais simples que eu consegui elaborar o acompanhamento mais
complicado. Porque eu fui nesta coisa descritiva, do visual, criar um arranjo
que mostra, que descreve visualmente. A labareda tá lá no violão, tá aceso.
(BELLINATI, 2013)
Bellinati afirma que buscou alternativas de modificação para a proposta do
acompanhamento original, principalmente, no que se refere a compensar a simplicidade
harmônica da primeira seção de Labareda, construída unicamente sobre os acordes de I
e V graus da tonalidade de Lá maior. Observa-se o fato de o violão de Powell ter pouco
destaque na gravação por estar inserido em uma combinação sonora juntamente com
diversos instrumentos. Deste modo, o violonista encontra referências no conteúdo
paramusical expresso na letra da canção que evoca a imagem da impetuosidade e
veemência das chamas do fogo constituindo uma “anáfone tátil”. Desta forma a
estaticidade harmônica do início da peça (introdução e seção A) é contraposta no
arranjo pela intensa movimentação no âmbito melódico que na introdução explora
grande parte da tessitura do violão.
74
M.2 Tema melódico em intervalos paralelos (região médio-grave do violão)
O musema aqui presentado possui grande similaridade com o anterior a não ser
pelo fato de possuir uma tessitura de âmbito mais restrito e ser executado em uma
região médio-grave do instrumento que dá a esta passagem a função de sustentação e
acompanhamento ao canto, diferentemente do caráter solístico da introdução. (fig.12)
Fig.12. Bellinati. Labareda. Compasso 17 a 20.
Recurso
composicional
violonístico
semelhante
é
encontrado
no
acompanhamento de algumas canções do gênero baião como Expresso 2222 de Gilberto
Gil e Nítido e Obscuro de Guinga. (fig.13 e fig.14, respectivamente)
Fig.13. Gilberto Gil. Expresso 2222. Compassos 1 a 4
Fig. 14. Guinga. Nítido e obscuro. Compasso 1 a 5
75
Em ambas, a estrutura “econômica” usada na formação dos acordes (em sua
maioria com até três notas) e o tratamento rítmico articulatório designado pela mesma
aplicação da digitação dos dedos da mão direita de Labareda caracteriza a relação de
proximidade com o musema da canção. Desta forma podemos considerar a utilização
deste recurso composicional, típico do gênero baião, no arranjo de um samba como uma
“sinédoque de gênero”. Em uma entrevista dada por Gilberto Gil40 ele afirma que a
rítmica de seu acompanhamento foi inspirada no “resfolego” da sanfona, tão
característico à forma de tocar baião do músico Luiz Gonzaga.
Estes recursos violonísticos utilizados em labareda já haviam sido explorados
por Bellinati na obra Choro Sapeca (fig.15), gravada ao violão pelo autor no disco
Serenata (GSP Recordings, 1993). O termo “sapeca” presente no título desta peça
musical pode remeter ao caráter “brincalhão”, “ligeiro”, “danado” (ou seja, que
apresenta desafios técnicos ao intérprete) do choro que também se encontram presentes
no arranjo analisado. Desta forma, sobrepõe-se à imagética criada pelos significados
“fogo” “chama” e “impetuosidade” sugeridos pela palavra labareda, que serviram de
inspiração no processo criativo já mencionado pelo próprio autor. Portanto, temos outra
“sinédoque de gênero”, porém relacionada ao choro.
40
O vídeo sob o título de Expresso 2222. Mp4 trata de uma entrevista aonde Gilberto Gil fala sobre sua
composição e demonstra os aspectos técnico-musicais envolvidos na canção e foi visualizado pelo site
youtube. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=ptQi9co6UNga> acessado em: 01/03/ 2014.
76
Fig.15. Bellinati. Choro Sapeca. Compasso 34 a 42
M.3 Acompanhamento de partido Alto com baixo pedal.
O próximo musema escolhido apresenta uma “polissemia”.(vide fig.16)
Fig.16. Bellinati. Labareda. Compasso 33 a 36.
A partir do compasso 34, sua configuração rítmica com acordes sincopados e a
utilização do baixo pedal em semicolcheias o tornam muito próximo a uma forma de
acompanhamento típico do partido alto, indicando assim uma “sinédoque de gênero”.
Outra relação musical plausível seria associá-lo à introdução da peça instrumental
Lamentos do Morro do violonista-compositor Aníbal Augusto Sardinha (Garoto)41 (vide
fig.18). Também encontramos relação deste musema com outro trecho de uma obra já
citada anteriormente, Choro Sapeca (fig.17), tendo assim um exemplo de “sinédoque de
gênero”, agora relacionadas ao choro.
41
É importante lembrar que Bellinati transcreveu, publicou e gravou a peça Lamentos do Morro.
77
Fig.17. Bellinati. Choro Sapeca. Compasso 80 a 86
Fig.18. Garoto. Lamentos do Morro. Compasso12 a15
M.4 Arpejos estendidos
Fig.19. Bellinati. Labareda. Compasso 48
Este musema dá aos compassos finais da primeira parte da canção um caráter
lisonjeiro, triunfal e virtuosístico. Em Labareda (fig.19), temos o arpejo de E7M(6)
realizado em duas oitavas, começando e finalizando com a nota si (1ª e 19ª casa
respectivamente), abrangendo os limites da extensão do instrumento e ressaltando o
aspecto concludente do trecho musical.42 Construções melódicas em arpejos são
recursos que proporcionam grande fluência técnica ao músico oferecendo possibilidades
42
O salto da 1ª à 13ª casa em legato é possível graças ao uso da corda solta si, que ao manter-se vibrando
possibilita a mudança de posição da 1ª para a 13ª casa sem interrupções sonoras.
78
de execução em andamentos rápidos em diversos instrumentos, inclusive o violão43.
Desta forma, podemos interpretar o musema como uma “anáfone cinética” ao
movimento veloz e fugaz da chama que consome a última brasa, tipificando o fim da
seção A e, posteriormente da canção.
M.5 Levada rítmica de samba
A levada rítmica de samba caracteriza a seção B que apresenta dois contrastes
com relação à seção A, a mudança para a tonalidade Si menor (homônima) e uma maior
densidade harmônica. (fig.20)
Fig.20. Bellinati. Labareda. Compasso 49 a 52
A partir do compasso 50, temos uma nova textura aplicada ao arranjo facilmente
identificada pela condução rítmica de samba, que por sua vez consiste em uma
estilização resultante da polirritmia dos instrumentos da bateria de um bloco de
percussão. A regularidade rítmica dos baixos em semínimas relaciona-se à marcação do
“surdo” contraposta às síncopes realizadas pelo tamborim representada nas vozes
superiores dos acordes. Durante toda seção B, nota-se uma preocupação de Bellinati
com o encadeamento dos acordes, principalmente no que se refere à movimentação de
suas vozes superiores que mesmo estando em um contexto textural homofônico
parecem formar um contracanto subjacente a harmonia.
M.6 Melodia acompanhada
43
Apesar de ter como maior referência à maneira de tocar da harpa, seu uso também é bastante
consagrado em instrumentos de teclado como o piano que, com a utilização do pedal de sustentação e o
uso de ambas as mãos, pode executar sequência de arpejos em várias oitavas com relativa facilidade.
79
Fig. 21. Bellinati. Labareda. Compasso 65 a 68
O musema aqui apresentado (fig. 21) chama a atenção pelo fato de possuir dois
planos sonoros distintos e independentes no qual temos uma base harmônica e uma
melodia que realiza um contracanto na voz superior. Do compasso 65 ao 67, o baixo em
semínimas realiza um movimento cromático descendente que poderia configurar como
mais uma voz ao acompanhamento representado uma “sinédoque de gênero”
diretamente relacionada ao choro em sua formação flauta, cavaquinho e violão sete
cordas. As inversões e cromatismos na condução do baixo nos graves, a base rítmicoharmônica na região média e a flauta na voz superior executando a melodia reforçam
esta percepção.44
M.7 “Breque” de escola de Samba
O musema apresentado (fig.22) evoca as tradicionais “chamadas” ou “breques”
típicos das escolas de samba que ao usarem de pausas de caráter sincopado e acentuado
no acompanhamento imprimem contraste e destaque rítmico a um dado momento da
“condução”. Nota-se a utilização das notas de tensão disponível ao acorde inicial de B6,
proporcionando três outros acordes formados por quartas sobrepostas, sonoridade
“quartal” que foi muito explorado no decorrer dos arranjos do disco.
Fig. 22. Bellinati. Labareda. Compassos 82 e 83
44
Na gravação do disco Afro-sambas (1990), o arranjo desta canção dá bastante destaque aos
contracantos realizados pela flauta.
80
Observamos que o arranjo estudado requer do instrumentista muita
desenvoltura técnica e controle interpretativo sobre diversas nuances sonoras que, a
maioria das vezes, só é exigida em peças para o repertório solista de violão. Segundo
Bellinati, este caráter virtuosístico do arranjo é fruto do processo criativo que buscou
referências no conteúdo paramusical expresso na letra da canção que evoca sensações
(visuais, táteis, etc.) provocadas pelas chamas do fogo, conforme ficou evidenciado na
introdução e seção A. Apesar da simplicidade harmônica da canção, o violonista não faz
modificações significativas neste parâmetro, mas procura contrastá-lo a um
acompanhamento tecnicamente sofisticado que simboliza o ardor e incandescência da
labareda tipificada musicalmente pelo tema da melodia em blocos de terças e quartas
paralelas (M.1 e M.2), e das sequências de semicolcheias na pulsação do baixo pedal no
acompanhamento de partido alto (M.3).
Deste modo, o violonista encontra referências no conteúdo paramusical expresso
na letra da canção que evoca a imagem da impetuosidade e veemência das chamas e do
fogo constituindo uma “anáfone tátil”. Desta forma, a estaticidade harmônica do início
da peça (introdução e seção A) é contraposta no arranjo pela intensa movimentação no
âmbito melódico que na introdução explora grande parte da tessitura do violão.
Através da comparação interobjetiva observamos que o arranjo traz referências a
procedimentos técnico-musicais encontrados em acompanhamentos e peças solistas de
violão de gêneros diversos como baião (Expresso 2222 e Nítido e obscuro), choro
(choro sapeca) e partido Alto enquanto a caracterização mais evidente do
acompanhamento de samba fica reservado à seção B.
A performance da obra também corroborou para um olhar mais abrangente em
direção a compreensão do modus operandi do compositor. Observamos que o
compositor distribui os recursos técnicos musicais tendo como eixo a estrutura base da
canção (A, B e A’) e suas respectivas subseções, dando-lhes atributos musicais próprios.
Para uma melhor visualização do procedimento aplicado ao arranjo de Labareda,
fizemos uma triagem destes recursos e os dispomos em uma tabela. (vide quadro 5)
81
Labareda
Recursos técnico-musicais empregados no
acompanhamento
Tema em terças e quartas paralelas (região aguda)
Forma
Introdução
B
a
a
a
a’
Tema em terças e quartas paralelas (região média-grave)
Base rítmica (partido alto) com baixo pedal
Base rítmica (samba) (região grave)
Base rítmica (samba) com contracanto (região aguda)
A’
a
Tema em terças e quartas paralelas (região média- grave)
Base rítmica (partido alto) com baixo pedal.
Repetição da introdução
A
Interlúdio
Reexposição
Coda
Repetição de A’ e B do primeiro Chorus
Repetição da introdução
Quadro 5. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de Labareda.
Nota-se que diante da estrutura base da canção (A B e A’) nenhum
acompanhamento é constituído exatamente do mesmo material e, algumas vezes, o que
os que diferem são parâmetros como a variação entre os registros (grave, médio, agudo)
com o tema da introdução que é reiterado no interlúdio e coda e tem seu material
aproveitado na elaboração da parte A e A’, porém no registro médio-grave do
instrumento.
82
3.3.2 Análise de Consolação
Gráfico 2- representação musemática de Consolação.
M.1- Piano bossa nova
M.2- Big band- metais
M.3 Baixo cantante
M.4 Harmonização em bloco (chord melody)
M.5 Levada de samba-canção
M.6 Efeito Pandeiro
M.7 Efeito Guitarra rock/ blues
M.8 Efeito gonguê
Observamos algumas gravações instrumentais feitas por Baden nas quais três
foram feitas com o acompanhamento de um conjunto musical e uma versão mais
intimista onde o violão solo conta unicamente com a marcação rítmica do chimbal da
bateria.45 Não por acaso, nota-se que é a gravação da qual Bellinati mais fez referências
45
A referida gravação é encontrada no álbum Baden Powell A Vontade (1997) quanto as demais estão em
Poem on Guitar (1967)) Tempo Feliz (1966) e Baden Powell ao vivo no Teatro Santa Rosa (1966)
83
ao violão de Baden. O andamento mais moderado, alguns contracantos dos baixos da
seção A e o interlúdio final são aproveitados pelo músico em sua releitura. A tonalidade
original de Ré menor é mantida, inclusive a scordatura da 6ª corda em ré tão usada por
Baden em várias de suas composições.
