América Latina: do não ser à metafísica da alteridade

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INTRODUÇÃO
“América Latina: do não ser à metafísica da alteridade” é uma tentativa de
aprofundamento da filosofia da libertação e de seu valor para a construção de um pensar
que seja essencialmente latino-americano.
Inspirar-nos-emos na obra “América Latina – o não ser”, de Roque Zimmermann,
formado em Filosofia, Teologia e Letras, que realiza uma abordagem filosófica tomando
como referência o caminhar histórico-filosófico-teológico de Enrique Dussell, um dos mais
eminentes expoentes do filosofar libertador.
O primeiro passo de nossa caminhada consiste em precisar o significado de
“América Latina – o não ser” e em verificar as implicações para a estruturação significativa
do real, analisando a estrutura paradigmática que propiciou a emergência e solidificação do
sistema dominante na América Latina.
Todavia, compreendemos que um conhecimento mais aprofundado dessa realidade
exigirá de nós a busca de suas raízes históricas. Neste sentido, o segundo capítulo deste
trabalho tratará de uma verificação das diversas formas através das quais se iniciou e
concretizou a opressão latino-americana desde o seu “descobrimento”.
Uma vez realizada tal reflexão histórica, procuraremos apontar, em primeiro lugar,
o princípio fundante e fundamental da dominação exercida, e, depois, uma possível
perspectiva para a efetiva libertação de nosso continente.
Por último, tomando como referência o pensamento dusseliano, verificaremos a
legitimidade ou não da lógica da alteridade como princípio para a estruturação de uma
lógica que realize dialeticamente a superação da ontologia da totalidade vigente na
contemporaneidade.
CAPÍTULO I – AMÉRICA LATINA: O NÃO SER
Filosofar: para muitos, um ato inútil; para outros, atitude própria da classe burguesa,
mais especificamente, daqueles que têm sua vida garantida; para outros, ainda, atividade
indispensável em nosso século, como princípio norteador do caminhar do homem
contemporâneo. De uma forma ou de outra, o ato de filosofar, em nossos dias, traz em seu
bojo uma característica básica: trata-se do desafio no qual se constitui.
Poder-se-ia perguntar: em uma sociedade marcadamente contraditória e relativista,
o que significa, exatamente, filosofar? Qual o papel da filosofia para o homem moderno e,
mais ainda, para o homem latino-americano?
Sem dúvida esta pergunta se tornou central e de importância sumária em nossos
dias, pelo fato de sua resposta determinar as coordenadas a serem percorridas por todos
aqueles que se dediquem ao mundo da Filosofia.
Percebe-se facilmente que não basta mais debruçar-se exclusivamente sobre
sistemas filosóficos pré- fabricados. Fruto do caminhar humano dentro da própria história,
eles foram surgindo aos poucos como resposta às muitas indagações levantadas pelo
próprio homem.
Em um grande número de sistemas filosóficos, homem e mundo foram sendo
analisados em sua complexidade e, em conseqüência, categorizados e definidos.
E embora não faltassem belas idéias e definições, a
“situação real existencial, ao menos para a imensa maioria, não se modifica em nada; ao
contrário, piora todos os dias.”(1)
____________________
1. Roque ZIMMERMANN, América Latina – o não-ser, p. 44
Verificamos também que para aqueles que vivem em total indigência,
marginalização e miséria, como cerca de aproximadamente cinquenta milhões de
brasileiros, a Filosofia não passa de uma inutilidade absoluta, e como tal continuará a ser
vista, enquanto não houver uma mudança no referencial de sua compreensão. É nesta
perspectiva que a Filosofia deverá deixar de ser compreendida como abstracionismo e
configurar como possibilidade efetiva de elaboração de um discurso analítico-crítico dessa
realidade. Assim sendo, ela ajudará não só na compreensão dos fatos, mas também na
estruturação de formas que promovam a superação dessa situação. Para tal, urge
desenvolver-se uma Filosofia própria, encarnada em nossa realidade e que seja, de fato,
libertadora.
Aqui, nossa pergunta inicial ganha maior profundidade: em que consistirá essa
filosofia da libertação?
Para ela, o ser é o OUTRO, em contraposição ao EU NARCÍSICO do subjetivismo
europeu. Todo o terceiro Mundo, mas em especial a América Latina, constitui-se no
OUTRO em relação ao centro do mundo. Nosso continente é com certeza tomado em sua
globalidade, mas como um ser historicamente negado, ontem e hoje.
A América Latina sofre os frutos de uma Filosofia que nega a finitude, predicando
como absoluto e perfeito um único ser, imanente como os outros. O resultado disto é o
privilégio de um em relação ao outro: aquele se torna, então, possuidor e manipulador
deste, a partir do momento em que se considera como O princípio, O que é.
Esta colocação pode ser facilmente verificada historicamente: na antigüidade, o
“GREGO É”, ao passo que todo aquele que está fora do âmbito conhecido e dominado pelo
grego, O BÁRBARO, “NÃO É”; na Idade Medieval, pertencia à esfera do ser todo
europeu, todo cristão; mas o índio e o negro foram excluídos dessa esfera.
Foi esse o papel aplicado pela Filosofia européia sobre a América Latina. A partir
de nossa realidade é que começaremos a ver como a periferia sofre a objetivação,
coisificação e negação do seu ser.
Analisando-a desvendaremos o aparelho ideológico alimentador da opressão por nós
sofrida.
1.1. O APARELHO IDEOLÓGICO OPRESSOR
Fome, violência, miséria, opressão, desemprego, repressão constituem uma constante
no panorama latino-americano. Compreender essa realidade no seu todo significa
desvendar os instrumentos que possibilitaram e ainda possibilitam a manutenção desse
quadro.
Constatar que a América Latina é um continente que se encontra ontologicamente
relegado à categoria de instrumento manipulável não é algo difícil. Fugir deste lugarcomum e superar a visão que compreende o Primeiro Mundo como o lugar de perfeita
interação entre paz, fartura e ordem é um desafio.
