SUPERBACTÉRIAS - Revista Vox Objetiva

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A CULTURA QUE MATA
Assim como as bactérias, a automedicação dos brasileiros e a desinformação dos médicos
dificultam o controle das superinfecções
André Martins
Doenças incuráveis e moléstias universais são um prato cheio para a indústria do entretenimento,
fissurada em estórias apocalípticas. Mas o que antes estava restrito ao “intransponível” campo da
imaginação começa a lançar os tentáculos em direção ao mundo real. As superbactérias, em evidência
nos quatro cantos do mundo, remetem aos males que assombraram àqueles que nos precederam. Os
surtos de cólera no continente asiático e a peste bulbônica, na Europa, foram responsáveis pela seara
farta que a morte fez séculos atrás.
O problema atual não está vinculado apenas às precárias condições sanitárias que marcaram a história
da Europa Feudal e ainda são realidade em grande parte do sul asiático. O uso indiscriminado dos
medicamentos que deveriam conter as perigosas doenças bacterianas é agora a grande preocupação da
Organização Mundial da Saúde (OMS). Autoridades mundiais temem que estejamos perdendo a
batalha contra minúsculos, mas letais agentes infecciosos, cada dia mais resistentes.
O termo “superbactérias” vem sendo empregado para se referir a organismos unicelulares
multiresistentes. A grosso modo, compreendem o grupo de bactérias imunes a três classes de
antibióticos, especialmente à categoria conhecida como Carbapenen. “Os antimicrobianos desta classe
específica representam o que de mais eficiente já foi produzido e a última alternativa de tratamento
hoje disponível”, detalha o médico infectologista do Hospital das Clínicas, Vandack Nobre.
De acordo com a diretora assistencial da Fhemig, a infectologista Adriana Magalhães, desde o início
do século XXI a OMS reconhece a resistência microbiana como um fenômeno novo para a saúde
pública mundial. A relação antibiótico e bactéria, porém, é objeto de análise desde a década de 1950.
“Com o advento clínico do uso humano de antibióticos a resistência microbiana às drogas vem
concomitantemente sendo descrita”.
Na medida em que eram produzidos e lançados no mercado, ampliando o arsenal farmacêutico, os
medicamentos eram categorizados de acordo com os espectros de cobertura antimicrobiana, ou seja,
com as potencialidades no combate às especificidades de cada uma das bactérias. Mas a cultura do
descontrole no uso até mesmo dos menos complexos medicamentos, foi suficiente para dar origem à
bactérias que burlam a capacidade produtiva da indústria farmacêutica em velocidade espantosa.
“O maior problema é que uma nova droga demora em média 15 anos para estar liberada para uso
clínico. Além do mais, os investimentos são altos. Por outro lado, em menos de um ano, algumas
bactérias já ‘aprendem’ mecanismos de resistência à novas drogas”, explica Adriana Magalhães.
Além das mutações genéticas, as bactérias podem adquirir outras propriedades ao trocarem material
genético umas com as outras. Dessa forma, se tornando imunes ao princípio ativo dos antimicrobianos.
As “estratégias” de combate aos antibióticos possuem diversas variações. Vão desde o bloqueio à
droga e à síntese de enzimas que desativam a ação de combate, bem como mecanismos mais
complexos, como bombas que expelem a o princípio ativo do medicamento.
Preocupada com a situação, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) determinou, em
outubro de 2010, que as vendas de antibióticos só poderiam ser realizadas após apresentação da
prescrição médica pelo consumidor. A receita ficaria ainda retida na farmácia. “A resolução foi
importante, mas ela não deixa de ser um paradoxo. Bem antes da estipulação dessas regras, tais
medicamentos, em tese, só poderiam ser vendidos com receita”, explica Magalhães.
A diretora-presidente da Associação Brasileira de Farmacêuticos e professora de Farmacologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro Maria Eline Matheus, também comemorou a decisão da
Anvisa. “Muitas vezes, o balconista da farmácia, não o farmacêutico, fazia o papel do médico e
indicava um antibiótico (o que na nossa linguagem é chamado de ‘empurroterapia’) para alguém que
se queixava de uma simples irritação de garganta. Isso era rotina em farmácia, pois os balconistas
ganhavam comissão para vender determinados medicamentos. Dentre eles estavam vários antibióticos.
Isso é muito triste em nosso país. Farmácia é vista como estabelecimento comercial, não de saúde
como acontece em vários países da Europa. E, como é comércio, deve dar lucro, muito lucro”,
lamenta.
De acordo com a docente, o desconhecimento popular a cerca dos processos de transmutação das
bactérias fizeram com que crendices fossem incutidas na cultura do brasileiro. “Infelizmente, a
maioria das pessoas acredita que antibióticos antigos e baratos, como a penicilina, não funcionam
mais, e, por isso, se apela para os de última geração”, explica. Embora bastante caros, muitos
antimicrobianos já não possuem mais patentes e por esta razão são encontrados a preços mais
acessíveis.
