bioquímica do humor aquoso e do humor vítreo1

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BIOQUÍMICA DO HUMOR AQUOSO E DO HUMOR
VÍTREO1∗
Introdução
O humor aquoso é um líquido claro, transparente de consistência aquosa, producida pelo corpo
ciliar e encontra-se na câmara anterior e posterior do olho. Ele é uma solução com os
componentes plasmáticos em concentrações iguais o menor. O humor vítreo é composto por um
líquido claro, transparente e semiviscoso que se encontra entre o cristalino e a retina. A
composição é similar a do humor aquoso, mas com maior cantidade de ácido hialurônico
(Wittwer et al., 1992).
Em medicina veterinária são escassas as publicações que tratam do conteúdo protéico do humor
aquoso o qual é usado como indicador em doenças. O mecanismo de quebra de barreira hematoaquosa tem sido implicado como o principal responsável pelo aumento de proteínas em doenças
(Prata et al., 2007).
Anatomia ocular
As estruturas do olho são muitas complexas e ele tem o formato aproximado de uma esfera
(Bicas, 1997; Filho, 2007).
A córnea
A córnea tem função mecânica, como dar formato ao globo ocular, proteger contra traumas
mecânicos e infecção. Além disso, ela ainda é responsável por grande parte da refração da luz no
sistema ocular (poder refrativo próprio e pela interface ar-tecido).
∗
Seminário apresentado por Flor Claros Chacaltana na disciplina BIOQUIMICA DO TECIDO ANIMAL, no
Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no
primeiro semestre de 2011. Professor responsável pela disciplina: Félix H. D. González.
1
A esclera
A esclera compõe a maior parte da túnica externa do olho (5/6 da superfície ocular), tendo
como funções proteção mecânica (a traumas e infecções) e manutenção da estrutura ocular,
mesmo sob variação de pressão ou sob ação dos músculos adjacentes (internos ou externos).
Figura 1. O segmento anterior do olho (Filho, 2007).
A Úvea
A úvea é a camada intermediária entre a córneo-escleral e a camada nervosa (retina). Ela é
ricamente vascularizada e dividida em três componentes, o mais anterior - a íris, a mais posterior
- a coróide e o corpo ciliar entre elas.
A íris
A íris é capaz de controlar a quantidade de luz que penetra dentro do globo ocular. O espaço
compreendido entre a íris e a córnea denomina-se câmara anterior e o espaço compreendido
entre a íris e o cristalino é chamado de câmara posterior. Ambas são preenchidas pelo humor
aquoso.
O corpo ciliar
O corpo ciliar é dividido em três partes, sendo o epitélio ciliar, o estroma do corpo ciliar e a
musculatura ciliar. Suas principais funções são: acomodação, produção do humor aquoso e
produção da zônula, glicosaminoglicanas do vítreo e colágeno do vítreo.
2
A coróide
É a parte posterior da camada vascular do olho e tem importantes funções, como a
nutrição parcial das demais camadas, absorção da luz e a influência na produção do humor
aquoso.
O cristalino
O cristalino é uma estrutura altamente organizada, cuja principal função é a refração da luz.
Mecanismos complexos dão ao cristalino a capacidade de acomodar-se (mudar seu formato de
acordo com o tônus da musculatura ciliar), causando mudanças na capacidade refracional do
olho (permite focalizar para longe, perto ou distâncias intermediárias).
O corpo vítreo
O corpo vítreo é uma estrutura gelificada, composta basicamente de água (99% de sua massa
de cerca de 3,9 g), de ácido hialurônico e fibrilas colágenas. Transparente, mantém restos de
vítreo embrionário e da artéria hialóide, formando o canal de Cloquet, entre o cristalino e o disco
óptico, visível como uma fina teia em seu interior. A cavidade vítrea é a maior cavidade do
olho, ocupando aproximadamente um terço do volume total do globo. É preenchido pelo corpo
vítreo (ou humor vítreo). É delimitada anteriormente pela face posterior do cristalino e
posteriormente pela retina e nervo óptico.
Retina
A retina é a estrutura nervosa justaposta ao pólo posterior do olho, capaz de transformar
impulsos luminosos em impulsos nervosos, que são, então, direcionados ao córtex occipital,
onde ocorre a decodificação.
