Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Kant e Nietzsche: ascensão e queda da moral moderna Kant and Nietzsche: rise and fall of modern moral Patrícia Pavesi Mestra em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (2003). Professora titular do Departamento de Ciências Sociais da UFES (Universidade Federal do Espírito Santo). Pesquisadora dos temas: cultura contemporânea, antropologia do consumo e cybercultura. Resumo: Apresentação dos princípios da moralidade moderna a partir de Kant, a afirmação da razão como fonte de controle e autonomia do sujeito e a desconstrução do sonho de estabilidade constante do projeto antropológico moderno como sua dimensão negativa na Filosofia de Niestzsche. Palavras-chave: modernidade, razão, interioridade, arché, desconstrução, fragmentação. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA Muito se fala hoje em dia em crise de paradigmas, queda de referenciais e fragmentação. Não só se fala como são apontados fatos históricos que evidenciam tal tendência no comportamento coletivo das sociedades ocidentais. 202 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Para que se proceda qualquer tipo de fragmentação, é pressuposto que em algum momento tenha havido algum tipo de solidez, de univocidade. Tal conceito de fragmentação traz em si, já implicada a noção de unidade como condição de sua vigência. Pode parecer tolo diante das discussões filosóficas atuais, a insistência na compreensão do “uno”, do “sólido”, universal e a priori, haja vista que é corrente a consideração de que esta noção seja coisa ultrapassada, mas lembremos que o conteúdo de qualquer negação é condição mesma para que ela exista. Pensando desta forma, antes de qualquer crítica, desejamos compreender um pouco mais o que por força do nosso tempo, e teórica e politicamente buscamos superar. O que buscamos superar no plano das discussões teóricas é classificado hoje como Tradição Filosófica Ocidental. O que classificamos como Tradição Filosófica Ocidental constitui o esforço sistemático que nossa civilização empreendeu no intuito de construir e cultivar referências sólidas como meio para a consolidação de sua existência cultural e política. Tal esforço se expressa nas diferentes dimensões da experiência de todos e de cada um de seus protagonistas, desde o seu limiar até as mais recentes configurações de sua história. Dedicar-nos-emos à apreensão de uma destas dimensões, ou seja, a moral. Dada a amplitude desta, e a profunda limitação de qualquer investigador, limitar-nos-emos ainda a estudá-la em uma de suas expressões situada num tempo e num espaço específicos. O cenário será a Modernidade por ser apontada como o apogeu do projeto metafísico, empreendido pelo esforço ontológico característico da Filosofia no Ocidente. O estudo das perspectivas éticas modernas objetiva exatamente compreender o momento de plenificação do projeto metafísico da Filosofia Ocidental. Momento de afirmação do “fixo” e da “estabilidade”, da negação máxima do caos e do devir. Em contrapartida, a escolha de tal período se justifica também no fato deste conter, a nosso ver, inversamente proporcional ao que o faz vigorar, as sementes de sua própria ruína, processo que se verificará nos chamados tempos contemporâneos, contexto histórico imediatamente posterior ao tempo em questão. 203 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Por termos consciência da ambivalente riqueza dos tempos modernos, expressa em seus postulados morais, buscando limitar a discussão, destacaremos as reflexões éticas do filósofo que consideramos uma das expressões mais fiéis de seu espírito, Immanuel Kant. Os apontamentos acerca da moral kantiana visam explicitar, justamente, o processo de plenificação do projeto metafísico da Tradição levado às últimas conseqüências na Modernidade e, o engendramento de sua própria dissolução, possibilidade aberta por uma tendência crítica a partir daí instaurada. Para efeitos didáticos, primeiramente, procuraremos dar conta, de uma maneira geral, do caminho per-feito pelo sujeito ocidental em seu processo de autoconstituição, expresso na história de suas idéias. Para tal, partiremos de seus primeiros passos na construção da Filosofia, no mundo grego. passando pela Idade Latina, alcançando finalmente os Tempos Modernos. Designaremos inicialmente o momento Tradição, o momento