SOCIEDADE BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA XII Congresso Brasileiro de Sociologia GT20 – Sociedade e Estado na América Latina Democracia participativa e controle do Estado: os conselhos de saúde no Brasil Pedro Ivo Sebba Ramalho Belo Horizonte, maio-junho de 2005 Democracia participativa e controle do Estado: * os conselhos de saúde no Brasil Pedro Ivo Sebba Ramalho** O presente trabalho trata do tema democracia, controle social e conselhos. Abordo o conceito de democracia concentrando-o em duas visões: democracia representativa e participativa. Apresento o conceito de controle social referindo-me aos conselhos de participação comunitária (ou “conselhos de controle social”) existentes e sua regulamentação pela legislação brasileira, com ênfase para os conselhos de saúde. A hipótese defendida será: os conselhos de participação comunitária são mecanismos que fortalecem a democracia participativa. As conclusões apontam que: 1) o controle ascendente do Estado feito pelos conselhos é coerente com a concepção de democracia participativa; 2) os conselhos de participação comunitária na saúde não se contrapõem à delegação de poderes aos representantes eleitos, possibilitando, ao contrário, a tomada de decisões destes conselhos de forma complementar ou compartilhada com os representantes; 3) os conselhos de saúde no Brasil são instrumentos que fortalecem a democracia participativa. O presente trabalho trata do tema democracia, controle social e conselhos. A abordagem do conceito de democracia será feita neste trabalho concentrando-o em duas visões: democracia representativa e democracia participativa. Apesar de fazer distinção entre as diferentes perspectivas, no âmbito deste trabalho, apresento o conceito de controle social quando me refiro aos conselhos de participação comunitária existentes e sua regulamentação pela legislação brasileira. Limitarei, ainda, os conselhos aos da área de saúde, face ao interesse teórico que tenho nestas instâncias.1 A hipótese defendida, e cotejada com as demais encontradas na literatura, será: Os conselhos de participação comunitária são mecanismos que fortalecem a democracia participativa. A divisão deste trabalho será feita, além desta Introdução, em seções que discutirão os conceitos de democracia, controle social e conselhos de participação comunitária. Ao final apresentarei, ainda, os meus Comentários Finais sobre a hipótese e os conceitos operacionais formulados. * Agradeço à Agência Nacional de Vigilância Sanitária pelo apoio à participação no XII Congresso Brasileiro de Sociologia. ** Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília (CEPPAC/UnB). Correio eletrônico: [email protected]. 1 O interesse teórico nos conselhos de controle social especificamente na saúde se dá em função de minha formação como profissional da saúde. 2 I Após as experiências democráticas na Grécia Antiga, “A democracia, de vez em quando, é discutida há cerca de 2.500 anos” (Dahl, 2001, p. 12). O que Robert A. Dahl aponta é a escassa ou quase nula presença da democracia no mundo após seu fim na Grécia Antiga, ocorrido com a hegemonia macedônica na região, a partir de 338 a.C., e definitivamente com a ocupação romana de Atenas. Somente ao final do século XIX surgiram novamente organizações políticas identificadas como democracias.2 Experiências desde o império romano, no entanto, deram sustentação ao retorno da democracia nos tempos modernos, culminando em intenso debate a partir do século XVIII. Rousseau (1986 [1762]) deu a base do contratualismo, que se identificou com a democracia, a partir do desenvolvimento da idéia de que o poder soberano emana da vontade geral do povo. Estas idéias influenciaram os revolucionários de 1789 que, de alguma forma, retomaram os ideais de igualdade e liberdade que fundamentavam a democracia dos gregos, sem admitir, porém, a escravidão. Nos Estados Unidos, com a proclamação da independência, há a defesa da república, em oposição à democracia, considerada como o domínio absoluto da maioria sobre a minoria, constituindo a chamada “democracia madisoniana” (Dahl, 1989). Inaugura-se, assim, uma perspectiva de utilização de instrumentos de controle para evitar uma tirania da maioria, ou mesmo de uma minoria, usando-se a separação dos poderes e o controle das facções. O direito ao sufrágio universal e o aumento do eleitorado fortaleceu a necessidade dos partidos políticos como intermediários entre eleitor e parlamento, o que também levou, segundo Macpherson (1978), a um distanciamento entre eleitor e eleito. Forma-se assim um novo modelo de democracia, não mais baseado na participação direta dos cidadãos, mas mediada por eleições e partidos políticos. As expectativas em relação à diminuição das desigualdades permanecem como parte subjacente à idéia de democracia, levando os regimes existentes a críticas. No clássico Capitalismo, socialismo e democracia, Joseph Schumpeter propõe uma nova conceptualização para a democracia, definindo-a como “...um sistema institucional, para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor” (Schumpeter, 1961, p. 328). Vê-se claramente, a partir desta 2 Outras experiências tidas como democráticas foram, em geral, limitadas no tempo e no espaço, não podendo seus governos serem considerados democráticos. Um exemplo é o caso da República Romana que em seu desenvolvimento possibilitou práticas de consulta à população, como o plebiscito e o referendo (Held, 1996). Entretanto, predominou nos domínios de Roma um governo aristocrático, depois substituído pela monarquia, com o fim da República. 3 conceituação, que Schumpeter dissocia a forma de adquirir o poder da função da democracia, que seria tomar decisões políticas. A questão da forma ganha relevância por ser uma maneira institucional de operacionalizar uma função, cuja necessidade de resolução, de sua parte, independe das regras que a sociedade adota para a sua consecução, pois para Schumpeter o “...principal objetivo do sistema democrático (...) consiste em atribuir ao eleitorado o poder de decidir sobre assuntos políticos” (Schumpeter, 1961, p. 327, destaques meus).3 Abordagens mais sistemáticas da democracia são realizadas por outros dois autores: Anthony Downs e Robert A. Dahl. O primeiro trata o conceito de democracia como algo dado, bastando a sua caracterização. Assim, Downs (1957, p. 23) enumera certas características que para ele diferenciam a democracia de outros governos.4 Fica evidente em sua caracterização que os procedimentos e as “regras do jogo” são o que singulariza uma democracia, ou seja, ela existe se uma série de condições é satisfeita. Para Downs, uma sociedade é democrática ou