M.1 Piano bossa nova
A obra tem início com uma introdução onde o violão apresenta um ostinato de
dois compassos característico dos acompanhamentos de bossa nova (vide fig.23). O fato
de estar no registro agudo e possuir acordes formados por três ou quatro sons nos
remete a estética de concisão presente nos arranjos pianísticos quando inserido nos
conjuntos de bossa nova, constituindo uma “cinédoque de gênero”. O paralelismo em
intervalo de terças é sobreposto a uma linha de baixo em ostinato, articulado sempre no
primeiro e segundo tempo de cada compasso, caracterizando a marcação que dá suporte
às sincopes presentes no acompanhamento e na melodia. O musema perdurará por toda
a primeira repetição da seção A da canção onde, gradualmente, se movimenta por graus
conjuntos descendentes que realizam uma transição da região aguda do violão para a
extrema grave, que se concretiza na segunda repetição do último verso da estrofe
“melhor era tudo se acabar”. Deste modo, tem-se sublinhado o significado textual com o
“acabar” também do limite sonoro da tessitura com som mais grave do violão emitido
pela sexta corda, fundamental do acorde de Ré menor.
M.1
Fig. 23. Bellinati. Consolação. Compasso 1 e 2.
M.2 Blocos de acordes “Big band” de metais
Este musema se localiza nos compassos 23 e 24 (fig.24) funcionando como
elemento de conexão com a próxima seção e contribuindo para por em relevo o
significado textual do último verso “melhor era tudo se acabar”. Partindo do acorde de
84
Dm7(9), a nota mi (1ª corda solta) se mantém, ao passo que a 4ª justa formada pelas
notas dó e fá realizam um cromatismo descendente das vozes internas ocasionando
diversas tensões disponíveis aos acordes que contrastam com o caráter pentatônico da
melodia. O tratamento harmônico em bloco e o ritmo que coincide em vários pontos
com o da melodia aludem as “viradas” típicas das Big band de jazz, caracterizando
assim uma “sinédoque de gênero”.
M-2
Fig.24. Bellinati. Consolação. Compassos 23 a 26.
M-3 Baixo cantante
Este musema é um dos elementos identitários da repetição da seção A que traz
contrastes no plano textural, timbrístico e técnico do instrumento em relação à seção
anterior. O violão passar a tocar um acompanhamento na região grave com a presença
da melodia nos baixos a maneira dos consagrados arranjos violonísticos dos chorões
(“sinédoque de gênero”). (vide fig. 25)
M-4
Fig. 25. Bellinati. Consolação. Compasso 27 a 30
M-3
85
Obedecendo à mesma estrutura da peça solo para violão, a voz encontra seu
espaço no contracanto em relação à melodia que é primeiramente entoada no baixo
cantante, constituindo assim uma forte referência aos responsórios tão típicos aos
cânticos sacros dos rituais afro-brasileiros, porém com o violão fazendo o papel do
cantador principal respondido posteriormente pela cantora. O efeito do cânone remete a
ideia de movimento e coletividade da roda de capoeira ou de um culto afro-brasileiro
(“anáfone cinética”).
M.4 Harmonização em bloco (chord melody)
Este musema (fig.26) tem como principal característica a organização intervalar
por intervalos de quartas46, elemento característico da linguagem de Baden Powell
assinalado por Bellinati em vários momentos nos arranjos do disco Afro-sambas. O
Chord melody é uma técnica muito comum ao vocabulário de guitarristas de jazz e
“embora aqui se trate, aparentemente, de escrita harmônica o objetivo desta técnica é
antes de tudo melódico” (Almada, 2001.p 64) e consiste em harmonizar as notas da
melodia de forma homofônica.
M.5
Fig. 26. Bellinati. Consolação. Compasso 41.
O intervalo de segunda entre as notas dó e ré não descaracterizam o “sabor”
quartal por tratar-se apenas de umas das possibilidades de inversão da sequência de
quartas entre as notas ré, sol e dó. Na figura abaixo, temos outra possibilidade de
46
Segundo Carlos Almada “convém estabelecer uma importante distinção entre dois termos
frequentemente empregados de forma equivocada, tendo ás vezes mesmo seus significados trocados:
harmonia quartal e harmonia (cujas partes estão dispostas) em quartas. A primeira tecnicamente não
tonal (o termo “atonal” seria talvez forte demais para designá-la), já que não se baseia no sistema
harmônico tradicional de terças superpostas, é construída - como se pode bem imaginar – por
superposição de quartas justas. Rigorosamente, foi usada por alguns poucos compositores modernos
eruditos, tais como Schöenberg (a Música Popular praticamente desconhece a verdadeira harmonia
quartal). O segundo tipo, bem mais comum, não passa de uma forma diferente de se dispor notas de um
acorde convencional (bem como as tensões pertencentes a sua escala, se forem necessárias) de modo que
se dê total preferência ao intervalo de quarta justa.” (ALMADA, 2000. p. 107)
86
configuração empregada no arranjo de Cordão de ouro/ Berimbau47 onde a nota mais
aguda do intervalo de quarta é dobrada uma oitava abaixo.
Fig. 27. Bellinati. Cordão de Ouro. Compasso 50 a 52
M.5 Levada de samba-canção
Na seção B da canção, temos novamente uma mudança no tratamento
violonístico em relação aos já apresentados nas seções anteriores. Considerando as
diferenças quanto ao andamento mais acelerado do arranjo48 e pela substituição das
pausas por ligaduras, temos a estrutura do acompanhamento típico do samba-canção
conforme apresentado por Pereira (2006, p. 21) em seu livro Ritmos brasileiro para
violão. (fig. 28)
Fig.28. Pereira. Samba-canção.
Um dos artifícios musicais que pode ser destacado nesta seção é a
reharmonização feita por Bellinati que opta por uma maior densidade harmônica
explorando o uso dos acordes dominantes (secundários e seus substitutos) definindo
assim um caráter tonal à seção. Este recurso dá, no contexto dos Afro-sambas, um
aspecto de sofisticação ao arranjo que caracteriza uma “sinédoque de gênero” em
relação ao jazz e a bossa nova.
Cifra original
47
Faixa número 11 do álbum Afro Sambas (1997) de Bellinati e Salmaso onde a peça solo Cordão de
Ouro, que de acordo com o violonista foi composta sobre a estrutura da peça Berimbau, é usada como
base do arranjo para o acompanhamento.
48
Para o ritmo de samba canção, Pereira (2006) sugere o andamento baseado na semínima em 42 Bpm,
caracterizando um tipo de samba lento e arrastado ao passo que na partitura de consolação, Bellinati fixa
o arranjo em 88.
87
2/2
50
58
Dm
Dm
Em7(b5)
A7
Em7(b5)
A7
Dm
Dm
Dm
Dm
Dm/A
Dm
Dm
Dm
Am7
Am7
Cifra re-harmonizada49
Ab
54
13
13
9 Ab
#6
#6
Bb7M
58
D7(b9) Ab
62
B7M
G7(13)
Db
G/B
13
#6
G7(13)
Dm
9
#6
C7(9) Gb
F7M/C
Db
9
#6
Am
13
#6
F6 Cb
9
#6
Am7(9)
C7(9) Gb
13
#6
F6 Cb
9
#6
Am
M.6 Efeito Pandeiro
Este musema é derivado do anterior, porém destaca-se pelo aspecto rítmico.
Pode-se interpretá-lo como uma estilização ao violão do toque típico do pandeiro no
samba conforme demonstrado na figura abaixo:
Fig. 29. Rítmica do pandeiro. Exemplo próprio.
Ele aparece como uma alternativa de variação para o início da segunda frase da
seção B em que o arranjo apresenta a mesma estrutura harmônica e melódica da frase
49
A metodologia de cifragem adotada neste exemplo segue os preceitos propostos na tese de harmonia de
Câmara (2008).
88
anterior, porém este novo elemento musical inserido cria um contraste a esta estrutura
musical. Observa-se que a rítmica proporciona um preenchimento do compasso com as
subdivisões em semicolcheias e cria um contraponto com a nota longa emitida pela voz.
No contexto em que se insere, ele contrasta com a levada de samba-canção estabelecida
na seção B constituindo uma “sinédoque” ao samba enredo. (vide fig.30)
M-7
Fig. 30. Bellinati. Consolação. Compassos 59 e 60.
M-7 Efeito Guitarra rock/ blues
Devido à afinação convencional do instrumento (mi, si, sol, ré, lá, mi) a
utilização de escalas pentatônicas com paralelismo de quartas constitui um recurso
idiomático ao violão e constitui padrões de grande utilização no rock e blues
constituindo uma sinédoque de gênero em relação ao rock/ blues50(vide figura)
Fig. 31. Bellinati. Consolação. Compassos 62 e 63.
M-8 Efeito gonguê
50
Baden fez o uso abundante deste recurso em obras como Luar de Agosto e Insônia.
89
No interlúdio do arranjo da canção, a voz e o violão articulam a mesma melodia
em pizzicato. O desenho melódico que é apresentado nos baixos se desenvolve a partir
de variações utilizadas apenas sobre quatro notas: ré (6ª corda solta), lá, ré (4ª corda
solta) e mi. O pouco material melódico intervalar usado e a articulação das notas em
pizzicato faz com que a linha de baixo adquira um caráter rítmico que reporta aos
instrumentos de percussão de altura definida como o gonguê (“sinédoque de gênero”candomblé). Em uníssono, a voz emite sons onomatopeicos (“tum” “quam” “cum”
“quem”) que corroboram para a caracterização do feito percussivo. Esta foi uma
passagem musical que o músico relata ter feito referências ao violão de Baden na
gravação.
No Consolação, por exemplo, eu peguei um improviso que o Baden faz.
Improviso não, é um acompanhamento que e o Baden faz que está na
gravação original.
Eu falei: isso é muito legal, tem que ter. Mas eu coloco esse negócio depois,
como uma coisa nova entendeu? Eu o tiro da posição de acompanhamento
no disco do Baden e coloco ele na posição de interlúdio. Porque eu acho um
negocio tão legal que no meu disco eu coloco numa posição de destaque,
inclusive a Mônica faz junto comigo naquele refrão que no disco do Baden
era um acompanhamento. Era um acompanhamento dele, que ele faz cada
vez de um jeito. Eu tirei aquele negócio, dei uma organizada. Fiz a partitura
direitinho, a Mônica aprendeu, dei uma partitura pra ela e falei: Vamos deixar
ele como especial sem o Consolação em cima pra “atrapalhar”. É, ficou
legal. (BELLINATI, 2013)
Das gravações que pesquisamos da obra encontramos o referido trecho musical
no disco A vontade (Elenco, 1993) de Baden. Apesar de Bellinati afirmar que tirou
proveito de um fragmento extraído da parte do acompanhamento, e não de um
improviso, observamos que o mesmo aparece em um interlúdio e na coda da gravação
original com um fede out de caráter improvisatório. Conforme a figura 32, nota-se que
Bellinati aproveitou todo o material reorganizando-o a seu modo.
90
Fig. 32. Powell. Consolação. Compassos 101 a 112
Observa-se que este é o arranjo que mais encontram-se referências ao violão de
Baden dentre as quais destaca-se o aproveitamento de uma coda de caráter
improvisatório presente em um das gravações de consolação. Bellinati desenvolve a
ideia original a seu modo transformando-a em uma seção de seu arranjo de releitura.
Outra referência notória é o baixo cantante presente na primeira repetição da seção A
que remete a versão para violão solo de Consolação. Na representação do responsório
tão típico aos cânticos sacros dos rituais afro-brasileiros, a melodia principal
(“pergunta”) é primeiramente entoada ao violão, ficando a voz responsável por
complementá-la (“resposta”) como um contracanto, ocupando o violão uma posição
estrutural de maior destaque no discurso musical. A sonoridade de acordes fruto da
organização intervalar por intervalos de quartas (ou sua inversão – a quinta) é a base dos
Chord Melodies (M-4) e também denota um elemento característico da linguagem de
Powell assinalado por Bellinati em vários momentos nos arranjos dos Afro-sambas .
Através da análise musemática ficou caracterizado o uso de elementos que
remetem a práticas musicais como o jazz e a bossa nova, caracterizados na
reharmonização que explora o emprego de acordes dominantes (secundários e
substitutos) que acentuam o aspecto tonal da seção B, aumentando assim o contraste
com a parte A que explora o modalismo. De igual modo pode-se observar que o violão
91
incorpora elementos que caracterizam a maneira de tocar de outros instrumentos como
já demonstrados em M-6 (violão pandeiro) e M-8 (violão gonguê).
Diferentes das demais peças analisadas, o interlúdio não tem relações com a
introdução, mas consiste em uma repetição do baixo cantante de caráter rítmico de A’,
mas com a articulação em pizzicato dando-lhe outra atmosfera. Do mesmo modo como
Labareda, nota-se que o compositor procurou distribuir os recursos técnicos musicais
em função da estruturação formal da canção dando-lhes formas de acompanhamentos
diferenciados entre si (quadro).