greco-latino, posteriormente, mais precisamente a partir do momento de crítica a Kant, chamaremos Tradição toda a filosofia produzida até Nietzsche. Paralela à caracterização da Filosofia, buscaremos situar em termos éticos os momentos destacados. Traçada uma abordagem mais atenta à ética, adentraremos à moral kantiana, partindo da apresentação de sua antropologia filosófica, passando por sua epistemologia, finalmente alcançando o domínio da razão prática enfocando a noção de vontade boa e interioridade. Na crítica aos princípios kantianos, será privilegiada a argumentação de Nietzsche, fala mais próxima das especulações éticas atuais, que se apresenta como uma das fontes mais importantes de argumentação relativa à desconstrução dos valores no interior da Filosofia, a partir do século XIX. Desta forma julgamos que, como se pode ver, no retorno ao “velho”, a intenção maior não é a de reafirmá-lo, mas não incorrer no erro de negá-lo, sem compreendêlo. Discutir os princípios da moralidade moderna a partir de Kant pode contribuir para uma percepção mais clara da já mencionada queda de padrões nas formas culturais contemporâneas, alcançando assim, paradoxalmente a serena e ao mesmo tempo dilacerante consciência de que carregamos em nosso ser e fazer, na posição histórica de sujeitos 204 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA contemporâneos, em graus próximos de intensidade, tanto a tendência a desejar solidez quanto fragmentação em nossas experiências, das mais simples às mais complexas. A ÉTICA E A BUSCA DA ARCHÉ A Antigüidade é a parideira da Filosofia. De fato, é o mundo grego o chão fértil em que se articulam as primeiras experiências de pensamento do homem ocidental conforme critérios de racionalidade, sistematicidade, universalidade e rigorosidade; critérios estes que, diga-se de passagem, são formulados nos próprios Bálcãs. Os traços da Filosofia nascente vão se constituindo a partir da lenta passagem da representação dos mitos a uma crescente racionalização tanto na maneira de formular as questões, quanto na construção das respostas. Obviamente, fatores de ordem histórica vão atuar de forma determinante neste processo: fatos relevantes como a difusão da escrita alfabética, o contato crescente com povos de procedência cultural distinta, a crescente urbanização do mundo grego, o advento da moeda como unidade simbólica de troca etc. O que se verifica desde os Pré-Socráticos é um notável esforço de encontrar uma possível raiz primeira que servisse de resposta a todas as coisas. O que consistiria na busca do fundamento, da essência, do princípio: Tales foi o primeiro a afirmar a existência de um princípio originário único, causa de todas as coisas que existem (...) Princípio (arché) não é um termo de Tales (talvez tenha sido introduzido por seu discípulo Anaximandro, mas alguns pensam numa origem ainda mais tardia), mas é certamente o termo que indica melhor que qualquer outro o conceito daquele quid do qual derivam todas as coisas. (ANTISERI&REALE, 1993, p.30) Esta tendência será o fio condutor de todos os que se seguem a Tales. Embora atribuam nomes e conteúdos diferentes a este fundamento, será a busca pela arché que orientará o trabalho dos filósofos ocidentais nos diferentes tempos e espaços históricos. A arché é compreendida como o elemento que, dando origem às coisas, nelas impera garantindo seu vigor enquanto gozam de existência presente, e permanecem após sua desintegração não deixando que se esgotem. Assim o princípio é: a) a fonte e origem de todas as coisas; b) a foz ou termo último de todas as coisas; c) o sustentáculo permanente que mantém todas as 205 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA coisas (a substância , poderíamos dizer, usando termo posterior). Em suma, o princípio pode ser definido como aquilo do qual provêm, aquilo no qual se concluzem e aquilo pelo qual subsistem todas as coisas. (ATISERI & REALE, 1993 p.30) Será exatamente na determinação do lugar do fundamento que Filosofia Clássica e Modernidade tomarão rumos diferentes. Muito mais que mudança no conteúdo, o que se verificará na passagem da Filosofia Clássica à Modernidade, é a alteração na concepção do cerne, do espaço em que se enraizará. Na configuração do fundamento nas diversas escolas de pensamento da Tradição, pode se verificar uma gradual elaboração representativa. A princípio, são estabelecidas