não o é. Já na obra de Dahl, desde seu clássico A preface to democratic theory, publicado pela primeira vez em 1956, encontra-se uma síntese do conceito de democracia em uma série de princípios, rebatizada pelo autor como poliarquia.5 Em sua primeira obra dedicada à democracia, Dahl (1984) limita as características definidoras da poliarquia a aspectos relativos unicamente ao processo eleitoral. Robert Dahl tornou-se referência obrigatória nos debates posteriores sobre democracia, pois sua definição de poliarquia pode ser melhor operacionalizada na investigação empírica em 3 O autor critica a “doutrina clássica da democracia” pois entende que esta apresentaria a democracia como “governo do povo”, o que, conforme Schumpeter, não corresponde à realidade. A crítica inicial de Schumpeter à idéia de poder popular se deve ao fato de que ele considera não realista atribuir ao indivíduo uma independência e racionalidade de escolha. Argumenta que mesmo que isto fosse possível, não significaria a vontade geral do povo, nem nada que parecesse com “o que o povo quer”. Esta nova abordagem teórica construída por Schumpeter reconcilia a perspectiva elitista com a democracia: para ele a democracia não é impossível por existirem elites, ou melhor, ela consiste no próprio processo de seleção das elites. 4 Anthony Downs (1957, p. 23) considera que um governo é democrático se: (1) um único partido (ou coalizão de partidos) é escolhido por eleição popular para administrar o aparelho de governo; (2) estas eleições são realizadas em intervalos periódicos, cuja duração não pode ser alterada unicamente pelo partido no poder; (3) todos os adultos que são residentes permanentes da sociedade, gozam de perfeito juízo e que cumprem as leis do país são aptos a votar em toda eleição; (4) cada eleitor deve somar um e somente um voto em cada eleição; (5) qualquer partido (ou coalizão) que receba o apoio da maioria dos eleitores está habilitado a receber os poderes do governo até a próxima eleição; (6) os partidos derrotados em uma eleição nunca tentam impedir o partido (ou partidos) vencedor(es) de tomar posse com o uso da força ou qualquer meio ilegal; (7) o partido no poder nunca tenta restringir as atividades políticas de qualquer cidadão ou de outros partidos, conquanto não tentem derrubar o governo pelo uso da força; (8) dois ou mais partidos disputam o controle do aparelho de governo em cada eleição. 5 O conceito de poliarquia foi criado por Dahl ainda antes, na obra “Política, Economia e Bem Estar Social”, em coautoria com Charles Lindblom. Dahl (2001, p.104) explica que o termo poliarquia significa “o governo de muitos” e foi criado por ele e Lindblom para designar a democracia representativa moderna, que é diferente da democracia representativa do século XIX e mais diferente ainda das democracias ou repúblicas antigas. 4 função de suas oito condições permitirem – mesmo que com as dificuldades metodológicas reconhecidas pelo autor – construções de escalas e classificações de níveis de democracia.6 Uma visão restrita basicamente às regras, aos procedimentos e aos ritos da democracia é a de Norberto Bobbio. Em O futuro da democracia - uma defesa das regras do jogo, Bobbio (1989, p. 12) define democracia simplesmente como “... um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com que procedimentos”. Em outros textos, Bobbio (2003a; 2003b) aponta o que considera como as duas diferenças (uma decorrente da outra) entre a “democracia dos antigos” comparada com a “democracia dos modernos”, a saber: a primeira é a maneira como o povo exerce o poder (diretamente ou por meio de representantes); e a segunda diferença é o conceito de “povo” enquanto ente coletivo, que, segundo o autor, faz sentido na democracia dos antigos (ou direta) enquanto que na moderna (ou representativa) temos, na verdade, a soberania entregue aos cidadãos, ou à soma dos indivíduos. II No mundo moderno, o debate sobre as formas de exercício da democracia, bem como sobre seu conteúdo, teve inúmeros defensores e adversários. É necessário, entretanto, distinguir entre os que se opunham à desejabilidade da democratização, mais comuns no século XIX e princípio do século XX, e os que criticam os limites da democracia representativa em relação ao um ideal democrático mais amplo, que se proliferam principalmente na segunda metade do século XX. A crítica à democracia representativa, na perspectiva de sua radicalização, iniciou-se nos anos 80. A discussão proposta por Giddens (1996), por exemplo, defende a radicalização da democracia, numa posição intermediária entre os pós-modernos e os defensores da democracia deliberativa. Uma das principais correntes a reivindicar o uso do nome de democracia radical é a desenvolvida a partir da obra de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004 [1985]), Hegemonía y estratégia socialista. Assumindo-se como posmarxistas, os autores propõem a releitura dos conceitos do marxismo clássico à luz dos problemas contemporâneos e, utilizando basicamente o conceito de hegemonia, defendem que a esquerda não pode “negar a ideologia liberal democrática, mas ao contrário, aprofundá-la e expandi-la na direção de uma democracia radicalizada e plural” (Laclau 6 Na mais recente obra “Sobre a democracia”, Dahl (2001, pp. 99-100) elenca o que chama de “as instituições políticas da moderna democracia representativa”, quais sejam: (1) funcionários eleitos; (2) eleições livres, justas e freqüentes; (3) liberdade de expressão; (4) fontes de informação diversificadas; (5) autonomia para as associações; e (6) cidadania inclusiva. 5 e Mouffe, 2004, p. 222). Para Mouffe (1999, p. 39), em mais recente obra, a tarefa da democracia radical é aprofundar a revolução democrática e conectar as distintas lutas democráticas, não se tratando de estabelecer uma mera aliança entre interesses, mas de modificar a identidade mesma destas forças. O termo democracia deliberativa começa a ser utilizado na metade dos anos 80. O desenvolvimento do conceito foi influenciado, em grande parte, pela obra de Jürgen Habermas, em especial pelo seu conceito de ação comunicativa. O caráter deliberativo da democracia esteve presente na experiência de Atenas, na Grécia Antiga, na qual a discussão das propostas ocorreria cara a cara. Mas a quantidade de participantes impedia que as discussões fossem feitas entre todos os participantes, tornando-se uma apresentação de argumentos entre lideranças para convencer uma platéia. Mesmo esta forma de participação teria sido perdida com a democracia liberal, sendo necessário recriá-la, mas de uma outra forma, que incluísse o pluralismo. No desenvolvimento das diversas teorias da