Ricardo Monteiro História de Música Popular Brasileira de 1902-1929 Entendendo-se por indústria cultural o tipo de aparato tecnológico e econômico capaz de efetuar a reprodução de uma obra artística – como por exemplo, uma performance musical – em grande escala, podemos considerar como marco zero do nascimento da indústria cultural, no Brasil, o início das atividades da Casa Edison, fundada por Fred Figner, no Rio de Janeiro em 1900, como firma de gravação musical a partir de 1902. (Ricardo Monteiro) História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 1 A Música Popular Brasileira durante a República Velha Os primórdios da gravação Entendendo-se por indústria cultural o tipo de aparato tecnológico e econômico capaz de efetuar a reprodução de uma obra artística – como por exemplo, uma performance musical – em grande escala, podemos considerar como marco zero do nascimento da indústria cultural, no Brasil, o início das atividades da Casa Edison, fundada por Fred Figner, no Rio de Janeiro em 1900, como firma de gravação musical a partir de 1902. Embora Thomas Edison (1847-1931), o inventor do fonógrafo, tenha fundado a primeira gravadora nos Estados Unidos já em 1878, foi sobretudo na década de 1890, que essas empresas começaram de fato a se espalhar, destacando-se dentre outras, a Columbia que antes de 1900 já se tornara uma empresa multinacional com escritórios em Londres e Paris. Se Buenos Aires, capital de um país, na época social e economicamente muito mais adiantado do que o Brasil, já realizava gravações alguns anos antes de nós, vale lembrar que a Deutsche Gramaphon apenas iniciara suas atividades em 1899, mesmo ano em que foi fundada a Compagnie Française du Gramophone. saiba mais Assim, pode-se afirmar, categoricamente, que o Brasil está entre os primeiros países a implementar companhias de gravação – ainda que se leve em conta que as matrizes tinham de ser enviadas para o exterior, já que as indústrias de produção de discos somente chegariam cerca de vinte anos mais tarde. Thomas Edison (1847-1931) , inventor do fonógrafo, é também o fundador da primeira gravadora, a Edison Speaking Phonograph Company, de 1878. Tal pioneirismo legou-nos uma situação privilegiada no que tange a nossa música popular. Se já não bastasse o Brasil ser um dos poucos países do Novo Mundo a apresentar, já no final do século XVIII, uma música popular não só documentada em partituras, mas ainda com evidentes características nacionais, a existência de gravações datando já de 1902 nos permite ouvir com clareza, ainda na alvorada do século XX, os últimos ecos da música do século XIX. Assim, ao ouvirmos “Atraente” com o grupo de Chiquinha Gonzaga, dirigido pela própria, estamos ouvindo algo da paisagem musical que inspirou a compositora no remoto ano de 1877, menos de 10 anos após a Guerra do Paraguai, mais de 10 anos antes da Abolição da escravidão no Brasil. 2 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 1ª Fase – A Música Popular Brasileira durante a Belle Époque O apogeu da música instrumental No período que se estende das primeiras gravações da Casa Edison em 1902 até a I Guerra Mundial, a música popular brasileira gravada representa, em linhas gerais, uma continuidade de correntes estéticas amadurecidas no século XIX. Vale aqui apresentar também uma questão técnica que consideramos bastante relevante. A gravação por sistema mecânico, demandando um alto volume de som para que a agulha deixasse uma impressão nítida na matriz de cera, imprimia melhor qualidade à música instrumental do que à canção. Esta última não poderia jamais ser interpretada com a naturalidade de um Mário Reis (1907-1981), só possível a partir do advento do sistema elétrico de gravação (c.1927), ou com a voz sussurrada que João Gilberto muito mais tarde imprimiria à interpretação da Bossa Nova a partir da década de 1960. Mesmo assim, apesar da questão técnica que tanto prejudicava a compreensão e fruição das primeiras canções gravadas no Brasil, a marcante presença da música instrumental, nesse período, chama a atenção para um fato bastante incômodo: a constatação de que a música instrumental, no país, já foi de cunho extremamente popular. saiba mais De fato, a prática musical de finais do século XIX, com a inexistência de aparelhos de reprodução e de meios de comunicação de massa, incentivava sobremaneira a difusão do aprendizado musical – formal ou informal – como