determinações de ordem naturalista, que podem ser explicitadas nas definições do próprio Tales e de Heráclito quando atribuem água e fogo, respectivamente, à origem de todas as coisas. À vigência do naturalismo, emerge, num grau de crescente racionalização, a Escola Pitagórica que substituirá a realidade material do fundamento, por uma de regime conceitual, com a atribuição das formas categorizadas por símbolos matemáticos como substrato do real, como a sua arché. Certamente Sócrates, Platão e Aristóteles com os conceitos de idéia e forma, que deram cabo ao que consistirá no que podemos chamar de “esforço metafísico”, inclinação que dará a tônica às investigações posteriores que se elevarão em torno do fundamento. O “esforço metafísico” já é o momento da colocação das respostas à realidade num plano metaempírico, num mundo etéreo, não identificável a qualquer elemento de ordem material. O que já representava dentro da própria tradição, alterações na disposição qüiditativa. A Metafísica é um conhecimento racional apriorístico, isto é, não se baseia nos dados conhecidos diretamente pela experiência sensível ou sensorial (nos dados empíricos), mas nos puros conceitos formulados pelo pensamento puro ou pelo intelecto. (CHAUÍ, 1998, p. 207) O entendimento de que subjaz um fundamento a todas as coisas, inspirou o homem ocidental não apenas a erigir certos conceitos em resposta à possibilidade de construção do conhecimento, mas sobretudo, tem orientado sua conduta ao longo da história. O fazer cotidiano, as ações diante da natureza e dos outros de si têm sido profundamente marcadas pela busca da arché. Conhecer o fundamento torna-se experiência que envolve a totalidade do ser do homem, procura assumida nas diferentes dimensões do seu existir. 206 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Sendo assim, conhecer o fundamento se apresenta também como condição para a construção de uma ação legítima, entendendo o agir como dimensão fundamental deste mesmo homem. Daí se pode compreender a preocupação que os primeiros filósofos já evidenciavam em relação à Ética. Cada configuração que o “princípio” recebeu na história de sua busca no ocidente, ou seja, na história da filosofia, instaurou um determinado modelo de homem. Essa reflexão nos leva a concluir que as atitudes do homem, de uma maneira geral, são orientadas em maior ou menor escala de consciência pelo que ele, entende como fundamento e que permitirá uma existência plena e satisfatória, “boa”. A moral diz respeito às atitudes do ser humano conforme certos princípios: a moral é uma palavra que vem do latim mores e que significa costumes, configurando-se como regras e valores sociais, um conjunto prescritivo baseado em concepções de bem e de mal que viriam conduzir de forma absoluta, categórica - o bem válido para todos em qualquer tempo e lugar ou relativa, derivada - um bem válido para um grupo ou para um época - as ações de cada um. ( LALANDE, 1996, P. 354) A ação considerada moral é aquela em que o sujeito protagonista é consciente da noção de bem e mal. Ainda que opte por desviar-se do “bem” ( na linguagem metafísica: do “princípio”), se o reconhece enquanto medida de sua ação, participa da consciência moral. Num primeiro olhar, podemos classificar a boa ação, àquela que está de acordo e afirme com o modelo antropológico do grupo, que por sua vez, é concebido a partir do que se entende como fundamento do seu próprio existir. Em contrapartida, toda a ação que levasse o sujeito a se distanciar deste modelo estaria classificada como inadequada, que conduziria ao mal. Será a partir da observação das práticas e do distanciamento crescente destas em relação ao fundamento, bem como a preocupação em resgatá-lo, que emergirá a Ética como discussão da moral, constituída como uma das mais importantes esferas dos debates da filosofia. 