Neste sentido, a constatação de que esse sistema de exploração é uma realidade que
deve ser revolucionada levou pessoas, dos setores mais diversos (econômico, religioso,
político, filosófico, etc.), a se empenharem num esforço de pensar mais profunda e
sistematicamente nossa própria realidade. A linha básica para tal questionamento encontra
suporte na indagação: que conjunto de princípios e valores fundam essa opressão?
Um retorno ao fim da Idade Média e início da Moderna nos ajudará na busca da
identificação do modelo paradigmático que alimentou esse sistema, a saber: modelo
mecanicista cartesiano-newtoniano, cuja característica básica é condicionar a descrição e
vivência da realidade a parâmetros mais quantitativos que qualitativos.
Analisando este paradigma em si, destacando seus fundadores e algumas de suas
características e suas implicações para a estruturação do real poderemos compreender a
razão de sua instalação como referência cognitiva na práxis humana.
Nos séculos XVI e XVII, vimos cair por terra a cosmovisão escolástica (aristotélicotomista), caracterizada por uma forte união entre razão e fé, dominante na Idade Média, em
conseqüência da emergência dos movimentos renascentista e iluminista. Com eles, a razão
se desvincula do sagrado e se apresenta como valor fundamental para toda forma de
estruturação significativa do real. A ciência se vê agora modelada e orientada pelo método
de investigação empírico- indutivo de Bacon, pelo raciocínio analítico-dedutivo de
Descartes e pela física clássica de Newton; fruto desta compreensão, o mundo é
compreendido dentro do parâmetro racionalista- mecanicista-reducionista. O objetivo passa
a prevalecer sobre o subjetivo, a ênfase do aspecto quantitativo conduzirá à relativização da
dimensão qualitativo- valorativa e a ciência fechar-se-á aos questionamentos da filosofia e
da ética em prol do ideal progressista.
O século XVII é marcado, também, pela contemplação de um novo horizonte
científico. Galileu, Bacon, Descartes e Newton são os grandes responsáveis pela construção
e sustentação desse novo edifício. A partir deles, o conceito de ciência se fundamenta no
raciocínio lógico indutivo e dedutivo, na tentativa de se descobrir ordem e uniformidade e,
principalmente, na busca de relações ordenadas causais entre os eventos, na previsibilidade,
na regularidade e no controle, além de postular como elemento de máxima importância a
objetividade. Como método é relevante a utilização de técnicas matemáticas e
experimentais, de acordo com o modelo determinista causal.
Para chegar a isto, a ciência contou com a colaboração de quatro grandes homens.
Galileu Galilei (1564-1642), físico e astrônomo italiano, considerado o fundador da
Física moderna, foi o primeiro a utilizar a combinação raciocínio teórico + observação
experimental + rigorosa linguagem matemática.
Francis Bacon, contemporâneo de Galileu, político e filósofo inglês, primeiro
formulador do raciocínio indutivo, destaca-se como criador do método empírico de
investigação, e por sua metodologia, que visa às conclusões científicas partindo da
experimentação.
Ao lado de Bacon (1561-1626), destaca-se o filósofo e matemático francês René
Descartes (1596-1650), um dos maiores responsáveis pela formulação filosófica que
sustentou o nascimento da ciência moderna.
Considerado o fundador do racionalismo moderno, segundo o qual o homem pode,
pela razão, transcender o mundo empírico dos fatos e alcançar a essência dos mesmos,
Descartes trabalhava durante todo o tempo com o método racionalista-dedutivo.
Marcado por uma forte preocupação com a busca da verdade, René parte do
princípio de que é preciso duvidar de tudo, em primeiro lugar; só a partir daí é que se pode
começar a procurar a verdade primeira ou as verdades primeiras, evidentes, claras, das
quais não se pode duvidar. Duvidar, no entanto, significa pensar, e se “penso, logo existo”,
porque é impossível alguém afirmar que pensa, sem, ao mesmo tempo, afirmar
implicitamente sua própria existência. Esta é, pois, uma verdade clara e distinta e é por isso
que dela não podemos duvidar. Encontra-se aqui, certamente, a origem do racionalismo
predominantemente presente em todo o pensamento ocidental desde então até nossos dias.
Partindo da intuição, o método cartesiano faz ainda uma análise dos elementos
básicos componentes de um objeto. Através dela, Descartes chegou à conclusão de que
toda a natureza se divide em domínios distintos e independentes: o da mente (res cogitans)
e o da matéria (res extensa), alma e corpo, determinadas por uma terceira, eterna e infinita:
Deus.
Também no homem estes elementos se fazem presentes: o corpo, o organismo
funciona como uma máquina que aloja a alma, cuja essência é o pensamento. Surge, assim,
sob sua orientação intelectual, a concepção mecanicitsa: o homem- máquina habita o
mundo- máquina, regido por leis matemáticas perfeitas. Tudo se encaixa perfeitamente, a
exemplo de engrenagens, fundando-se o império da relação causa/efeito.
Esta visão cartesiano- mecanicista contou , ainda, com a contribuição de Isaac
Newton para se consolidar como paradigma definitivo modelador da visão moderna.
Defensor da “mecânica racional”, uma de suas características é a adoção do método
experimental, baseado na descrição matemática para se chegar à avaliação crítica dos
fenômenos.
O grande mérito newtoniano consiste na elaboração de uma síntese entre os
métodos empírico- indutivo de Bacon e racional-dedutivo de Descartes no seu sistema, que
unificou a metodologia da experiência e da matematização.
Esta profunda convicção no poder da razão humana em todos os sentidos e,
especialmente, dentro do campo científico despertou a possibilidade do progresso
tecnológico e lançou o homem moderno nessa busca.
E embora o século XX tenha sido marcado até hoje por grandes descobrimentos
científico-tecnológicos, o progresso obtido se tornou ambíguo pouco a pouco, porque nele
se empenhou de forma irresponsável.