Humor aquoso
Humor aquoso é o nome dado ao fluido transparente que preenche a câmara anterior e
posterior do olho. O humor aquoso tem a função de nutrir a córnea e o cristalino e mantém uma
pressão hidrostática conveniente para o olho. É produzido pelo epitélio não pigmentado do corpo
ciliar e absorvido pelo trabeculado, passa da câmara posterior à anterior e daí sai pelo ângulo
cameral (formado na junção da córnea com a raiz da íris) filtrando-se por uma estrutura porosa
3
(o trabeculado) ao canal irido-corneal. Em seguida drenado às veias “aquosas” de Ascher, parte,
já, da circulação sanguínea de retorno, coletada pelas veias ciliares anteriores (Bicas, 1997; Do
& To, 2000).
Dada a importância da transparência para o sistema visual, é de suma importância que se
mantenha essencialmente livre de proteínas refringentes e células. Através da zônula (fibras
descontínuas que mantém o cristalino suspenso em contato com o corpo ciliar), o humor aquoso
atinge também a câmara vítrea (Smith et al., 1988).
Em coelhos, a concentração de Na+, K+, Cl- e HCO3- nos dois fluidos é semelhante, enquanto
a de Ca2+ no aquoso é aproximadamente 50% a do plasma (Tabela 1). Dos ânions inorgânicos, o
lactato é o mais abundante no humor aquoso, estando quase 50% mais concentrado que no
plasma. O ácido ascórbico é o único que tem concentração muito desproporcional entre os dois
fluidos, em favor do humor aquoso (48x). Além destes, também foram descritos acetato,
acetoacetato,
alanina,
ascorbato,
citrato,
creatina,
glicose,
glutamina-glutamato,
β-
hidroxibutirato, lactato, treonina e valina. O glutation, um tripeptídeo, contendo um grupo
sulfidrila, também está presente no humor aquoso em concentrações consideravelmente maiores
que no plasma de coelhos, no entanto, nos eritrócitos, a concentração é em torno de 1.000 vezes
maior que no plasma. Sua função orgânica é atuar como tampão sulfidrila e transportar
aminoácidos, além de ser capaz de proteger contra danos oxidativos, reagindo com peróxido de
hidrogênio e peróxidos orgânicos. Em coelhos, o peróxido de hidrogênio é gerado
constantemente, de maneira fisiológica não-enzimática. A quantidade total de proteínas no
aquoso, tanto de coelhos quanto de humanos é muito baixa, em torno de 1/200 e 1/500 do nível
plasmático, respectivamente. A albumina corresponde a aproximadamente metade do total de
proteínas, mas também foram identificados transferina, IgG, IgM, fragmentos de cadeia pesada
destes anticorpos e diversos polipeptídeos (Filho, 2007).
Bioquimica do humor aquoso
O processo ativo de secreção de humor aquoso é mediado pelo transporte seletivo de certos
íons e substâncias através da membrana basolateral do epitélio não pigmentado (ENP), contra
uma gradiente de concentração. Duas enzimas abundantes no epitélio não pigmentado estão
envolvidas nesse processo: a adenosina trifosfatase ativada por Na+- K+ (Na+-K+ATPase) e
anidrase carbônica (AC). O Na+- K+ATPase é encontrada geralmente ligado à membrana
plasmática das pregas basolateral do epitélio não pigmentado. Esta enzima fornece a energia
4
necessária para a bomba metabólica, que transporta o Na+ para dentro da câmara posterior a
catalisar a reação seguinte:
ATP → ADP + Pi + energia
Onde:
ATP = adenosina trifosfato
ADP = adenosina difosfato
Pi = fosfato inorgânico
Tabela 1. Eletrólitos e solutos orgânicos no humor aquoso e plasma (Filho, 2007).
Como resultado do transporte ativo, o humor aquoso do humano mostra aumento nos níveis
de ascorbato, de alguns aminoácidos e certos íons como o Cl-. Há também um transporte passivo
de HCO3-. A Figura 2 resume as características bioquímicas da secreção do humor aquoso.
