o estatuto da cidade e o

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O ESTATUTO DA CIDADE E O
EQUILÍBRIO NO ESPAÇO URBANO
JOSÉ CARLOS DE FREITAS
Promotor de Justiça em São Paulo
INTRODUÇÃO
O fenômeno da urbanização desenfreada por que passaram as cidades
brasileiras nos últimos quarenta anos, resultante, em boa parte, do êxodo rural 1 ,
desenhou o perfil de nossa população, que é predominantemente urbana. Segundo
dados do IBGE, divulgados em 2000, o Brasil ultrapassou a marca de 80% de pessoas
que residem nas áreas urbanas.
Nesse contexto de cidades despreparadas para acolher o imenso
contingente humano e absorver as demandas sociais, era de se esperar algumas
conseqüências negativas, como o colapso do sistema de transportes, os
congestionamentos no trânsito, o aumento de processos erosivos, os assoreamentos
dos rios e a impermeabilização do solo como fatores desencadeantes das inundações,
a proliferação de habitações subnormais, a ocupação de áreas de proteção ambiental,
a precariedade do saneamento básico, a “favelização”, o desemprego e a violência.
O aumento da procura por espaços para habitação e trabalho multiplicou
sobremaneira os conflitos sociais na cidade, palco tradicional de competição entre
classes e setores da sociedade civil, cenário onde proprietários litigam entre si e com os
não-proprietários, onde as forças produtivas formais e informais digladiam com as
atividades comerciais e residenciais, disputando um lugar no meio físico.
E tudo se agrava, na seara da moradia, por uma lógica do mercado
imobiliário que privilegia a ocupação, pela classe média e alta, das áreas bem
localizadas e dotadas de melhor infra-estrutura. A população de baixa renda é
empurrada para a periferia das cidades ou para localidades menos atrativas, sobretudo
para lugares de topografia e condições geológicas menos vantajosas ou com restrições
ambientais para uma regular ocupação.2
Esse processo de exclusão social e territorial acaba por explicar, em
parte, uma das causas do desequilíbrio e da degradação ambiental, quer do meio
ambiente natural, quer do artificial ou construído. Explica, por exemplo, porque famílias
carentes “preferem” ocupar as encostas íngremes dos morros, para “viver a emoção” de
colocar em risco sua integridade física e de sua prole, e porque “optam” por invadir
áreas públicas ou alojar-se nas margens de córregos, nos mangues e áreas de
preservação permanente.
Interessa-nos, neste ensaio, fazer uma abordagem de como o estatuto da
cidade poderá auxiliar na busca do equilíbrio ambiental ao propor mecanismos para
racionalizar a ocupação do espaço urbano, passando-se pelas formas atuais de
desrespeito às posturas urbanísticas que se refletem na qualidade de vida dos
habitantes das cidades.
O MEIO AMBIENTE URBANO DESEJÁVEL (O DEVER SER)
O meio ambiente urbano, do qual já falamos em outra oportunidade 3, por
força do processo de urbanização experimentado nas últimas décadas, tem sido alvo
de meditação e, mais recentemente, de uma produção legislativa específica.
A legislação infraconstitucional reconhece o espaço urbano construído
como uma das formas de expressão do meio ambiente. É o que se observa no Estatuto
da Cidade (Lei 10.257, de 10/07/01 – DOU de 11/07/01), em seus artigos 2º, XII, e 37,
VII, quando trata, respectivamente, das diretrizes gerais da política urbana e do estudo
de impacto de vizinhança (EIV).4
De 1940 a 1980, passamos de 41 milhões de habitantes para 119 milhões. Nesse
intervalo de 40 anos, a população urbana cresceu de 31,2% para 67,6%.
2 Ver, a respeito, RAQUEL ROLNIK, “Regulação urbanística e exclusão social no
Estado de São Paulo: mitos e verdades”, Revista de Direito Imobiliário, RT,
vol. 46, pp. 126-133.
3 JOSÉ CARLOS DE FREITAS, “Dos interesses metaindividuais urbanísticos”, Temas
de Direito Urbanístico, co-edição Ministério Público de São Paulo e Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo – IMESP, 1999, pp. 288-290.
4 Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes
diretrizes gerais:
(...)
1
2
Desde a edição da Carta de Atenas, no Congresso Internacional da
Arquitetura Moderna, realizado na Grécia em 1933, tem-se afirmado que o urbanismo
caracteriza-se basicamente por quatro funções vitais: habitação, trabalho, circulação no
espaço urbano e recreação do corpo e do espírito.5
Ainda que se conteste a atualidade dessa premissa, cumpre anotar que a
Lei 10.257, de 10/07/01 incorporou expressamente as funções moradia, trabalho e
lazer ao definir o direito a cidades sustentáveis (art. 2º, I). A circulação, função que se
exerce nas vias públicas, praças, parques, áreas verdes e de lazer (no meio circulante),
aparece nos dispositivos que tratam das diretrizes da política urbana, quando essa lei
faz alusão a infra-estrutura, transporte, equipamentos urbanos e comunitários (art. 2º, I,
V, VI, “c” e “d”) e aos elementos condicionantes do estudo de impacto de vizinhança
(EIV – art. 37, II e V).
Essas funções sociais da cidade exprimem direitos difusos que se
dispersam pela coletividade, posto não ser possível afirmar, sempre, que só as pessoas
individualmente consideradas são afetadas pelas atividades desenvolvidas na cidade.