Contraditoriamente, a mesma razão que nos possibilitou tamanho sucesso e salvou
inúmeras vidas fez com que presenciássemos o acontecer de duas grandes guerras
mundiais, dada a ausência de uma simultânea evolução ético-espiritual.
A uma busca desenfreada pelo progresso cabe a responsabilidade, em nossos dias,
pela corrida competitiva entre as grandes potências, a guerra fria, o comprometimento da
vida e o acirrar da divisão da humanidade em dois grandes blocos: o dos dominadores e o
dos dominados, manipuláveis e geradores de riqueza para os primeiros.
Neste segundo bloco, encontra-se a América Latina, transformada em mero
elemento gerador de riquezas para a manutenção dessa estrutura de dominação,
indubitavelmente uma produção do paradigma marcado pelo exacerbado caráter
racionalista- mecanicista, predominante nas formas da atual cosmovisão.
Em nosso século, este paradigma se apresenta de forma bastante concreta através da
fragmentação social, empregada e alimentada como estratégia de dominação. Uma vez
realizado o esfacelamento da sociedade em grupos isolados, torna-se mais fácil a
manutenção do poder, visto que se diminui, automaticamente, a possibilidade da existência
de uma reflexão questionadora, e nenhuma tentativa de revolução e emancipação contará
com a força da totalidade.
Constituidores da maior parte da população latino-americana, os grupos formados
pelos sem-terra, a juventude impossibilitada de ingressar-se no mundo do trabalho, os
meninos de rua, as prostitutas e outros mais, caracterizam-se pelo isolamento entre si, pela
impossibilidade de adquirir a hegemonia política e pelo seu condicionamento a um baixo
nível de vida que é devido a todo ser humano.
Trata-se de um fenômeno complexo, que gera a fragmentação do todo, do
organismo social em grupos sociais, peças maquinárias, vistos e tratados como minorias,
em vista da manipulação do todo pelo poder dominante.
Essa fragmentação da sociedade se configura como estratégia de dominação na
medida em que busca construir ou fabricar grupos sociais isolados e gerar práticas de
“guerra” entre si, impedindo, assim, o desenvolvimento da consciência-de-classe,
indispensável para a sua libertação. Atomizando a sociedade em categorias com escassa
capacidade de poder, orientando-as para reflexões particulares e para elaboração de projetos
internos e parciais e anulando toda possibilidade de união entre elas, a fragmentação atua,
principalmente, rompendo o horizonte da totalidade. Com este rompimento, nega-se toda
forma de existência de objetivos comuns, de troca de experiências, e de caminhada
libertadora.
CAPÍTULO II – UMA REFLEXÃO HISTÓRICA
O aspecto histórico aparece em Enrique Dussell como um fator indispensável, isto
é, para “descrever a libertação latino-americana” (1) faz-se necessário situar nosso
continente dentro da história mundial.
Embora conheçamos, portanto, ser para Dussell de fundamental importância uma
análise mais profunda da história latino-americana, entendendo-se por isso uma volta à préhistória da América Latina, autorizamo-nos, por economia de tempo e espaço, analisar
apenas o período da conquista deste continente.
Antes de iniciarmos, porém, o estudo em si dessa etapa da história latino-americana,
julgamos necessário o relato de dois elementos: a tendência fatalista marcadamente
presente diante da problemática atual, e a dificuldade encontrada em descrever a verdadeira
história, aquela cuja leitura se faz a partir dos vencidos. Vamos a eles!
Diante da realidade atual, ronda o pensar de muitos um dado ideológico perigoso e,
há muito, justificador de tal realidade. Trata-se de uma forte tendência fatalista, que
permeia a consciência daqueles que, sem uma visão crítica da realidade, tentam explicar
sua situação de pobreza e os leva ao comodismo conformista diante das dificuldades
encontradas.
Dados a dificuldade de compreensão e a impossibilidade de transformação imediata
dessa realidade, torna-se quase inevitável que se enverede por esse caminho, suicida para a
Filosofia da Libertação.
____________________
1. Enrique D. Dussell. Para uma Ética da Libertação Latino-Americana III, p.34.
Este pensamento pode ser ilustrado pelas palavras de Eduardo Galeano, em seu livro
“Veias Abertas da América Latina”.
“Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países se
especializaram em ganhar, e outro em que alguns países se especializaram em perder... A
América Latina foi precoce; especializou-se em perder (...)” (2)
Em segundo lugar, a historiografia oficial, que aprendemos na escola e que continua
sendo transmitida pelo sistema oficial de ensino é ideologicamente partidária, e, por isso,
não relata verdadeiramente o que aconteceu.
Assim sendo, faz-se necessário escrever nossa história sem se perder de vista a
realidade atual, fruto de séculos de dominação e exploração.
A contemplação de uma história autêntica, principalmente no que se refere ao
período de conquista de nossa terra, é fator decisivo para que se atinja nosso objetivo nesse
relato histórico: apresentar a América Latina como um continente negado, um não-ser
diante dos afirmados outros povos e nações.
2.1. CONQUISTA E COLONIALIZAÇÃO
Final do século XV, início do século XVI: portugueses e espanhóis se lançam ao
Atlântico em busca de riquezas. A costa africana é a primeira vítima dessa busca.
Aventurando-se como totalidades européias, Portugal e Espanha subjugam todos os povos
ali encontrados, na tentativa impetuosa de concretizar seu projeto: tomar posse da
______________________
2. Eduardo GALEANO, Veias Abertas da América Latina, p.13
farta
riqueza aqui existente, boa parte já em domínio europeu, incorporando a nova terra ao seu
próprio mundo.
Cabe aqui um aprofundamento da forma como é apresentada a chegada dos
europeus à América. Para muitos historiadores, nosso continente foi descoberto. Na
verdade, porém, isto só é correto se tomarmos o termo “descobrir” numa perspectiva
européia, que traduz a idéia de “incorporar a nova terra ao seu próprio mundo”.
Ao contrário do que se pensa, a capital dos astecas, a cidade de Technochtitlán,
antes da chegada dos espanhóis contava com mais de trezentos mil habitantes, dotados de
toda uma cultura milenar, totalmente arrasada pelos conquistadores.