Consolação
Recursos técnico-musicais empregados
Forma
Ostinato (região aguda)
Introdução
a
A
B
a
a
A’
a
Interlúdio
B
Coda
Ostinato com variações na altura (região aguda para
grave)
Baixo cantante (melodia principal no responsório)
Base rítmica (samba-canção)
Harmonizações em blocos (chord melody)
Baixo cantante rítmico
Baixo cantante em Pizzicato
Repetição de B
Repetição da introdução
Quadro 6. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de Consolação.
Observa-se que a estrutura base da canção (A, B e A’), e suas respectivas
subseções, servem de eixo para a concepção de todo o arranjo sendo o restante uma
reiteração do material por ele apresentado. Neste arranjo também constatamos que o
ostinato apresentado na introdução constitui o elemento gerador da primeira subseção
da peça, porém variados sob o aspecto do registro sonoro empregado.
3.3.2 Análise de Canto de Xangô
92
Gráfico 3- representação musemática de Canto de Xangô.
M.1- Ária Summertime
M.2 Baixo cantante (efeito melódico)
M.3 Baixo cantante (em terças)
M.4 Efeito campanella
M.5 Sextas quebradas
M.6 Levada afro-samba
M.7 Efeito “Villa- Jobim”
M.8 Baixo cantante (efeito “fechamento”)
Em Canto de Xangô temos uma introdução dividida em duas partes sendo a
primeira executada de forma lenta (semínima pontuada no andamento de 67 bpm) e
outra rápida de caráter Vivo (andamento de 112 bpm). Considerando o caráter das
gravações da mesma canção, presente nos disco Afro-sambas de 1966 e 1990, observase um grande contraste pelo fato de ambas possuírem uma forte marcação rítmica que é
feita por instrumentos de percussão como atabaques, bongôs, e agogôs que permeiam
toda a obra. Todavia, encontramos uma gravação em duo instrumental (Tristeza on
guitar, 1966) flauta e violão que se assemelha a ideia do arranjo de Bellinati tendo a
primeira parte da introdução baseada na estrutura harmônico-melódica da parte B da
93
canção, porém executado com um caráter lento e lírico. Em entrevista, o violonista
discorre sobre o processo criativo do arranjo51:
Foi o último arranjo que fiz da coleção e um dos mais difíceis de conceber.
Esse tema da 2a intro foi a célula geradora de todo o arranjo. Na 1a
introdução (lenta) com a voz, fiz uma refêrencia à aria Sumertime de
Gershwin. A ópera “Porgy and Bess” é um monumento da influência afro na
música popular americana. Não resisti de fazer essa homenagem ao
Gershwin, principalmente porque acho os afro-sambas uma obra similar: uma
ópera afro-Brasileira. (BELLINATI apud GONZALEZ, 2012, p. 104)
M.1 Ària Summertime
No musema aqui apresentado observam-se elementos que denotam as possíveis
referências das quais Bellinati afirma ter feito à ària de Gershwin. A primeira diz
respeito ao caráter lento e expressivo (Lullaby wih much expression) herdado
diretamente de Summertime que, a julgar pelo seu significado textual, pode ser
entendido como um acalanto, também conhecido por canção de ninar. A segunda referese a harmonização empregada na referida passagem onde a progressão originalmente
concebida com os acordes de Em7 e B7 passa a configura-se da seguinte maneira
Em6(9) (com a sexta dobrada) e B7/F# (com fundamental omitida e terça dobrada).
(vide fig.33)
Fig.33. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 1 e 2.
A sequência formada por estes dois acordes denota um movimento de caráter
cíclico que pode ser entendido pelo emprego das funções harmônicas tônica e
dominante que representam sensações dispares dentro do discurso tonal como reposta e
pergunta, relaxamento e tensão, repouso e movimento. Somado a isto, vemos a
51
Marcela Roshbacker Gonzalez em seu trabalho de conclusão de curso intitulado O acompanhamento de
seis cordas que remete a sonoridade do violão solo (2012) no qual se dedica a análise do arranjo em
questão.
94
preferência pelo movimento paralelo na condução das vozes, inclusive o baixo, que
juntos mimetizam o gesto do “vai e vem” típico do embalar de uma criança que pega ao
sono, caracterizando uma “anáfone cinética”; assim como a nota si, tocada como
harmônico natural na 19ª casa, alude ao som dos sinos presente nos compassos iniciais
da orquestração de Gershwin.
Há algumas relações de compatibilidade entre as peças como tonalidade menor e
a presença de fragmentos melódicos semelhantes que permitem ao arranjador fazer esta
citação com bastante organicidade.
Fig.34. Sobreposição melódica de Canto de Xangô e Summertime.
M.2 Baixo cantante (efeito melódico)
Neste musema (fig. 35) temos uma melodia com cromatismos que contrastam
com o tema do canto feito sobre uma escala pentatônica que constitui a segunda parte da
introdução do arranjo e a primeira da seção A. De acordo com o violonista, esse foi o
elemento musical no qual mais se orgulha de ter criado (BELLINATI apud
GONZALEZ, 2012, p.100). Nota-se um efeito de ruptura com o caráter anteriormente
consolidado e a execução de uma “chamada” que parece introduzir ao ambiente de
evocação ao Orixá. A estrutura rítmica, que em todo momento preenche as subdivisões
do compasso, e o andamento vivo nos colocam diante a imagem da dança (“anáfone
cinética”). Os principais parâmetros característicos desta seção são o andamento mais
rápido e o caráter Vivo que reforçam os atributos de Xangô, “o deus do raio e do fogo,
um orixá temido e respeitado, pois além de viril e violento, é também justiceiro”.
(HAUDENSCHILD, 2010, p.6)
95
Fig. 35. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 37 a 40
Neste caso, o baixo cantante não se assemelha ao estilo improvisatório utilizado
pelos chorões, mas à forma como foi estilizado por Villa Lobos em muitas de suas
composições, constituindo melodias que exploram a sonoridade cantábile da quarta e
quinta corda. O efeito expressivo deste recurso ao violão reproduz algo semelhante ao
timbre do violoncelo em vez do violão de “7 cordas” típico dos conjuntos de choro. O
suporte harmônico de acordes construídos sobre a primeira, segunda e terceira corda do
violão, preferencialmente soltas, proporciona uma liberdade técnica para interpretação
da melodia do baixo cantante, deste modo, a escolha da tonalidade de Mi menor para a
construção do arranjo foi fundamental e pode ser observada uma referência os Estudos
No11 e Prelúdio nº 1 (fig.36), de Villa-Lobos os quais o estilo de construção remete
indubitavelmente a estrutura do arranjo analisado. (“sinédoque” ao estilo de VillaLobos)
Fig. 36. Villa Lobos. Prelúdio No 1. Compasso 1 a 3
A apesar do andamento mais lento e caráter Andantino expressivo, a melodia
lírica e melancólica do prelúdio traz também sobre a rítmica de seus acordes a pulsação
ternária que, assim como no início da obra analisada, nos remete ao acalanto. Através da
peça de Villa-Lobos, fica claro que esta técnica de escrita privilegia, sobretudo, o
desenvolvimento melódico em detrimento da harmonia, que ao interpretarmos sobre o
contexto do Afro-sambas, observa-se que este baixo cantante adquire bastante relevo na
textura do acompanhamento que dialoga diretamente com a voz.
M.3 Baixo cantante (em terças)
96
Fig. 37. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 29 a 32
Observa-se que este musema (fig.37) constitui-se de uma variação do
anteriormente apresentado onde o seu elemento diferenciador é a apresentação do tema
em intervalo de terças paralelas que em muito se assemelha a uma passagem do Estudo
No11de Villa-Lobos. (vide fig. 38)
Fig.38. Villa Lobos. Prelúdio No11. Compasso 36 a 38.
M-4 efeito campanella
O recurso musical denominado campanella é usado em vários instrumentos e
faz alusão ao efeito produzido pela reverberação dos sinos (campanas), constituindo já
em sua essência uma “anáfone sonora”. No violão, esta sonoridade pode ser obtida por
duas cordas quando tocadas de forma a criar intervalo harmônicos de segundas maiores
ou menores. Gonzalez (2012, p. 68), faz menção à esta passagem como referência a
orquestração, onde tem-se uma voz em contracanto à figuras longas executadas por
Salmaso, que evoca a sonoridade de um naipe de cordas. (vide fig.39)
Fig.39. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 57 a 59
M-5 Sextas “quebradas”
97
Fig.40. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 60 a 64
A realização das sextas paralelas de forma sucessiva, e não simultânea, é uma
estilo de escrita melódica, porém, o intervalo em questão, proporciona sustentação
harmônica à passagem (fig.40). Por serem distribuídas e articuladas aos pares, o efeito
introduz um “quebra” à estrutura rítmica ternária do compasso 6/8 e ao mesmo tempo
prepara o ouvinte para seção posterior de estrutura melódica binária. A transcrição para
violão da peça Frevo (Egberto Gismonti), realizada por Ulisses Rocha, pode ser tomada
como referência desta forma de utilização das sextas que aparecem sempre de forma
descendente e “quebrada”, constituindo uma “anáfone cinética” que lembra à evolução
dos saltos esporádicos dos passos coreográficos do frevo. (vide fig. 41)
Fig. 41. Gismonti. Frevo. Arranjo de Ulisses Rocha. Compasso 1 a 3.
M.6 levada afro-samba
Um momento de maior densidade rítmica é reservado à seção B que apresenta
um caráter Grandioso, que enfatisa o significado literário da canção que salmodia e
celebra o orixá Xangô como grande rei e senhor. Gonzalez (2012, p.71)52 observa que o
violonista cria a impressão de haver entre o violão e a voz uma polirritmia provocada
pelo cruzamento entre a pulsação binária, presente na voz, e a ternária estabelecida no
52
A violonista Marcela Roshbacker Gonzalez produziu um trabalho de conclusão de curso intitulado O
acompanhamento de seis cordas que remete a sonoridade do violão solo (2012) no qual se dedica a
análise do arranjo em questão.
98
violão, característica presente no ritmo de dança africana que integra o culto a Xangô
chamado alujá. (vide fig. 42)
Fig.42. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 65 a 68.
Outra obra na qual o violonista explora estas matrizes africanas é a peça Jongo
(fig.43) onde encontram-se as principais estruturas rítmicas que são alternadas nesta
seção, uma caracterizando o compasso binário composto e a outra com inclinação para o
térnário simples.
Fig.43. Bellinati. Jongo. Compasso 220 a 224.
M.7 efeito “Villa- Jobim”
Fig.44. Bellinati. Canto de Xangô. Compasso 113 a 118
Neste musema (fig. 44) nota-se a presença dos blocos de acordes de três sons no
qual a voz superior mantém-se constante sobre a nota mi (1ª corda solta) enquanto as
demais compõem o intervalo de terça maior que se desloca por movimento cromático
descendente por todo o trecho. Estes elementos nos remetem ao tema da canção
99
Passarim53 do compositor Tom Jobim (fig.45), onde o acompanhamento também se
abstém da condução rítmica e, com aspecto recitativo, dá inicio a narrativa que relata o
drama do amor não correspondido que provoca o sofrimento que é enfatizado ao fim do
verso do arranjo analisado: “Mas me faça morrer de amar/ Xangô, meu Senhor, saravá /
Xangô agodô.”
Fig.45. Jobim. Passarim. “mão direita” do piano. Compasso 1 e 2.
A julgar pelo emprego mais acentuado do movimento cromático e o tratamento
timbrístico baseado no idiomatismo, que explora o uso da corda solta combinado ao
movimento paralelo das terças, esta estrutura pode comparar-se ao estilo empregado em
diversas obras para violão de Heitor Villa-lobos.
M.8 Baixo cantante (“efeito fechamento”)
Aqui, a maneira como é utilizado o baixo cantante já não alude ao lirismo
melódico como anteriormente apresentado (M-2 e M-3) e sim ao caráter improvisatório
empregado pelos chorões. O movimento baseado em uma escala com o uso de
cromatismos caracteriza o efeito que tem como principal função o preenchimento
rítmico e apregoar, em oposição à “chamada”, o desfecho da obra, caracterizando uma
“sinédoque de gênero” em relação ao choro. Ao alcançar o último compasso, a
passagem parece descrever um final abrupto ao movimento coreográfico da dança ritual
de xangô enfatizado pela inércia rítmica e a resolução melódica do baixo na função
tônica que concretiza o repouso absoluto. (vide fig. 46)
Fig. 46. Bellinati. Jongo. Compasso 220 a 224.
53
Para facilitar a compreensão no contexto analisado, a transcrição do tema de Jobim se encontra um tom
acima das gravações feitas pelo compositor.