democracia deliberativa, Elster (2001, p. 21) identifica dois aspectos básicos, com os quais vários autores tendem a concordar: em relação ao aspecto democrático, as decisões são tomadas por todos que são afetados por elas, ou por seus representantes; em relação ao aspecto deliberativo, as decisões são tomadas a partir da apresentação de argumentos oferecidos por e para os que devem tomá-las, os quais devem valorizar os valores de imparcialidade e racionalidade. Elster (2001, p. 18-9) lembra que existem basicamente três formas diferentes de tomada de decisão coletiva entre indivíduos livres, iguais e racionais, no caso de não haver consenso, não necessariamente devendo-se tomá-la de forma deliberativa, a saber: discutindo, negociando e votando, cada uma podendo ser utilizada sozinha ou em conjunto com as outras. O autor ainda apresenta outras tricotomias envolvidas num processo com este: a razão, o interesse e a paixão e as operações de agregação, transformação e tergiversação. O que a democracia deliberativa traria de novo seria a busca de decisões pela via deliberativa e não pela agregativa, segundo Cohen (1998, p. 236). Ela é agregativa quando leva em conta igualmente os interesses individuais de todos os afetados pela decisão. Algumas limitações na concepção deliberativa, seriam a possibilidade de manipulação das opiniões, as influências ideológicas e a limitação de tempo como fatores que dificultariam a realização de deliberações em situação ideal. A emergência do termo democracia participativa está associado aos movimentos por maior participação política desde os anos 60. Naquela época, tornou-se forte a defesa de movimentos sociais pela participação direta, denunciando a alienação do processo eleitoral, dentro dos próprios Estados capitalistas. Entretanto, poucos teóricos aprofundam o conceito. Um exemplo 6 é Carole Pateman (1992), que atribui seus princípios a clássicos como Rousseau e John Stuart Mill. O primeiro por não aceitar a representação do cidadão, e o segundo,7 por defender um governo representativo, acreditando que a maior participação contribuiria para a educação política do cidadão. Estes ideais teriam sido sufocados pela visão de democracia como competição entre dirigentes. Para Pateman (1992, p. 137), a principal contribuição desses teóricos clássicos à teoria democrática foi atrair a atenção para o inter-relacionamento entre os indivíduos e as estruturas de autoridades no interior das quais eles interagem. A análise de C. B. Macpherson (1978) sobre a democracia participativa parte da crítica ao que chama de democracia de equilíbrio, isto é, o modelo de Schumpeter. Para o autor, a principal dificuldade para uma maior participação é o problema da dimensão, rejeitando a possibilidade de consultas plebiscitárias por meio do uso da tecnologia de comunicação. Dessa forma, o ideal da democracia direta não teria como ser realizado em escala nacional. O autor considera, entretanto, que o problema não é como a democracia direta deve atuar, mas como chegar a ela. Analisando justamente as possibilidades de alcance de maior participação, Macpherson (1978) propõe modelos alternativos de estrutura de governo. Sobre o denominado modelo 4B, que combina conselhos piramidais e partidos políticos, considera que o sistema pluripartidário pode ser compatível com o sistema de conselhos, mesmo numa sociedade não exploradora e não dividida em classes. Seu modelo pressupõe a realização de transformações sociais e não seria compatível com a sociedade de mercado dividida em classes hoje existente. Ressaltando o tamanho como um fator limitante, Dahl (2001, p. 107) considera “quase impossível” que uma unidade política do tamanho de um país possa dar condições a que os cidadãos participem efetivamente do processo decisório da feitura de leis, por exemplo. O autor apresenta então o dilema básico da democracia, do qual, segundo o autor, é impossível se fugir: o tamanho da unidade democrática é diretamente proporcional à necessidade de delegação das decisões para o governo e inversamente proporcional à possibilidade de participação direta dos cidadãos.8 Dahl vê virtudes e defeitos nas duas formas de democracia. Em relação às dificuldades, para a representativa lembra a sua origem sombria em governos não-democráticos 7 Escreveu Stuart Mill, em Considerations on Representative Government, de 1861 (apud Dahl, 2001, p. 109): “Numa comunidade que exceda o tamanho de uma cidadezinha, todos não podem participar pessoalmente de qualquer porção dos negócios públicos, a não ser alguma muito pequena; portanto, o tipo ideal do governo perfeito deve ser representativo”. 8 Nas palavras de Robert A. Dahl (2001, p. 125): “Quanto menor a unidade democrática, maior o seu potencial para a participação do cidadão e menor a necessidade de que os cidadãos deleguem as decisões do governo a representantes. Quanto maior a unidade, maior sua capacidade para tratar de problemas importantes para seus cidadãos e maior a necessidade dos cidadãos delegarem as decisões a representantes”. 7 (principalmente monarquias) como forma de facilitar a utilização de receitas para a guerra, por exemplo. No caso da democracia participativa, Dahl ressalta fundamentalmente a dificuldade de se efetivar a participação dos cidadãos que não teriam tempo, estímulo ou mesmo interesse para participar, criando espaço, por fim, à participação mais efetiva de outros que agiriam como representantes, muitas vezes não legitimamente constituídos. Entre os autores que desenvolvem teorias sobre a democracia participativa encontra-se em comum a defesa de um maior envolvimento direto dos cidadãos na tomada de decisões. Em função da dimensão atual dos estados – o que impossibilita a reprodução do modelo ateniense de democracia direta9 – leva à proposição de criação de instâncias de participação direta de nível local, na fábrica ou bairro (os conselhos, por exemplo), onde as pessoas se encontram e tomam decisões a fim de influir sobre os espaços de representação. É também possível verificar que os autores que desenvolvem o conceito de democracia participativa têm o cidadão ativo da democracia ateniense como modelo e partem, em geral, de uma concepção de cidadania baseada em um republicanismo cívico, o qual se apóia em autores como Rousseau e Hannah Arendt. A participação e o envolvimento do cidadão são vistos como virtudes, contrapondo-se à concepção liberal da cidadania, baseada na conquista de liberdades negativas, que se desenvolvem no campo privado. Entretanto, a principal constatação da leitura e análise da teoria da democracia participativa de tais autores é que, em geral,10 os mesmos não postulam a substituição total da democracia representativa, propondo, desta forma, a criação de alternativas locais de participação que controlem ou influam sobre os representantes eleitos. Neste ponto, é importante deixar claro que quando falo em democracia participativa não me refiro à democracia direta pura e simplesmente, senão à existência de organismos colegiados de participação ao mesmo tempo em que há vigente no sistema as eleições ou pleitos para escolha de representantes que farão a direção política dos eleitores.11 9 Esta impossibilidade levou Giovanni Sartori (1994) a identificar a democracia participativa como “democracia de referendo”, argumentando que a consulta nacional (plebiscito ou referendo) seria a única forma viável de participação de todos os cidadãos. 