Enfim, de massacre em massacre, em 1550 a conquista estava terminada. Mas, sob
que condições? A resposta será encontrada nas palavras de Tzvetan Todorov:
“Se a palavra genocídio foi alguma vez aplicada com precisão a um caso, então é esse... É
um recorde, parece-me, não somente em termos relativos (uma destruição da ordem de
90% e mais), mas também absolutos... Nenhum dos grandes massacres do século XX pode
comparar-se a essa hecatombe”. (3)
A idéia do massacre efetuado pelos espanhóis pode se tornar mais clara se
tomarmos por base cifras confiáveis, segundo as quais na época da chegada dos espanhóis
só o México contava com vinte e cinco milhões de habitantes, e toda a América Latina com
cerca de setenta milhões, caindo a população mexicana, porém, em 1600, para um milhão.
Contudo, não bastava tomar posse do encontrado. Reconhecida a riqueza como
característica de nossa gente, era preciso eternizar o quanto possível a dominação
estabelecida.
___________________________
3. Enrique D. DUSSELL, Caminhos da Libertação Latino-Americana II, p. 24.
Inicia-se, assim, o longo período de colonização, que se estenderia até
aproximadamente 1808.
Estes anos foram marcados básica e evidentemente pela opressão, expressa pela
violência e pelo uso da força. As instituições encomienda, mita e padroado garantiam aos
europeus a posse das terras, o direito às riquezas e a tutela sobre os índios, cuja realidade
pode ser captada pelo texto que se segue:
“A força e a violência, que jamais foram ouvidas nas outras nações e reinos,
verifica-se aqui, já que são forçadas as mulheres dos índios contra sua vontade, e as
casadas contra a vontade dos maridos, e as meninas e jovens de dez e quinze anos, à
revelia do pai e da mãe, por ordem dos Alcaides maiores e ordinários ou Corregedores,
são tiradas de suas casas e deixam o marido, pai e mãe, sem presente algum, privando-os
do serviço que delas podiam receber e são forçadas a servir em casas alheias de alguns
encomenderos ou de outras pessoas, quatro ou cinco ou oito léguas ou mais, em estâncias
ou oficinas, onde muitas vezes ficam amancebadas com os donos das casas ou estâncias ou
oficinas, com mestiços ou mulatos, ou negros, gente desalmada.” (4)
Independentemente da idade, homens, mulheres e crianças eram forçados a
trabalhar exaustivamente em troca de uma pretensa salvação para suas almas.
Surge, agora, uma indagação: o que levaria os europeus a, desde o século XV,
oprimir de maneira tão violenta outros homens, reduzindo-os a coisas e meros instrumentos
serviçais? Segundo las Casas,
“o motivo pelo qual os cristãos mataram e destruíram tantas e tais e tão infinito número de
almas foi apenas por Ter por seu fim último o ouro e encher-se de riquezas em poucos
dias, e, ainda, subir a postos muito elevados (...)” (5)
A dominação européia, entretanto, não teria alcançado o sucesso que alcançou, se
não estivesse alicerçada sobre três fortes princípios que a justificaram e sustentaram. O
primeiro deles é o axioma parmenídico segundo o qual, O SER É, O NÃO-SER NÃO É; o
segundo foi extraído da modernidade européia e resume-se no seu próprio princípio
______________________________
4. Roque ZIMMERMANN, América Latina – o não-ser, p.90.
5. Id., Ibid., p.91.
fundante: o “ego cogito” cartesiano; e o último nos é oferecido pela cristandade medieval,
para qual era preciso conquistar para Cristo todas as gentes, não importando por que meios.
Juntos eles formam a base da justificação de um pobre projeto antropológicoexistencial, caracterizado pela prepotente absolutização da razão humana, que possibilitou a
uns sobrepujar a outros, às custas de uma forte alienação do ser humano em todos os
aspectos constitutivos de sua pessoa.
Queremos encerrar este subitem com palavras de Enrique Dussell, ilustradoras do
argumento lascasiano supracitado:
“O ouro e a prata, a riqueza, é exatamente o projeto existencial do homem moderno
europeu, do homem burguês medieval que, como não era nobre (não podia tender a estar
na honra), nem igreja (não podia tender a estar na santidade) teve que se contentar com o
projeto desprezado de estar na riqueza.” (6)
_____________________
6. Enrique D. DUSSELL, Caminhos de Libertação Latino-Americana II, p.59
CAPÍTULO III – A NEGAÇÃO DA ALTERIDADE LATINO-AMERICANA
A existência deste capítulo dentro do presente trabalho encontra sua razão de ser em
uma característica básica e peculiar de Enrique Dussell: trata-se de seu profundo interesse
pelo ser da América Latina, responsável por seu linguajar fenomenológico e existencialista.
É intrinsecamente dusseliana a realização de uma análise do pensamento da humanidade e
da realidade latino-americana partindo-se de características ontológicas, ou seja, o
pensamento de Dussell, bem como sua argumentação e seu referencial, estão sempre
diretamente ligados ao campo do ser, cuja compreensão é tomada a partir do horizonte da
intersubjetividade.
Deduz-se daí uma segunda característica de Dussell, que consiste na busca do
fundamento ontológico, em nosso caso, da realidade de nosso continente. Esta busca, por
sua vez, é permeada de um sentido novo: ela manifestará a necessidade da superação de
uma determinada visão ontológica, grega, moderno-européia, e da revalorização de uma
nova concepção do ser, na qual transpareçam o caráter unitário do homem e o sentido
evolutivo da história.
Assim sendo, nosso objetivo será mostrar como a alteridade latino-americana,
existente além do horizonte do dominador, historicamente sempre foi negada, exatamente a
partir dessa perspectiva ontológica grega.
Até Parmênides, a especulação grega se concentrou no âmbito físico-cosmológico.
Com ele, porém, o começo radical da filosofia como ontologia é enunciado, afirmação esta
comprovável por seu princípio fundamental: “o ser é, o não-ser não é”.