100
Nesta análise verificou-se como se relacionam ao arranjo estudado os elementos
que denotam as possíveis referências das quais Bellinati afirma ter feito à ária de
Gershwin. O primeiro diz respeito ao andamento e ao caráter da primeira parte da
introdução que remete a expressividade singular dos acalantos. A segunda refere-se à
harmonização empregada na referida passagem onde a progressão formada pelos
acordes de Em6(9) (com a sexta dobrada) e B7/F# (com fundamental omitida e terça
dobrada) mimetiza o gesto do “vai e vem” típico do embalar de uma criança que pega
ao sono. Foram demonstradas algumas relações de compatibilidade entre a ária de
Gerswshin e o afro-samba como a tonalidade menor e a presença de fragmentos
melódicos semelhantes que permitem ao arranjador fazer esta citação com organicidade.
Em M.2, “baixo cantante (efeito melódico)”, temos um contracanto formado por
cromatismos que contrastam com o tema do canto feito sobre uma pentatônica que
constitui a segunda parte da introdução do arranjo que é reaproveitado na primeira parte
da seção A e interlúdio. Foram observados que os principais parâmetros característicos
desta seção são o andamento mais rápido e o caráter Vivo que reforçam os atributos
característicos ao orixá Xangô.
Por meio da observação aos musemas, verificou-se que um dos recursos mais
explorados no decorrer do arranjo é o baixo cantante, porém agregando significados
musicais distintos. O primeiro aponta à forma estilizada por Villa-Lobos em muitas de
suas composições, constituindo melodias que exploram a sonoridade cantábile da quarta
e quinta corda do violão remetendo a sonoridade do violoncelo. Posteriormente,
constata-se que M.8 “baixo cantante” (efeito fechamento)”, já não alude ao lirismo
melódico como anteriormente apresentado. O preenchimento rítmico e o movimento da
escala com o uso de cromatismo de caráter improvisatório o aproximam da forma
utilizada pelos chorões. Assim como nos demais arranjos estudados o momento de
maior clímax do arranjo é reservado à seção B que, no presente caso, parece haver entre
o violão e a voz uma polirritmia provocada pelo cruzamento entre a pulsação binária,
presente na voz, e a ternária estabelecida no violão, característica presente no ritmo de
dança africana que integra o culto a Xangô chamado alujá. Esta seção contrasta com
M.6 (efeito “Villa-Jobim”) no qual os blocos de acordes sem articulação rítmica
ganham um aspecto recitativo que valoriza o significado dos versos da canção.
101
Em Canto de Xangô, o arranjo apresenta uma quantidade maior de elementos
técnicos musicais. Isto pode ser explicado pela relação que estes materiais têm com a
estrutura formal, uma vez que na peça estudada a complexidade decorre das subseções
presentes. Assim como em Labareda, o interlúdio e a coda são uma reexposição do
tema inicialmente apresentado na introdução. No quadro a seguir, observam-se os
recursos técnicos musicais empregados nesta canção.
Canto de Xangô
Recursos técnico-musicais empregados
Forma
Ostinato (região aguda)
Introdução
a
A
B
a
a
A’
a
Interlúdio
B
Coda
Ostinato com variações na altura (região aguda para
grave)
Baixo cantante (melodia principal no responsório)
Base rítmica (samba-canção)
Harmonizações em blocos (chord melody)
Baixo cantante rítmico
Baixo cantante em Pizzicato
Repetição de B
Repetição da introdução
Quadro7. Recursos técnico-musicais distribuídos no acompanhamento de Canto de
Xangô.
102
Considerações Finais
Neste trabalho
propomos
um
aprofundamento
no
estudo
do violão
acompanhador no âmbito da música brasileira, delimitado à formação voz e violão,
recorte naturalmente conduzido pela a natureza do nosso objeto de estudo.
Através da abordagem historiográfica proposta no capitulo I, evidenciou-se o
trânsito e a presença ativa do instrumento por diversas classes sociais, os personagens, e
momentos representativos. As formulações que engendram o modelo de cultura popular
proposto pelo historiador Peter Burke (2010) se mostraram muito úteis como referencial
teórico que possibilitou-nos a compreensão da dinâmica cultural que cerca nosso objeto,
bem como a trajetória estilística do violão de acompanhamento no âmbito de nossa
música. Deste modo, é notória a existência de duas tradições distintas representadas
pelo instrumento em sua função solista e acompanhadora, cada qual operando com suas
respectivas peculiaridades, podendo ser analogamente comparadas a “grande tradição” e
“pequena tradição”, respectivamente. Admitir esta dualidade não assinala que devamos
considerar os dois polos como mundos apartados, mas sim que operam em uma um
tráfego de mão dupla.
A consulta bibliográfica e fonográfica permitiu-nos retratar características do
acompanhamento no século XX, sendo possível investigar o perfil e o comportamento
do instrumento junto a alguns violonistas de relevo do nosso cancioneiro popular que
tiveram um legado expressivo como solistas. Foi possível perceber que o processo de
trocas culturais entre a linguagem do violão solo e o de acompanhamento foi sendo
paulatinamente consubstanciada. O papel destes músicos foi mais bem contextualizado
por meio de outra ferramenta fundamental desenvolvida por Peter Burke, a figura do
mediador. Deste modo, cabe ao mediador a função de agenciamento entre as diferentes
tradições colaborando para a diluição das fronteiras.
Através dos músicos selecionados, observaram-se transformações relevantes que
partiram da gênese da indústria do disco, ainda na fase mecânica do processo de
gravação (1902 -1927), representado pelo músico Eduardo das Neves, o qual tinha um
estilo de acompanhamento de caráter bastante funcional que tinha como principal
objetivo dar suporte à sua interpretação vocal, estando subserviente a ela.
103
Posteriormente, violonistas como Canhoto e Rogério Guimarães ampliaram
sobremodo a gama de recursos expressivos do instrumento empregado nos
acompanhamentos. Nas seções de introduções, interlúdios e codas, começou-se a
esboçar momentos em que o violão adquiria maior destaque em relação ao restante do
arranjo com características técnicas do violão solista. Observou-se na estilística dos
mesmos a preocupação, mesmo que moderada, com a condução de vozes na harmonia,
variações de registro (grave/agudo) timbre e dinâmica. Além de uma exploração cada
vez maior do instrumento em toda a sua extensão, em especial a aguda. Outra frente
notória de desenvolvimento refere-se às baixarias que deixaram de possuir um papel
exclusivamente rítmico e passam a configurar linhas melódicas secundárias, muitas
vezes de grande apelo técnico instrumental.
Ao observar os músicos Baden Powell e Raphael Rabello, notou-se que no estilo
violonístico de ambos encontra-se a presença do baixo melódico adquirida em
experiência junto às rodas de choro, à absorção do vocabulário harmônico mais
sofisticado da bossa nova e do jazz, pelas fortes alusões à tradição do violão flamenco
com a utilização de rasgueados e escalas tocadas energicamente com apoio. No aspecto
interpretativo, eles trazem em suas sonoridades a incorporação e a exploração de uma
gama de matizes tímbricas que foram consolidados pelas escolas do violão concertista,
tipificadas pelo uso do violão de cordas de nylon utilizando-se das unhas para o toque
da mão direita. O último violonista observado foi Guinga, no qual pudemos constatar
que, em seu acompanhamento, elementos como harmonia, condução rítmica,
movimentação das vozes e digitações são elementos indissociáveis para preservar as
características da linguagem do compositor, principalmente em relação ao uso do
idiomatismo com o paralelismo combinado ao uso de acordas soltas. Nesse ponto, sua
obra se aproxima da concepção mais formal de música clássica, onde composição e
arranjos estão interligados. Pode-se presumir que a maior capacidade de agenciamento e
mediação entre as tradições se deu por meio de músicos que vivenciaram um processo
de formação mais sólido com amplo desenvolvimento do estudo do instrumento e da
técnica consolidada pela literatura violonista mais difundida pelo repertório de concerto.
A análise biográfico-musical de Paulo Bellinati revelou um profissional de perfil
bastante amplo, fruto de uma sólida formação musical. Dedicou-se ao aperfeiçoamento
do violão como concertista e ao estudo de disciplinas teóricas como composição,
harmonia, orquestração e outras. Seu estudo não se restringiu apenas ao conteúdo
104
oferecido pelas instituições de ensino musical formal e as obras da tradição do
repertório de compositores como Frescobaldi (1583–1643), Scarlatti (1865-1757),
Barrios (1885–1944) ou Villa-Lobos (1887–1959), mas, paralelamente, se embrenhava
no estudo da guitarra elétrica, harmonia e improvisação. As atividades profissionais
exercidas durante a carreira contribuíram para o seu contato com a diversidade do
folclore das mais variadas localidades do país, além de um contato com a música
brasileira das mais diversos gêneros enquanto músico de baile e de estúdio. Acredita-se
que a caracterização de seu “estilo” como músico é resultado de toda sua bagagem
sintetizada, sendo utilizada em prol de seus trabalhos como arranjador, interprete e
compositor no decorrer de sua carreira.
Como visto, o disco é fruto de uma parceria de dois músicos que se assemelham
em aspectos como a intensa relação com a música brasileira, o trânsito por gêneros e
estilos musicais dos mais variados, o alto apuro técnico, o apreço por arranjos musicais
mais sofisticados e de caráter experimental, e o fato de a crítica, corriqueiramente,
posicionar seus trabalhos em uma zona fronteiriça que dialoga com elementos
tipicamente relacionados à estética da música popular e de concerto.
De acordo com os dois parâmetros de classificação sugeridos por Aragão (2001),
grau de predefinição dos arranjos e o grau de interferência do arranjador, pode-se
classificar a releitura como tendo seus arranjos “fechados” e com grande interferência
do músico. Bellinati chega à gravação com uma performance que tem determinada a
priori quase todos os elementos a serem executados.
Ademais, observa-se que as
intervenções da releitura tecem um resultado musical bastante distinto de outras
gravações. A forma como interpreta os afro-sambas caracteriza-se pela utilização de
uma instrumentação mais compacta (voz e violão) e pela valorização de parâmetros que
remetem a tradição do violão solista com a sonoridade que parece negar a postura das
gravações originais, que aludem ao ambiente rústico dos cultos afro-brasileiros. O
violão e a voz refletem um timbre polido, resultado de uma alta preocupação com o
acabamento e “limpeza” sonora típica das tradições do bel canto e do violão de
concerto.
Não se pode descartar a influência de fatores externos no processo de produção
do disco. De acordo com Bellinati, as ambições artísticas e conceituais do duo não
estavam em consonância com a proposta do produtor e da gravadora que primavam por
105
uma estética de maior apelo ao público. Desta forma, eles decidiram levar adiante o
projeto de forma independente. Como alternativa, Bellinati sugeriu que realizassem o cd
pela gravadora/editora americana Guitar Solo Publications (GSP), que já havia
produzido outros trabalhos do violonista como o cd The Guitar Works of Garoto. Desta
forma, o violonista propôs um trabalho com uma qualidade violonística que o
justificasse ser incluído em seu catálogo discográfico.
Recorreu-se a entrevistas e às ferramentas analíticas do modelo semiótico de
Phillip Tagg (1982, 1999), dedicadas ao estudo da música popular, com vistas a
verificar os principais aspectos estilísticos e os elementos constitutivos dos arranjos. O
depoimento do músico, com suas considerações sobre acompanhamento, demonstraram
vários pontos importantes sobre o seu processo criativo. Bellinati acredita que, assim
como a composição musical, o acompanhamento pode incorporar uma diversidade de
formas e modalidades de escrita podendo até mesmo configurar-se em momentos de
total silêncio para que ao entrar, possa adquirir um maior destaque dentro do arranjo.
O ponto de partida do qual o músico procura orientar-se na elaboração de um
acompanhamento é a audição e o estudo dos fonogramas considerados como
“originais”, justificada pelo fato de que, na música popular, as gravações posteriores de
uma mesma obra carregam em si o resultado do processamento de contribuições dos
diferentes intérpretes e arranjadores, podendo apresentar-se completamente modificadas
em relação ao pensamento dos compositores.
Observou-se que o idiomatismo foi um fator determinante na construção dos
arranjos e teve como pressuposto a escolha de tonalidades em que as funções
harmônicas principais utilizassem o maior número possível de cordas soltas, por
facilitar o emprego de vários recursos composicionais sem impor ao executante um grau
exagerado de dificuldade. Bellinati destaca que isso não seria possível sem que
houvesse uma negociação constante da tonalidade com a cantora.
A análise musemática trouxe a tona a grande diversidade de características
provenientes da ampla vivência musical do violonista que foram redimensionadas na
releitura dos Afro-sambas. Por meio do estudo do arranjo das canções Labareda,
Consolação e Canto de Xangô, os respectivos objetos de análise (OA) estabeleceram
relações com itens de código musical (ICM) presente em acompanhamentos típicos de
gêneros e estilos populares (samba, samba canção, candomblé, partido alto, baião,
106
choro, frevo, Jazz, rock e blues) e recursos instrumentais empregados em obras para
violão solo de compositores diversos como Garoto, Guinga, Gismonti e Villa-Lobos.