207 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA A Ética nasce como movimento da própria Filosofia, e como esta, tem o seu berço na Grécia. É no ambiente da Pólis, da cidade, da discussão dos seus rumos, que vão emergir os debates em torno das práticas coletivas e individuais e sua legitimidade. É este cuidado do homem consigo, que se explicita numa práxis, que se deixa fundamentar e questionar pelo logos, que propriamente constitui o nascimento do ocidente enquanto processo civilizatório.” (OLIVEIRA, 1993,p.15) A Ética vai historicamente se constituindo como campo de reflexão das práticas e nas diferentes filosofias, estabelecerá suas análises a partir de paradigmas distintos, estes por sua vez são determinados pela configuração específica de fundamento que carregam, como já salientávamos antes: As teorias éticas mais importantes da cultura ocidental, apesar das divergências entre si, convergem no enunciado central: a ética é a busca constante do bem humano. (PEGORARO, 1995, p. 13). Este bem, mencionado por Pegoraro está intimamente ligado com a conformação da arché. Ainda que a essência do proceder ético enquanto reflexão das práticas permaneça, o que vai sendo alterado historicamente é a noção de bem e mal que orientará suas reflexões. Os diferentes sistemas filosóficos postularam distintas éticas. Valer-nos-emos aqui da mesma linha de compreensão que adotamos para o entendimento do movimento da Filosofia em geral, para perfazermos brevemente o caminho das reflexões postuladas pela Ética no Ocidente, para então delimitarmos em qual modelo de Ética desejamos nos deter. ÉTICA MODERNA Conforme a distinção que entendemos que exista entre, não só a conformação da arché, mas sobretudo, do lugar que esta ocupa na Filosofia Clássica e na Modernidade, já podemos apontar certa especificidade no trato ético em cada um dos seus momentos. A reflexão moral na Filosofia Clássica traz como marca geral, a vinculação da ação a princípios de ordem externa, apresentando como paradigmas para a conduta, elementos 208 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA sustentados e justificados numa realidade exterior ao homem. Por sua vez, a Modernidade ancorará suas diversas formulações éticas no próprio sujeito. Cientes desta forma de arranjo próprio que contém cada uma das duas formulações, procuraremos agora, perceber, em quais tendências tais formulações se pulverizam na Ética. Não adentraremos no estudo detalhado das tendências éticas da Filosofia Clássica. Limitamonos a mencionar aqui, de forma genérica, com o intuito de nos centrarmos na visão ética da Modernidade, consoante ao objetivo deste trabalho. Quando o fundamento passa a residir no próprio homem, suas atitudes passam a ser fundadas em elementos que afirmam seus próprios atributos. E uma das marcas da ética moderna será justamente a necessidade de superar qualquer forma de “fazer” que se justifique em forças estranhas ao próprio homem, o que revela também uma necessidade histórica, concreta, de superação de estruturas de poder na ordem material fundadas e alicerçadas nestas mesmas forças. Embora conserve a tendência racionalista, forte, sobretudo na primeira fase, fase grega do modo de ver da Filosofia Clássica, esta razão agora, encontra seu nascedouro em outro espaço, ganhando novos contornos. E será esta, o aspecto que tornará mais evidente a peculiaridade humana, sua “auto-suficiência”. A Modernidade apresenta a tendência geral de valorização do homem, e além da sua racionalidade, da possibilidade de intervenção no real a partir dela, possibilidade que se desenha a partir de uma visão da realidade material de maneira menos depreciativa que a Tradição. O novo modo de encarar o mundo sensível se apresenta como uma das estratégias de afirmação do sujeito, colocando o conhecimento e seu domínio, como uma das pontes para a superação dos resquícios “sobrenaturais”, que são povoados da visão da matéria como elemento desprezível. O homem adquire um valor pessoal, não só como ser espiritual, mas também como ser corpóreo, sensível (...) sua natureza não somente se revela na contemplação, mas também na ação. (VASQUÉZ, 1980, p. 54) 209 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA A proposição de uma nova forma de ciência, calcada na observação e na indução, são reveladores desta tendência moderna construída a partir de uma maior valoração do mundo sensível. As reflexões éticas se articulam, portanto, entre as duas tendências explicitadas. Deter-nosemos, entretanto, na abordagem da tendência racionalista, que encontra sua expressão mais forte no Iluminismo, momento que analisaremos a seguir. Segundo Rouanet, a Ética iluminista: se baseava em três idéias centrais: a idéia de que a moral podia ter um fundamento secular; a idéia de que o indivíduo, considerado como célula elementar da sociedade, tinha direito à auto-realização e à felicidade e