Experiências já foram feitas em diferentes países. França, Suíça, Holanda e Estados Unidos são
exemplos. Desde que a fiscalização mais efetiva começou a ser realizada, esses países reduziram
consideravelmente o número de casos de infecção por agentes multiresistentes. Uma medida que
auxilia, mas não garante imunidade permanente. Todos os dias inúmeros indivíduos cruzam fronteiras,
alguns, eventualmente, já infectados. O encurtamento das distâncias e o fluxo migratório e turístico
intenso tornam o problema não apenas de uma ou duas nações. Combater aos agentes microbianos é
ordem do dia para o mundo.
O controle do que sai das farmácias, entretanto, é uma medida inócua, caso aqueles que detêm
autonomia para a prescrição a façam de maneira inconsequente. Parte da culpa recai sobre os próprios
médicos. “É uma questão, sobretudo, de falta de informação e em alguns casos uma atitude de
conforto. Prescrever um antibiótico com espectro amplo ‘resolveria’ o problema de maneira mais
prática, mas existem riscos. Várias bactérias podem adquirir imunidade por meio da adesão a esses
métodos”, acredita o doutor Vandack Nobre.
A prescrição parcimoniosa seria a solução. “Já sabemos quais as maneiras de se evitar a multiplicação
das superbactérias, basta colocar em prática”, explica o médico. O ciclo vicioso que levaria o homem a
desenvolver antibióticos mais resistentes, os quais fariam frente ao mal por um período limitado, pode
ser plenamente evitado por meio de atitudes básicas.
De acordo com Nobre, o emprego de antimicrobianos pode ser descartado em casos de gripes e
resfriados, para os quais existem terapias menos invasivas e possivelmente mais eficazes. Quando
realmente necessário, o recomendado seria a utilização do antibacteriano específico para a bactéria que
se pretende combater. Evitar drogas muito indutoras e o encurtar o período de manipulação do
medicamento no organismo reduz o tempo de exposição das bactérias à droga, além de atenuar os
efeitos colaterais. “Pesquisas indicam que ao se reduzir o uso de sete para quatro dias, por exemplo,
temos a mesma eficácia que o tratamento prolongado”, explica Nobre.
Alerta global
Somente na União Europeia, estima-se que cerca de 25 mil pessoas morram, anualmente, em
decorrência de doenças infecciosas. Na Ásia, em 2010, pesquisadores coletaram amostras de água em
diferentes pontos de Nova Délhi. Análises comprovaram a existência da superbactéria NDM-1 em
duas amostras de água de torneira e filtrada – um perigo sem precedentes para uma nação em que mais
de um terço da população não possui acesso à água encanada e a um sistema sanitário como aconselha
a OMS.
No Brasil, o primeiro caso de contaminação por superbactéria foi registrado em 2005. De lá para cá,
vários outros surgiram. Entretanto, somente em 2010 com os relatos envolvendo a KPC (Klebsiella
Produtora de Carbapenemase) o assunto ganhou notoriedade nacional.
Não é possível precisar um número exato de doentes e óbitos desde os primeiros registros no Brasil,
uma vez que muitos casos não chegam ao conhecimento do poder público. Sem a notificação, o Estado
não libera o medicamento adequado para o tratamento dos doentes. Mesmo diante de tão grave sanção,
o sistema brasileiro apresenta falhas. A Anvisa nada pode fazer diante do silêncio em relação à não
notificação das ocorrências.
Retranca
O risco da inconstância
De acordo com diretora-presidente da Associação Brasileira de Farmacêuticos, Maria Eline Matheus, a
prática de suspender e retomar o uso dos antibióticos é um grande perigo. “O paciente deve utilizar o
medicamento pelo período prescrito pelo médico ou dentista. Na maioria das vezes, o que constatamos
é que o paciente suspende o uso quando os sinais e sintomas da doença não incomodam mais. Ou
ainda, o paciente suspende o uso na sexta-feira porque o prescritor avisa que ele não pode beber, e
volta a tomar o antimicrobiano na segunda-feira”, explica. Um intervalo de 48 horas já seria suficiente
para que as bactérias se tornem resistentes.
LEGENDAS E CRÉDITOS:
Foto 1
Legenda: De acordo com o infectologista Vandack Nobre, aumentam-se as probabilidades de que
superbactérias acometam organismos já fragilizados
Crédito: André Martins
Foto 2
Obs: Rodrigo, marque aí o espaço. Eu vou tirar a foto da doutora na segunda-feira. Foto horizontal.
Legenda: Para Adriana Magalhães, a dimensão continental e as grandes diversidades regionais do país
impõem desafios ao Governo no combate à proliferação das superbactérias
Crédito: André Martins
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