A inibição da Na+-K+ATPase dos processos ciliares por glicosídeos cardíacos (por exemplo,
ouabaína ou vanadato VO3- e VO43-) reduz significativamente a taxa de formação do humor
aquoso intra-ocular em animais experimentais e seres humanos. Os glicosídeos cardíacos
parecem atuar sobre a parte extrabecular da enzima ligada à membrana, enquanto o vanadato
atua sobre superfície citoplasmática. Glicosídeo cardíaco administrado via tópica ocular não é
hipotensor eficaz e pode causar edema corneano ao interferir com a bomba de Na+ dependente
de Na+-K+ATPase no endotélio corneano. A administração intravítrea e sistêmica é eficaz, mas
5
traz riscos oculares e cardiovasculares, respectivamente, inaceitáveis. O vanadato é eficaz por
via tópica em ambos, coelhos e macacos, aparentemente sem causar edema corneano na fase
imediata. No entanto, a redução mínima (8%) dá PIO após a aplicação de várias doses em
pacientes com hipertensão ocular tem impedido que o vanadato seja utilizado como agente
antiglaucomatoso.
Figura 2. Esquema da possível via secretora nos corpos ciliares. AA: ácido ascórbico; AC: anidrasa
carbônica (Kaufman & Alm, 2004).
A anidrase carbônica está presente em quantidades abundantes nas células vermelhas,
túbulos renais e membranas basais e laterais, assim como no citoplasma do epitélio pigmentario
(EP) e epitélio não pigmentado (ENP) do processo ciliar. No processo ciliar há duas isoenzimas
da anidrase carbônica (II e IV). Esta enzima catalisa a reação da seguinte sequência:
CO2 + H2O → H2CO3 → H+ + HCO3I
II
A reação II é uma dissociação iônica espontânea e quase instantânea. A sequência real pode
ser muito mais complexa e envolve a separação da energia de H+ e o OH- e, nos limites da
6
membrana e no interior da célula do epitélio não pigmentado (ENP), com a formação de HCO3pela associação de OH+ com CO2 catalisada pela anidrase carbônica. Esta sequência de reações
fornece HCO3-, que é essencial para a secreção ativa do humor aquoso. Embora ainda haja
debate sobre o papel específico da anidrase carbônica e HCO3-, tem sido demonstrado que
inibidores de produção de HCO3- também resultam em inibição do transporte ativo de Na+
através de epitélio não pigmentado (ENP) para o humor aquoso inicialmente formado, o que
reduz a formação ativa do mesmo.
Foi prposta a seguinte hipótese para explicar a relação entre a diminuição das concentrações
intracelulares de HCO3- no epitélio não pigmentado (ENP) e a inibição do transporte Na+:
1. A inibição da anidrase carbônica produz redução no HCO3- disponível para o transporte
de Na+ do citoplasma das células da ENP para o humor aquoso, necessário para a
manutenção da neutralidade elétrica.
2.
A redução do pH intracelular inibe a Na+-K+-ATPase.
3.
A diminuição da disponibilidade de H+ produzido pela reação II, que reduz a troca de
H+-Na+ e a disponibilidade de Na+ intracelular para o transporte ao canal intercelular.
Alem disso, a inibição da anidrase carbônica renal e eritrocitária do lugar a uma acidose
sistêmica que facilita a inibição da formação de humor aquoso (FHA).
Os inibidores da anidrase carbônica (p.ex., acetazolamida, methazolamida, etoxzolamida,
diclorfenamida, aminozolamida trifluormetazolamida), administrado através do sistema podem
reduzir a secreção em até 50% e têm sido utilizados no tratamento de glaucoma há mais de 40
anos. Com baixas doses de certos inibidores da anidrase carbônica (ex. metazolamida) é possível
inibir a enzima ocular sem alterar a renal e a célula vermelha, o que permite a supressão de
secreção submáxima sem acidose sistêmica. Anteriormente, pensava-se que a concentração do
fármaco necessário para produzir a inibição da anidrase carbônica do epitélio ciliar, essencial
para alcançar uma redução adequada e sustentada da FHA (para obter uma supreção secretora
significativa é necessária inibir mais de 99% da enzima ciliar), não poderia ser alcançada através
da aplicação farmacológica na forma de colírio. No entanto, atualmente no mercado existem dois
inibidores de anidrase carbônica tópica eficaz, dorzolamida e brinzolamida. Estes inibidores da
anidrase carbônica podem obter uma redução da PIO quase tão importante como o obtido com
os inibidores da anidrase carbônica oral, mas sem os efeitos colaterais sistêmicos (Kaufman &
Alm, 2004).