São proprietários, moradores, trabalhadores, comerciantes, turistas, migrantes,
transeuntes, dentre outros, que utilizam um mesmo espaço territorial, a cidade, um bem
de vida difuso.6
Basta constatar, por exemplo, que as passeatas ou movimentos grevistas
não perturbam somente o sossego dos moradores circunstantes ou a concentração dos
que trabalham nos prédios situados ao longo da via pública, mas, igualmente, todos os
que precisam circular por aquela artéria viária, porquanto essas manifestações
interceptam ou dificultam o trânsito de veículos e pedestres. Da mesma forma, a
XII - proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e
construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e
arqueológico;
(...)
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positivos e
negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade de vida da
população residente na área e suas proximidades, incluindo a análise, no
mínimo, das seguintes questões:
(...)
VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
5JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2ª ed.,
p. 25. LE CORBUSIER, "Princípios de Urbanismo (La Carta de Atenas)", Barcelona,
ed. Ariel, 1989, p. 119, tradução de Juan-Ramón Capella.
3
ocupação desordenada e clandestina das áreas de proteção aos mananciais, que
promove desmatamentos, assoreamentos e despejo de esgoto in natura nos
reservatórios para consumo humano, também não se restringe ao prejuízo local, do
bairro vizinho, mas afeta toda uma comunidade que se abastece do precioso líquido.
As limitações administrativas editadas para disciplinar o controle do uso,
do parcelamento e da ocupação dos espaços habitáveis, que são objeto do Direito
Urbanístico, visam à tutela dessas funções urbanísticas, mediante normas que se
destinam a proporcionar, na cidade ideal, conjunta ou isoladamente, as condições de
segurança, salubridade, funcionalidade e estética da urbe, de molde a manter o
equilíbrio necessário para garantir “a sustentabilidade da cidade, do ponto de vista
ambiental, e a eqüidade, do ponto de vista social, do acesso do cidadão aos bens e
serviços urbanos, às condições urbanas, às oportunidades econômicas, educacionais e
culturais que a cidade oferece” 7 , enfim, o bem-estar dos habitantes, fim último
almejado pela política de ordenação dos espaços urbanos (CF, art. 182).
É tarefa dos urbanistas, administradores públicos e legisladores tutelar e
conciliar as funções sociais da cidade em favor do bem-estar social.
Para tanto, devem buscar a segurança nos espaços urbanos construídos
fechados e abertos 8. Nas edificações que compõem o primeiro grupo, utilizadas para
uso prolongado (residências), ou para uso provisório, que agrupam grande número de
pessoas (prédios comerciais e industriais, escritórios e repartições públicas, centros de
lazer ou educacionais, etc.), visa-se garantir a segurança dos ocupantes mediante a
edição de normas que assegurem a solidez e a estabilidade das construções, assim
como dispositivos para sua proteção, na prevenção e combate a incêndios.
Esse mesmo requisito de segurança se exige no espaço construído
aberto, nas vias de circulação e logradouros em geral, para a proteção dos que circulam
a pé ou por qualquer meio de transporte.
6NELSON
SAULE JÚNIOR, “Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro.
Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano
Diretor”, Sérgio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, 1997, p. 61.
7 RAQUEL ROLNIK, ob. cit, p. 126.
8
Ver definição dada por JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Direito Ambiental
Constitucional", Malheiros, 2ª ed., 3ª tiragem, 1998, p. 152.
4
A salubridade, de ordinário, nos reporta à idéia de uma cidade provida de
equipamentos urbanos destinados a captar, remover e tratar o esgoto doméstico e
industrial. Mas saudável também é a cidade que se ocupa de realizar serviços de coleta
de lixo, limpeza de bueiros e logradouros para evitar sujidades e inundações. Salubre é
a urbe planejada em sua distribuição espacial, separando as atividades industriais das
comerciais e residenciais, ou conciliando-as 9 , evitando contato próximo de usos
incompatíveis ou impróprios.
Um ambiente urbano ecologicamente equilibrado também será saudável
se for respeitado o uso dos imóveis de acordo com sua finalidade, com as restrições
legais, em condições e horários determinados, implicando, no mais das vezes, conforto
aos que residem no entorno. Uma das preocupações atuais dos habitantes das zonas
urbanas refere-se à poluição sonora ou aos ruídos urbanos, causados principalmente
quando o uso não respeita o lugar adequado e/ou o momento certo para seu exercício.
Daí decorrem sérias conseqüências à saúde da população. “Dentre as
formas de degradação ambiental, que prejudicam a saúde, a segurança e o bem-estar
das pessoas, encontra-se a poluição sonora (Lei Federal 6938/81, art. 3, II, III, letra "a",
e IV), máxime quando ela ocorre a noite, impedindo ou perturbando o direito natural ao
repouso e ao sossego, inerente a condição humana. Uma noite mal-dormida gera
desconforto físico e psíquico, afetando o necessário equilíbrio emocional no
relacionamento familiar e social, e o desempenho profissional. A sensibilidade auditiva
jamais cessa, mesmo durante o sono. Por isso, o ruído multiplica enganos, diminui o
rendimento do trabalho, oblitera as faculdades mentais, causa fadiga, distúrbios
mentais e neurológicos”. 10
A funcionalidade tem a ver com a racionalização do traçado urbano, o
bom funcionamento dos serviços públicos, a correta distribuição da concentração
demográfica, a criteriosa utilização das áreas públicas urbanas e a localização das
atividades humanas pelo território da polis (moradia, trabalho, atividades comerciais,
Não se desconhece que a exclusividade de uso é quase tanto impossível de ser
mantida quanto indesejável, porquanto uma comunidade em que predomina o uso
residencial necessita de um comércio para abastecimento local, como, por
exemplo, padaria, farmácia e feira-livre.