Foram encontradas referências ao conteúdo paramusical expresso na letra das canções.
Baseando-se no significado dos Afro-sambas para o violonista, ele faz uma citação à
ária Summertime da ópera Porgy and Bess de Gershwin na primeira parte da introdução
de Canto de Xangô.
Duas questões levantadas no depoimento e observadas no decorrer das peças
analisadas
foram
determinantes
para
delinearmos
um
perfil
estilístico
dos
acompanhamentos: a valorização de elementos musicais que proporcionem contraste e
diversidade ao arranjo e a utilização dos mais variados recursos expressivos
consolidados na linguagem técnica do instrumento provenientes da tradição do violão
acompanhador e solista. Fato este que afirma a nossa hipótese levantada no início da
pesquisa, de que o disco Afro-sambas (1997) seja fruto de uma mediação cultural entre
a tradição do violão solista e de acompanhador. Apesar dos diversos aspectos singulares
do disco, temos motivos para crer que este processo não constitui um ato
exclusivamente isolado, mas conexo com a historiografia do violão no Brasil
consolidada gradativamente pela atuação de seus diversos intérpretes.
Obviamente, diversas pesquisas posteriores podem complementar esta
dissertação aprofundando no estudo estilístico de acompanhamento dos músicos
estudados no capítulo I, e de outros que, dado o recorte da pesquisa ou pela escassez de
tempo, não puderam ser comtemplados ou mesmo abarcando as demais canções que não
foram aqui analisadas. Pelo tratamento violonístico dado, e por também estarem na
formação voz e violão, semelhantemente, outros álbuns podem ser foco de um estudo
detalhado das práticas interpretativas envolvendo o acompanhamento. Dentro desta
perspectiva, podem-se citar os trabalhos de Raphael Rabello (ao lado de Elizeth
Cardoso e Ney Matogrosso) e os três discos da série Duos da cantora Luciana Souza
(com a participação dos violonistas Romero Lubambo, Marco Pereira, Swami Jr., e
Toninho Horta) e tantos outros que contribuem para consolidação e, ao mesmo tempo,
constante transformação desta grande vocação do violão.
107
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111
ANEXOS:
Entrevista com Paulo Bellinati
1. Gostaria que você falasse um pouco sobre seu primeiro contato com a música.
Como foi, através da família? Como foram as suas primeiras instruções musicais?
Meu pai tocava um pouquinho, cantava, tocava um acompanhamento e tal. E, na
verdade minha irmã, um ano mais nova que eu, ganhou um violão nos anos 64 e 63. E
estava muito na moda, nos anos 60, coisa da bossa nova, dar um violão de presente.
Minha irmã ganhou um violão e começou a estudar e eu ficava olhando pra ela e ai
agente até brigava muito. Eu falava pra ela: está tudo errado o que você esta fazendo ai.
Eu não sabia muito, mais eu amolava. Essa coisa de irmão. Ai, minha mãe me falou
assim: Ah, você quer tocar, então vai estudar! – eu falei: Mas eu quero estudar. Ela
ficou meio assim e teve que me colocar na escola de música que ela estava. Eu comecei
a estudar. E dai, foi super rápido. Comecei a estudar bastante, depois eu já entrei no
Conservatório Dramático pra estudar com o Isaias Sávio. Entrei no conservatório em
66. Em 66 eu fiz o enxame e entrei e, em 67, comecei a estudar com o Isaias Sávio no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.
2. Sobre suas aulas com o prof. Isaias Sávio como era o tipo de repertório e a
abordagem que ele trabalhava com você?
Era um violão super tradicional. Claro, ele passava muitas composições dele,
mas passava o repertório tradicional. [Eu] Tocava Torroba, Albénis, Granados, que ele
gostava muito, e vários compositores. Scarlatti, Frecobaldi, o repertório do Segóvias,
Barrios, Villa-Lobos, os métodos de técnica dele (escola moderna do violão). Um violão
bem tradicional. Eu conheci o Marco Pereira, que também era aluno dele nesta época, o
Paulo Porto Alegre, agente era colega, tudo contemporâneo, todo mundo junto no
conservatório.
3. E teve algum período da formação um estudo voltado exclusivamente para a
música popular?
Teve bastante. Eu tocava em conjunto, tocava guitarra, então, eu estudava jazz.
Eu lidava com a música popular bastante assim, não tanto estudando, mas trabalhando
mesmo, acompanhando, tocando em baile desde o começo, desde quando eu tinha 15
anos. Ai, mais pra frete um pouco, eu acabei sendo contratado por um grupo de baile
112
mais profissional e tal. Eu entrei em contato com o repertorio jazzístico. Comecei a
estudar os discos do Wes Montegomery, os livros da Berkley daquela época, do Willian
Leavitt, que eram livros de técnica. Eu consegui comprar esses livros, então tive um
estudo de jazz (assim, importante pra improvisar, tocar guitarra) junto, paralelo, mas
separado.
4. Com o Sávio, ele nunca chegou a entrar nesta questão da música popular ou era
só o repertorio tradicional?
Não, ele sabia. Ele gostava do jeito que eu tocava as Cenas brasileiras. Ele sabia
e ele antevia que eu ia ser um “brasilianista” assim. Ele me dava um repertório. Depois
de um tempo quando ele viu que eu trabalhava com música Popular ele falou: “puxa,
você vai tocar bem toda obra de Valdemar Henrique e Hekel Tavares”. Ele começou a
me dar um monte de coisa que ele não dava pra ninguém, só pedia pra eu tocar esses
tipos de coisas. Arranjos de música popular, repertório mais folclórico, eu toquei tudo.
Cenas Brasileiras, as duas séries, todas as transcrições dele e do Valdemar Henrique,
Hekel Tavares, todos os arranjos lá, as coisas de folclore da Plata.
5. Suas composições demonstram certa proximidade com a música folclórica, você
sempre se interessou por essa área do folclore? Como é o seu contato com o
folclore?
Engraçado, eu não interessava assim, até eu morar na Suíça eu nunca... Quer
dizer, eu mexia profissionalmente porque precisava tocar no dia a dia, mas eu não tinha
ideia de pesquisar. Só quando eu fui a morar na Suíça eu comecei a ver que quando eu
tocava a música brasileira, tocava as coisas do Brasil, as pessoas gostavam muito,
tinham uma reação muito mais intensa do que tinham aqui. Aqui era meio que “feijão
com arroz” assim. E, não sei se foi a distância do Brasil, comecei a ser compositor lá na
Suíça, eu comecei a escrever música sobre o Brasil. Comecei a pesquisar toda a coleção
Marcus Pereira, as gravações da Clementina de Jesus, discos da música popular do
Norte, eu comecei a me interessar em fazer isso. Eu gostava muito dos músicos como
Hermeto e Gismonti, que eram músicos que faziam coisas parecidas. Então eu tinha
todos os discos, tanto do Hermeto e tanto do Gismonti, gostava muito de lhe dar com
este tipo de repertório. Quando eu comecei a compor eu já tinha essa ideia. Eu conhecia
porque tinha trabalhado muito com conjunto de bailes e porque eu gostava também.
Minhas primeiras músicas já saíram baião, choro, essas coisas.
113
6. Nenhuma destas manifestações você vivenciava? Por exemplo, o maracatu... Em
termos de ir lá.
É claro, porque antes de eu ir para Europa eu não era um pesquisador, eu
simplesmente trabalhava num navio, como músico de bordo, o navio ia até Manaus e ia
parando em tudo o que é lugar. Eu fiz essa viagem por vários anos, umas nove ou dez
viagens destas. Cada viagem era 26 dias dentro do navio. Você ia até Manaus, voltava e
ia parando em todos os lugares. Parava três dias em Recife, três dias em Salvador,
Belém, Fortaleza. E tinha muitos grupos folclóricos bons que faziam apresentação para
todos os turistas. Agente ia no Castro Alves, conheci os teatros, conheci o Valdemar
Henrique. O Isaias Sávio sabia que eu estava fazendo essas viagens e falou: pô, quando
você chegar lá em Belém, vai lá no Teatro da Paz, o Waldemar Henrique é diretor lá,
conversa com ele e fala que eu mandei um abraço. E eu fui. Conversei com o Valdemar
Herinque. Ele me recebeu super bem. Era assim. Não era coisa de pesquisa, mas era de
estar lá, tá no meu nariz o negócio. Quer dizer, eu não tinha pesquisado o maracatu, mas
eu tinha escutado muito e tocado. Na hora que eu fui escrever os meus, ai eu dei uma
pesquisada e ouvi várias gravações pra entender o que era baque-solto, o que era baquevirado o que era rural, pra fazer o negócio com consciência melhor. Mas assim,
tematicamente as coisas saem meio natural assim. Eu não preciso ficar - “vou fazer um
baião e preciso saber qual é o modo mixolídio com 4ª aumentado” eu não precisava
fazer isso, não precisava procurar recurso técnico já sai tudo meio assim.
.
7. Esses seis anos que passou na suíça, como foram pra sua formação?
Foi muito bom. Eu estudei orquestração composição com professores. Acontece
que quando eu fui pra Suíça eu pensava que fosse ser músico erudito. Eu comecei uma
carreira de concertista, de fazer concertos para violão solo, de tocar o repertório de Bach
e essas coisas. Mas eu estava num conservatório completamente erudito estudando
música erudita e só. Mas aconteceu um negócio engraçado lá. Eu comprei uma guitarra,
comprei um amplificador, montei um grupo e comecei a fazer música pra esse grupo e
tocar com um grupo de música popular. E isto foi interessante. Eu dediquei à música
erudita um tempo no conservatório, mas depois eu entendi que tinha que ser compositor
mesmo, voltar minha carreira de compositor, de violonista e guitarrista de música
popular. Eu fui entender que eu era mais isto que um concertista. No final, quando eu
voltei para o Brasil, em 80, comecei a pesquisar o garoto, eu consegui juntar tudo em
114
uma mesma pessoa. Eu precisava de tudo para fazer as pesquisas e tocar um repertório
de música popular com uma sofisticação mais... E todo estudo começou a aparecer.
8. E essa fluência em vários instrumentos de cordas dedilhadas, como é que foi?
Vem do tempo de baile mesmo. Tem a técnica violonística que você toca com o
dedo, viola caipira, e tem a técnica de palheta e eu sempre trabalhei com as duas coisas.
Se você tem o instrumento é muito fácil. Você toca violão, toca cavaquinho. Quer dizer,
quem nunca tocou com palheta, vai ter uma dificuldade incrível, mas quem toca
guitarra, você pega o cavaquinho e a palhetada é a mesma coisa, afinação é parecida.
Quando eu fiz o violões do Brasil, o meu primeiro LP, (violões do Brasil, o nome já
fala, né) até falei: vou caprichar em cada instrumento, vou fazer uma coisa dedicada aos
instrumentos brasileiros. Mas eu tinha, na Suíça, eu tinha guitarra, tinha cavaquinho,
tinha violão corda de nylon, 12 cordas, eu tinha esse arsenal lá. Algumas coisas eu
trouxe outras acabei vendendo e depois comprei outros instrumentos aqui. E eu fiz
muita publicidade. Quando eu voltei para o Brasil fiz muita publicidade. Toquei com
muito cantor, então cada trabalho você precisava de um monte de pedal, um monte de
sons da moda. Tinha gravação de sertanejo e você tinha que leva a viola. Tinha um
monte de gravação de samba e você tinha que leva o cavaquinho, tinha que leva sete
cordas. Coisas de trabalho mesmo, de músico profissional, acompanhar cantor, fazer
jingle, trilha. Dai, quando fui em 89 eu falei: sei um monte de coisa, mas nunca fiz nada
pra mim. Vou fazer um disco com minhas composições, tocando essas coisas que
normalmente eu faço pra publicidade. Ai, eu canalizei pra um trabalho meu. Foi o que
aconteceu no Violões do Brasil, e o Garoto que dão o resultado da minha vida até então.
9. O contrabaxista Rodolfo (do Pau Brasil) afirma em uma entrevista que a ideia
de batizar o nome teve inspiração direta nos ideias modernistas do Mário de
Andrade. De alguma forma você se identifica com essa coisa do Mário de Andrade,
de resgate da cultura popular e do folclore?
Completamente. Eu acho que já fazia isso, sem mesmo ter lido nada do Mário de
Andrade, eu já fazia isso. Eu já era pesquisador sem saber que era. Mais ou menos
assim, eu estava vivendo essas coisas assim. Quando fiz as viagens de navio, quando
estava trabalhando, quando se faz publicidade é um universo gigante, “micro coisa”,
mas são milhões de “micro coisas” que você faz. Para cada trilha você tem que buscar
uma história que tenha haver e tal. Quando eu voltei da Europa, que eu acabei... Antes
115
eu toquei com alguns grupos, inclusive com o grupo do Nico Assumpção, um
contrabaixista, morava aqui em São Paulo, ele tinha um grupo e eu tocava guitarra nesse
grupo antes do pau Brasil, ai no ano seguinte o Pau Brasil me convidou para integrar,
pra ser violonista e guitarrista deles. Já quando eu entrei no Pau Brasil eu tocava
guitarra, violão e cavaquinho também. Eu comecei tocando todos. Eu já trouxe uma
bagagem grande assim com composição. Quer dizer, quando o Pau Brasil me contratou
eles viram: esse cara ai é um modernista, ele é um “pau-brasil”. Eu incorporei a ideia,
eu estou no Pau Brasil desde 81, 82, faz mais de 30 anos que eu tô no grupo. O 1º LP
foi em 83, né!