Esse princípio adquire maior vigor e profundidade com Aristóteles, grande filósofo
da época clássica, de formação social-escravista, para quem o grego, o homem livre da
pólis é O SER; não o é o bárbaro, muito menos as pessoas cuja natureza relegou à condição
de escravos.
Assim, de Parmênides a Aristóteles a filosofia se constitui cada vez mais como
acabamento e realização teórica da opressão prática das periferias.
Para Dussell, todo sistema filosófico deixa de ser verdadeiro sempre que ocorre o
processo de totalização do mesmo, que consiste na sua elevação à categoria de ideologia
legitimadora do status quo. Assim, ela se torna responsável pela situação atual da
humanidade, marcada pelo conflito e pela opressão, porque fechamento da esfera do ser e
impedimento de um verdadeiro pensar sobre e partir de cada realidade.
Estes elementos são destacados pelo próprio Dussell, ao falar em “Filosofia da
Libertação na América Latina”, sobre essa ontologia como falsa filosofia:
“Estamos em guerra. Guerra fria para os que a fazem; guerra quente para os que a
sofrem. Coexistência pacífica para os que fabricam armas; existência sangrenta para os
que são obrigados a comprá-las e usá-las. O espaço como campo de batalha, como
geografia estudada para vencer estratégia ou taticamente inimigo, como âmbito limitado
por fronteiras, é algo muito diferente da abstrata idealização do espaço vazio da física de
Newton, ou do espaço existencial da fenomenologia. (...) O espaço de um mundo dentro de
um horizonte ontológico é o espaço do centro, do estado orgânico e autoconsciente, sem
contradições, porque é o estado imperial. Falamos do espaço político, daquele que
compreende todos os espaços, os físicos existenciais dentro das fronteiras do mercado
econômico, no qual se exerce o poder sob o controle dos exércitos. A FILOSOFIA NÃO
NASCEU NESTE ESPAÇO. Nasceu nos espaços periféricos, em seus tempos criativos. Aos
poucos foi para o centro – em suas épocas clássicas, nas grandes ontologias até degradarse na má consciência das idéias morais, ou melhor, moralistas”. (1)
Na modernidade, marcada pela conquista das civilizações azteca e inca, pela
efetivação da dominação latino-americana, pelo processo de escravidão aplicado aos negros
da África, e por outras práticas de dominação, e quando a Europa se torna o centro do
_______________________
1. Enrique D. DUSSELL, Filosofia da Libertação na América Latina, p.8.
mundo, a filosofia
“... situa todos os homens, todas as culturas, e com isso suas mulheres e filhos, dentro de
suas próprias fronteiras como úteis manipuláveis, instrumentos. A ontologia os situa como
entes interpretáveis, como idéias conhecidas, como mediações ou possibilidades internas
ao horizonte da compreensão do ser. Espacialmente centro, o ego cogito constitui a
periferia e se pergunta com Fernandéz de Oviedo – ‘Os índios sãos homens?’, isto é, são
europeus e por isso animais racionais? O menos importante foi a resposta teórica. Quanto
à prática, que é a real, ainda continuamos a sofrer: são apenas a mão-de-obra, se não
irracionais, ao menos ‘bestiais’, incultos – porque não têm a cultura do centro –
selvagens... subdesenvolvidos.” (2)
Isto porque o ego cogito desponta historicamente como elemento racional
justificador do “eu venço”, “eu conquisto”, constituidores da práxis de dominação. A
filosofia, ao que parece originada das periferias, como forma de se pensar criticamente a
própria realidade é aqui transformada em ontologia totalizadora e fundadora daquela práxis.
“A ontologia, o pensamento que exprime o ser – do sistema vigente e central – é a
ideologia das ideologias, é o fundamento das ideologias do império do centro. A filosofia
clássica de todos os tempos é a realização teórica da opressão prática das periferias”. (3)
Talvez encontremos aqui o ponto-de-partida dusseliano, ao mostrar a necessidade de
uma nova estruturação conceitual do ser: uma filosofia que se preste a tal função não
ultrapassa os limites da Sofística e por isso deve ser superada e rejeitada pelos pensadores
das periferias, que já não se dispõem a refletir as filosofias produzidas pelo centro como
cultura universalmente válida.
É exatamente a partir daqui que se justifica um autêntico filosofar latino-americano,
terceiro- mundista, bárbaro. É, pois, o começo da verdadeira libertação, cuja motivação
histórica passa a ser agora objeto de nossa reflexão.
__________________
2. Id., Ibid., pp. 9-10
3. Enrique D. DUSSELL, Filosofia da Libertação na América Latina, p.11
O período histórico compreendido entre os séculos XVI e XX, numa óptica latinoamericana, é marcado pela opressão ontológica de nosso continente, com base em um
conjunto de valores e princípios imposto a partir de um polo da relação internacional, a
Europa.
Essa constatação nos aponta para duas novas indagações: quando começa essa
opressão e como ela se manifesta ontologicamente? As respostas nos são apresentadas pelo
próprio Enrique Dussell:
“Antes de Colombo divisar a terra e, como se a salvasse, pôs a esta ilha o nome de San
Salvador, sem perguntar ao índio se chamava Guahanani. De modo que antes de se pisar
em terra, manejou-se com o destino da história colonial latino-americana. A América
Latina foi oprimida cultural, política, econômica e religiosamente”.(4)
Dessas palavras dusselianas, é importante se destacar a atitude colombiana de dar
nome. Aparentemente sem grande importância, analisada de um ponto-de-vista filosófico
ela será de grande proveito na compreensão da dominação ontológica européia.
Dar nome significa, pois, apropriar-se, dominar sobre, tornar seu, possuir. Ora,
dando nome à ilha, Colombo se apropriou dela e de tudo o que ela continha, atitude
reveladora de uma consciência essencialmente opressora, para quem o outro é um mero
escravo e não pode deixar de sê-lo.