10 TJRS – Apelação Cível nº 597096817 - Novo Hamburgo, j. em 28/04/99 - 1ª Câmara
Cível – Rel. Irineu Marian. Este acórdão trata de ação civil pública que tem
9
5
industriais, de prestação de serviços, lazer), tudo para viabilizar o conforto da
coletividade, mantendo a equação de equilíbrio entre população e ambiente, assim
como entre área, habitantes e equipamentos urbanos.
A preocupação com a boa estética urbana revela-se, por exemplo, no
desenho funcional do traçado viário da urbe, na moldura das edificações, assim como
na comportada exploração publicitária feita por meio de faixas, cartazes, anúncios e
pinturas nas fachadas, ou nos painéis e outdoors, que buscam conciliar o apelo visual e
sua comunicação instantânea com os preceitos de ordenação paisagística.
Como já se ensinou, a estética urbana tem importância não só pelo seu
aspecto plástico, como também pelos efeitos psicológicos que produz "equilibrando,
pela visão agradável e sugestiva de conjuntos e de elementos harmoniosos, a carga
neurótica que a vida citadina despeja sobre as pessoas que nela hão de viver, conviver
e sobreviver".11
A CIDADE ILEGAL – O DESEQUILÍBRIO
Apesar das normas vigentes que asseguram, no plano ideal, a tutela ao
meio ambiente natural e construído, verifica-se, no plano dos fatos, que a cidade legal
constitui exceção, como se pode constatar na Região Metropolitana de São Paulo, o
que, aliás, se reproduz nos grandes centros urbanos.
Tudo se resume à falta de comando, de fiscalização, de exercício do
poder de polícia pelas autoridades municipais sobre o processo de urbanização
predatória e irracional que marca nossas grandes cidades. Às vezes essa
(ir)responsabilidade é compartilhada com órgãos do Estado, nos casos de áreas de
interesse metropolitano e/ou ambiental (como nas áreas de proteção aos mananciais).
O deficiente funcionamento desse serviço público, que irradia efeitos
danosos aos administrados difusamente considerados, ora decorre de fatores
estruturais (de pessoal ou financeiro), ora da compleição moral das autoridades e
por objeto a poluição sonora noturna provocada por ensaios de uma escola de
samba, em que o autor é o Ministério Público.
11JOSÉ AFONSO DA SILVA, “Direito Urbanístico Brasileiro”, Malheiros, 2ª ed.,
p. 273.
6
servidores públicos (corrupção, prevaricação), ora da falta de vontade política de
prefeitos em planejar ou prover a máquina administrativa de recursos humanos e
materiais, ora de sua omissão ou descaso com o meio ambiente natural e urbano.
Os atos de degradação ambiental (desmatamentos, assoreamentos de
cursos d’água, etc.) poderiam ser evitados em grande parte se o poder de polícia fosse
eficaz, concreto e menos burocrático. Da mesma forma, o uso, a ocupação e o
parcelamento do solo urbano seriam ordenados se houvesse fiscalização atuante da
Administração, de modo a inibir a clandestinidade.
12
A correta adoção de uma política habitacional e de obras evitaria os
problemas com as inundações periódicas nas grandes cidades, que tantas vidas
ceifaram e inúmeros danos materiais provocaram. Aliás, no campo das políticas
públicas, quando as autoridades investidas de implementá-las falham na sua missão, é
possível manejar a ação civil pública para suprir a falta ou corrigir distorções.
13
Vale dizer que, ao lado das transgressões praticadas pelos particulares
(pessoas físicas e jurídicas) nas atividades que comprometem o meio ambiente, em
geral a conduta comissiva desses agentes vem acompanhada da inércia do Município
em combater as infrações, que não exerce as atribuições constitucionais de ordenação
dos espaços habitáveis e de planejamento da urbe, para proporcionar o
desenvolvimento das funções sociais da cidade e o bem-estar de seus habitantes (CF,
arts. 30, VIII e 182).
A desordenada ocupação do solo protagonizada, por exemplo, pelos
loteamentos clandestinos, gerou a proliferação de habitações edificadas sem critérios
técnicos de solidez e estabilidade (insegurança) e em condições subumanas
A propósito, consulte-se MARCUS VINÍCIUS MONTEIRO DOS SANTOS, “Loteamentos
irregulares e clandestinos - a improbidade administrativa decorrente da
omissão dos agentes públicos no seu dever de fiscalização”, “in” Temas de
Direito Urbanístico 2, co-edição Ministério Público de São Paulo e Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo – IMESP, 200, pp. 241-253.
13
GUILHERME MELLO FERRAZ DE SIQUEIRA, “Políticas Públicas e Direito
Urbanístico – Papel do Poder Judiciário e Ação Civil Pública”, “in” Temas de
Direito Urbanístico 2, co-edição Ministério Público de São Paulo e Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo – IMESP, 2000, pp. 217-247; RODOLFO DE CAMARGO
MANCUSO, “A ação civil pública como instrumento de controle judicial das
chamadas políticas públicas”, “in” Ação Civil Púbica – Lei 7.347/1985 – 15
anos, Édis Milaré (coord.), RT, 2001, pp. 707-751.
12
7
(insalubridade) 14; o surgimento de focos de degradação do meio ambiente e da saúde
(loteamentos em área de proteção ambiental); o adensamento populacional
incompatível com o meio físico (má localização) e desprovido de equipamentos
urbanos e comunitários, gerando o crescimento caótico das cidades; a marginalização
dos seus habitantes com o incremento das desigualdades sociais e reflexos na
segurança da população local e circunvizinha (violência, comércio de drogas). 15
Nesse contexto, a população sofre os efeitos da cidade ilegal, arcando
com os custos das inevitáveis intervenções do Poder Público para a sua regularização.