10 Com exceção do modelo piramidal de conselhos, de Macpherson (1978). 11 Desta forma, a definição de democracia direta do italiano Norberto Bobbio (2003c, p. 154), apesar de se assemelhar em grande medida ao conceito operacional de democracia participativa por mim formulado, não corresponde ao mesmo. Assim Bobbio descreve a democracia direta: “Sob o nome genérico de democracia direta entendem-se todas as formas de participação do poder, que não se resolvem numa ou noutra forma de representação (nem a representação dos interesses gerais ou política, nem a representação dos interesses particulares ou orgânica): a) o governo do povo através de delegados investidos de mandato imperativo e portanto revogável; b) o governo de assembléia, isto é, o governo não só sem representantes irrevogáveis ou fiduciários, mas também sem delegados; c) o referendum”. 8 Para efeito deste trabalho, após analisar a teoria dos autores citados, apresento o seguinte conceito operacional de democracia participativa: Modelo de democracia caracterizado pela existência concomitante de realização de pleitos livres e periódicos para eleição de representantes para os cargos de direção política e da composição de organismos colegiados de participação direta que compartilham o poder de decisão com os representantes eleitos. III Nesta seção, analiso o conceito de controle social desde a perspectiva da tradição sociológica até um entendimento mais atual do mesmo. Porém, antes de falar em controle social, convém analisar o que se pode entender por controle12 de forma geral. Numa democracia, a separação dos poderes em executivo, legislativo e judiciário já denota uma forma de controle de um poder sobre o outro. Além disso, nos Estados modernos sempre há órgãos específicos de controle, sejam internos ou sejam externos (desde que façam ou não parte da estrutura do órgão controlado).13 Na administração pública, de forma geral, o controle tem a função de assegurar a execução do serviço e analisar as atividades como meio de corrigir problemas, sendo indispensável para assegurar a legalidade na condução das atividades públicas (Barbieri & Hortale, 2002, pp. 183-4). Segundo Bresser Pereira (2002, p. 139), existem três mecanismos fundamentais de controle ou coordenação utilizados por uma sociedade, seja utilizando-se uma classificação institucional, seja uma perspectiva funcional. Na primeira, os mecanismos de controle são o Estado, o mercado e a sociedade civil. No Estado, encontra-se o sistema legal ou jurídico; no mercado, o sistema 12 O termo controle, do latim medieval contrarotùlus (contra- + rotùlus, que significa rolo, cilindro, rolo de escritos, rol, lista), denota, na sua origem, o exemplar de contribuintes dos censos sobre o qual se verifica a operação do cobrador de impostos. Para os ingleses, controle significa domínio, autoridade, poder e direção, já para os franceses, vigilância, verificação e inspeção (Houaiss, 2001; Barbieri & Hortale, 2002, p. 183). Para Odete Medauar (apud Barbieri & Hortale, 2002, p. 183) o termo controle pode ter diversas conotações, desde um sentido de poder e mando até o acompanhamento. A autora aponta o sentido de seis usos principais do termo, a saber: (1) dominação (que dá a idéia de força, abuso, centralização, monopolização, subordinação); (2) direção (comando e gestão); (3) limitação (regulamentações e proibições); (4) vigilância e fiscalização (supervisão e censura); (5) inspeção (sentido de continuidade); e (6) verificação (exame de objetos específicos e registro). 13 O que Guillermo O‟Donnell (2002, p. 87) chama, grosso modo, de accontability horizontal, a saber: “A existência de agências estatais que têm autoridade legal e estão de fato dispostas e capacitadas para empreender ações que vão desde o controle rotineiro até sanções legais, inclusive o impeachment, em relação com atos ou omissões de outros agentes ou agências de estado que podem, em princípio ou presumidamente, ser qualificadas como ilícitas” 9 econômico tem o controle exercido pela competição; e, na sociedade civil, a organização se dá por meio da defesa de interesses particulares e corporativos ou, ainda, do interesse público. Na perspectiva funcional, tem-se o controle hierárquico ou administrativo das organizações públicas ou privadas; o controle democrático ou social que se exerce sobre as organizações e os indivíduos; e o controle econômico, via mercado. O autor classifica ainda os tipos de controle funcionais do ponto de vista de sua difusão e automatização. Assim, Bresser Pereira (2002, p. 140) entende que o mecanismo de controle mais genérico, difuso e automático que se pode ter é o mercado, pois, segundo o autor, por meio da concorrência, obtêm-se os melhores resultados com os menores custos. Apesar de arriscar uma hierarquização do “melhor” para o “pior” tipo de controle, Bresser Pereira (1997, p. 36) reconhece que há necessidade de se contar com um sistema de controle, o que ele chama de “lógica do leque de controles”,14 ou seja, a conjugação de tipos diferentes de controle funcionando concomitantemente.15 Do ponto de vista teórico, existem basicamente duas possibilidades de exercício do controle social, com significados inter-relacionados, mas sentidos distintos, quais sejam: (1) condição na qual uma pessoa encontra-se dependente ou limitada em suas ações por grupos, comunidade ou sociedade a qual pertença; e (2) denota que em toda interação social os mecanismos de uma limitação – de uma pessoa em relação a outras ou destas em relação àquela – assumem um caráter social, envolvendo ações de outras pessoas, o uso de sanções, o processo de socialização etc. (Velho, 1987). Vê-se que o segundo significado não é incompatível com o primeiro, entretanto inclui o controle como benefício aos que têm interesses em desacordo com a pessoa ou pessoas controladas. Além disso, a segunda conceituação deixa em aberto quem será beneficiado em seus interesses e objetivos por tal controle. Garelli (2002), apresenta sua visão de controle social como o conjunto dos meios de intervenção, positivos ou negativos, acionados por cada sociedade ou grupo social a fim de induzir os próprios membros a se conformarem às normas que a caracterizam. O autor apresenta 14 Em relação ao mercado, considerado pelo autor como o mais eficiente tipo de controle, aponta deficiências, quais sejam: (1) é necessária uma organização que garanta o mercado, como o Estado; (2) o mercado só controla a eficiência econômica; (3) os custos de transação tornam mais eficiente a constituição de uma organização às operações de troca do mercado; e (4) o mercado possui deficiências ou “imperfeições”, pois existem externalidades positivas (não remuneradas pelo mercado) e negativas (as quais não são punidas pelo mercado) (Bresser Pereira, 1997, pp. 36-9). 