meio de acesso ao prazer da fruição musical. Além disso, a venda de partituras proporcionava um acréscimo de renda e de prestígio para os autores musicais. Assim, a música publicada por Chiquinha Gonzaga (1847-1935) – mais do que a de Ernesto Nazareth (1863-1934) – era uma música não só agradável de ser ouvida, mas também tecnicamente acessível para que parte de seu público pudesse executá-la – em geral, ao piano. Ernesto Nazareth (1863-1934), embora fizesse escrever sobre suas partituras para piano a classificação de “Tango Brasileiro”, tem sua música hoje inequivocamente associada ao gênero que conhecemos como “Choro” – designação ainda tanto incomum quanto relativamente desprestigiada, na época em que atuou. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 3 saiba mais Essa música instrumental esteticamente rica, porém acessível, foi uma das grandes perdas da música brasileira, ao longo do século XX. Perdendo em popularidade para a canção, a música instrumental foi se tornando, paulatinamente, uma especialização para intérpretes em geral de grande habilidade técnica e conhecimento musical. Isso terminou contribuindo para o surgimento de um certo virtuosismo que, sem roubar-lhe a qualidade que sempre a caracterizou, viu todavia a música instrumental brasileira de certa forma se distanciar de um público que, incapaz de executá-la, limitou-se a admirar seus brilhantes intérpretes e compositores. Todavia, esse, como muitos outros, não foi um fenômeno especificamente brasileiro, podendo ser sentido também, em diferentes graus, em outras culturas do continente americano, como na Argentina e Estados Unidos. Assim, segundo o pesquisador Jairo Severiano, 61,5% da música gravada no Brasil até 1920 era instrumental, contra apenas 38,5% de canções. Entre os muitos protagonistas dessa música instrumental, destacaremos a Banda da Casa Edison; ou seja, a banda formada e mantida pela própria gravadora , a Banda do Corpo de Bombeiros, fundada em 1896 por Anacleto de Medeiros (1866-1907), grupos como o da maestrina Chiquinha Gonzaga, o Passos no Choro (fundado pelo flautista Antônio Maria Passos, que também atuava no grupo de Chiquinha e que mais tarde perderia o lugar de solista no Cine-Teatro Rio Branco para um Pixinguinha de apenas 15 anos), o grupo Terror dos Facões - “facão” era a gíria para designar o músico que tocava mal e seu fundador foi o violonista, bandolinista e compositor gaúcho Octávio Dutra (18841937) – e solistas como o virtuose na flauta e compositor Patápio Silva (1881-1907) e o compositor e trompetista da Banda do Corpo de Bombeiros Casimiro Rocha (1880-1912). O flautista e compositor Patápio Silva (1881-1907), um dos primeiros e mais brilhantes instrumentistas a gravar, na fase inicial da indústria fonográfica brasileira. A alvorada da canção A canção popular até a I Guerra tende a se concentrar naquelas formas tradicionais, consolidadas ao longo do século XIX, e já discutidas por nós anteriormente: a modinha e o lundu. Todavia, dentro ou na vizinhança desse último gênero, vale destacar o caso da chamada cançoneta. A cançoneta era uma canção cômica, advinda de um universo no limite entre a opereta e o cabaret parisiense. O double sens - duplo sentido - era uma de suas características mais marcantes, sem no entanto ser nenhuma novidade na estilística do lundu, que já apresentava duplicidade de sentido (uma das leituras de sentido malicioso ou francamente pornográfico) já em algumas partituras do século XVIII. 4 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 A proximidade entre os mundos do teatro e da música era conseqüência natural de um ambiente como o da segunda metade do século XIX, em que a vida cultural estava maisnosrepertório centralizada teatros da Corte, como o Alcazar, fundado em 1859 e especializado em operetas, o Teatro São José, que se associaria às Revistas, ou o mais sisudo Real Teatro de São João, fundado por D.João VI em 1813. Assim, não é de se estranhar que entre as primeiras gravações, efetuadas no Brasil, esteja o lundu “Isto é Bom”, cançoneta (na verdade, um lundu) do excepcional ator e compositor Xisto Bahia (1841-1894). Tal canção recebeu inclusive duas interpretações: a de Manuel Pedro dos Santos, mais conhecido como Baiano (1887-1944) – o qual é considerado por muitos como o primeiro cantor a gravar no Brasil, com o próprio “Isto é Bom” – e o palhaço, poeta e compositor Eduardo das Neves (1874-1919), que viria a ser pai do célebre compositor Cândido das Neves (1899-1934). mais repertório Xisto Bahia (1841-1894), personagem que marcou profundamente o teatro e a música de sua época. O célebre Baiano da Casa Edison (1887-1944), tem posta em dúvida sua apontada condição de primeiro cantor a gravar no Brasil, é, porém inquestionavelmente o primeiro a gravar um samba no Brasil, com a gravação de “Pelo Telefone”, de Donga (1889-1974) – se bem que há quem considere que “Pelo Telefone” não foi o primeiro samba a ser gravado, só que isso já é uma outra e intrincada história... O palhaço, compositor, cantor e poeta Eduardo das Neves (1874-1919), no auge de sua carreira, costumava se apresentar de smoking azul e chapéu de seda. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 5 A esses dois intérpretes unem-se alguns outros nomes de grande destaque, nessa fase da canção brasileira: o paranaense Manoel Evêncio da Costa Moreira, mais conhecido como Cadete (1874-1960) - o apelido se devia a sua passagem pela Escola Militar do Rio de Janeiro -, que largaria a carreira de cantor para se tornar um próspero farmacêutico; o grande barítono Mário Pinheiro (1880-1923), que se consagrou como o mais brilhante cantor de sua geração, trafegando com desenvoltura entre os gêneros populares e eruditos, atuando na ópera Moema, de Delgado de Carvalho, na inauguração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1909 e despontando para uma carreira internacional em que se destacam apresentações no Teatro Scala de Milão e diversas gravações, nos Estados Unidos – conquistas que, lamentavelmente, não o impediram de falecer na miséria; e grupos como “Os Geraldos”, fundado pelo dançarino e cançonetista Geraldo Magalhães (18781970), que gravavam cançonetas e ao mesmo tempo faziam carreira nos teatros e salões da Lapa cantando e dançando maxixes. O maxixe é, para vários pesquisadores, o primeiro gênero de música urbana brasileira (o lundu seria considerado de origem rural e a modinha, de procedência portuguesa). Surgido no último quartel do século XIX, o maxixe parece ter surgido inicialmente como uma forma brasileira de se dançar as músicas de salão de compasso binário de sua época – a habanera, a polka, o lundu, e, mais tarde, o tango. Embora alguns autores insistam na influência deste último sobre o maxixe, tal hipótese não parece consistente à medida que a figura básica do maxixe enquanto música é claramente: ao passo que a figura característica do tango oscila entre: figura essa que aparece, por exemplo, no clássico de 1905 “El Choclo”, de Ángel Villoldo (1861-1919) e que coincide com a célula rítmica da habanera; ou com: 6 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 mais repertório O grande cantor Mário Pinheiro (1880-1923), em sua curta vida, conheceu a penúria da vida de palhaço de periferia e a glória de se apresentar no Scala de Milão, um dos mais importantes teatros de ópera do mundo. O Grupo “Os Geraldos”, fundado pelo gaúcho Geraldo Magalhães (1878-1970), além de participar de maneira atuante da primeira fase das gravações no Brasil, ajudou a divulgar o Maxixe na Europa, apresentando sua dança e sua música em vários países do velho continente. leitura recomendada que deriva do paso doble espanhol e que pode ser encontrada em um outro célebre clássico, “La Cumparsita”, de Gerardo Matos Rodriguez (1897-1948). Deixando-se de lado, porém a componente musical da possível influência do tango, há todavia fortíssimas evidências de que a cultura platina tenha de fato deixado suas marcas no maxixe – mas através de sua dança e do jargão do submundo urbano portenho conhecido como lunfardo. O intenso intercâmbio, promovido pela rota marítima entre os portos de Buenos Aires e Rio de Janeiro, parece ter sido mais do que suficiente para justificar a comunicação entre a cultura marginal das duas maiores metrópoles sul-americanas. A coreografia do tango, bem mais complexa do que a das danças de salão brasileiras, tem elementos que podem ter deixado suas marcas nos passos do maxixe – apesar da questão básica da intensa movimentação de quadris que caracteriza a dança brasileira e que todavia inexiste por completo no tango. Já quanto ao lunfardo, as influências são bem menos sutis. Termos como “mina” para designar “moça”, “bacana”; “garfear” (significando “roubar”); “cana” no sentido de “cadeia”; “otário”, “fulo” como “furioso”; “mixaria”, “engrupir”, “tira” como “policial”; “cancha”, “fajuto”, “fuleiro”, “guri” e, possivelmente, até mesmo o termo “malandro” migraram do basfond portenho para o carioca entre o final do século XIX e o início do XX (vale lembrar que o primeiro vocabulário de lunfardo de que se tem notícia foi publicado em Buenos Aires em 1878). Assim, ao que tudo indica, a cultura da Argentina – na época, uma das nações mais ricas do mundo – deixou algumas importantes marcas na cultura brasileira do início do século XX, notadamente naquilo que compreendemos como o universo cultural da malandragem. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 Livro: A Canção no Tempo - Vol. 1. Autor: Severiano, Jairo. Volume I: 1901-1957 A canção do tempo: 85 anos de músicas brasileiras (Vol.1) relaciona, classifica e analisa as canções que o povo brasileiro consagrou através dos anos de 1901 a 1957, oferecendo uma abrangente visão musical de toda essa época. É, pode-se dizer, a história da música popular brasileira na primeira metade do século XX, contada por suas canções de maior sucesso. Das modinhas e lundus de Eduardo das Neves, Cadete e Baiano da Casa Edison às composições pré-bossa nova de Dolores Duran, Luís Bonfá e Antônio Carlos Jobim nos anos cinqüenta. 7 Vale lembrar que tanto o Rio de Janeiro quanto Buenos Aires ressentiram- se, entre o final do século XIX e início do XX, de um grave problema social em comum, causado por um súbito excedente de força de trabalho ociosa que tendeu a se marginalizar. No caso argentino, o excedente se deveu à onda de imigração, gerando uma colônia estrangeira que chegou a atingir o espantoso índice de 50% da população da capital; no brasileiro, devido à desastrosa e irresponsável maneira como foi conduzida a Abolição, sem a menor preocupação do governo e da elite de cumprir seu dever de promover por todos os meios a inclusão social da população negra, o que gerou um gravíssimo problema social cujos ecos ainda hoje se fazem sentir. É precisamente o recrudescimento da problemática social que vai contextualizar as transformações da música popular brasileira nessa segunda fase do período da República Velha, fase essa que se inicia com a I Guerra Mundial para terminar com o crack da Bolsa de 1929 e seu desdobramento na Revolução de 1930. 2ª Fase – da I Grande Guerra à ascensão de Getúlio Vargas A entrada definitiva da América Latina no século XX Se os primeiros quinze anos do século XX tenderam a dar continuidade às formas estéticas e políticas engendradas no final do século XIX no Brasil, a I Grande Guerra é um dos marcos que pode servir de baliza para se organizar, cronologicamente, o engajamento definitivo nas transformações culturais e sociais que marcariam a entrada do país no século XX. Uma das razões para tal associou-se ao fato de a guerra ter tido alguns desdobramentos econômicos favoráveis ao Novo Mundo. Com a economia européia entrando em colapso devido às vicissitudes dos tempos de guerra, a demanda pelas matérias primas, produzidas nas Américas, cresceu substancialmente. Além disso, a carência de produtos manufaturados originários do Velho Continente incentivou um processo de substituição de importações, que contribui sobremaneira para o crescimento do parque industrial do Novo Mundo. O processo de urbanização acentuou-se tremendamente na América Latina, onde também começaram a ganhar força tanto uma burguesia industrial quanto uma classe média e um proletariado urbano. Com isso, a velha ordem oligárquica que vigorava do Golfo do México à Terra do Fogo, presa ainda a um modelo próximo ao conceito de monoculturas exportadoras, teve as bases econômicas de seu poder severamente minadas. Tal ordem oligárquica caracterizava-se por uma democracia de fachada, em que reinavam as elites ligadas às culturas de exportação. Em geral, o voto era censitário; ou seja, reservado apenas aos homens “de bem”; ou melhor, “de bens”, já que uma renda mínima era condição necessária para o exercício do direito de ir às urnas. Para piorar, as eleições eram freqüentemente – para não dizer quase sempre – fraudulentas, sendo comuns os desaparecimentos de urnas e o miraculoso voto de eleitores já falecidos. Além disso, o voto não era secreto, mas declarado publicamente, o que causava um sério constrangimento àqueles que quisessem votar contra a orientação dos coronéis, caudilhos ou chefes do poder local de qualquer natureza ou denominação. Sobretudo esse