Conflitos típicos das cidades desordenadas são travados diariamente por
detentores de propriedades, entre si, assim como entre os que exercem atividades do
mercado formal. Proprietários de imóveis desrespeitam as limitações de recuo e altura
das construções, com edificações excessivamente altas que projetam sombras nas
residências vizinhas, privando-as de insolação, aeração e iluminação.
Merece destaque, na espécie, a construção de prédios de apartamentos
em localidades onde as limitações outrora impunham um padrão de edificações
unifamiliares. Isso ocorre, em regra, graças à habilidade de um poderoso lobby das
empresas do mercado imobiliário, que logram convencer vereadores e prefeitos a
modificarem, pontualmente e sem planejamento, o zoneamento das cidades. 16
O comércio toma irregularmente o espaço das residências nas zonas em
que as últimas deveriam predominar, tudo sob os olhos complacentes da
Administração. Formam-se corredores de lojas e escritórios em locais projetados para
habitação, trazendo consigo tráfego, emissão de gases, barulho e agitação em
Estudos preliminares na Cidade de São Bernardo do Campo, Estado de São Paulo,
revelam que os loteamentos clandestinos em que não são respeitados os recuos
laterais das edificações – portanto, em que a insolação é prejudicada –
colaboram com o aumento de pacientes nos hospitais, com problemas pulmonares
e respiratórios, gerando custos com a assistência médico-hospitalar.
15 Sobre as causas e conseqüências dos loteamentos clandestinos, ver JOSÉ
CARLOS DE FREITAS, “Loteamentos clandestinos e suas modalidades fraudulentas:
atuação preventiva dos agentes públicos”, Revista de Direito Imobiliário, RT,
vol. 48, pp. 11-28.
16 Na Cidade de São Paulo, a Lei Municipal nº 11.773/95, instituidora das
chamadas “operações interligadas”, que facultavam a alteração de índices
urbanísticos (como construções acima do gabarito), do zoneamento e do próprio
plano
diretor,
mediante
contrapartida
em
dinheiro,
foi
julgada
inconstitucional por força da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
14
8
detrimento do zoneamento, do sossego e do conforto de um bairro residencial, o que
legitima a pronta atuação do Promotor de Justiça, pois é inquestionável que “a
organização de uma cidade e a fiscalização para o exato cumprimento de todos os
aspectos legais que lhe digam respeito, porque são bens de efeitos imateriais que
passam a integrar o patrimônio social, quando transcende do puramente individual, não
pode ficar fora da perspectiva da atuação funcional do Ministério Público”. 17
Instala-se grande quantidade de antenas de telefonia celular nas diversas
regiões da urbe, no mais das vezes sem lei específica delimitando os locais propícios
para tanto (quando não são clandestinas), sem estudos adequados para aquilatar
eventuais danos à saúde, em face da propagação de ondas eletromagnéticas.
A poluição sonora multiplica-se nas mais variadas formas. Vão desde a
instalação de bares nas zonas residenciais que, sem dispositivos de isolamento
acústico, executam músicas com vibrações sonoras superiores aos decibéis permitidos,
perturbando o sossego noturno. Passam pela sonoridade superlativa de cultos nos
templos religiosos e dos ensaios animados das escolas de samba que estorvam o sono
de todos. Chegam até às manifestações sindicais que pronunciam protestos em
caminhões que circulam equipados com aparelhos de som, promovendo incômodo à
concentração dos demais trabalhadores que laboram nas imediações.
A estética urbana é constantemente agredida por pichações em
monumentos, prédios públicos e particulares, fachadas de edificações, pontes,
viadutos, dentre outros 18. Placas e faixas de publicidade -- algumas desproporcionais,
outras aberrantes --, que se multiplicam sem controle, são afixadas em postes de
iluminação pública, nos suportes da sinalização de trânsito, no mobiliário urbano em
geral, maltratando a paisagem (muitos são anúncios de lançamentos imobiliários).
045.352-0/5-00 (TJSP, j. 14/02/01), porque o Legislativo delegava ao Executivo
a modificação dos índices, sem prévia reserva legal.
17 Apelação Cível nº 43.009 - Florianópolis - 2ª Câmara Civil – TJSC - Rel.
Napoleão Amarante - j. 28.06.94; no mesmo sentido, reconhecendo a legitimidade
para, liminarmente, determinar o fechamento de estabelecimentos comerciais
em zona residencial: Agravo de Instrumento nº 67.114-5/9 - Ribeirão Preto 7ª Câmara de Direito Público- TJSP - Rel. Jovino de Sylos – j. 17/05/99.
Consulte-se artigo de JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, “As pichações em São
Paulo: danos patrimoniais, urbanísticos e ambientais. Diagnóstico e propostas
para sua inibição”, “in” Temas de Direito Urbanístico 2, co-edição Ministério
Público de São Paulo e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – IMESP, 2000,
pp. 13-31.
18
9
Parcela da população contribui com a imundície urbana ao sujar as vias
públicas com restos de produtos, objetos e embalagens, agravando o entupimento dos
bueiros e galerias de escoamento de águas pluviais que, ao lado do processo
incontrolável de impermeabilização do solo (promovida em parte pelas construções),
colabora com as inundações periódicas dos centros urbanos, nas épocas das chuvas.
As áreas públicas são tratadas como coisa de ninguém. Muitos são os
exemplos das usurpações de bens públicos de uso comum do povo (ruas, avenidas,
praças, áreas verdes e institucionais, áreas de lazer, jardins, passeios, praias, etc.),
quase sempre toleradas ou consentidas pela Administração Pública.
O direito de livre trânsito pelos passeios cede espaço em favor das mesas
instaladas nas calçadas, por bares, restaurantes e lanchonetes, que oferecem local
aprazível aos comensais que bebemoram sem se importar com pessoas portadoras de
deficiência física e demais pedestres (dentre idosos e crianças), que são obrigados a
desviar e a perigosamente disputar espaços nas ruas com os automóveis.