10. Agora, eu vou falar um pouco sobre acompanhamento. Na sua concepção,
como você vê o acompanhamento? Acompanhar um cantor e tal.
Acompanhamento, ele tem que ser uma cama confortável. Ele dá...
Acompanhamento faz tudo, né. É o acompanhamento que fala que a música é baião, que
é maracatu, o que é xaxado, o que é valsa, o que é rock. É o acompanhamento que faz o
estilo que dá todo o visual, toda imagem, a emoção da música. A música é uma coisa
super descritiva, o som tem o poder de criar imagens na cabeça das pessoas. E a música
(o acompanhamento) é a parte que tem o poder de fazer isso. Você pode fazer um
acompanhamento muito suave, muito violento, dependendo do que a letra precisa. Eu já
vi muitos acompanhamentos que não tem nada a ver com a música, já vi bastante assim.
O cara tá falando de florzinha e tá tocando um negócio que parece aço, aço temperado.
É isso, ai. Acho que o acompanhamento é coisa fundamental, faz parte da música e é
uma camada importante da música.
11. Você falou de imagens, você costuma pensar em imagens para compor, alguma
coisa neste sentido?
Penso, não é uma coisa muito difícil. Eu entendi que compor era isso desde o
começo. Você lembra coisas, quando eu faço uma música pro um pai, eu lembro dele.
Faço música pro Brasil, Tô lá na Suíça, cheio de imagens na sua cabeça, coisas que
agente vive, né. E tem muita música que vem com coisas, lembranças da minha
infância, bastante assim. Tem música que eu nem sei que estilo que é, não tem estilo, o
que é isso? Não sei. Não é baião, não é samba, não é nada. Não é dessas coisas mais é
brasileiro.
116
12. Como você vê as necessidades básicas para se formar um acompanhador, seja
de solista ou de uma cantora?
Eu acho que tem que ter horas de Voo, entendeu? Ser acompanhador não está
nos livros. Eu acho isso ai. Eu estou tocando com o Israel de Almeida, que é um “7
cordas” importante aqui de São Paulo, toca sete cordas em grupo de choro faz sessenta
anos que ele faz isso. O cara tem um metier... É uma vivência. Não dá pra ensinar isso
que ele sabe. Como é que sai um acompanhamento daquele assim, instantâneo em
qualquer tom e qualquer música? É muita vivência, é muitas horas de voo. Eu conheci
um “sete cordas” lá em Brasília que faleceu já, que era professor da escola de música,
do Clube do Choro, lá de Brasília, não me lembro do nome dele agora, agente até tocou
junto uma vez. E ele tentou fazer um método de ensino de acompanhamento. Ele criou
um monte de regrinha que ensinava o acompanhador “- oh, você ouve essa nota, ou é
diminuta... Ou você vai pra cá ou você vai pra lá-” Ele criou um monte de regras que
servem pra um tipo de música, um tipo de estilo. É impossível você cobrir todos os
parâmetros com métodos de acompanhamento. Existem tentativas, né, desde o começo
com os métodos que tinham do Paraguassu a 1ª, a 2ª, a preparação, 1ª de dó, 2ª de dó,
preparação, (vários tiveram seus métodos) 2ª de ré, 1ª de ré, a 2ª sempre era a
dominante. Isso daí dá uma...era um nome mais simples do que dominante substituta ou
sei lá o que, na verdade era a mesma coisa. Sonoramente era a mesma coisa, dava pra
acompanhar naquela ideia: não, esta dai é a 2ª, 1ª ..2ª..
13. Na escola do violão clássico tem um método, uma coisa formada. Em
contrapartida o violão acompanhador de música popular tem que buscar muito,
você procurou se suprir mais na prática?
É, eu dava muito aula de violão. Deu aula de violão de acompanhamento, era o
que tinha. Tinha muito mais aluno de acompanhamento com o caderninho com a letra e
os acordes em cima. Dei aula pra caramba disto ai. Quer dizer Você tinha que... Alguma
metodologia tinha que se instalada, né, pra pode passar. Tem que Passar o
acompanhamento da mão direita, a levada. Depois muita escuta, né. Quer aprender a
tocar bossa nova tem que comprar todos os discos do João Gilberto e tirar todos os
acompanhamentos que estão lá. Assim simples. Analisar e entender como o João
Gilberto tocava. Ai você vai ter uma mão direita de bossa nova mais ou menos legal.
Depois de você tocou cinco ou seis Lps do João Gilberto inteiro, agente começa a
conversar, entendeu. É assim. Tem que ouvir muito. É assim que os jazzistas
117
aprenderam e que os músicos populares aprendem. Os caras aprendem ouvindo muito,
vivendo, né, é preciso tocar, Ouvindo demais. Tem que ouvir bastante.
14. Quando você vai montar um acompanhamento, quais os passos que você
costuma percorrer?
É, eu tento aprender a música originalmente primeiro. Você não pode fazer um
arranjo ou um acompanhamento se você não conhece o original, quem criou a primeira
gravação. Eu dou uns workshops de arranjo pra violão de acompanhamento e tal. E o
caminho começa por ai. Você quer fazer um arranjo de uma música, você tem que
conhecer o original. Na música popular cada um adiciona um ponto. Então você vai... O
cara que gravou, lá na frente ele já perdeu o original a harmonia se transformou. Mesmo
a melodia se deturpa, né. Eu tenho essa preocupação sempre, de buscar o original.
Quando eu comecei a fazer o garoto, por exemplo. (Quer dizer é tudo a mesma coisa na
verdade). Eu tinha acesso a gravações do Laurindo, do Baden, de várias pessoas,
Paulinho Nogueira e de várias pessoas tocando o Garoto. Eu falava: Puts, isso não deve
ser o Garoto certinho, né. Eu preciso ouvir o cara. Eu preciso ver o manuscrito dele, eu
preciso ouvir ele tocando. Eu fui atrás e consegui as gravações do próprio garoto
tocando, ai é um outro universo que se abre. A partir daí, você começa a criar alguma
coisa mais sólida, você entra no estilo do cara. Eu acho que o acompanhamento, quando
você faz um arranjo é a mesma coisa. Primeira coisa é aprender o original, a primeira
gravação do compositor, do cara que fez a música, o que o cara pensou, quais os
acordes da primeira gravação. No caso, quando eu fiz os Afro-sambas, o material é a
gravação de 66 e a de 91, que o Baden gravou duas vezes. Eu não pesquisei mais em
nenhuma coisa além dessas, quer dizer eu pesquisei assim... Tipo o que eu já tinha feito,
que é o Jongo, tem os afoxés, as levadas afro que são legais ouvir pra passar pro violão.
O importante pra mim era entender o conceito deles. O que eles fizeram na época em
66, o Baden e o Vinicius, e ouvi todas as coisas originais, tirar os acordezinhos originais
e tal. Só depois que você entendeu e incorporou isso é que dá pra começar a criar uma
coisa pessoal.
15. Você considera o acompanhamento um complemento ou um diálogo (no caso
voz e violão, por exemplo)?
O acompanhamento tem vários jeitos. Ele pode ser super simples. Ele pode até
ser o silêncio, né. Pode até não ter nada. O silencio é um grande acompanhamento. Tem
momentos no Afro-sambas que eu deixei a voz sozinha. Eu achei que ia ali cria uma...
Isso é arranjo também, né. Você decide que aqui só tem voz, não tem acorde. Não tem
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nenhum violão em baixo, porque, ai, o momento e a hora que o violão aparecer, vai
criar aquele contraste e tal. Então tudo é que nem uma cozinha, né. Você pode por mais
sal, tirar sal, temperar do jeito que você quer. Eu acho que tem muito isso. A música é
interessante e ela é viva porque tem contraste, né. A música que não tem contraste ela
começa a ficar monótona, chata. E o acompanhamento é a mesma coisa. Eu acho que o
acompanhamento é que nem compor outra música por baixo, simultaneamente. É claro
que você tem várias modalidades de escrita, na música. Polifonia você pode ter duas
vozes andando, o acompanhamento pode ser uma segunda voz que sai costurando. Pode
ser acordes, pode ser só um baixo, pode ser uma orquestra sinfônica gigante, no caso só
o violão, o violão é uma pequena orquestra. Dentro do violão você pode fazer uma coisa
que nem o João Gilberto, que faz um tipo de acompanhamento que vai direto, que é uma
coisa que é uma especialidade, mas ele faz aquilo lá. No caso do disco Afro-sambas eu
tinha um arsenal muito maior de ferramentas como compositor, como orquestrador, e
tal. Essas coisas de dosar, cada faixa tem um estilo, cada faixa eu fui pra um lado.
Provavelmente se o João Gilberto que gravasse os Afro-sambas ia ser uma coisa um
pouco mais monótona, ia ser o jeito dele em todas as músicas. Quer dizer, não quero
dizer que os Afro-sambas não tem o meu estilo. Tem meu jeito lá, mas meu arsenal tem
muito mais elementos.
16. Você pensou em uma concepção global?
É, cada música foi tratada. Eu demorei três, quatro anos pra escrever tudo aquilo.
Cada música foi tratada exaustivamente. O que eu vou fazer com essa? ... Ai, sei lá.
Pega o Bocoché, ele tem um jeito de levar, mas ai na hora que você toca o Canto de
Iemanjá, puts! Vou fazer a mesma coisa que eu fiz no Bocoché. Então eu vou procurar
outra coisa, procurar um outro elemento, fazer um outro tipo de introdução, sei lá. É
uma pesquisa, é como compor, a mesma coisa. Criar um arranjo de acompanhamento é
como compor uma peça. Eu diria que é muito mais trabalhoso, você tem que conhecer
muito mais coisa. Você tem que enxergar toda a harmonia, tem que estar com tudo
aquilo na cabeça, todas as modulações, tem que estar com todos os encadeamentos de
acordes, tem que estar com aquele arsenal harmônico bem elaborado, tem que estar
acostumado a orquestrar, porque você tem que enxergar a música. Quer dizer a música,
ela anda horizontalmente, mas tem ela tem que ser checada verticalmente o tempo
inteiro. Você faz um acorde - que acorde legal, mas você vai ver a melodia, tem nota
que bate... Tem coisa que... Muita coisa com técnica de orquestração você resolve no
violão, que é a mesma coisa, música é música, é igual. Dó maior na orquestra sinfônica
119
e no violão é a mesma coisa. Tem que saber as mesmas regras, a mesma escrita. Não
importa se é um duo ou uma orquestra.
17. Então você prefere estruturar o acompanhamento e durante os ensaios ir
acertando ou prefere já ir com ele em um esboço mais estruturado?
Olha, cada música foi de um jeito viu. Cada música foi uma história. No caso
dos Afro-sambas, violão e voz, com esse grau de escrita tinha uma negociação com a
tonalidade. Não dava pra fazer um arranjo em ré bemol, por exemplo. Entendeu? Você
“mata” o violão. Você não sai do 3ª compasso. Então tinha uma coisa de negociar com a
voz da Mônica, com a tessitura dela pra escolher as tonalidades que fizessem o
instrumento render. Isso veio um pouco da viola caipira, né. Os caras tocam é o
“cebolão”, o “rio abaixo”, ou em ré ou mi e pronto. Tem que ser naquele tom. Se for em
Mi bemol, não vai acontecer coisa nenhuma. O instrumento não vai soar e os caras não
tocam isso. Então a voz, meio se encaixa, né. Nas duplas sertanejas, por exemplo, o cara
tem a viola, o “cebolão”, e todas as músicas eram feitas daquele jeito, naquela tessitura
e eu trouxe um pouco disso desta informação também. Tem cantor que é muito estrito
“– não, eu canto só em Si bemol, eu canto só em Ré bemol, Lá bemol. Eu canto essa
música em lá bemol. Pô, vamos tentar Lá ou Sol. O violão vai render muito e a música
vai ficar mais bonita. Tem casos que.. Tá bom, ponho o capotasto lá e dou um jeito, mas
o violão vai soar mal. Pra esse nível de coisa que agente estava fazendo (eu estava
tocando com o violão super caro, o fleta, microfones DPA, era uma qualidade de som...)
o violão tinha que render o máximo, como um violão de concerto. O violão tem que
soar 100 por cento, explodir, corda nova, tudo a mil. Então pra isso o arranjo tem que
estar orgânico na tonalidade que ....
18. A letra... Tem alguma coisa especial em relação à letra na hora de construir os
arranjos?