Essa consciência levara a Europa Medieval a cruzar suas fronteiras num primeiro
movimento dominador, as cruzadas. Nos séculos XIV e XV, a América Latina torna-se o
“paciente” sobre o qual a Europa exprimiria novamente sua vontade conquistadora, por
uma experiência que se concretiza primeiro como mera vontade universal de domínio, mas,
depois, real e historicamente como dialética dominação/dominado.
_________________________
4. Roque ZIMMERMANN, América Latina – o não-ser, p.150
Todo exercício do poder exige alguém que a ele se submeta. Neste caso, nosso
continente, tomado como um todo, é quem sofre a ação dominadora do agente europeu,
durante estes cinco séculos.
À negação do outro dentro da totalidade se junta um novo e agravante elemento: a
alienação. Trata-se aqui da introjeção da mentalidade do opressor no oprimido de tal forma,
que nele se constitui como que uma segunda natureza, o que lhe fecha todas as portas
possíveis para a libertação.
Assim, o ser é negado não somente na intersubjetividade, que passa a ser
caracterizada por uma relação entre um sujeito e um objeto, mas também no tocante ao
elemento ontológico constitutivo de cada pessoa.
Essa negação ambivalente pode ser verificada ainda hoje, como nos apresenta o
texto:
“É o que acontece com a empregada doméstica de nossa sociedade burguesa que, mesmo
mal paga e mal tratada, apesar disso é subserviente ao extremo. É o capataz de fazenda
que, mesmo levando uma vida miserável de fome e subnutrição, (...) ‘serve’ ao seu senhor:
mata o outro, também pobre, a mando do latifundiário. (...) É a situação do policial militar
– não o graduado, o da alta hierarquia, que é bem pago e participa das benesses do poder
– mas o da base, que enfrenta os perigos de cada dia e de toda hora nas ruas (...) na
intempérie e na insegurança...”, “... historicamente recrutado entre as camadas mais
miseráveis da população, (...) cujo salário é tão ruim como o de toda população oprimida,
mas que é obrigado a reprimir as manifestações dos trabalhadores indefesos e em greve
por melhores salários; dos bóia-frias exigindo condições mínimas de dignidade para sua
vida e seu trabalho. (...) É o ‘povão’ que vota e eleva ao poder o político sabidamente
corrupto e incompetente, mas ao qual não pode – por condicionamento interno e por causa
de sua consciência dominada – contrapor-se”. (5)
É o ethos do dominado que aqui transluz e revela como característica própria o
aniquilamento ontológico do seu ser pela máquina opressora, que lhe nega a possibilidade
de atingir um dia a liberdade, bem como a consciência do que é, do que faz, e do que
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4. Id., Ibid., pp. 152-3
poderia ser e fazer, se construtor da sua própria história.
Deduz-se daqui um elemento claramente dificultador de uma caminhada libertadora:
além de seu caráter histórico e secular, essa situação de opressão está tão arraigada no
interior dos dominados, que é tida como inalterável e irreversível. Esta tese é comprovada
pelo fato de que em muitos é inexistente a idéia do que é ser livre e autodeterminado.
Toda essa filosofia ocidental foi, pois, marcada pela ontologia grega, considerada,
então, a filosofia por excelência. Dussell, porém, a supera sugerindo a adoção de uma nova
ontologia, uma nova visão do ser, tomada por ele do povo semita, nômade, procedente do
deserto arábico. A experiência deste povo, bem como sua visão do ser, são expostos com
grande clareza por Dussell. Deixemo- lo falar:
“Para os semitas, a partir de sua dura vida do deserto que era atravessado por suas
caravanas de camelos de oásis em oásis, o ser é o ouvido, o novo, o histórico, o que é
procriado a partir da liberdade. A posição primeira é o ‘face-a-face’ de um beduíno que
na imensidão do deserto divisa outro homem; é necessário esperar que a distância se faça
proximidade para poder perguntar ao recém-chegado: ‘Quem és?’ Seu rosto curtido pelo
sol, o vento da areia, as noites frias e a vida áspera do pastor nômade, é a epifania, não de
outro eu, mas do outro homem sem comum semelhança com todo o vivido pelo eu até esse
instante do ‘face-a-face’. (...) O homem semita nasce e cresce não na lógica da totalidade
(...) mas na lógica da alteridade (rosto-de-um-homem-diante-do-rosto-do-outro, livre). O
sagrado, o divino nunca é a physis, a totalidade, mas o outro, o inanimado, a
exterioridade, o nada como a liberdade incondicionada da pessoa (...) A luz só ilumina um
rosto, sem desvendar seu mistério. O mistério do outro se revela por sua palavra, exigindo
justiça. O homem semita situa na origem a posição do face-a-face... Trata-se da
antropologia e da metafísica da alteridade...” (6)
Esta passagem de Dussell nos apresenta como que um projeto fundamental da
filosofia da libertação. Acreditamos firmemente ser “O OUTRO” o seu elemento fundante.
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6. Enrique D. DUSSELL, Para uma Ética da Libertação Latino-Americana III, p. 42
Ela só tem sentido porque surge como valorização do outro, que anseia por
liberdade e auto-realização; porque quer quebrar as barreiras que dividem a humanidade de
forma radical e estabelece a injustiça como característica básica de nossa sociedade e
porque visa, enfim, à fundação de uma nova cosmovisão, elaborada sobre a valorização de
todo ser humano como tal.
É esta valorização da alteridade que apresentaremos em um próximo capítulo, como
elemento fundante de uma filosofia da libertação. Vamos a ele!
CAPÍTULO IV – A METAFÍSICA DA ALTERIDADE E A CATEGORIA DA
EXTERIORIDADE
“Oporemos a ela (à ontologia grega) um novo pensar que supera esta ontologia da
totalidade: uma ontologia negativa ou metafísica da alteridade”. (1)
Toda a pesquisa e reflexão dusselianas giram em torno de um só objetivo: a busca
de uma filosofia que parte da realidade, e não simplesmente a ela se aplique.