Vendedores ambulantes (camelôs) desordenadamente tomam ruas,
praças, calçadões e demais logradouros para comercializar produtos de duvidosa
procedência, subtraindo o chão dos transeuntes.
Veículos
clandestinos
de
passageiros
(“peruas
de
lotação”)
multiplicam-se pelas vias de circulação em acirrada disputa com ônibus e táxis,
digladiando-se pela conquista da clientela.
Invasões de inúmeras áreas públicas, para fins de moradia por famílias de
baixa renda, contribuem com o aumento das favelas. Algumas são estabelecidas sob
pontes e viadutos, oferecendo risco difuso quando causam incêndios, abalando suas
estruturas, trazendo transtornos à circulação da população.
Outras modalidades de ocupação de áreas públicas têm proliferado com o
beneplácito das prefeituras. Delas são exemplos os bolsões residenciais, os
loteamentos em condomínio e o fechamento de ruas de antigos bairros.
10
Assistimos ao aumento de uma modalidade de privatização do espaço
público para fins de moradia, ora protagonizada pela camada social mais abastada ou
politicamente influente, que se apodera de áreas verdes, praças, espaços livres,
jardins, áreas de lazer, ruas, além de outros espaços que deveriam estar sendo
utilizados para abrigar edificações e usos coletivos como creches, escolas, postos de
saúde, bibliotecas, quadras poliesportivas, dentre outros equipamentos comunitários.
De um lado, estrelando como atores coadjuvantes, temos os bolsões
residenciais. Encontrados na Cidade de São Paulo, são verdadeiras ilhas ou
quadriláteros urbanos formados por um conjunto de ruas fechadas com muros, floreiras
de concreto e outros (irremovíveis) obstáculos ao trânsito de veículos, com apenas
uma entrada desobstruída.
É comum serem equipados com cancelas ou controle de acesso por
vigilantes particulares, sendo que pelo benefício da segregação não se paga qualquer
contrapartida ao Poder Público.
Criados para garantir a circulação restrita de moradores e a formação de
“centros de convivência”, deles são exemplos os bolsões dos Bairros de Interlagos,
Butantã, Morumbi e Pinheiros.
Para a aprovação desses bolsões e de outros tantos, é suficiente um
pedido junto à prefeitura, subscrito pela maioria de moradores, alguns pareceres
burocráticos de órgãos municipais, inclusive da autoridade local de trânsito e uma
pitada de uma boa influência. Uma receita para o conforto e sossego de poucos, em
detrimento do trânsito e da circulação de muitos.
Há outros bolsões criados de maneira mais sutil. Começam pela
transformação de vias de mão dupla em mão única, ou pela inversão de direção, de
modo que as ruas internas do futuro bolsão fiquem “protegidas” da circulação dos
veículos de não-moradores, dificultando sua busca por alternativas para a fuga do
trânsito congestionado de avenidas, vias marginais e ruas de intenso tráfego.
Tudo, é claro, proporcionado pelo órgão municipal de trânsito que, ao
limitar a circulação de automóveis, gera um cenário de isolamento do bairro (ou parte
11
dele), justificando, assim, o futuro fechamento físico com obstáculos ou com
sinalização modificada.
De outro lado, apresentam-se as estrelas principais, as moradias que
oferecem comodidade, luxo e segurança, além do “status” de se morar bem,
idealizadas por criativos empresários do ramo imobiliário, constituindo os chamados
“loteamentos fechados“, também conhecidos por “loteamentos em condomínio” ou
“condomínios fechados”.19
Tratam-se de grandes áreas loteadas (que contêm, por óbvio,
logradouros públicos), cercadas por muros, equipadas em sua entrada principal com
pórticos, guaritas e cancelas, vigiados por agentes privados de segurança que,
atuando no papel da Polícia Militar, patrulham as vias internas, controlam o acesso dos
não-moradores mediante prévia identificação, a quem se indaga o itinerário, permitindo
somente o ingresso dos residentes ou das pessoas por estes autorizadas, impedindo,
assim, a livre locomoção de “estranhos ao condomínio”, inclusive nas praias do litoral,
naqueles loteamentos situados ao longo da orla marítima.
Tudo funciona sob a batuta de uma associação de proprietários que
orquestra um verdadeiro constrangimento ilegal, tanto dos “estranhos” que lá não
residem, quanto dos moradores -- forçadamente “associados” --, dos quais são
cobradas taxas de administração e rateio de despesas com a coleta de lixo e com a
manutenção, limpeza, sinalização e asfaltamento das vias públicas (serviços primários
já custeados com o pagamento de tributos ao município), além dos serviços de
vigilância privada.
Quem compra um lote adere “voluntariamente” a uma associação de
proprietários, como condição para o negócio ser concretizado. Espécie de venda
casada que o código do consumidor costuma rotular de prática abusiva. 20
São figuras transgênicas que trazem o mapa genético dos loteamentos e o
gene egoístico dos condomínios verticais (prédios de apartamentos), cujos criadores --
Sobre sua ilegalidade, escrevemos o artigo “Da legalidade dos loteamentos
fechados”, RT 750/148-170.
20 Art. 39, I, CDC.
19
12
a pretexto de oferecerem segurança para poucos privilegiados -- cerceiam a liberdade
de ir e vir da população, transformam loteamentos em condomínios, ruas e praças
públicas em domínio privado, divisas em muralhas, transfiguram bairros em feudos,
convertem moradores em eternos condôminos devedores, rotulam cidadãos comuns de
invasores indesejados.