7
Composição do humor aquoso
A composição do humor aquoso é diferente do plasma devido a duas importantes
características fisiológicas do segmento anterior: a presença de uma barreira mecânica epitelial /
endotelial hemato-aquosa (BHA) e existência de transporte ativo para diversas substâncias
orgânicas e inorgânicas pelo epitélio ciliar. As principais diferenças são as menores
concentrações de proteína e altas concentrações de ascorbato no humor aquoso, em comparação
com o plasma (200 vezes menor e 20 vezes maior, respectivamente). A alta concentração de
ascorbato (Tabela 2) pode ser útil para proteger a estrutura ocular anteriores do dano oxidativo
induzido pela luz ultravioleta. Quando a concentração de proteína no humor aquoso aumenta
acima do seu valor normal de 20 mg/100 mL, como no uveite, a dispersão resultante da luz
(efeito Tyndall) torna-se visível ao feixe da lâmpada de fenda, uma vez que passa pela câmara
anterior (um fenômeno conhecido como turbidez). No humor aquoso também têm grandes
quantidades de lactato, possivelmente pela atividade glicolítica do cristalino, a córnea e outras
estruturas oculares. Outros compostos ou íons que existem em níveis elevados no humor aquoso,
em comparação com o plasma, é o Cl- e certos aminoácidos (Kaufman & Alm, 2004).
Tabela 2. Concentrações de eletrólitos de baixo peso molecular e solutos no humor aquoso e plasma
de humano (Berman, 1991).
Componente
Humor aquoso
Plasma
Na+
142
130 – 145
Cl-
131
92 – 125
20
24 – 30
1
0,7 – 1,1
4
3,5 – 5,0
1,2
2,0 – 2,6
1,1
0,04 – 0,06
Eletrólitos (nM)
HCO3
-
2+
Mg
K
+
Ca
2+
Solutos orgânicos (nM)
Ascorbato
H2O2
Glutation
0,024 – 0,069
1-10 x 10
0,02 – 0,10
-3
Lactato
4,5
0,5 – 0,8
Citrato
0,1
0,1
Glicose
2,7 – 3,9
5,6 – 6,4
4,1
3,3 – 6,5
Úreia
8
Barreira hemato-aquosa
Diferenças na composição entre o sangue e o humor aquoso devem-se à barreira mecânica
entre estes líquidos corpóreos, conferida pelo epitélio e endotélio da barreira hemato-aquosa e ao
transporte ativo de substâncias orgânicas e inorgânicas pelo epitélio ciliar. Mediante essa
proteção, compreende-se a razão da baixa concentração de proteínas no humor aquoso (Tabela
3) comparativamente ao plasma.
Tabela 3. Composição protéica do humor aquoso e plasma (Berman, 1991).
Componente
Proteína
Albumina
Trasferrina
Prealbumina
Fibronectina
Immunoglobulinas
IgG
IgE (Iu/ml)
Complemento C2-C7
Humor aquoso (mg/dL)
12,4 ± 2,0
5,5 – 6,5
1,3 – 1,7
0,3 – 0,4
0,25
Plasma (mg/dL)
7000
3400
3,0
<0,75
1270
16- 218
29
A barreira hemato-aquosa é composta pelas junções apertadas do epitélio não pigmentado,
pelos processos ciliares, pelo endotélio da parede interna e pelo ângulo irido-corneal, através da
vascularização da íris e dos sistemas de transporte ativo para o exterior já existente do corpo
ciliar. Um conceito mais universal da barreira hemato-aquosa deve levar em conta o movimento
das moléculas menores de substâncias solúveis e H2O no olho (MacKnight et al., 2000).
No caso de ruptura da barreira hemato-aquosa (Tabela 4) por traumatismos, enfermidades ou
efeitos farmacológicos, os componentes plasmáticos entram no humor aquoso. Aumenta o
movimento do liquido do sangue para o humor aquoso. Além do processo inflamatório, que tem
lugar durante a ruptura da barreira hemato-aquosa, há uma redução da secreção ativa do humor
aquoso, possivelmente ao perturbar os mecanismos de transporte ativo. A liberação de
prostaglandinas (PG) durante a inflamação pode levar a hipotonia ao incrementar a saída do
humor aquoso através da via uveoescleral. No entanto, quando se elimina o estímulo lesivo, o
corpo ciliar pode recuperar-se, dando lugar à normalização da taxa de formação de humor
aquoso. Nessa situação, ao continuar afetadas as vias de saída do fluxo, se produz uma elevação
da PIO, tal como se demonstra mediante a equação modificada de Goldmann:
PIO= [(FHA – Fu)/Ctrab] + Pe
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Onde:
FHA= formação do humor aquoso
Ctrab= facilidade do fluxo de saída desde a câmara anterior através da malla trabecuclar e do
ângulo irido-corneal
PIO= pressão intra-ocular
Pe= pressão venosa episcleral (a pressão que deve vencer o líquido que sai da câmara anterior
através da via trabecular-canalicular)
Fu= fluxo de saída uveoescleral.