podia descentrar-se em relação à vida comunitária, criticando-a de fora; e a idéia de que existe uma natureza humana universal, de que existem princípios universais de validação ética, de que existe um pequeno núcleo de normas materiais universais.” (ROUANET, 1992, p. 153) Estes desdobramentos ancoram-se no entrelaçamento de três tendências: Cognitivismo, Individualismo e Universalismo. O cognitivismo se engendra a partir da necessidade de superar todo e qualquer resquício religioso na pauta de orientação das ações. A afirmação de uma razão criadora e autosuficiente é a grande tática para afirmar o homem em sua existência temporal, contra uma moral mais recentemente cristã, de pressupostos misticos. Entretanto, também não encerra-se, em contraposição aos fatos a-temporais, a experiência humana no mundo sensível, tornando-a refém desta, mas constrói-se certa racionalidade sobre outras bases: “O homem, através de sua razão, faz-se do fático enquanto tal, por poder distanciar-se criticamente dele e só aceitar o que passar pelo crivo do tribunal da razão.” (OLIVEIRA, 1993, p. 18) O individualismo se revela na determinação do sujeito como referência para a elaboração das normas. A comunidade (realidade exterior ao sujeito), que até então na visão da Tradição era a medida, pois, o seu bom funcionamento representaria a satisfação do sujeito (fato possível somente a partir do grupo), deixa de ser o centro das preocupações da Ética, e, o indivíduo, como portador da razão, passa a ser quem primeiro deve se satisfazer. Não mais a 210 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA coletividade, como instância externa, postulará os critérios para a definição de bem e mal, mas caberá ao indivíduo, “ser de essência universal”, tal tarefa. O universalismo apresenta-se, exatamente como condição de afirmação do homem como gênero, constituído de uma natureza idêntica, autônoma em relação tanto à divindade, como a qualquer outro tipo de força extratemporal: O ético emerge como processo de libertação análogo ao pensado pela ontologia clássica: trata-se de libertar-se do finito, do temporal, do mutável, para o infinito, o eterno e o imutável que agora é a própria subjetividade como autonomia absoluta.(OLIVEIRA, 1993, p. 20) A universalidade da norma estará ancorada não mais numa entidade externa ao homem, mas na sua própria essência, propriedade sua , absolutamente interior. O que consiste num bem para todo homem, consistirá no bem para cada um, pois, a natureza de um homem, é a natureza de todos. As três tendências: cognitivismo, individualismo e universalismo, serão expressas nos tratados de Ética dos principais filósofos do período. Entretanto, dada a amplitude da Ética Moderna, nosso trabalho pretende apresentar o que consideramos como a expressão mais importante desta, as reflexões de Immanuel Kant. Dada a amplitude de seu tratado sobre moral, limitar-nos-emos à explicitação de algumas das muitas pontuações do referido pensador. Após efetuarmos tal procedimento, buscaremos tecer algumas pontuações críticas da moral kantiana, por conseguinte, da própria moral moderna, buscando situar o tempo presente enquanto herdeiro e desejoso de superação da mesma, concluindo nossa pesquisa. ANTROPOLOGIA KANTIANA Qualquer abordagem ética pressupõe a consideração de uma possível concepção de homem que lhe seja subjacente. A moral consistirá, justamente, na reflexão sobre o agir com vistas a adequá-lo, de forma que o agente possa concretizar certo modelo antropológico. 211 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Nos termos da antropologia kantiana, o traço fundamental é a racionalidade. A razão é apresentada como marca essencial do homem. Uma razão autônoma e universal. A possibilidade de descrição do humano em Kant, passa pela possibilidade de descrição de sua própria experiência racional. Sua investigação antropológica é essencialmente um empreitada ontológica, dada a profunda identidade que estabelecerá entre a existência do homem e o próprio desdobrar-se da razão. Tamanha será a relevância da razão que, o próprio irracional só pode presentificar-se por meio dela. Também compõe a experiência humana uma parte sensível, relativa à natureza, ao reino das necessidades e limitações da ordem empírica, dos fatos. Este aspecto da experiência humana é fundamentalmente marcado pela transitoriedade e parcialidade. É