Não raro, gente simples como empregados domésticos, pedreiros que
edificam as casas, além de outros trabalhadores braçais que laboram nos
“condomínios”, são constrangidos em rotina de revista, na saída, pelos “controladores
de acesso”, numa operação “pente fino”, para garantir que os residentes não sejam
vítimas de furtos.
Uma terceira geração que contracena com os “loteamentos em
condomínio” (empreendimentos novos), são os loteamentos antigos que, embora não
tenham nascido fechados, ganham esse “status” mediante concessão de uso, pelas
prefeituras, das áreas públicas internas.
21
São bairros já consolidados que se representam também por associações
de proprietários, as quais, a pretexto de garantirem a segurança dos moradores com o
fechamento, em contrapartida assumem a prestação dos serviços públicos acima
apontados, contratando empresas sem licitação e arrecadando fábulas em dinheiro
dos associados, cuja adesão, nem sempre voluntária, é mantida com a ameaça de
processos judiciais, além do corte de fornecimento de água, de coleta do lixo ou de
entrega de correspondências que a empresa de correio deixa na portaria, por
determinação da associação.
Ilustrando essa figura, no Estado de São Paulo, temos os fechamentos de
ruas autorizados pelas prefeituras das Cidades de Mairiporã e Campinas, que, além de
não terem tido a adesão da unanimidade dos moradores, geraram intervenções do
Ministério Público para garantir a tutela de preceitos constitucionais violados. No caso
de Mairiporã, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou inconstitucionais onze leis que
Sobre o assunto, consulte-se o percuciente artigo de MARCELO FERREIRA DE
SOUZA NETTO, “Da proibição de fechamento de loteamento”, “in” Temas de Direito
Urbanístico, co-edição Ministério Público de São Paulo e Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo – IMESP, 1999, pp. 237-256.
21
13
autorizavam a privatização de ruas e logradouros, posto que contrastavam com o
direito de ir e vir dos demais administrados.
22
Tais “modelos” de moradia se repetem ao longo das praias marítimas do
nosso litoral, que são igualmente privatizadas para facultar o lazer exclusivo a poucos,
como ocorre na Cidade do Guarujá, em São Paulo.
Essas três figuras têm pontos que convergem. São guetos ou novos
feudos, qualificados pelo estigma da segregação social, em que os melhor
aquinhoados pela riqueza, quase sempre também influentes ou com livre trânsito nas
estruturas de poder, auferem privilégios em prejuízo do resto da população.
De ordinário, promovem a violação a direitos universais e fundamentais
insculpidos na Carta Magna: direito de locomoção (ir, vir, parar, estacionar), direito à
intimidade (não há lei que obrigue uma pessoa a se identificar a particulares nem
declinar seu itinerário), direito à igualdade (todos são iguais perante a lei), direito
social ao lazer (nas áreas públicas como praças, áreas verdes e de recreio), direito
de associação (ninguém pode ser compelido a se associar ou manter-se associado).
Nada os justifica, porquanto não está presente o interesse público. Afinal,
a quem interessa limitar a circulação e a fruição dos bens de uso comum do povo? A
quem aproveita a privatização de espaços públicos, que deveriam servir a todos,
indistintamente? Quem se beneficia dessas centralidades, nas quais o Poder Público
municipal está ausente (ou conivente)?
Talvez possam nos responder os protagonistas do ascendente mercado
de empresas de segurança privada (que monopolizam uma indústria com viaturas,
câmeras de vídeo, armas, vigilantes recrutados das milícias estaduais, nas horas de
folga...), bem assim os que contratam com as associações, sem licitação, para os
serviços de coleta de lixo, limpeza e conservação das vias públicas, ou mesmo os
presidentes, diretores e tesoureiros dessas associações, que se perpetuam nos seus
quadros diretivos, movimentando fábulas em dinheiro arrecadado dos moradores.
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ADIn nº 52.027.0/9, j. em 23/08/00, Relator Fonseca Tavares.
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Haverá, por certo, vozes que defenderão essas (de)formações
segregacionistas, inclusive com os argumentos da insegurança e da criminalidade que
consomem nossa sociedade em preocupação.
No entanto, uma análise comprometida com o interesse público (e não
com o interesse que se publica...), com os princípios da Constituição Federal que prega
a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais, e que objetiva a construção de
uma sociedade justa, livre, solidária, com a promoção do bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e qualquer outra forma de discriminação
(art. 3º, CF), certamente tenderá a concluir que o isolamento de poucos privilegiados
não resolverá o problema difuso da violência nem da insegurança, que atinge todos,
indistintamente, ricos e pobres.
Este é o panorama do meio ambiente urbano que, para ser equilibrado,
depende em muito da consciência de legisladores e governantes com perfil de
estadistas, planejadores com visão de futuro, como também de uma população mais
participativa, atuante e cônscia de seus direitos. Para tanto, o Estatuto da Cidade
parece sinalizar uma luz no horizonte.
PLANEJAMENTO E EQUILÍBRIO AMBIENTAL NO ESTATUTO DA CIDADE
Não pretendemos fazer uma profunda incursão nas normas, princípios e
institutos da Lei 10.257, de 10/07/01, mas apenas abordar dispositivos de interesse
para este ensaio.