Tem, Totalmente. Eu já falei isso aqui hoje. A letra te dá pistas, texturas. Coisas
que são delicadas. “Gotas de água”, “flocos de neve”, “lágrimas”, “ gotas de orvalho”,
tudo isso são imagem sonoras que você pode sublinhar com a música. E também não
pode ser caricato. Coisa de dosagem, se você salgar demais, você não consegue comer.
Não consegue comer nem sem sal, nem salgado demais. A música tem muito isso. Tem
arranjo que foi desprezado nos Afro-sambas, tem coisa que não deu certo e eu fiz outro.
Tem música que mudou de tom, estava... A tonalidade estava muito desconfortável, daí
120
agente refez em outro tom. As ideias foram ficando amadurecidas até chegar na
gravação. Era constante, né. Cada ensaio modificava um pouquinho até chegar no dia
que estava gravando. Então vamos fazer isso aqui desse jeito. Até na última hora, né. E
mesmo depois que agente gravou, porque agente fez muita turnê, tocamos esses Afrosambas no mundo inteiro, e os arranjos seguiram evoluindo, ganharam coisas que não
tem no disco, ganharam trechos.
19. Então eles não são fechados? Já houve performances com outras...
Não, eles são bem fechados. Não tem muito pra onde abrir com esse nível de
dificuldade. Ganharam assim, por exemplo: vamos fazer um trecho de improviso de
violão e voz. No Tempo de Amor, por exemplo, tem um trecho lá que agente fez depois.
O Bocoché também tem um trecho grande lá, uma variação, um interlúdio. Não sei
quantos compassos tem, é grande, 16 compassos de um interlúdio que não tem na
gravação, ai eu compus mais um pedacinho. Um adendo assim, né.
20. Em alguns momentos o resultado do disco se mostra com um clima bem
diferente do original. Como que foi essa escolha do caráter. Da experimentação?
Porque foi ficando só violão é voz. Esse disco começou como um disco da
Mônica com uma produção do Eduardo Godin, que era pra gravadora velas, e agente
começou a fazer os arranjos e, quando agente apresentou os primeiros arranjos, eles
sentiram que tava muito complicado. Eles falaram: pô, isso ai tá muito difícil, não vai
vender nada. As pessoas não vão gostar deste negócio, tem que por um “tamborzinho”,
tem que por um “tecladinho”. E a gente ficou super ofendido, tanto eu como a Mônica,
que comprou essa ideia, é uma pessoa muito musical, ela falou: Não, vamos na sua,
vamos na qualidade. Fazer um negócio revolucionário. E ai o disco acabou sendo
abandonado, tanto pelo Godin, tanto pela Velas, eu e a Mônica ficamos sem gravadora,
a agente ficou só com os arranjos. Ai, eu propus pra Mônica da gente fazer o disco lá na
GSP, onde eu tinha feito o Garoto, Serenata e tal. Vamos fazer um disco com uma
qualidade de violão sensacional e agente apresenta lá e entra no meu catálogo. E assim
foi feito. Foi produzido o disco aqui, sem gravadora sem nada, agente fez sozinho.
Daí....
21. Em 95?
Em 95. E ai, quando ficou pronto em 96... 97 saiu. Em 96, agente mandou para
os Estados Unidos, agente conseguiu negociar, dai eu negociei a mixagem e
masterização em Los Angeles, o disco foi finalizado lá. A parte de mixagem e
masterização. E ai, saiu nos EUA e depois, quase no mesmo tempo, a Atração quis
121
lançar, então saiu quase simultaneamente, em 97 nos EUA e aqui no Brasil pela
Atração.
22. A Mônica contribuiu de uma forma mais ativa na construção dos arranjos ou
partiu mais da...?
Eh, ela deu muitas ideias. Muito ativa, ela é uma pessoa muito musical, muito
sabe. Tremendo bom gosto. Era tudo uma negociação constante, desde a tonalidade até
o jeito, né. Foi um negócio que era o primeiro disco dela e eu consegui fazer muita coisa
por ela estar começando. Eu acho que se eu tivesse feito o disco com a Gal Costa, com a
Leila Pinheiro eu ia ser muito podado, eu não ia conseguir fazer esse monte de confusão
que eu aprontei nos Afro-sambas. Eu acho que isso é o diferencial. Eu acho que se fosse
hoje a Mônica Salmaso não iria querer fazer o disco deste jeito. É um disco que o
acompanhamento tem uma importância que não é normal. Entendeu? Um
acompanhamento desse jeito tira um pouco... O disco é o que é por causa do violão, por
causa dos arranjos. Têm outros discos ai, os Afro-sambas, da Clara Sandroni dos outros
Afro-sambas, você ouve e... Tudo bem, o acompanhamento baixinho, ali bem normal e
o cantor lá na frente, um disco mais nos padrões no Brasil. Este disco sai do padrão
total, né. Ele assusta. Assustou a gravadora Velas que não quis mais. “Nossa, afrosamba que não tem atabaque, nem um tamborzinho”. E é um disco que o
acompanhamento é um duo mesmo. É um duo isso ai. Mesmo quando você vê o
acompanhamento do João Gilberto, um dos grandes mestres, né. No acompanhamento a
voz dele é mais importante. E o acompanhamento tá lá quietinho fazendo aquela levada,
aquela “basezinha” bem precisa, um swing e tal, mas é uma camada de importância bem
menos importante. O Afro-sambas tem um diferencial, ele assusta assim. [- me
assutou...] eu trabalhava com a Leila Pinheiro na época e ela falava assim: Pô, porque
você não fez esse Afro-sambas comigo? Ai eu falei pra ela: porque você não ia deixar
eu fazer aquilo tudo, eu falei pra ela.
23. Você se inspirou em algum outro disco dentro desde modelo de voz e violão em
que o violão tenha um papel “lado a lado”?
Ah, tem o disco Cry me a River (Julie London) com o Barney kessel, que é um
disco de violão e voz que eu acho espetacular, Cult, muito antigo. E eu pensei muito
neste disco quando fui fazer o Afro-sambas, que é um disco que tem uma mágica, é
outro estilo, mas assim, é um disco que tem essa coisa, que a guitarra, o
acompanhamento é fascinante. E tem alguns acompanhamentos no Brasil que nem o
122
Sinal fechado do Paulinho da viola, o Morro Velho do Nilton Nascimento, a Travessia,
Expresso 222 do Gil, e outros acompanhamentos, o Oriente do Gil, são
acompanhamentos que são um pouco fora da média, onde o violão aparece de um jeito
super charmoso e você fica maluco com o acompanhamento e quer aprender aquilo lá,
porque aquilo lá não é aquele negócio normal, é aquele negócio que fascina. Nossa, o
cara tá costurando um treco diferente ai, né. É o fascínio que o “7 cordas” também
provoca, um “7 cordas” bem elaborado. Você pega o disco do Cartola e vê o Dino
fazendo aquele negócio. Você ouve aquilo (puta que pariu...!) ele institui aquela
baixaria de um jeito que tem que ser daquele jeito pra sempre. Todo mundo que estudar
“7 cordas” tem que pegar aquele disco lá e começar por ali, tem que pegar aquelas
baixarias e aprender, porque aquilo é muito charmoso, muito interessante. Então tudo
isso são elementos que eu trouxe pros Afro-sambas. Todo esse conhecimento são
acompanhamentos que eu já tinha tirado todos esses acompanhamentos eu gostava
muito deste universo.
24. E o disco do Raphael Rabello com a Elizeth Cardoso e o Ney Matogrosso?
Então, com o Ney é espetacular! É muito bom. São referências, são discos
importantes. Quer dizer, eu acho que eu não imitei nenhum desses, eu consegui fazer
um negócio que não tinha neste nível de elaboração e textura. Eu acho que é um disco
que precisa de muita técnica violonística pra tocar e que o texto é tão importante quanto
a melodia, só que ele não é um vitrine gratuita, entendeu. Aquela música que está lá, ela
tem uma razão musical pra estar ali, não é uma demonstração de técnica, entendeu o que
quero dizer? Eu acho que eu fui feliz nisto neste disco. Eu já ouvi acompanhamentos
que o cara sai rasgando lá, a música flamenca tem muito, né. Os violonistas saem
fazendo uns treco lá, umas escalas na velocidade da luz. O que é isso de repente? Sabe,
é uma paulada no meio do negócio. O cara está cantando uma música, de repente o cara
“trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr”, uma escala..., uma metralhadora de notas. Assim, eu falei: pô,
porque o que é isso de repente? Quer dizer, tem a coisa estética de ter bom gosto, de
dosar pra aquilo ficar orgânico, dentro da música e não uma demonstração de técnica.
Eu acho que aquilo que tem nos afro-sambas demonstra muito mais minha sabedoria do
que minha técnica violonística. Me mostra muito mais como arranjador, a inteligência
do arranjador, do compositor que conseguiu criar um subtexto para os afro-sambas, do
que um texto pra mostrar técnica do violão. Tem uma limpeza, tem um acabamento de
violão, tem uma sonoridade de violão legal, mas não tem uma demonstração de técnica
gratuita. Claro, a Labareda é um lugar que precisa ter muita técnica pra tocar, é difícil
123
pra caramba. Mas assim, tem uma coisa visual. A labareda original... É fogo, a labareda
pulando “O labareda me chamou”... O negócio está pulando ali na sua frente e eu falei:
o que eu vou fazer? A gravação original é paupérrima neste negócio! Dois acordes, né.
E tem muito pouco do violão do Baden, é mais um terreiro, um negócio bem rústico,
bem simples. E foi nesta música mais rústica, mais simples, que eu consegui elaborar o
acompanhamento mais complicado. Porque eu fui nesta coisa descritiva, do visual, criar
um texto que mostra, que descreve visualmente. O violão tá... A Labareda tá lá no
violão, tá aceso.
25. Na contra-capa do disco de 66, o Vinicius disse que não interessava fazer um
disco bem feito, valorizando mais a espontaneidade. Como você vê isso, será que
isso prejudicou? Como você vê isso... (esse tratamento interpretativo)
Num sei. Eu acho que eles estavam na piração deles pra fazer esse negócio.
Fizeram uma obra maravilhosa. No acabamento, eu vejo um cara meio preguiçoso que
quer ir embora, gravar logo. Eu trabalhei com muito músico assim, que na hora de ser
pressionado o cara fala: puts, me tira daqui que eu quero ir lá pro buteco, toma uma
cerveja e fica em paz. Na hora da pressão, eles odeiam, porque é muito chato. E eu,é o
contrário, né. Eu trabalhei tanto em estúdio, eu fiz tanto acabamento na minha vida
como músico, Passar horas no estúdio cuidando, achando o som certinho do violão,
achando o melhor som da voz, o melhor microfone, era um negócio natural, é uma coisa
que faz parte de minha vida em todos os meus discos. Então, no afro-sambas foi só
continuação deste negócio de acabamento. Se você ouvir meus outros discos vai ver que
tem tudo a ver, o acabamento que tem nos Afro-sambas também tem no Garoto,
também tem nos outros disco anteriores e posteriores. É um jeito que eu tenho de lidar
com a música. Eu acho que se a música estiver mal gravada vai ser muito difícil as
pessoas curtirem. Você se mata pra fazer um arranjo, pra compor um negocio tão legal e
na hora de gravar faz um som, uma porcaria. Fica pra sempre aquele negócio. Porcaria
vai durar eternamente.
26. E como foi a ideia de utilizar o Cordão de Ouro junto com Berimbau?
Uma vez eu tinha feito um arranjo pro Berimbau, lá na Suíça, pro meu grupo lá,
e o tema do Cordão de Ouro já era um acompanhamento do Berimbau. Então foi um
pouco o contrário. Quando eu fiz o arranjo de Berimbau com aquele tema por baixo,
porque o berimbau tem a... [cantando: nã, nã..nã,] só notas repetidas e eu queria fazer
um acompanhamento que não fosse nota repetida, que fosse uma melodia... Eu fiz
124
aquele tema do Cordão de Ouro, que é um acompanhamento contrapontístico do
berimbau, mas isso foi feito 10 anos antes dos Afro-Sambas, eu já tinha feito essa
música. E depois, O Cordão de Ouro, tinha outro nome. Daí, eu achei que minha
melodia tava muito mais legal e muito rica pra assinar Baden Powell e eu nada,
entendeu? Então eu tirei Berimbau e ficou Cordão de Ouro. Ficou uma música minha
que teve vida própria e tal, ela tinha outro nome antes de ser publicada nos EUA. E
quando eu comecei a fazer os Afro-sambas, com a Mônica, eu falei: puts!... O
Berimbau, eu tenho essa ideia aqui, que eu já fiz esse tema que acabou virando Cordão
de Ouro. Ai, eu mostrei, ela falou: Puts! Que legal. E acabei recuperando de novo. Ele
nasceu por causa do Berimbau. Ele não foi “enfiado”, ele nasceu por causa do
Berimbau.
27.
Então
o
arcabouço
estrutural
dele
em
termos
de
harmonia...