possível, inicialmente, verificar certa tensão entre os aspectos racional e sensível no homem, de forma que se observe a existência de um aparente dualismo. Este é dissolvido, à medida que se alcança a compreensão de que, o ser e fazer humano são de tal forma racionais que, a própria experiência do fático em si, se dá a partir de uma operação formal. “Se Kant define o homem como racionalidade, também o define como finitude, que se refere aos limites de sua própria capacidade racional”. (TAVARES&FERRO, 1995, p. 110) O aspecto da experiência humana em que a tendência empírica se explicita é em essência racional, ainda que razão condicionada em certo sentido pela experiência. Quando carente da experiência para expressar-se, estampa o seu caráter não-absoluto, as suas limitações. Uma razão pura, por sua vez, consistirá exatamente a experiência humana, quanto mais intensamente for marcada pela expansão do formal, que estará, proporcionalmente se constituindo como superação do fático, em busca de uma existência autêntica, plena, do ponto de vista de sua essência. A aproximação de uma existência autêntica se fará por uma relação de crítica da razão, ou, autocrítica. Quando o homem pergunta pelos limites da razão, pergunta-se pelos limites de si mesmo. Os limites de si mesmo estarão sempre relacionados à inclinação a seguir impulsos externos, deixando-se legislar por forças outras em detrimento da expressão do supra-empírico de si. No kantismo, reconhece-se (...) que o homem é um ser supra-empírico, que a sua existência ultrapassa infinitamente a da natureza e não poderia proceder 212 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA dela, que ele é propriamente um ser racional, quer dizer, metafísico. (LACROIX, 1979, p.85-86) A moral colocar-se-á justamente como o desdobrar-se do supra-empírico do homem, como a atividade de auto-constituição. Expressão do que há de mais interior e autônomo no humano. O encontro do homem com sua essência faz-se-á no exercício da moralidade, que é basicamente exercício de interioridade. Uma interioridade não emotiva, mas, basicamente racional. Toda a Filosofia de Kant, como profunda crítica da razão, nada mais se constitui, que um exercício de interioridade, visando colocar o homem mais próximo de si, torná-lo fiel a seu fim. O que, no nosso entender, consiste essencialmente numa reflexão ética, busca de uma ação enquanto movimento da própria razão. “Para Kant, a natureza humana é essencialmente racional, e por isso mesmo todo e qualquer princípio norteador de suas ações morais precisa estar ancorado na razão”. (FREITAG, 1992, p.49) Postulada uma essência humana racional, logo, por conseguinte, se impõe um fazer racional. Quando define o homem como razão, Kant define todas as expressões legítimas deste se, ancoradas forem em sua racionalidade. O autêntico agir será então aquele que consista na externalização da razão. Em suma, discutir ética em termos kantianos é discutir o homem enquanto autodeterminação da razão. A marca da Modernidade é o primado do sujeito sobre o objeto na construção do conhecimento. Tal preponderância se ancora na posse da razão por parte do indivíduo. Entretanto, a razão moderna tem como distinção da razão da tradição grega, além da sede originária no sujeito, estabelece uma relação diferente com os objetos. Para Kant o sujeito capaz de conhecer é também receptivo, pela sensibilidade é capaz de receber afecções do meio, à medida que é afetado pelos objetos. As intuições, sendo o modo pelo qual o conhecimento se liga aos objetos, só são possíveis pela sensibilidade. “A capacidade de receber representações dos objetos graças ao modo como eles nos afetam, chama-se sensibilidade”. (KANT, 1990, p.81) 213 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA Embora a sensibilidade ganhe mais relevância no sistema kantiano e na modernidade em relação à sua posição na Filosofia Clássica, o sujeito que conhece, é essencialmente razão. A razão por sua vez é teórica e também razão prática. A razão teórica é entendimento, capacidade espontânea de ligar a priori a multiplicidade das representações sensíveis. É legisladora quando é prática; quando estabelece princípios a priori reguladores do fazer moral. Quando é capaz de construir conhecimento, está intimamente ligada à sensibilidade, e ainda que a domine, precisa dela para proceder sua síntese. Por isso, é distinta da Razão prática, marcada pela total isenção do sensível, uma razão pura. Todo conhecimento racional é: ou material e considera qualquer objeto, ou formal e ocupa-se apenas da forma do entendimento e da razão em si mesma e das regras universais do pensar em geral, sem distinção dos objetos. 