Esta realidade, por sua vez, apresenta-se-nos como O OUTRO HOMEM, distinto,
não diferente, porque sempre outro, possuidor de história e cultura próprios, e, por isso
mesmo, desprezado e rejeitado em sua exterioridade.
Desta forma, encontramos aquele que para Dussell é o ponto central de toda a
filosofia da libertação: a categoria da exterioridade – o outro aparece aqui como
exterioridade total, ser autônomo, reivindicador de sua dignidade humana, analogicamente
distinta, fundando, assim, um novo pensar, porque já não é visto como “o definido”, “o que
é”.
A partir daí, queremos ressaltar o alcance da nova filosofia instaurada por Dussell:
estabelecendo a categoria da exterioridade como categoria metafísica fundamental, ele
realiza uma reviravolta em todo o pensar filosófico de até então. Partindo do filosofar já
existente, ele não o anula, mas propõe o novo no tocante ao seu próprio fundamento,
sugerindo- lhe uma nova meta: estar a serviço do homem, tomando a América Latina como
ponto-de-referência.
Com Dussell, inaugura-se um novo discurso filosófico baseado em dois pontos
centrais: na Europa tomada como centro, como sujeito que torna “o outro” um objeto
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1. Roque ZIMMERMANN, América Latina – o não-ser, p. 178
manipulável e que se afirma como totalidade há séculos, e na existência de um continente
cujo ser foi negado não de forma abstrata ou puramente teórica, mas concretamente, no
índio, no colonizado, no negro, e, em nossos dias, em cada homem alienado da grande
massa popular atual.
Resta-nos solucionar um questionamento que se levanta, após a exposição dos
princípios fundamentais do discurso libertador: como evitar que a prática libertadora se
reduza ao pronunciar de belas teorias? Em outras palavras, como aplicar aquele discurso à
nossa realidade?
A resposta que buscamos pode ser encontrada tomando dois níveis da relação
humana através dos quais Dussell tece sua análise da realidade e estabelecendo uma
comparação entre eles a partir da forma como são vistos pela ontologia da totalidade e pelo
novo discurso.
4.1. A ERÓTICA
Embora superficialmente, pode-se dizer que a dominação erótica se fundamenta na
crença da superioridade do varão sobre a mulher. Na América Latina, ela se manifesta, há
anos, concretamente no machismo, em voga em nossos dias, de forma preponderante. A sua
ontologização se deu na mitologia, onde os gregos vão buscar os elementos pré-filosóficos
sustentadores de sua teoria.
“No princípio, havia varões. Mas havia também uns tipos especiais de varões chamados
andróginos (...). A Afrodite celeste faz com que os varões amem os varões, que é a forma
mais sublime do amor, porque se ama O MESMO. A Afrodite terrestre faz com que os
varões amem as mulheres (forma desprezível de amar). Entretanto, mesmo desta forma
inferior de amar, surge, resulta, O MESMO: o filho, que é O MESMO que os pais. Disto se
conclui que a sexualidade dos gregos é auto-sexualidade, isto é, a sexualidade dos
mesmos...” (2)
Com este pensamento se torna mais fácil nossa compreensão. O axioma
parmenídico pode ser aplicado àquele mito: se “o ser é e o não-ser não é”, o varão amará o
varão, O MESMO. Enfim, ovarão é e a mulher não é; logo, a esta caberá obedecer,
submeter-se àquele que se afirma perante ela como totalidade.
Contrariamente à relação varão/mulher na lógica da totalidade, em que a perfeição
consiste em amar O MESMO, na metafísica da alteridade aquela relação se desloca para o
horizonte da valorização, da autonomia e da realização pessoal tanto do homem quanto da
mulher. Esta realização dar-se-á com base na reciprocidade, no dar e receber amor. A
relação sexual ultrapassará os limites da objetivação do outro, deixando assim de ser uma
relação meramente genital, para assumir o caráter de uma relação global do ser que atinge o
clímax no coito.
4.2. A PEDAGÓGICA
Em uma palavra, a pedagógica trata da relação entre pais e filhos. Como se dá essa
relação?
Na ontologia da totalidade, o filho não é nenhuma novidade. Os pais geram o
mesmo que eles são, um prolongamento seu, cuja educação fará dos filhos o mesmo que
eles sempre foram, garantindo, portanto, a eterna repetição do mesmo.
_____________________________
2. Id. Ibid., p. 161
Cabe ao filho obedecer aos seus pais, porque eles representam a totalidade do ser.
No entanto, vista de outro ângulo, o libertador, abrindo-se um para o outro, varão e mulher,
se abrem para o novo, o ainda não-existente: o filho, cujo nascimento será o ponto inicial de
sua relação com o mundo, através da qual paulatina e livremente edificará o seu ser.
Esse caráter da liberdade é ponto central da distinção entre as teorias em questão e
merece uma maior atenção.
Na totalidade fechada, a criança encontra o mundo já pronto, acabado. Cabe a ela
apenas se adaptar a ele, que não é seu, mas de seus pais, de sua família, de sua comunidade,
da classe social a que pertence, pelo destino. Assim, nesta lógica, fará grande diferença
nascer no palácio ou na favela, na mansão ou no subúrbio, visto que de seu nascimento
dependerá seu futuro, estando obrigado a assumir a posição de dominador ou dominado.
Já na metafísica da alteridade, a criança, recebida e aceita como O NOVO, o
distinto, será respeitada em sua exterioridade, que, pelo exercício de diálogos frutuosos, da
intercomunicação, da intersubjetividade, manifestar-se-á como reveladora eterna de novas
descobertas.
Está posta, assim, a possibilidade de concretização do discurso filosófico libertador.
Para que se torne instrumento eficaz em uma caminhada libertadora, é preciso, porém, que
ele seja incorporado por cada ser humano que nele quer acreditar, ou seja, não será frutuosa
a busca por uma transformação a nível mundial da realidade, se ela não for efetuada, antes,
na consciência de cada pessoa para quem ela se tornou inadiável.