último aspecto levava ao fenômeno do “clientelismo”, pelo qual as elites cooptavam a colaboração das classes menos favorecidas pela concessão de favores, como ajuda material ou profissional, mas jamais pela concessão de direitos que sistematizassem uma transformação estrutural definitiva do status quo. 8 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 Essa situação de desigualdade e inadequação do modelo político à nova ordem social, que se configurava, tendeu a provocar comoções sociais em toda a América Latina. Todavia, vem do México o precedente de maior radicalismo. A Revolução Mexicana, se não chegou a um desmantelo completo da velha ordem social como o que teve lugar na Rússia em 1917, também não ficou muito a dever a ele pelas profundas transformações que suscitou. Em suma, o movimento foi desencadeado pela profunda concentração de poder e terras nas mãos da oligarquia mexicana. De fato, Porfírio Dias permaneceu na presidência daquele país de 1884 até 1910, quando o fazendeiro e intelectual Francisco Madero, após eleições fraudulentas que confirmariam novamente o poder de Dias, conclamou a nação a se insurgir contra o caudilho. Os heróis Pancho Villa (18781923) e Emiliano Zapata (1879-1919), figuras fronteiriças entre o estereótipo do bandoleiro e do guerrilheiro, foram lideranças fundamentais para a queda de Dias e o triunfo final da Revolução Mexicana, que em 1917, mesmo ano da Revolução Bolchevique, estabelecia as bases para uma grande reforma agrária e formulava uma legislação social avançada, estipulando o direito à associação sindical, à greve e à jornada de oito horas, entre outras conquistas substanciais. A Revolução Mexicana tornou-se uma fonte de inspiração tanto para a Revolução Russa quanto para a arte que a ela se seguiu, como exemplifica o filme de 1931 “Que Viva México”, do grande cineasta russo Serguei Eisenstein (1898-1948), e “Viva Zapata!” (1952), de Elia Kazan (1909-2003), um dos mais importantes diretores de cinema e de teatro dos Estados Unidos, no século XX. mais repertório Pancho Villa (1877?-1923), herói da Revolução Mexicana. Emiliano Zapata (18791919), herói da Revolução Mexicana. Por outro lado, Pancho Villa e Zapata começaram a assombrar o imaginário das elites latino-americanas, que passaram a ver em figuras como Virgulino Ferreira, o Lampião (1898-1938), possíveis catalisadores de revoluções do porte da mexicana. Virgulino Ferreira, o temido cangaceiro Lampião (18981938). Após a Revolução Mexicana (1910-1920), as elites latino-americanas passaram a temer que figuras de bandidos tidos como justiceiros pudessem desencadear processos revolucionários como o mexicano. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 9 Embora a Revolução Mexicana, definitivamente, não tenha sido um paradigma seguido pela América Latina, convulsões sociais se fizeram sentir por volta de 1917 em todo o continente. mais repertório le Entre muitas outras manifestações, vale destacar aqui os levantes de 1918 dos estudantes da Universidade de Córdoba, na Argentina, que, apoiados pelos sindicatos de trabalhadores, conseguiram coagir o governo a atenderem suas reivindicações de um sistema mais justo para o funcionamento das universidades. Já no Brasil, o ano de 1917 foi marcado por algumas das mais importantes greves da primeira metade do século XX, mobilizando dezenas de milhares de operários de diferentes estados do país. Calada, temporariamente, a voz popular dos anarco-sindicalistas pela mão forte do governo central, foi a vez de setores mais elitizados da sociedade se sublevarem com o advento do chamado tenentismo que, em episódios como o levante dos 18 do Forte de Copacabana em 1922, a Revolta de Isidoro Dias Lopes, em São Paulo em 1924 (em que a capital paulista chegou a ser bombardeada pelas tropas federais) e a Coluna Prestes que, de 1924 a 1927, realizou a terceira maior marcha militar da história, prenunciavam já a mobilização da classe militar contra a política do café-com-leite (acordo informal que promovia a alternância de presidentes mineiros e paulistas no poder) e contra a dominação oligárquica, vindo pouco mais tarde a desempenhar um papel fundamental na consumação da Revolução de 1930. O cineasta russo Sergei Eisenstein (1898-1948), autor de clássicos como “O Encoraçado Potenkim” (1925), é um dos artistas que melhor representam o fascínio que exerceu a Revolução Mexicana sobre a intelectualidade e