1(KANT, 1997, 13) A razão kantiana, conforme o espírito iluminista é autônoma, auto-suficiente, ancorada em elementos inerentes à sua própria constituição, livre de qualquer limite que não derivem de sua própria natureza. Cônscia de seus próprios limites é razão crítica, capaz de julgar a si mesma, buscando desviarse de qualquer tipo de dogmatismo, perfazendo-se dentro da experiência possível, não pretendendo penetrar o incognoscível. Uma crítica imanente, a razão como juiz da razão, tal é o princípio essencial do método transcendental. Este método propõe-se determinar: a verdadeira natureza dos interesses ou dos fins da razão e os meios de realizar estes interesses. (DELEUZE, 1987, p.11) É razão universal, imutável, presente da mesma forma e proporção em todos os sujeitos. A presença desta em todo homem se faz pelo valor intrínseco deste, não advindo de qualquer instância externa, por isso, é razão secularizada. Enquanto razão teórica é também analítica, capaz de produzir conhecimento, ordenar o empírico. A atividade sintetizadora é atributo a priori, anterior a toda experiência, formal. A verdade alcançada pelo sujeito é uma verdade essencialmente sua. Não é acordo do formal 214 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA subjetivo com o empírico externo. Pelo fato de compreender a impossibilidade de alcançar a realidade numênica, a própria essência das coisas, compreende que todo conhecimento será fenomênico, ou seja, uma síntese de matéria e forma promovida pelo próprio sujeito. As imagens sensíveis enquanto pensadas como objetos (...) chamam-se fenômenos (...) confundir os fenômenos com as coisas em si é cair na ilusão transcendental que tem vindo a induzir em erro a matefísica e que conduz às antinomias onde ela se perde.(KANT, 1989, p.92) O criticismo, a desconfiança da razão, inicialmente denota certo ceticismo em Kant, que a exemplo de Descartes, não “morre” na dúvida, mas a procede, para ser capaz de tecer afirmações seguras, verídicas, indubitáveis. A crítica à razão é instaurada, com vistas ao desenvolvimento de uma metafísica em novos termos. Uma dupla metafísica: uma da Natureza e uma dos Costumes. O perfeito manejar do conhecimento, como o da ação, são dimensões fundamentais do homem. Não se contenta em tornar cognoscível o mundo, mas deseja agir sobre ele, explorálo. Deseja estar cônscio de princípios orientadores de sua ação. Daí sua expressão racional não consistir apenas num domínio teórico, mas também e sobretudo um fazer, num desdobrar prático. A prática é o desdobrar-se da razão pura e não da teórica, fruto do conhecimento. A razão pura habita o sujeito, a ação sendo o próprio processo de externalização da racionalidade, é capacidade de auto-legislação do sujeito. Neste ponto, antevemos espaço para salientar o aspecto da moralidade-racionalidade kantiana que desejamos destacar: a interioridade. Será exatamente sob a influência de Rousseau, quando este dá primazia à prática em relação à teoria, afirmando que “podemos ser homens sem sermos sábios”, que Kant afirmará o homem fundamentalmente como pessoa, portadora de razão originária e instituinte, não meramente cognoscente. Não sendo cognoscente primeiramente, a via de sua plenificação enquanto existência ( enquanto razão), é o mergulho em si mesmo e não no conteúdo de suas representações. O mergulho em si mesmo, o alargamento de sua interioridade postulado por Kant impõe um formalismo no domínio moral, buscando estabelecer as formas a priori de toda ação humana. Neste sentido, pode-se concluir 215 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA que o fato racional é o próprio sujeito, cujo vigor está na expressão subjetiva, movimento de expansão humana, desdobramento de sua interioridade. INTERIORIDADE NA MORAL KANTIANA Tendo compreendido que o movimento da experiência humana, no entender de Kant, consiste essencialmente no movimento de sua racionalidade instituidora, pudemos também distinguir nesta última, dois aspectos distintos: um teorético e outro prático. O que Kant classifica como razão teorética, nos