15 Estas obras de Bresser Pereira (1997; 2002) têm um caráter prescritivo e de defesa programática (da proposta de reforma gerencial do Ministério da Administração e Reforma do Estado – MARE) sendo, portanto, útil para este trabalho apenas por contribuir na construção de um conceito operacional de controle social. 10 também o entendimento de outros pensadores, com destaque para o sociólogo americano E. A. Ross, pioneiro na definição explícita do conceito. Ross também separa o controle social em duas acepções: o controle exercido por um grupo sobre os próprios membros ou ainda por uma instituição ou grupos de pressão e classes sociais sobre uma população ou parte dela; e os processos que levam a regular e organizar o comportamento do homem e estabelecem condições de ordem social. As acepções de Ross, do fim do século XIX, assemelham-se, respectivamente, às apresentadas definições (1) e (2). Para Talcot Parsons, controle social é a motivação do ator ou agente para reagir contra um comportamento divergente ou o complexo de forças que resulta no reequilíbrio do sistema social. Para Gerth e Mills, por seu turno, o controle social é exercido por ordens institucionais e através delas, como no costume, na moda, na convenção, na lei, nas regras éticas e no controle institucional. Entretanto, para os autores, não há garantia de que o controle sirva às necessidades societais ou dos indivíduos controlados. Mannheim, por sua vez, distingue o controle social em direto ou indireto. Este pode ainda, segundo o autor, ser entendido como os métodos de influenciar o comportamento humano em massas não-organizadas e em grupos (apud Velho, 1987). Tais formulações, que estão presentes na tradição sociológica desenvolvida no século XX, apresentam um alto grau de abstração e generalidade, podendo ser aplicadas a um grande número de situações e contando com variadas, amplas e, por vezes, contraditórias interpretações. Além disso, operam sempre na perspectiva de relacionar o controle da sociedade sobre ela mesma (variando do indivíduo ou agrupamentos maiores que controlam ou são controlados), ou mesmo do Estado em relação à sociedade. No entanto, interessa a este trabalho um conceito de controle social que dê conta de uma outra perspectiva: o controle da sociedade sobre as ações do Estado. Mais ainda: interessa a este artigo trabalhar com um construto de controle social que esteja vinculado ao exercício do controle das ações do Estado pelos indivíduos ou grupos de indivíduos, os quais façam parte de estruturas formalmente constituídas para tal fim: os conselhos de participação comunitária, ou conselhos de controle social. Dentro desta perspectiva, retomo a obra de Bresser Pereira (2002, pp. 140-1) que traz sua visão do que seja a “democracia direta ou controle social”. Para o autor, o controle social pode ser exercido por meio da sociedade formal ou informalmente organizada, a qual controla os comportamentos individuais e as organizações públicas, ou ainda com o uso de plebiscitos e referendos. 11 No caso do controle das organizações públicas, o controle social se dará, segundo o autor, de duas formas, “de baixo para cima” e “de cima para baixo”. Neste, há o controle de conselhos diretores nas instituições públicas não-estatais, enquanto naquele a sociedade se organiza politicamente para controlar ou influenciar instituições sobre as quais não tem poder formal (Bresser Pereira, 2002, pp. 140-1). Do texto de Bresser Pereira é importante corrigir dois pontos que considero equivocados. Primeiro, no caso do controle social “de cima para baixo”, apesar de admitir que se trate de uma forma de controle – mais relacionada à tipologia “hierárquico ou administrativo” adotada pelo autor – não concordo que se trata de controle social, pois falta neste caso a participação da comunidade intervindo diretamente na coisa pública. Em segundo lugar, no caso do controle social “de baixo para cima”, o autor impõe uma restrição que, além de não servir aos objetivos do conceito operacional que será formulado neste trabalho, discrimina demais – e, repito, equivocadamente – o conceito. Trata-se, neste caso, de o autor dizer que a sociedade “não tem poder formal” sobre as instituições que controla ou influencia. Ora, vejamos, no Brasil, por exemplo, o caso dos conselhos de controle social das áreas da saúde, assistência social e outras, os quais têm amparo em legislação federal vigente para deliberar, aprovando ou não o que lhes é submetido, além de poder elaborar políticas, em forma de diretrizes ou mesmo de programas detalhados.16 Em face da escassez de literatura que aborde o conceito de controle social sob esta perspectiva, sinto-me à vontade para desde logo formular um conceito operacional para o presente trabalho. Desta forma, proponho a construção de um conceito de controle social a partir da ampliação do conceito apresentado por Bresser Pereira, adequando-o à minha concepção de participação direta da sociedade, além da referida constatação das prerrogativas de conselhos de controle social, qual seja: Ação de indivíduos ou grupo de indivíduos no âmbito de estruturas de conselhos ou colegiados formalmente constituídos com a finalidade de exercer o controle ascendente das ações do Estado. O conceito formulado discrimina as ações ascendentes das descendentes dos indivíduos (“de baixo para cima” e “de cima para baixo”), pois considero que somente as ascendentes caracterizam-se pela participação social. De outro lado, o conceito formulado não abarca o 16 São exemplos de tais prerrogativas as leis federais 8.080 e 8.142 (Lei Orgânica da Saúde), ambas de 1990, e as Normas Operacionais Básicas (NOBs) do Ministério da Saúde brasileiro. 