a vanguarda dos movimentos sociais das décadas de 1920 e 1930. Tais convulsões sociais evidenciavam uma grande transformação na estrutura da sociedade urbana brasileira, transformação essa que não poderia se abster de deixar profundas marcas na vida cultural da nação. Em 1922, a Semana de Arte Moderna, sintomaticamente realizada no emergente pólo industrial que era a São Paulo da década de 1920, ao mesmo tempo sintoniza a arte nacional com a vanguarda artística européia e afirma um sólido compromisso de valorização da cultura popular, como é claramente expresso pelo Manifesto Pau-Brasil (1924) de autoria de Oswald de Andrade (1890-1945), mas tal movimento, fundamental na história cultural do país, não deve ser entendido como um fato singular, mas como a singular resposta brasileira a uma questão genérica com a qual se defrontaram as diferentes nações do continente. Assim, o equilíbrio entre vanguarda e tradição está também na obra dos grandes muralistas mexicanos, como Diego Rivera (1886-1957), Alfaro Siqueros (1896-1974) e José Clemente Orozco (1883-1947) – todos profundamente inspirados pela Revolução Mexicana e pela riqueza étnica e cultural de seu país. Na Bolívia, Alcides Arguedas (1879-1946) e seu romance Raça de Bronze (1919) lançam o gênero hispano-americano do romance indigenista. No Chile, Pablo Neruda (1904-1973) lança seus Vinte poemas de amor e uma canção desesperada (1924), iniciando sua carreira como um dos gigantes que alçarão a literatura latino-americana do século XX ao Olimpo da arte ocidental. E, em meio a esse turbilhão de efervescência cultural, como veremos agora, o samba pede passagem. 10 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 As modernidades e as transformações da música urbana De uma maneira geral, pode-se propor um recorte da música popular brasileira entre a I Grande Guerra e a Revolução de 1930 que focalize justamente as grandes transformações na linguagem musical com relação ao período imediatamente anterior. A partir dessa perspectiva, há três elementos há serem destacados: a ascensão da marcha carnavalesca; o início do período áureo do Teatro de Revista; o advento do samba. Permeando essas três manifestações, os fios condutores do Carnaval – festa popular havia mais de século estabelecida no país, mas cuja ascensão mais acentuada começava precisamente ali – e da mitificação da Capital Federal, que em alguns anos receberia a alcunha de “Cidade Maravilhosa” – justamente através de uma marchinha. O Carnaval, para o lingüista russo Mikhail Bakhtin, representa precisamente o momento da vida social de uma comunidade em que há uma suspensão – e não raro uma inversão – das estruturas hierárquicas: assim, vê-se com certa freqüência o homem que se fantasia de mulher e vice-versa; o pobre que se veste de rico e o rico que se fantasia de povo. Em um momento em que vários setores da sociedade, da base à burguesia industrial, anseiam por necessários reajustes na estrutura de poder, o Carnaval é uma metáfora bastante adequada para a revolução a que se aspira, mas ao mesmo tempo se teme viver. Da mesma forma, o humor tão típico daquela fase do teatro e da música que então se iniciava, mesmo quando nitidamente político ou social, chama a atenção para o fato de assumir um típico distanciamento com relação a questões que eram de fato sentidas como prementes. Tal distanciamento parece relacionado não tanto a um temor com relação a uma postura assumidamente combativa como com um sentimento tácito de inutilidade de se combater o Leviatã, que desde a época colonial engessa a máquina governamental brasileira em uma estrutura muitas vezes contraproducente com relação ao progresso econômico e social almejado pela maioria da sociedade. A canção “Ó Abre Alas” (1899), da maestrina Chiquinha Gonzaga, é tradicionalmente apontada como a primeira marcha brasileira composta para a celebração do Carnaval. O ritmo lento e solene foi, todavia paulatinamente ganhando um andamento mais rápido e alegre – segundo alguns autores, devido à influência das Jazz Bands, no final da década de 1910; segundo outros, para melhor se adequar à dinâmica das brincadeiras de rua. Em todo o caso, o traço de aceleração típico da modernidade se fez sentir desde aí, tornando a marchinha mais ágil. Tributária não só da marcha das bandas militares, mas também da riqueza melódica dos pastoris religiosos e da irreverência dos profanos, foi, sobretudo