Os estágios de transição (entre morfologia e sintaxe) do SE Aline Camila LENHARO1 MUTZ, Katrin. SE-verbs, SE-forms or SE-constructions? SE and its transitional stages between morphology and syntax. In: GAGLIA, Sascha; HINZELIN, Marc-Olivier (eds.), Inflection and word formation in Romance languages. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 2012, p. 319-346. O texto de Katrin Mutz (pesquisadora da Universidade de Bremen, Alemanha) faz parte de uma coleção, publicada em 2012, de artigos dedicados à morfologia flexional. O livro reúne pesquisas que exploram diferentes áreas da morfologia (sob diversas perspectivas teóricas e metodológicas) de línguas e dialetos românicos. Os temas abordados incluem o sincretismo e a alomorfia verbal, o uso de sufixos derivacionais na formação de palavras, entre outros. O capítulo 12, elaborado por Mutz (2012), discute aspectos relacionados à forma [verbo + SE] – forma esta que, no Brasil, frequentemente é chamada de verbo pronominal –, isto é, a autora questiona se esse tipo de formação deve ser analisado como: (a) uma unidade lexical oriunda de mecanismos de formação de palavras, SEverbs, (b) uma forma verbal não flexional, SE-forms, (c) uma construção sintática, SEconstructions, ou (d) outra estrutura linguística que não se encaixa em nenhuma das citadas anteriormente. No capítulo, a autora trabalha com dados do italiano e do francês, mas afirma que grande parte dos aspectos apresentados por ela é válida para outras línguas românicas. Mutz (2012) defende que a forma [verbo + SE] possui características distintas conforme a função que desempenha. Assim, para se compreender adequadamente esse tipo de formação, é necessário observar a função que cada realização exerce (o que normalmente não é feito pelos pesquisadores, que tendem a observar apenas a função reflexiva). Isso porque a atuação do SE sobre a estrutura de argumentos semântica e/ou Doutora em Linguística e Língua Portuguesa, Faculdade de Ciências e Letras, Unesp – 14800-901 – Araraquara – SP. E-mail: [email protected] 1 sintática do verbo difere de acordo com a função que o SE desempenha e leva a diferentes realizações (ou não realização) dos argumentos. A proposta da autora é a de que são sete as funções prototípicas desempenhadas pelo SE no italiano e no francês, bem como nas demais línguas românicas (MUTZ, 2012, p. 321-322): (1) função reflexiva, “il se blesse” (‘ele se machuca’); (2) função recíproca, “ils se blessent” (‘eles se machucam um ao outro’); (3) função anticausativa, “la porte s’ouvre” (‘a porta se abre’); (4) função médio-passiva – com ou sem um componente modal –, “les livres se vendent bien” (‘os livros se vendem bem’); (5) função indeterminadora (não se aplica ao Francês), “con il latte a colazione si arriva più sazi a pranzo” (‘com leite no café da manhã [você] se sacia mais até o almoço’); (6) função ética-benefactiva-possessiva (dativo estendido ou não lexical), “je me mange une salade entière” (‘eu me como uma salada inteira’); (7) verbos+SE lexicalizados, “repentirsi” (‘arrepender-se’) – que, por serem fenômenos lexicais e, por isso, idiossincráticos, não são abordados pela autora. Segundo a pesquisadora, nas funções reflexiva e recíproca, o SE é semanticamente referencial (do tipo lexical) e a estrutura de argumentos semânticos permanece intacta, podendo a construção ser transitiva ou intransitiva. Nas funções anticausativa e ética-benefactiva-possessiva, o SE efetua uma alteração de valência: na anticausativa, há uma redução de valência, pois o SE elimina o Agente, tornando a construção intransitiva tanto sintática quanto semanticamente. Na ética-benefactiva-possessiva, há um aumento de valência, pois há, por exemplo, a introdução de um Beneficiário/Possuidor (correferencial) suplementar. Na construção médio-passiva, o SE carrega informação de diátese, isto é, uma informação gramatical. O número de argumentos semânticos não é alterado, mas o número de argumentos sintáticos é reduzido, por isso, o Agente semanticamente presente, mas indefinido, não pode ser realizado sintaticamente e, como na perífrase passiva padrão, o argumento paciente é realizado na posição de sujeito. Na função indeterminadora, o SE assume a posição de Sujeito, como um pronome indefinido na função de um protoagente genérico. Transmite, portanto, informação gramatical, isto é, sintática, e, assim como o reflexivo e o recíproco, possui o status de complemento direto ou indireto. As características