É, porque foi feito em cima do Berimbau, o Cordão de Ouro foi feito em cima
da melodia do Berimbau, da harmonia e da melodia, por isso que dá certo
simultaneamente.
28. Tem uma transposição que você faz na seção B, para Sol menor e,
originalmente, ela se mantem (ou vai pro relativo).
E, isso daí tem um... Tem a tessitura da voz da Mônica que em outro tom iria
ficar agudo de mais e eu ia perder, e todo o meu Ré menor com a 6ª em ré ia para o
“saco”. Daí, não tem mais sentido, né. Ai,era outro arranjo se fosse para outro tom. Era
o tipo da música que ia pra dó menor... Sei lá pra onde ela ia. Ela ia pra um tom do
além. Um tom que não é mais 6ª em ré, não é mais nada daquilo. Ai teve algumas
soluções assim. Eu falei: puts! Por que agente em vez de ir pra Sol menor, normal,
agente vai pra dó menor, porque não? Você ouve e parece um negócio normal, né. Não
parece um negócio estranho. É um outro “tonzinho”. Ela roda em Si bemol em vez de
rodar em Fá. Porque ai a Mônica canta em uma tessitura normal, né. Ai eu aproveito o
“A” [seção] do Cordão de Ouro inteiro em ré com a 6ª em ré. Isso foi uma salvação do
Cordão de Ouro e do Ré menor com a 6ª em ré. Se não, ia perder tudo isso e ia ser
outro arranjo e sabe Deus que outro arranjo iria ser.
29. Você explora em outros arranjos scordatura, afinações além da 6ª em ré?
125
É, nos afro-sambas tem a 6ª em si e a 5ª em fá sustenido. Tanto no Pedra Preta
quanto no Canto de Iemanjá, o violão tá afinado em si, a 6ª em si e a 5ª em fá sustenido,
uma afinação que eu gosto muito, que eu usei em várias coisas pra compor solo. Eu uso
bastante essa afinação. Eu acho uma afinação que o violão rende organicamente
bastante, apesar da corda ficar meio bamba. No Si você tem que virar [a taracha]12
vezes pra chegar no si.
30. E tecnicamente, quais os violões e microfones que você usou?
Todos os meus discos, desde o Garoto até hoje, eu uso um par de DPA 40 06 pra
gravar. Sempre o mesmo par de microfones. Quer dizer, agora eu tenho meu próprio
par, mas quando eu gravava nos EUA, gravava com esse mesmo microfone e quando eu
gravei aqui nos Afro-sambas eu fiz questão de alugar esse mesmo microfone pra gravar
os Afro-sambas com o mesmo som que eu tinha conseguido nos EUA. Então, tem um
padrão. Tem um padrão de som, o mesmo microfone, com a mesma distância, o mesmo
jeito de posicionar, o mesmo tipo de sala, sala seca. Então, isso dá uma marca minha no
som do violão em todos os meus discos que é sempre muito próximo. Você sabe. Ouve
e você diz: esse é o som.
31. Qual o violão usado?
Fleta. E, com exceção do Garoto e do Violões do Brasil, todos os meus discos
foram com o Fleta até hoje. É um violão que de 91 pra cá (tudo que eu gravei de 91 pra
cá) Foi com o Fleta. Pau-Brasil, tudo. O fleta o tempo inteiro. É o melhor violão que eu
tenho e o som mais legal.
32. Você considera esse trabalho, se fosse pra fazer um show, seria um concerto ou
mais pra um show a apresentação.
Agente fez as duas coisas. Agente foi convidado pra muitos festivais de violão.
Ai, era concerto acústico total mesmo. Festival Internacional de Violão, agente fez, na
Inglaterra, em vários lugares. E vários jazz clubs também, ai tinha mais cara de show,
mas agente se apresentava sempre com o mesmo figurino, com o mesmo jeitão assim.
33. Você tem algum conhecimento específico sobre candomblé, sobre toques, que
chegou a usar como referência?
126
Tenho. Eu fui muito parceiro do José Eduardo Nazário, baterista do Grupo Um.
Logo quando eu cheguei no Brasil, agente montou um curso de música brasileira. Ele
montou um curso, todos os toques do berimbau e tal, ele fez uma apostila gigante. São
Gonçalo, São Bento pequeno... Milhares de toques, né. Vários tipos de afoxé, vários
tipos de levadas de caxixi e esse material eu dividi com ele eu toquei com ele,
entendeu? Eu tenho todas as apostilas eu aprendi todas as levadas. Eu tinha muito
conhecimento dessas coisas e não era um conhecimento teórico. Sabe como é que é? Eu
peguei o caxixi, eu peguei o Berimbau e toquei os negócios com ele. Mas assim, não era
uma coisa complicada. Nunca foi uma coisa complicada pra mim lhe dar com esse
treco, foi uma coisa prazerosa. Pô! Que legal pegar o caxixi “3 contra 2” dá essa levada
e tal. Berimbau, a mesma coisa. Eu nunca quis fazer isso uma tese acadêmica, por
exemplo. Catalogar tudo. Sei lá, quando eu precisar tá aqui dentro. Eu aprendi isso,
algum dia eu vou usar. É claro, quando você quer fazer um negócio mais muito
específico. Como é que é um pagode de viola do Tião Carreiro? Puts! Vou ter que ir lá
no disco, né. Tem muita variedade no Brasil. Pra fazer um pagode de viola igualzinho
tem que escutar a violinha do Tião Carreiro, aqueles discos dele até entender o que tá
rolando ali... No Consolação, por exemplo, eu peguei um improviso que o Baden faz.
Improviso não, é um acompanhamento que o Baden faz que tá na gravação original. Eu
falei: puts! Isso é muito legal, tem que ter. Mas eu coloco esse negócio depois, como
uma coisa nova, entendeu? Eu tiro ele da posição de acompanhamento no disco do
Baden e boto ele na posição de interlúdio. Porque eu acho um negócio tão legal... Que
no meu disco eu coloco numa posição de destaque, inclusive a Mônica faz junto comigo
aquele refrão, aquele refrão que no disco do Baden era um acompanhamento. Era um
acompanhamento dele, que ele faz cada vez de um jeito. Eu tirei aquele negócio, dei
uma organizada pra ficar... E fiz a partitura direitinho e a Mônica aprendeu, dei uma
partitura pra ela e falei: Puts! Vamos deixar ele como especial, sem o Consolação em
cima pra “atrapalhar”. É, ficou legal.
34. Em determinados momentos, como no Canto do Cabloco de pedra Preta e
Lamento de Exú, você usa o efeito percussivo, como é isso? Teria como
demonstrar. Tá escrito na partitura, né?
Tá escrito na partitura, eu uso muita percussão, o violão é um instrumento de
percussão incrível. Qualquer lugar que você bate (demonstração). Desde quando eu fiz o
Jongo.
127
35. Poderia filmar (para transcrever)?
Quer filmar? Essa é um tipo de percussão, tem vários outros, né.
Transcrição da levada demonstrada:
36. Na canção do Cordão de Ouro teve algum motivo específico que você usou que
lembra (que remeteu) alguma coisa da capoeira, ou do Baden?
Ah, teve só a levada do lundum, que é uma levada simples. (demonstração
verbal) que é uma levada bem rudimentar, os primórdios da música brasileira. Primeira
“batidinha” da música brasileira. Super rudimentar. Bem simples mesmo. Eu tentei
guardar isso um pouquinho (demonstração verbal)... Que é diferente do baião que... É
bem diferente. Isso leva um pouquinho a coisa pra outro lado. E você pega os primeiros
estilos brasileiros, a modinha e o lundum, você vê uma coisa muito simples, mas você
vê o contraste do simples com o... A síncope só é valorizada desde que você tenha o
chão. Se você não tem o chão, ela pode ser qualquer coisa, ela tá flutuando.
Então, o que eu entendi no Cordão de Ouro eu falei: Puts, pra essa síncope
aparecer eu tenho que colocar colcheias constantes. (demonstração verbal) entendeu?
Essas duas vozes se completam neste sentido. O ritmo fica muito mais charmoso desde
128
que você tenha o chão. Tem que ter um chão pra coisa que está suspensa ser precisa e
acontecer.
37. As harmonizações em bloco que, às vezes, aparecem muito, têm uma referência
ao jazz... Ao Baden...?
Tem. Tudo é a mesma coisa. Do mesmo jeito que você escreve pra Big Band, você
escreve pra bloco de violão. É a mesma coisa. Pode ser modal, pode ser cromático, pode
ser bachiano, pode ter “cadências clássicas”.
Acho que o importante em música é você não ter uma coisa só, e cada música você se
dedicar a ela especialmente. Não tente enviar coisa que você aprendeu na outra música
na música do novo arranjo. Isso daí, é que engessa e que faz a música ser
desinteressante. Eu acho que você tem que se colocar em estado de inspiração cada vez
que você começa a mexer com música. Tanto pra arranjar, tanto pra compor. Tem
alguma coisa que tem que fazer, tem que tirar de dentro as coisas. Essa música é
especial, o que ela tem que as outras não têm? E procurar, né. Procurar dentro de você
qual a expressão que aquela música tem. E você vai curtindo e começa a sair, as coisas
saem meio naturalmente. O lugar que você procurar que tem que ter cuidado, você pega
aquela sua “caixinha de Sus4”, entendeu? Tem esses acordes aqui e eu vou colocando.
Eu já vi muitos arranjos assim, eles [arranjos] não dão muito certo, são chatos, eles são
feios, né! Eu acho que quando você lida com uma composição tão boa como essas do
Vinicius, do Tom, ou de qualquer outro desse gênio da música brasileira, você tem que
recriar a música. Você tem que fazer o percurso que o compositor fez. E nesta curtição
as coisas continuam no caminho pra pegar aonde o cara parou, né. Mas pra pegar aonde
o cara parou tem que viver o que o cara viveu, tem que curtir a música. Como que é esta
letra aqui, porque que é assim. Tem que tá curtindo. Tem uma coisa da curtição mesmo,
de ficar curtindo a música, de ficar gostando daquele negócio. Aí, saem novidades,
aparecem coisas, aparecem coisas... Sei lá... De repente aparece um negócio, aparece
um caminho, uma coisa que nunca ninguém fez. Entendeu? Você não foi buscar em
lugar nenhum. A sua pergunta é engessante neste sentido, quer dizer. Mas ela é
desafiadora. Ela me obriga a te dizer que não fui buscar em lugar nenhum. Não fui
buscar em lugar nenhum. Graças a Deus, porque se eu tivesse ido buscar, ia ficar igual a
outras coisas que são chatíssimas. Você vai na “caixinha do Sus4”, você vai na
“caixinha da diminuta”. Sei lá... Eu acho que não é esse o jeito de procurar, é outro
jeito, por isso que dá certo. Pelo menos, eu acho. Num sei...
129
38. Se fosse pra analisar suas músicas qual ferramenta analítica você acha que
seria mais apropriada pra poder fazer uma análise?
Ferramenta, ferramenta o quê, ferramenta musical?
39. É.
Qualquer análise ela é igual. Qualquer música que você analisa você analisa forma,
analisa harmonia, analisa a parte temática, modulações, o que é A o que é B, o que é
introdução, o que é variação, o que é interlúdio , o que é coda, porque que modula. E o
estilo do texto, tanto o texto musical, o melódico, quanto o texto acompanhamento. E a
análise profunda vertical do contraponto de compasso por compasso, acorde por acorde.
A música tem... É um gráfico, né. Ela anda dos dois jeitos, ela anda na horizontal e
vertical. Ela vibra no tempo. Tem o andamento, o andamento é uma coisa importante.
Depois de tudo isso, você aplica a interpretação que é o acabamento final. Porque que
vai sumindo, por que é super piano em uma hora, por que é super forte, por que vai pra
percussão, Por quê? Por que o cara decidiu de repente. Isso foi uma ideia que apareceu,
né. Eu tava fazendo o Pedra Preta e uma hora apareceu essa ideia de uma repetição ser
só violão-percussão com a voz, sem o acompanhamento, daí na hora que volta, você
tem outra uma textura. Tem a textura quando sai, mas tem a textura quando volta.
Quando volta o acompanhamento dá outra variação. São elementos de orquestração que
agente acaba usando, são muito legais. O arranjo foi feito sem isso, isso apareceu lá
pelas tantas... Uma pela hora lá eu falei: puts!... Eu saí fazendo e a Mônica falou: nossa
que você está fazendo? Sei lá, num sei... O que você acha? De repente você vai tá
tocando e incorpora isso no arranjo. Aparece. Você tem uma ideia a faz a ideia naquela
hora, isso é uma coisa muito do improvisador. E a ideia é tão legal. Puts!...Vamos
gravar isso já, senão vai esquecer. Ficou demais. Outra coisa... Você tá tocando, sente o
treco e sai fazendo. Se meter a fazer um treco que não tava combinado, não tava nada
certo. Fica muito legal e acaba sendo uma coisa que vai pro texto, vai pra partitura.
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