a partir dos chamados “ranchos” que a influência do pastoril se fez sentir no carnaval carioca, deixando sua linguagem cênica primordial, como herança para a renovação do carnaval que então se realizava, as figuras do mestre-sala, da porta-bandeira e das pastoras – denominação que trai com toda clareza o folguedo popular de que essas figuras são provenientes. Deixando de lado precedentes com origens total ou parcialmente atribuíveis à adaptação de canções estrangeiras, consideraremos aqui como marco inicial da marchinha carnavalesca a canção “Ai amor” (1921), de Francisco José Freire Júnior (1881-1956). História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 11 Freire Júnior, sintomaticamente, foi não só um compositor, mas também, e sobretudo, um dos mais destacados revistógrafos de seu tempo – por sinal, segundo José Ramos Tinhorão, “o único quem estava destinado enriquecer apenas com o recebimento de direitos sobre peças de teatro musicado” (Tinhorão, 1972:69). Assim, vêse a marchinha surgir pari passu com a nova fase de ascensão do Teatro de Revista – ou, mais precisamente, com a chamada Revista Carnavalesca. mais repertório le Em uma época anterior ainda ao advento do rádio no Brasil, era ao Teatro que cabia o lançamento das canções que aspiravam conquistar o público que, afeiçoando-se a certos números, adquiria discos e partituras de suas músicas preferidas. No entanto, naquela fase de intensas transformações econômicas e sociais e de busca de uma identidade nacional modernizada, a Revista jamais poderia ter se mantido fiel ao modelo francês que a vira chegar ao Brasil cerca de meio século antes. O compositor e A Revista se abrasileirara, cantando sambas e marchinhas, revistógrafo Freire Júnior apresentando portugueses e mulatas, malandros cariocas, (1881-1956). Um dos caipiras paulistas, ganhando uma linguagem cênica e mais importantes cenográfica mais nossa, afirmando dia-a-dia mais a autores da história do urbanidade e euforia de se viver no Rio de Janeiro. Tratamteatro musical brasileiro, se sem dúvida de duas grandes metáforas: a primeira hoje é um nome ritualiza, através da construção do imaginário da Cidade praticamente esquecido Maravilhosa, a urbanização do país e o gradual do grande público. distanciamento com relação ao antigo Brasil agrário, rural e ruralista que predominou da Colônia à República Velha; a segunda apresenta o Rio de Janeiro como síntese e metáfora do próprio Brasil, por ser o ponto de convergência da elite e das decisões políticas nacionais, o pólo de atração para onde afluem levas e levas de ex-escravos do Recôncavo Baiano e do Vale do Paraíba, de imigrantes (principalmente portugueses) e de migrantes (em geral, nordestinos). É precisamente a uma dessas levas migratórias – aquela procedente do Recôncavo – que a maioria dos pesquisadores atribui as origens do samba tal como se consolidou na indústria cultural. Como já vimos, por samba pode-se igualmente entender toda uma família de gêneros de música afro-brasileira espalhada pelos mais diversos pontos do país: o samba-côco de Alagoas e Pernambuco; o samba-de-roda baiano; o caxambu carioca; o jongo paulista etc. Teria sido o samba-de-roda do Recôncavo que, migrando para a capital, viria a dar forma ao que a indústria cultural convencionou chamar de samba – e não, por exemplo, o caxambu, originário da zona rural do próprio Rio de Janeiro. As mudanças que indicam as evidentes diferenças entre os sambas baiano e carioca teriam advindo ou da fusão neste último de outros estilos – como provavelmente o próprio caxambu, ou de um desenvolvimento natural dessa música respondendo aos estímulos de um ambiente cultural e natural bastante diferente daquele do Recôncavo. 12 História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 Tradicionalmente, considera-se como berço do samba carioca as casas das chamadas “tias baianas”. Entre elas, figurariam a mãe do sambista João Machado Gomes, ou João “da Baiana” (1887-1974), Perciliana Maria Constança (ou “Prisciliana de Santo Amaro”); a mãe de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga (1889-1974), chamada Amélia Silvana de Araújo, ou simplesmente “Tia Amélia”; e Hilária Batista de Almeida, a legendária “Tia Ciata”, cuja casa era citada por João da Baiana, Donga e por Alfredo da Rocha Viana (18971973), mais conhecido como Pixinguinha, como o principal ponto de reunião da comunidade que teria originado