12 plebiscito e o referendo, pois tais instituições, aplicadas esporadicamente e em casos muito específicos, não são, para os objetivos deste trabalho, representativas do controle social. Ainda se pode delimitar a abordagem de controle social aos conselhos de participação comunitária da área da saúde, os quais, inclusive, exerceram no Brasil forte influência para que houvesse a reorientação do conceito para que passasse a abarcar tal perspectiva. Entretanto, esta discussão será feita no âmbito da próxima seção, que abordará o conceito de conselhos e especificamente os de controle social da saúde. IV Na história da humanidade encontram-se diferentes modos de organização de colegiados com funções consultivas, representativas ou decisórias.17 Já no século XX, os movimentos políticos dos anos 60 defenderam a idéia de democracia participativa como alternativa à democracia representativa. Esta tese esteve presente na obra de autores como Carole Pateman (1992), na análise da experiência de conselhos gestores na Iugoslávia, e C.B. Macpherson (1978), para quem uma estrutura piramidal de conselhos poderia se constituir em base para uma democracia participativa. Nesta perspectiva, os conselhos18 não substituem as estruturas tradicionais da democracia representativa, como o Congresso e o Poder Executivo, mas são organismos com funções deliberativas e vinculadoras do Poder Executivo, na definição de políticas públicas, por exemplo. 17 Em Atenas, merece destaque a existência da Bulé – o Conselho dos 500 (Glotz, 1979). O Senado de Roma surgiu como espaço de representação dos interesses dos patrícios e tornou-se um dos principais centros de poder do período republicano. No período medieval e no renascimento, encontram-se diferentes formas de conselhos no Governo das cidades-estado italianas, como Veneza. Na Inglaterra, o Parliament (espaço de reunião da nobreza) e o Council (reunião dos conselheiros do Rei) originaram um sistema de governo predominante no continente europeu e difundido em diversas outras partes do Mundo. Em momentos como a Comuna de Paris, em 1870 e no princípio da Revolução Russa, em 1917, surgiram formas de conselhos como organismos de democracia direta, substituindo as formas de representação tradicionais. Em ambos os casos, foram experiências de curta duração, pois em Paris houve a derrota dos communards para o exército de Thiers e, no caso da Rússia, a supremacia do Partido Social Democrata Operário Russo apagou os sovietes. 18 O termo conselho, do latim consilìum, significa lugar onde se delibera, assembléia deliberativa, deliberação, resolução tomada, parecer, voto. Também no latim encontra-se o verbo concilìo, com o significado de conciliar, tentar acordo entre as partes. O lugar onde se realizavam assembléias chamava-se conciliabùlum, palavra que acabou por designar a própria assembléia. Como era nessas assembléias que as pessoas se reuniam para concluir negócios, comerciar, resolver disputas, formar alianças etc., o verbo concilìo, que significava primeiramente juntar, reunir, tomou diversas acepções correspondentes a essa atividade. Com raiz semelhante, há o verbo português aconselhar. Em português, a palavra conselho tanto significa reunião, assembléia ou grupo de pessoas quanto opinião, parecer, ensino ou aviso quanto ao que cabe fazer (Houaiss, 2001). 13 Há na literatura diferentes entendimentos sobre o papel desempenhado pelos conselhos, destacando-os como arena de disputa política e locus de formulação de políticas. Sartori (1994), por exemplo, defende a função dos conselhos ou colegiados apenas como espaços de debate que possam, através da representação, diminuir os entraves para a tomada de decisões nos órgãos decisores do executivo e legislativo. Esta é uma das funções que tem cumprido, por exemplo, o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), criado pelo Governo Luiz Inácio Lula da Silva.19 Antônio Ivo de Carvalho (1995, pp. 26-28), em seu trabalho sobre os conselhos de saúde no Brasil, apesar de reconhecer as contribuições trazidas pelos conselheiros de saúde para a formulação de políticas, acompanhamento e fiscalização, destaca o caráter de disputa “de espaço e projetos”. González (2000, p. 320) concluiu que os conselhos de políticas públicas no Brasil, na forma como estão organizados atualmente, “não são instrumentos institucionais adequados à realização da democracia participativa, mas podem ser importantes na criação dos requisitos necessários ao seu surgimento”. O estudo de Tatagiba (2002), que analisou trabalhos sobre conselhos gestores de políticas públicas da saúde, da assistência social e de defesa da criança e do adolescente, tratou de compreender até onde se pode falar em constituição de novas tendências na produção das políticas públicas no Brasil como resultado desses encontros e quais os seus principais limites e possibilidades. Apesar de reconhecer que os conselhos representam avanços para formas mais democráticas de gestão dos negócios públicos e que é preciso dar conseqüência e efetividade nas práticas concretas da participação popular institucionalizada nos conselhos, Tatagiba assume que “os conselhos apresentam, no cenário atual, uma baixa capacidade propositiva, exercendo um reduzido poder de influência sobre o processo de definição das políticas públicas” (Tatagiba, 2002, p. 98-100). Max Weber (1997) desenvolve extensa discussão sobre as formas de colegiado com funções de deliberação ou de consulta, formadas por especialistas ou por representantes eleitos. Entretanto, esta será uma disputa constante na formação de conselhos, ou seja, se eles devem se tornar uma forma alternativa de exercício do poder ou se são um apoio à decisão de um decisor monocrático. A discussão sobre o papel político dos conselhos neste século pode ser dividida em duas grandes vertentes, a das teorias que apresentam os conselhos como alternativa ao governo 19 Para uma revisão sobre conselhos econômicos e sociais, incluindo o próprio CDES, consultar Trindade (2003, pp. 70-82). 