Dentre as diretrizes estabelecidas no art. 2º do Estatuto, relativas à
política urbana, cujo objetivo visa à ordenação do pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e da propriedade urbana, destacamos os incisos que preceituam:
a) o direito às cidades sustentáveis, em cujo conceito se dá ênfase ao
saneamento ambiental para as presentes e futuras gerações (“I”);
b) o planejamento como forma de desenvolvimento das cidades, de modo
que a distribuição espacial da população e das atividades econômicas seja feita de
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maneira racional, evitando e corrigindo distorções do crescimento urbano, notadamente
quanto aos efeitos negativos sobre o meio ambiente (“IV”);
c) o maior controle sobre o uso do solo, evitando-se: proximidades entre
usos incompatíveis ou inconciliáveis (racional distribuição entre os usos residencial,
comercial, industrial e institucional); construções ou parcelamentos excessivos em
relação à infra-estrutura (equilíbrio entre densidade de ocupação e infra-estrutura); a
deterioração de áreas urbanizadas; a poluição e degradação ambiental (“VI”);
d) a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural,
construído e cultural (“XII”);
e) a audiência da população para a implantação de empreendimentos e
atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou
construído (“XIII”);
Além das diretrizes, o Estatuto da Cidade relaciona instrumentos da
política urbana em seu art. 4º, classificados em instrumentos de planejamento (incisos I
a III), institutos tributários e financeiros (IV), e institutos jurídicos e políticos (V e VI).
Por encerrarem uma proposta de sustentabilidade ambiental e de justiça
social, alguns dos instrumentos do último grupo merecem breve referência, porquanto:
- trazem limitações ao direito de livre disposição da propriedade urbana,
propondo-se a atender objetivos de caráter fundiário, urbanístico e ambiental (direito de
preempção – arts. 25 a 27);
- facultam alterações no potencial construtivo dos imóveis, permitindo a
captação de recursos da iniciativa privada para fins coletivos, ambientais e sociais
(outorga onerosa - arts. 28 a 31; e transferência do direito de construir – art. 35);
- proporcionam intervenções locais visando transformações estruturais,
também com recursos de particulares (operações urbanas consorciadas – art. 32).
Pelo direito de preempção, o município terá prioridade na compra de
imóveis situados em áreas da cidade previamente delimitadas pelo plano diretor,
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bastando que os proprietários notifiquem sua intenção de venda ao Poder Público, para
que este possa exercer o direito de preferência.
Sua destinação é vinculada a regularizações fundiárias, projetos
habitacionais de interesse social, controle da expansão urbana, instalação de
equipamentos urbanos (obras de escoamento de águas pluviais, redes de água e
esgoto, iluminação, pavimentação, etc.) e criação dos comunitários (áreas verdes e
institucionais, de lazer, praças, etc.), para a formação de unidades de conservação e
proteção de áreas de interesse ambiental, histórico, cultural ou paisagístico (art. 26 e
incisos I a VIII). O desvio de finalidade constitui ato de improbidade administrativa do
prefeito (art. 52, III).
Pela outorga onerosa do direito de construir (art. 28), o potencial
construtivo de um imóvel, definido no plano diretor e na legislação específica, poderá
ser exercido acima do coeficiente de aproveitamento (relação entre área edificável e a
área do terreno, ou o tamanho da edificação), como também poderá haver a alteração
do uso do imóvel, mas em ambos os casos mediante contrapartida a ser prestada pelo
beneficiário ao município, que deverá destinar os recursos para as mesmas finalidades
acima previstas para o instituto da preempção (art. 31).
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Se estiver previsto em lei municipal, baseada no plano diretor, o
proprietário de imóvel urbano, privado ou público, poderá também exercer o direito de
construir em outro local ou aliená-lo (art. 35), quando o bem de raiz for considerado
necessário para fins de preservação e encerrar interesse histórico, ambiental,
paisagístico, social ou cultural.
Agora, segundo a Lei 10.257/01, proprietários de terrenos insertos em
áreas de proteção ambiental 24, assim como os titulares do domínio de bens tombados,
ao invés de se desinteressarem pela sorte desse precioso patrimônio natural ou
cultural, ou promoverem desmatamentos, qualquer outro tipo de degradação ou
Ver nota nº 16, quando tratamos da ADIn versando sobre a
inconstitucionalidade de lei em que o Legislativo delegou poderes para o
Executivo alterar índices, sem definição prévia na lei.
24 Como também aqueles imóveis necessários à implantação de equipamentos
urbanos e comunitários, ou destinados a servir a programas de regularização
fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e
habitação de interesse social (art. 35, I e III).
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destruição, poderão tirar proveito econômico do seu bem se o mantiverem com as
características ambientais originárias, pois a preservação de áreas ou imóveis dessa
natureza é uma das razões de ser do instituto da transferência do direito de construir.
O Estatuto da Cidade, a nosso ver, pretendeu premiar o proprietário que
respeitar a função social e ambiental da propriedade, não podendo ser beneficiado, por
evidente contra-senso, aquele que negligenciou sua guarda, que permitiu, por omissão,
a ação predatória de terceiros, ou aquele que agiu conscientemente com espírito
destruidor, para, ao depois, ainda usufruir os benefícios da Lei 10.257/01.
É razoável admitir, todavia, a utilização desse instituto para a hipótese de
imóvel já degradado, que não atendeu à função socioambiental, quando o proprietário
efetivamente restaurar a área, promovendo a reparação integral (nos casos em que isso
for possível), desde que a recomposição do patrimônio natural, cultural ou artificial seja
concretizada, e não só quando consignada, por exemplo, em termo de compromisso de
ajustamento firmado com o Ministério Público, que poderá servir, naturalmente, como
instrumento condicionante para o futuro exercício da transferência do direito de
construir, desde que o bem esteja totalmente recomposto.
Acresça-se que se o proprietário doar seu imóvel ou parte dele ao
município, para os fins previstos no art. 35, incisos I a III, poderá também se beneficiar
do direito de construir noutro local, consoante preceitua seu § 1º.
Já as operações urbanas consorciadas (art. 32) constituem mecanismo
de intervenção em determinadas áreas, destinadas a operar transformações
urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental, podendo ser
utilizadas por proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados,
mas sempre sob a coordenação do Poder Público municipal, a justificar, assim, a figura
do consórcio.