da estrutura de argumentos sintático-semântica dos verbos hospedeiros do SE, segundo cada função exercida, podem ser representadas de acordo com Mutz (2012, p. 323-324, tradução nossa) da seguinte maneira: (1) função reflexiva Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: participantei CAUSE (Xi, BECOME (PRED(Yi)))2 Proto-Ai = Proto-Pi Arg1/Arg2i – externo/interno NPi – sujeito (2) função recíproca Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: participantei1 participantej2 CAUSE (Xi, BECOME (PRED(Yi))) & CAUSE (Xj, BECOME (PRED(Yi))) Proto-A1i Proto-P1j & Proto-A2j Proto-P2i Arg1ij + Arg2ij NPij – sujeito (3) função anticausativa Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: participantej (BECOME (PRED(yj))) (≠ Proto-A) Proto-Pj Arg2j – externo NPj – sujeito (4) função médio-passiva Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: participantei1 participantej2 CAUSE (Xi indef, BECOME (PRED(Yi))) Proto-Ai indef Proto-Pj (≠ Arg1i) Arg2j - externo NPj – sujeito (5) função indeterminadora Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: 2 PRED = Predicado. participantei indef1 participantej2 CAUSE (xi indef, BECOME (PRED(yi))) Proto-Ai indef Proto-Pj Arg1i indef - externo Arg2j - interno Proi indef – sujeito NPj - objeto (6) função ética-benefactiva-possessiva (dativo estendido ou não lexical) Estrutura referencial: Estrutura conceitual lexical: Estr. argumentos semânticos: Estr. argumentos sintáticos: Estr. sintática de realização: participantei participantej CAUSE (xi, BECOME (PRED(yi))) zi Proto-Ai Proto-Pj Proto-Bi Arg1i - externo Arg2j - interno Arg3i NPi - sujeito NPj – objeto Proi Após apresentar a análise de alguns dados, Mutz (2012) defende que o SE (quando analisado sincronicamente) apresenta um status intermediário entre o léxico e a gramática, devido suas múltiplas funções. Para a autora, esse status faz com que o SE não possa ser sempre classificado do mesmo modo: “há formações em que o SE se comporta mais como um afixo, em outras, ele apresenta mais propriedades de um clítico pronominal; o comportamento não-flexional pode ser encontrado além do comportamento derivacional” (MUTZ, 2012, p. 343, tradução nossa). Em outras palavras, o SE transita entre a morfologia e a sintaxe. Sua conclusão é a de que a natureza – semântica, funcional, categorial e estrutural – “vacilante”, ou oscilante, das formações do tipo [verbo + SE] nas línguas românicas de um modo geral é um reflexo do desenvolvimento diacrônico do SE, “que pode ser descrito como um processo de gramaticalização combinado com mecanismos de lexicalização e com aspectos pragmáticos” (MUTZ, 2012, p. 343, tradução nossa). Segundo ela, há uma carência de trabalhos que tratem adequadamente a representação e a categorização sincrônica do SE em todas as suas funções, visto que os pesquisadores usualmente se restringem ao estudo da função reflexiva. Pode-se afirmar que, apesar de Mutz (2012) fornecer um quadro abrangente das características das estruturas de argumentos sintático-semântica dos verbos hospedeiros do SE para seis de suas funções, a autora ignora uma delas (assim como a grande maioria dos linguistas): a função dos verbos+SE lexicalizados, que, como mencionado anteriormente, corresponde a fenômenos lexicais e, por isso, são verbos idiossincráticos. No português, os verbos+SE lexicalizados podem ser exemplificados pelos verbos arrepender-se e apaixonar-se, respectivamente ilustrados por (a) e (b), enunciados extraídos de textos divulgados na internet: (a) “[...] quando a pessoa se arrepende e quer voltar”.3 3 Disponível em: <http://letras.mus.br/samprazer/1676996/>. Acesso em 27 jan. 2015. (b) “João Lucas (Daniel Rocha) se apaixonou por Maria Isis (Marina Ruy Barbosa) e eles trocaram um beijo [...]”.4 Por fim, ressalta-se que esforços têm sido empregados para a caracterização de todas as funções desempenhadas pelo SE no português do Brasil, incluindo a dos verbos+SE lexicalizados (Cf. Lenharo, 2014). Referências bibliográficas LENHARO, A. C. Descrição léxico-gramatical e funcional dos verbos pronominais do português brasileiro com vistas à construção da base de verbos da wordnet brasileira e do alinhamento semântico desta à base de verbos da wordnet norteamericana. 2014. 237 f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara. 4 Disponível em: <http://www.purepeople.com.br/noticia/-imperio-magnolia-diz-a-jose-alfredo-quemaria-isis-esta-gravida-de-joao-lucas_a31431/5>. Acesso em 27 jan. 2015.