o samba do Rio de Janeiro. Donga, por sua vez, é o discutível (já que a autoria, provavelmente coletiva, é reivindicada por vários outros compositores) autor de “Pelo Telefone”, considerado tradicionalmente como o primeiro samba gravado – fato bastante curioso, já que, tecnicamente falando, “Pelo Telefone” é, inequivocamente, um maxixe. saiba mais O sambista João da Baiana (1887-1974), filho de uma das “Tias Baianas” que teriam sido as matriarcas fundadoras do samba urbano carioca, foi mais um grande artista brasileiro a terminar seus dias no Retiro dos Artistas – construído a partir de uma doação de Fred Figner, fundador da Casa Edison. O grande sambista Donga (1889-1974), tradicionalmente apontado como criador de “Pelo Telefone”, considerado o primeiro samba a ser gravado, teve a autoria dessa música questionada por músicos, críticos e historiadores. Aparentemente, a canção de fato já existiria e seria de autoria coletiva, mas Donga, que a teria ouvido e cantado na casa da legendária Tia Ciata, a gravou como se fosse apenas sua – o que na verdade pouco ou nada depõe contra o seu caráter, já que naquela época o conceito de autoria na música popular era bastante vago. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 13 Por fim, tanto o samba, cujo pioneirismo foi reivindicado por Donga, como a marchinha de carnaval, cuja criação atribuímos a Freire Júnior, tiveram não um inventor, mas um estruturador na figura ímpar de José Barbosa da Silva, o Sinhô (1888-1930). Como se não bastasse, também a renovada Revista se valeria dos serviços de Sinhô, desde “A Bahia é Boa Terra”, Revista de 1919 de Cândido de Castro e Luís Rocha que alavancou o sucesso de seu samba “Quem são eles?”, passando ainda, já em seus últimos anos, pelo sucesso da Revista “A Favela Vem Abaixo” (1927), de Máximo Albuquerque e Nelson de Abreu, lançando sua canção homônima. Nessa canção, Sinhô protesta contra a remoção dos habitantes do Morro da Providência – também chamado de Morro da Favela, originando a designação das habitações miseráveis precariamente construídas nas encostas dos morros cariocas. Esse Morro fora assim rebatizado por seus colonizadores, muitos dos quais ex-combatentes da Guerra de Canudos. A esses soldados fora prometida pelo governo a construção de casas como recompensa pelo esforço de guerra. Ganha a guerra, o tempo, a burocracia, a ingratidão e o descaso trataram de adiar por tempo indeterminado o cumprimento da promessa governamental. As moradias provisórias construídas pelos ex-combatentes tornaram-se definitivas. Estes passaram a chamar o morro de Favela em alusão a um morro homônimo onde o exército acampara já nas proximidades do arraial de Canudos. saiba mais Diz a lenda que esses soldados teriam trazido como esposas da Bahia, estado em que se localizava Canudos, algumas das célebres Tias Baianas que formariam a comunidade primordial do samba carioca. Assim, com Sinhô fazendo convergir samba, marcha e Revista e apontando com sua arte para as origens não só do samba carioca, mas também de alguns de seus mais pungentes problemas sociais, encerramos este breve capítulo sobre a música popular brasileira durante a República Velha. 14 Sinhô (1888-1930), um dos compositores mais importantes da música popular brasileira da década de 1920, teve papel relevante na fixação dos novos gêneros representados pelo samba e pela marchinha de carnaval. História de Música Popular Brasileira - de 1902-1929 bibliografia Albin, Ricardo Cravo (2003). O livro de ouro da mpb. São Paulo, Ediouro. Alencar, Edigar de (1965). O carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro, Freitas Bastos. Almirante (1963). No tempo de Noel rosa. São Paulo, Livraria Francisco Alves. Alvarenga, Oneyda (1950). Música popular brasileira. Rio de Janeiro, Editora Globo. Andrade, Mário de (1989). Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte, Itatiaia Araújo, Mozart de et alia(1977). Enciclopédia da música brasileira. São Paulo, Arte Editora Ltda. Bethell, Leslie (1998). A cultural history of Latin América. New York, Cambridge University Press. Cazes, Henrique (1999). Choro – do quintal ao municipal. São Paulo, Editora 34. Carretero, Andrés (1999). Tango – testigo social. Buenos Aires, Ediciones Continente. Diniz, Edinha (1991). Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos. Fernandes, Hélio de Almeida (2000). 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