14 representativo parlamentar e aquelas nas quais os conselhos são formas de intermediação do processo decisório, paralelamente ou de forma complementar às formas de governo representativo, parlamentarista ou presidencialista. Na primeira vertente, que tem um ideal de democracia direta, incluem-se marxistas como Lênin, Rosa Luxemburgo, Antônio Gramsci e Anton Pannekoek. Marx (1983) referiu-se à Comuna de Paris20 como momento privilegiado da possibilidade de realização da democracia socialista. No período pré-revolução russa, tanto Lênin quanto Trotsky defendem os sovietes21 (ou Conselhos Operários) como estrutura revolucionária. Os sovietes realizariam a representação direta dos operários a partir de seu local de trabalho, substituindo as estruturas parlamentares e sendo, portanto, uma forma de realizar a representação de classe (Bottomore, 1988). A análise de Gerratana (s/d) sobre os conselhos propõe a relação entre as experiências de conselhos populares, notadamente a Comuna de Paris, e a extinção do Estado, proposta na teoria marxista. Para o autor, o movimento deve ser, então, da ditadura do proletariado à extinção do Estado, devendo constituir-se como “poder transitório que deve permitir que a classe operária organize seu próprio e provisório domínio de classe como alavanca „para extirpar as bases econômicas sobre as quais repousa a existência das classes e, por conseguinte, também o domínio de classes‟ ” (p. 67). Gerratana esclarece que a crítica de Marx ao parlamentarismo servia não para convidar a classe operária a destruir algo que já havia sido destruído ou ainda como uma desvalorização do princípio do sufrágio universal e da democracia representativa em geral. Para Gerratana, “O sistema da Comuna, assim como mais tarde o sistema dos conselhos, não anula nem o princípio do sufrágio universal nem o da democracia representativa para entregar-se exclusivamente aos instrumentos da democracia direta, como algumas vezes se afirma, mas baseia-se no novo uso do sufrágio universal e numa nova rede de instituições representativas que realizam, de um modo distinto ao do parlamentarismo, o princípio da representação política” (p. 68, destaques meus). Uma análise de matiz gramsciana sobre os conselhos populares é feita por Rolim. O autor discute o papel do Partido dos Trabalhadores do Brasil e “das forças de esquerda”, por meio das Administrações Populares, na organização popular, na conscientização político-ideológica e no estímulo à participação de setores de massa na luta política, destacando como caminho importante para tais tarefas a constituição de conselhos populares “como a materialização de uma nova esfera pública de exercício da cidadania, a ser inventada” (Rolim, 1989, p. 34). Nessa perspectiva, 20 21 Na Comuna existiu uma estrutura de conselhos que exerciam a função de legislativo e executivo ao mesmo tempo, sob a forma de democracia direta, combinada com mandato imperativo. Em russo, o termo soviete significa justamente conselho. 15 Rolim assume que há necessidade de criação de uma teoria dos conselhos, até agora inexistente. Vale ressaltar, ainda, que Rolim entende que a participação nos conselhos deva ser universal e direta, a partir de um critério geográfico, e não que se constituam conselhos temáticos ou com representantes de entidades, sob pena de se afirmar o corporativismo ou de se negar a idéia de organização de massa (Rolim, 1989, p. 35). Para os pluralistas, no entanto, a sociedade é dividida entre diferentes grupos sociais, que se organizariam na defesa de seus interesses e influiriam sobre o processo político, seja a partir da formação de diferentes partidos políticos, seja a partir da constituição de outras formas de ação coletiva para influir sobre o processo decisório, destacando-se o conceito de grupo de pressão (Key, 1959). Os pluralistas, que viam na democracia representativa a realização de seu modelo político, não desenvolvem a discussão de conselhos como forma alternativa às suas estruturas. Os grupos de pressão são considerados como formas de organização coletiva externas ao Estado, que buscam obter o atendimento de seus interesses através do lobby sobre os governantes. Uma outra possibilidade da análise destes colegiados, que de alguma forma acompanha elementos da perspectiva weberiana, é vê-los não como centros de poder, mas como uma alternativa para superar dificuldades no processo de tomada de decisões. É nesta perspectiva que se dá a discussão de Giovanni Sartori (1994) sobre os comitês. Sua proposição é de que toda decisão coletiva envolve custos internos; a tomada de decisões implica em um custo de desgaste dos que tomam a decisão. Já nos anos 1980 e 1990, uma série de autores de corte liberal e pluralista passou a retomar a discussão do conceito de sociedade civil. Ainda que suas raízes possam ser colocadas mais remotamente na obra de autores como Kant e Locke, o conceito de sociedade civil será desenvolvido principalmente por Hegel e posteriormente por Marx e seus intérpretes, dos quais se destaca Gramsci (Costa, 1997). A retomada do conceito, entretanto, será justamente influenciada pela queda dos regimes de socialismo real, teoricamente de inspiração marxista. Para os defensores do novo conceito de sociedade civil, esta é o espaço da organização dos cidadãos para o controle do Estado. Não se propõe a ser uma forma alternativa à representação nos parlamentos nem de incluir-se dentro da estrutura do Estado. Valoriza-se a formação de uma esfera pública não-estatal, que seria potencialmente um espaço de democratização das relações. Esta concepção irá influenciar autores que analisam os conselhos, vendo nestes uma forma de reforçar uma esfera pública, que não se identificaria com o Estado, como Raichelis (1998). 16 V No Brasil, as Conferências Nacionais de Saúde são realizadas desde 1941. Mas foi em 1963, na efervescência das Reformas de Base, que aconteceu a 3ª Conferência Nacional de Saúde, quando, segundo Adalgiza Balsemão (2003, p. 286), pela primeira vez em nível nacional foi discutida efetivamente a situação sanitária no Brasil e a Política Nacional de Saúde. Carvalho (1995, p. 32) lembra que o Conselho Nacional de Saúde surgiu com a promulgação da Lei 378 de 13 de janeiro de 1937, tendo a função de assistir o então Ministério da Educação e Saúde. Já na década de 1970, o decreto 67.300/70 atribui escopo, funções e estrutura ao Conselho de funcionamento irregular e inexpressivo. Desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, o sistema de saúde conta com novo marco institucional. O desenho dado pela 8ª Conferência Nacional de Saúde foi afirmado nos artigos 196 a 200 da Carta Magna, dotando o atual Sistema Único de Saúde (SUS) de princípios e diretrizes como a universalidade, a integralidade e a participação comunitária. Os conselhos de saúde constituem-se então na regulamentação da diretriz constitucional da participação da comunidade no SUS, tornando-se, portanto, a instância deliberativa e fiscalizadora do Sistema em cada esfera de governo. As leis federais 8.080/90, 8.142/90,22 bem como a Emenda Constitucional 29, atribuíram aos Conselhos de Saúde seu caráter permanente, deliberativo e fiscalizador, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros (Fundos de Saúde, Orçamento, Plano de Saúde, Relatório de Gestão e Plano de Aplicação) e sua composição através de quatro segmentos (governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários – devendo o número de usuários ser paritário aos demais), entre outras prerrogativas (Balsemão, 2003, pp. 288-9). Segundo o manual dos conselheiros da saúde denominado Guia de referência para o controle social, este é “um processo no qual a população participa, através de representantes, na definição, execução e acompanhamento de políticas públicas, as políticas de governo” (Ministério da Saúde, 1994). 