Para essas operações exige-se uma lei municipal, também baseada no
plano diretor, que poderá prever a modificação de índices e características de
parcelamento, uso e ocupação do solo e subsolo, assim como alterações de normas
edilícias, sempre considerando o impacto ambiental decorrente (art. 32, § 1º, I).
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Tais operações podem contemplar, outrossim, uma anistia, pois facultam
a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo
com a legislação vigente (art. 32, § 2º, II). Mas essa anistia não pode, à evidência, ser
extensiva a ponto de perdoar infrações a normas que tutelam o meio ambiente cultural
ou natural, como edificações feitas em bens tombados ou em áreas de preservação
permanente, por exemplo, posto que o instituto das operações urbanas consorciadas
visa, nesse ponto, a valorização ambiental (art. 32, § 1º), não o inverso.
Exige-se a elaboração de um plano que contenha, no mínimo, a
delimitação da área a ser atingida, com um programa básico de sua ocupação e outro
para o atendimento socioeconômico da população diretamente afetada pela operação
urbana consorciada. Além disso, esse plano deve conter as finalidades da operação e a
contrapartida a ser prestada ao município, cujos recursos devem ser aplicados
exclusivamente na própria área.
Podem ser emitidos certificados de potencial adicional de construção, que
admitem livre negociação em leilão ou utilização para o custeio das obras necessárias à
própria operação, mas a sua conversão em direito de construir só será permitida
unicamente na área do plano.
Como um de seus elementos indispensáveis, a Lei 10.257/01 exige
também a elaboração do estudo de impacto de vizinhança (EIV - arts. 36 a 38).
Importante instrumento de controle social e democrático, o EIV deve ser utilizado
também para referendar empreendimentos e atividades públicos ou privados em área
urbana, como condicionante para a expedição de licenças e autorizações de
construção, ampliação ou funcionamento a cargo do município.
Criado por lei municipal que definirá as hipóteses em que será necessário,
na elaboração do EIV -- a que se deverá dar ampla publicidade e garantia de acesso
aos seus documentos a qualquer interessado --, será obrigatório considerar os efeitos
positivos e negativos sobre a qualidade de vida da população residente na área e
proximidades.
Além disso, o estudo deverá aferir o impacto sobre o adensamento
populacional e os equipamentos urbanos e comunitários, o uso e a ocupação do solo,
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aquilatar a valorização imobiliária, a geração de tráfego e demanda de transporte
público, aspectos de ventilação e aeração, assim como as influências sobre a paisagem
urbana e os patrimônios natural e cultural (art. 37). A lei ressalva que o EIV não substitui
a elaboração nem a aprovação do estudo de impacto ambiental (EIA) previsto na
legislação respectiva (art. 38).
Estes e outros instrumentos do Estatuto da Cidade dão ênfase ao
planejamento como indutor do desenvolvimento e da expansão urbanos, para alcançar
o equilíbrio social e ambiental. O plano diretor é seu representante máximo.
Longe de ser uma panacéia, a Lei nº 10.257/01, que contém normas de
ordem pública e interesse social, credencia-se a auxiliar na tutela do meio físico natural,
cultural e artificial, ao dispor que o uso da propriedade urbana deve ser exercido em prol
do bem coletivo e do equilíbrio ambiental (parágrafo único do art. 1º).
Ela prestigia a participação popular, na medida em que propõe: a gestão
democrática na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e
projetos de desenvolvimento urbano (art. 2º, “II”); o controle social na utilização dos
instrumentos que implicarem dispêndio de recursos públicos municipais (art. 4º, § 3º); o
monitoramento de operações urbanas (art. 33, VII); a participação na discussão do
plano diretor (art. 40, § 4º, I), na gestão da cidade, no que respeita à formulação do
orçamento participativo, do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias, do
orçamento anual e nas atividades dos organismos gestores das regiões metropolitanas
e aglomerações urbanas (arts. 43 a 45).
O Estatuto da Cidade incorpora o que a doutrina de Hely Lopes Meirelles
pregava há muito, de que "não se realiza urbanismo particular"
25 .
Sobrepondo o
interesse público ao privado, "o urbanismo tem uma missão social a cumprir na
ordenação dos espaços habitáveis", para assegurar à população as melhores
condições de vida 26. Portanto, não se concebe, hoje, que a sorte das cidades fique a
reboque da conveniência (ou negligência) do administrador público, nem que o
25
"Direito Municipal Brasileiro", 9ª ed., Malheiros, p. 370.
26
HELY LOPES MEIRELLES, "As restrições de loteamento e as leis urbanísticas supervenientes",
Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, vol. 5, out./74, p. 28.
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planejamento urbano seja definido entre quatro paredes, por técnicos, políticos e
investidores do mercado imobiliário.
Para garantir a implementação de suas diretrizes, institutos e mecanismos
de ordenação das cidades, a Lei nº 10.257/01 agregou a ordem urbanística ao rol dos
interesses difusos tutelados pela Lei da Ação Civil Pública (arts. 53 e 54), elegendo o
Ministério Público como guardião do Estatuto da Cidade, que tem, assim, mais um
desafio na defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e
individuais indisponíveis, assim como do patrimônio público e social (arts. 127, caput, e
129, II e III, CF; Lei 7.347/85; art. 25, IV, "a", da Lei nº 8.625/93).
27
Sobre alguns exemplos das muitas questões de ordem urbanística que reclamam
a intervenção do Ministério Público, consulte-se nosso “Dos interesses
metaindividuais urbanísticos”, “in” Temas de Direito Urbanístico, co-edição
Ministério Público de São Paulo e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo –
IMESP, 1999, pp. 298-303.
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