Tabela 4: Fatores que alteram a barreira hematoaquosa (Kaufman & Alm, 2004).
Traumáticos
Mecânicos
Paracentese
Abrasão corneal
Contusão
Cirurgia intra-ocular
Bater na Iris
Físicos
Radioterapia
Radiação nuclear
Químicos
Sustâncias alcalinas
Irritantes
Fatores que alteram a barreira hemato-aquosa
Fisiopatológicos
Farmacológicos
Vasodilatação
Hormonal estimulante de
menalocitos
Histamina
Mostaza nitrogenada
Simpatectomia
Fármacos colinérgicos,
inibidores da colinesterase
Infecções corneais e intraHiperosmolalidad plasmática
oculares
Inflamação intra-ocular
Prostaglandinas
Isquemia do segmento anterior
Índice de Goldmann-Witmer
A determinação sérica de anticorpos frente a determinados agentes infecciosos oferece
escassa ajuda no diagnóstico da uveítes infecciosas, sendo de interesse a produção local intraocular destes anticorpos. Esta produção local se calcula mediante o índice de Goldmann-Witmer
(Tabela 5). Para isso, é preciso aspirar humor aquoso e dispor de um profissional de laboratório
com experiência nesta técnica (Fernández, 2003; Vidal et al., 2010).
Atualmente utilizam-se valores superiores a três (índice de Goldmann-Witmer) ou quatro
(índice de Desmonts), para ter em conta o efeito da ruptura da barreira hematorretiniana pela
inflamação, já que esta poderia originar um aumento do nível local de todos os anticorpos e
proteínas do humor aquoso ou vítreo, originando falsos positivos (Fernández, 2003).
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Tabela 5. Índice de Goldmann-Witmer.
Com relação à citología, o humor aquoso tem pouco interesse pelo pequeno volume de
amostra que se pode obter, e pela dificuldade na sua manipulação para concentrar células que
nos dem informação sobre a natureza da inflamação ocular. No entanto, poderia ser útil em casos
de linfoma intra-ocular. O cultivo do humor aquoso é especialmente útil nas endoftalmites
pseudofácicos por Propionibacterium Acnes (Fernández, 2003).
Doenças relacionadas com o humor aquoso
1. Uveite
As uveítes constituem uma desordem oftálmica frequente em pequenos animais. Esse
processo inflamatório caracteriza-se por vasodilatação da íris e do corpo ciliar e aumento da
permeabilidade da barreira hemato-aquosa, determinando a liberação de prostaglandinas e
proteínas na câmara anterior, que ocorre tanto nas uveítes clínicas como na manipulação
cirúrgica intra-ocular. Em cães, valores de proteínas no humor aquoso entre 21 e 65 mg/dl são
indicativos de "flare" e valores superiores são observados após cirurgias intra-oculares. A
presença dessa proteína excedente pode causar complicações irreversíveis, incluindo a perda da
visão (Andrade et al., 2003).
2. Glaucoma
Glaucoma é uma patologia ocular que se caracteriza por perda progressiva da visão como
decorrência de dano a estruturas nervosas, como o nervo óptico, células ganglionares e camada
de fibras nervosas. Está normalmente relacionada ao aumento da pressão intra-ocular. Esta
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elevação da PIO seria secundária ao aumento da resistência à drenagem do humor aquoso
através da malha trabécula, principalmente em sua porção justacanalicular. As causas do
aumento de resistência na malha trabecular ainda não são bem determinadas. No entanto, é
provável que alterações bioquímicas, tais como, diferenças na concentração de ácido hialurônico
e ácido ascórbico, além de proteínas, como fator transformador de crescimento beta-2,
endotelina, cochilina e transferrina, presentes no humor aquoso e na malha trabecular de
pacientes com glaucoma, estejam envolvidas na patogênese da doença (MacKnight et al., 2000,
Prata et al., 2007). Esses autores encontraram que a concentração total de proteínas no humor
aquoso de pacientes com glaucoma primário de ângulo aberto em tratamento clínico foi duas
vezes superior em relação a indivíduos não glaucomatosos portadores de catarata senil.