22 “Art. 1°. O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo , sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas: I a Conferência de Saúde; e II - o Conselho de Saúde. § 1°. A Conferência de Saúde reunir-se-á a cada quatro anos com a representação dos vários segmentos sociais, para avaliar a situação de saúde e propor as diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes, convocada pelo Poder Executivo ou, extraordinariamente, por esta ou pelo Conselho de Saúde. § 2° . O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo” (Brasil, 1990). 17 Para Rezende & Trindade (2003, pp. 70-1) apesar de a responsabilidade pela implementação do SUS caber aos gestores, é papel da sociedade definir as diretrizes do Sistema nas Conferências de Saúde, assim como é responsabilidade dos conselhos de saúde zelar pelo seu cumprimento e deliberar sobre a implementação dessas políticas em seu nível de atuação. Os autores consideram que o controle social na saúde se dá pela intervenção da população na gestão da saúde por meio de sua participação nos conselhos, podendo, desta forma, “discutir e direcionar os serviços públicos para atender os seus interesses”. Assume-se, para efeito deste trabalho, que os conselhos de participação comunitária na saúde são organismos de controle social, à medida que (e em consonância com o conceito operacional de controle social formulado acima), por meio das ações de indivíduos ou grupo de indivíduos no âmbito dos conselhos de saúde formalmente constituídos, é exercido o controle ascendente das ações do Estado. Assim, após a revisão dos conceitos de conselho de controle social e conselho de participação comunitária (na saúde), pode-se formular um conceito operacional desta categoria a partir da definição de conselho de saúde aprovada na lei 8.142/90, em vigência nesta data, qual seja: Órgão colegiado de caráter permanente e deliberativo composto por representantes do governo, prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários do sistema de saúde que atua na formulação de estratégias e no controle da execução da política de saúde na instância correspondente, e cujas decisões serão homologadas pelo chefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo. VI À guisa de conclusão, farei nesta seção alguns comentários que relacionam os conceitos operacionais formulados no trabalho, ao tempo em que retomo hipóteses de autores sobre a relação entre conselhos e democracia participativa. A idéia de controle numa democracia está presente desde a Grécia Antiga, quando Platão e Aristóteles a criticavam por entenderem ser um regime degradado, no qual uma maioria (de pobres) dominaria uma minoria. Esta concepção volta a ser debatida nos EUA durante a proclamação da independência, sendo defendida por James Madison. Desde então, a separação dos poderes, por exemplo, é largamente utilizada como meio de se evitar uma tirania da maioria, 18 ou mesmo de uma minoria, almejando-se uma permanente vigília das instituições umas sobre as outras. No caso específico da democracia participativa, constata-se que, em geral, as obras consultadas propõem alternativas de participação que controlem ou influam sobre os representantes eleitos, ou seja, que haja maior controle da sociedade sobre as decisões substantivas do aparelho do Estado. Por ter existência histórica recente, ocorrendo em situações ainda restritas, o controle social, conforme preconizado neste trabalho, não teve um tratamento teórico sistemático da literatura social. Entretanto, pode-se perceber que o controle ascendente das ações do Estado feito por indivíduos em conselhos está em acordo com a concepção de democracia participativa, à medida que esta, ainda que exija a eleição de representantes para os cargos de direção política, preconiza como condição necessária a participação direta dos indivíduos em composição de organismos colegiados a fim de que se compartilhe o poder de decisão com os representantes eleitos. Esta moderna concepção de controle faz com que autores como Bresser Pereira denominem controle social como sinônimo de “controle democrático”, naturalmente tratando-se de exercê-lo por meio da ampliação da participação da sociedade nas decisões estatais. O maior envolvimento direto dos cidadãos na tomada de decisões, característica da democracia participativa, leva autores como Carole Pateman e C. B. Macpherson a proporem a criação de instâncias de participação, como os conselhos. Estes não devem substituir os organismos tradicionais da democracia representativa, entretanto devem se portar como instâncias de participação que ampliem a possibilidade de intervenção societal. Entendo que os conselhos de participação comunitária da área da saúde (os quais exercem o controle social) não se contrapõem à delegação de poderes dos cidadãos aos representantes eleitos para a finalidade de direção política, mas, concomitantemente, possibilitam a tomada de decisões destes indivíduos de forma complementar ou compartilhada com estes representantes eleitos. Estas decisões compartilhadas são tomadas com base no caráter deliberativo dos conselhos de saúde, os quais têm prerrogativa de atuarem na formulação e controle da execução de políticas. Suas decisões devem ser, obrigatoriamente, homologadas pelo chefe do poder executivo em cada esfera do governo. Desta forma, e de acordo com os conceitos operacionais formulados, pode-se concluir no âmbito deste trabalho que os conselhos da área da saúde do caso analisado são instrumentos que fortalecem a democracia participativa. 19 BIBLIOGRAFIA Balsemão, A. (2003) Competências e rotinas de funcionamento dos conselhos de saúde no Sistema Único de Saúde do Brasil. In: Aranha, M. I. ed. Direito Sanitário e Saúde Pública. v. 1. Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS. Brasília, Ministério da Saúde. Barbieri, A. R. & Hortale, V. A. (2002) Relações entre regulação e controle na reforma administrativa e suas implicações no sistema de saúde brasileiro. Revista de Administração Pública, 36 (2), março-abril, pp. 181-93. Bobbio, N. (1989) O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Bobbio, N. (2003a) Democracia. In: Santillán, J. 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