CONCLUSÃO
Percorrido o caminho proposto, concluimos que a atual situação de desigualdade,
em que sobra a alguns o que falta a muitos, há muito vem se perpetuando, se analisada
dentro do aspecto da historicidade. Fruto da prepotência de alguns e de sua ambição, essa
exploração sócio-econômico-político-cultural tem seu início com a chegada dos europeus
ao continente latino-americano. Incapazes de conviver com o diferente, porque ameaçador
de sua pretensa autoridade, a destruição foi iniciada e mantida até nossos dias, sufocando-se
de todas as formas possíveis as tentativas populares de emancipação.
Constatamos ainda, com Dussell, que na base de toda essa exploração está o
princípio ontológico que confere a uns a totalidade de ser e nega a outros a possibilidade de
realizá-lo. Assim sendo, àqueles constitui mestres, senhores, detentores de todo o saber,
autonomia e liberdade e a estes reduz à condição de discípulos e escravos.
Em contraposição a isto, ergue-se a voz da filosofia da libertação, para quem o ser
humano vale não pela posição em que a sua natureza o colocou, mas pela novidade que traz
em si, por aqueles valores culturais que lhe são peculiares; pela liberdade, que o leva a
construir a sua própria história, enfim, simplesmente pelo ser que é.
A partir daí podemos destacar quatro traços fundamentais inerentes a uma filosofia
que promova a libertação.
Em primeiro lugar, ela deve ser uma filosofia que parta da realidade a ser
transformada, que brote da vida social de nosso povo. Nenhum filósofo surge do nada; ao
contrário, é fruto de sua época. Assim, toda filosofia tem de partir da realidade social,
tomada na totalidade e em seus aspectos particulares: em sua dimensão histórica, em sua
forma de organização social, em sua cultura, etc. Enfim, quanto mais imersa na realidade
sobre a qual reflete, maior possibilidade terá aquela filosofia de ser autêntica. Esta
autenticidade, por sua vez, nos traz uma nova característica, que é a radicalidade: será
autêntica uma filosofia que não se perder em raciocínios superficiais, mas for em busca das
raízes históricas e estruturais da situação vivida.
Partindo da própria realidade, a filosofia, contudo, não pode ficar nela imersa.
Saindo dela, realiza como que um vôo, que possibilitar-lhe-á seu próprio enriquecimento,
porque poderá obter uma visão mais abrangente da realidade. Esta é, pois, a segunda
característica da filosofia da libertação, a REFLEXÃO.
Resultante dessa atividade reflexiva emerge o caráter crítico do ato de filosofar. É
por ele que a filosofia opera um desmascaramento dos poderes opressores e de suas
ideologias. Investiga, questiona, indaga e aponta as causas e raízes da opressão sofrida.
Em consequência disso, colocará em cheque os valores vigentes, visto que não há
como julgar sem valorar, e mostrará a necessidade de se estabelecer uma nova
racionalidade, ética e comunicativa, em contraposição à racionalidade técnico- instrumental
adotada pelas ciências positivas.
Todavia, tudo isso perderia seu sentido sem uma quarta característica da filosofia,
que é sua encarnação numa práxis. Não satisfeita essa condição corremos o risco de nos
perdermos na acomodação contemplativa de belas e proféticas teorias. Assim, cabe ao
filósofo participar. Deve estar onde houver luta do seu povo por seus direitos fundamentais;
onde muitas vezes esses direitos não são sequer conhecidos e onde a voz da justiça ainda
não se faz ouvir. É nesta luta que a verdade vai sendo aos poucos descoberta e a filosofia se
desenvolve. Nem tanto grande bibliotecas de nosso século, mas na imersão em nossa
realidade é que deve ser buscada a verdadeira filosofia.
O desafio, portanto, está lançado. O homem latino-americano é chamado a assumir
o papel de sujeito da história inerente a todo ser humano, construi- la a partir de si, mudando
assim seus rumos, porque isto significa caminhar para “libertação da dependência”, diz
Dussel, “para a ruptura das estruturas da totalidade dominadas pelo centro ... para realizar
um projeto digno de um homem novo ... com nova divisão internacional do trabalho ... com
chances de participação livre, independente e justa da civilização mundial que progride, da
cultura humana que analogicamente vai se unificando no plano mundial”.
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOPEDAGOGIA
AMÉRICA LATINA: DO NÃO-SER À METAFÍSICA DA ALTERIDADE
DISSERTAÇÃO APRESENTADA NA
UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES COMO PRÉ-REQUISITO PARA OBTENÇÃO
DE LICENCIATURA EM PSICOPEDAGOGIA
POR
LUCIANO FELISMINO DE MELO
DEZEMBRO DE 2002
.
“A filosofia que souber pensar esta realidade, a realidade mundial atual,
não a partir da perspectiva do centro, do poder político, econômico ou
militar, mas desde além da fronteira do mundo atual central, da periferia,
esta filosofia não será ideológica (ou ao menos o será em menor medida).
Sua realidade é a terra toda e para ela são (não são o não-ser) realidade
também os ‘condenados da terra’.”
Enrique Dussell
ÍNDICE
INTRODUÇÃO....................................................................................................................03
CAPÍTULO I – AMÉRICA LATINA: O NÃO-SER...........................................................04
1.1. O aparelho ideológico opressor............................................................06
CAPÍTULO II – UMA REFLEXÃO HISTÓRICA..............................................................12
2.1. Conquista e colonização......................................................................13
CAPÍTULO III – A NEGAÇÃO DA ALTERIDADE LATINO-AMERICANA................17
CAPÍTULO
IV – A METAFÍSICA DA ALTERIDADE E A CATEGORIA DA
EXTERIORIDADE...............................................................................................................24
4.1. A Erótica............................................................................................25
4.2. A Pedagógica.....................................................................................26
CONCLUSÃO......................................................................................................................28
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................................34
BI B L I O G R A F I A
ZIMMERMANN, Roque
América Latina – O Não-Ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussell
(1962-1976). Petrópolis, Vozes, 1987, 264 p.
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