3. Leishmaniose
A leishmaniose visceral canina (LVC) é uma importante zoonose que acomete humanos,
canídeos e alguns animais silvestres. A transmissão se dá predominantemente pela picada da
fêmea de flebotomíneos infectados (Fulgêncio, 2006).
As manifestações clínicas gerais na LVC incluem anorexia, decréscimo da atividade física,
intolerância ao exercício, depressão, atrofia de musculatura mastigatória atribuída à progressiva
polimiosite imunemediada, emagrecimento progressivo, febre irregular, apatia, rinite, secreção
nasal, tosse e claudicação (Ribeiro, 2007). Lesões próprias ao olho e comprometendo os seus
anexos têm sido descritas. Sobressaem as blefarites, que podem se apresentar na forma erosiva,
nodular ou granulomatosa e, ordinariamente, estão associadas a dermatites faciais (Fulgêncio,
2006; Ribeiro, 2007).
Pesquisas de anticorpos no humor aquoso e em outros fluidos corporais têm sido realizadas
com o objetivo de se esclarecer a patogenia da infecção por Leishmania sp. A detecção de
imunoglobulinas no soro e no humor aquoso de cães infectados por Leishmania spp. vem sendo
consignada por técnicas de Imunodifusão Radial Simples, Imunofluorescência Indireta e pelo
teste ELISA (Ribeiro, 2007).
A imunoglobulina G (Tabela 6) é a principal inmunoglobulina das secreções internas
(líquido amniótico, líquido cefalorraquídeo, humor aquoso, líquido peritoneal) (Nives, 2005).
Recentemente, Brito (2006) demonstrou que o teste ELISA, utilizando peptídeo
recombinante S7, foi capaz de detectar anticorpos anti-Leishmania chagasi, expressados em
densidade óptica no humor aquoso de cães infectados naturalmente (Ribeiro, 2007).
Recentemente, desenvolveu-se a reação em cadeia da polimerize (PCR), mais sensível e
específica comparativamente à sorologia. Ela possibilita identificar e ampliar, seletivamente, o
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DNA do cinetoplasto, facilitando a sua identificação e possibilitando o diagnóstico em amostras
menos concentradas (Ribeiro, 2007).
Tabela 6: Alterações quantitativas da IgG (Nives, 2005).
Aumentada em
Diminuída em
Sarcoidose
Síndrome de perda de proteínas
Hepatopatia crônica
Gravidez
Doenças auto-imunes
Mieloma
Parasitose
Macroglobulinemia de waldestron
Infecções crônicas
Humor vítreo
O humor vítreo consiste em um gel transparente com hidratação de proximadamente 98%, é
de duas a quatro vezes mais viscoso que a água e este índice é diretamente dependente da
concentração de hialuronato de sódio. Seus principais componentes são as fibras de colágeno do
tipo II (8 a 12 nm de diâmetro). O vítreo é essencialmente acelular, mas células isoladas podem
ser encontradas no córtex (parte mais periférica do vítreo), principalmente perto da base vítrea,
nervo óptico e vasos retinianos. Quando encontradas, sua maioria é composta de hialócitos. O
vítreo tem função estrutural, para manter o formato do olho e dificultar o descolamento de retina
(Sánchez et al., 2002).
O corpo vítreo pode ser divido nuna parte líquida, denominado humor vítreo, composto pela
água e todas as sustâncias hidrosoluveis; e um resíduo aderente aglutinado que se denomina
proteína residual ou componente insolúvel. Apesar de 99% do humor vítreo ser água, o resto
dista muito de ter uma composição simples (Tabela7): ácido hialurónico e siálico, ácido
ascórbico e láctico, glicose, alguns lípideos, componentes inorgânicos, albuminas, globulinas e
aminoácidos (Souza, 1997; Sánchez, et al., 2002).
A glutamina + histidina é o aminoácido mais abundante no vítreo, com uma concentração de
851,1 µmol/L. O ácido aspártico e glutâmico são os aminoácidos que tem a menor concentração
de todos os AA no vítreo, com 3,7 µmol/L para o ácido aspártico e 3,8 µmol/L para o ácido
glutámico (p<0,05 com respeito a glutamina), mas sem diferenças entre eles (p=0,4) (Sánchez et
al., 2002).
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Tabela 7. Concentração global de aminoácidos livres no vítreo (Sánchez et al., 2002).
O líquido do vítreo é relativamente bem protegido da poluição e degradação das mudanças
bioquímicas que ocorrem após a morte. Devido à sua estabilidade post mortem, o vítreo tem sido
considerado muito útil em patologia forense. Desde a segunda metade do século XIX até a
presente data, tem-se feito vários testes bioquímicos nos fluidos corporais e no vítreo. Além das
características apresentadas acima, o fato de que até mesmo em assassinatos mais brutais, com
ferimentos múltiplos, os olhos geralmente permanecerem intactos, pode-se fazer uso do vítreo,
uma vez que os processos de autólise são realizados mais lentamente. O vítreo tem sido usado
como um substituto, na prática forense, devido à sua baixa celularidade e, portanto, os níveis de
glicose são estáveis por um longo tempo após a morte (Jiménez et al., 2011).
Íons e solutos orgânicos no vítreo podem ter origem de duas fontes principais: tecidos
oculares adjacentes (lente, epitélio ciliar e retina) e plasma sanguíneo. As barreiras que
controlam a entrada de substâncias no vítreo estão localizadas no endotélio vascular dos vasos da
retina, epitélio pigmentar da retina, e a camada interna do epitélio ciliar. Apesar das quantidades
muito pequenas de proteína que atravesam estas barreiras, a entrada de substâncias de baixo peso
molecular não parece ser impedida. As concentrações dos íons Na + e Cl- são semelhantes aos
encontrados em soluções aquosas e plasma (Tabela 8). Existem, no entanto, diferenças entre as
espécies em outros solutos, embora relativamente poucos estudos detalhados estejam
disponíveis. O ácido ascórbico é conhecido por ser ativamente secretado pelo epitélio ciliar no
humor aquoso posterior, e a partir daí é que se difunda no vítreo (Berman, 1991).
14
Tabela 8. Concentrações (nM) de solutos de baixo peso molecular no vítreo, aquoso e plasma de
coelho (Berman, 1991).
Soluto
Vitreo
Aquoso
Plasma
Sodio
134
136
143
Potassio
9.5
5.0
5.6
Cloreto
104
96
97
Fosfato
0.4
0.6
2
Ascorbato
0.4
1.4
0.04
Glicose
3.0
5.6
5.7
Lactato
12.0
9.9
10.3
Doenças do corpo vítreo
Este tecido não oferece praticamente nenhuma reação e seu comprometimento, com perda da
transparência, ocorre por alterações dos tecidos adjacentes (retina e coróide) com hemorragias e
exsudatos vítreos. A degeneração vítrea é geralmente um processo senil, consequente à alteração
no ácido hialurônico e aparecimento de vesículas líquidas no corpo vítreo. Sem significante
alteração visual, estes pacientes podem se queixar da sensação de figuras escuras (pontos, linhas,
teias de aranha, etc) no campo visual - moscas volantes. Com o avanço do processo, estas
vesículas coalescem e pode chegar à borda do vítreo, separando-o da retina - deslocamento
posterior do vítreo - situação que, muitas vezes, provoca pequenas trações sobre a retina
sensorial e a sensação de luz - fotopsia.
Alterações no corpo vítreo, propriamente, com significante perda visual, são geralmente
congênitas:
Persistência do vítreo primário hiperplástico: quase sempre unilateral com grande
desorganização do globo ocular e, mau prognóstico visual. Pode existir na forma anterior, com
massa branca, logo atrás do cristalino pela hiperplasia do vítreo primário ou posterior, quando se
inicia na região da papila.
Persistência da artéria hialóide: acomete, geralmente, prematuros devido à não-regressão
do sistema hialóide, que pode ser parcial ou total, com fibrose esbranquiçada desde a papila até o
cristalino, mas, geralmente, não interferindo na visão (Souza, 1997).
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Diabetes: A diabetes mellitus é uma doença crônica metabólica. Os reportes nas autopsias de
um grande número de mortes muitas vezes não manifiestam descobertas ou história previa desta
doença. Quando os níveis de glicose no corpo depois da morte caem rapidamente devido à
degradação anaeróbica ou glicólise, a interpretação dos níveis de glicose post mortem constitui
um grande desafio (Jiménez et al., 2011).
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