termos de sua realização, se efetiva num movimento que parte do externo, do empírico, pela afecção dos sentidos pelos objetos para o interno, que consistirá na conformação, síntese de dados pelo entendimento. No caso da razão prática, o que se pode verificar é o movimento inverso: a partida se dará do interior do sujeito racional para a externalização na forma da ação. Razão Teorética = sensibilidade = entendimento = conhecimento Razão Prática=imperativo=máxima=ação Numa escala valorativa, a razão prática, dado o seu nascedouro, se sobrepõe em grau de importância à teórica, justamente por expressar radicalmente, a autonomia do homem, fato fundamental no sistema kantiano e em toda Modernidade. Será na vivência da moralidade enquanto trabalho de legislação da ação pela razão que o homem sustentará sua liberdade. Sendo a razão prática propriedade interior, o voltar-se para si, o mergulho em sua interioridade será condição de “hominidade” do próprio homem. Podemos assim afirmar que a moral de Kant é uma moral da interioridade. Pode-se designar a moral kantiana como moral da interioridade à medida que se percebe esta como expressão de uma razão imanente ao sujeito, capaz não apenas de conhecer, mas de igualmente ser determinante de seu ser e fazer. Por consistir essa moral num processo de desdobramento da razão, do homem no mundo é um processo paradoxal em há um crescente movimento de interiorização humana como condição cada vez necessária de externalização de sua essência. 216 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA A busca de uma Metafísica dos Costumes traduz exatamente, a necessidade de adentramento às condições mais interiores do fazer, do agir. É a busca da compreensão das condições formais da ação. Mais que o conteúdo da ação, se deseja alcançar sua forma. A forma da ação é elemento a priori, anterior a qualquer manifestação empírica, tem sede no incondicional que habita o interior do homem. A compreensão da moralidade enquanto condição formal da ação só é possível, mediante a descrição da razão prática, que por sua vez, consistirá num mergulho no “íntimo” do homem. Neste mergulho, Kant procurará explicar o dever, a vontade boa e a liberdade. Como desejamos enfocar a moralidade do sujeito, enquanto exercício de interioridade enquanto exercício de reflexão íntima, passaremos à análise da concepção kantiana de vontade, o que de certa forma, ainda que indiretamente, também implicará na relação desta tanto com dever, quanto com liberdade. A BOA VONTADE Como foi possível observar na descrição da antropologia kantiana, o homem é natureza, sensibilidade, mas também razão. O homem empírico é histórico e contextualizado, é um ser de necessidade e desejos. O homem racional é livre e moral, supra-empírico e universal. Por pertencer ao reino natural, o homem tem constituição finita, estando sujeito à variedade das inclinações. Os limites de sua natureza são obstáculos a serem enfrentados por sua vontade. Não há no homem uma eticidade espontânea, daí que a construção de sua ação, necessariamente deve estar ancorada numa rigorosa reflexão subjetiva de modo a alcançar a raiz das normas. Tal reflexão subjetiva visa superar o que Pegoraro aponta como o mal radical kantiano: O conflito do dever moral e a lei do prazer e da satisfação sensível. O ser humano (ou vontade livre), pelo exercício da liberdade, inclina-se ora para um lado, ora para outra; é oscilante entre dois apelos: moral e sensitivo, transcendente e natural.(PEGORARO, 1990, p.57) 217 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA A sensibilidade em si não consiste no mal. O mal será exatamente a conversão do empírico como determinante da ação, de desejo como princípio do fazer. Tal conversão conduz inevitavelmente ao particular, distanciando-se da universalidade de um querer e fazer perfeito, de posse de todo homem. A libertação da sensibilidade (que conduz ao particular) é a condição para o viver moral. Essa libertação só é possível por uma vontade livre de toda determinação externa à própria razão. O bem, em contrapartida ao mal enquanto fundamentação do agir na sensibilidade será exatamente o fazer consoante à razão, ao universal. A vontade boa é a que se deixa determinar pela razão. De tudo o que é possível pensar neste mundo, e mesmo fora dele, não há nada que possa ser considerado irrestritamente bom a não ser a boa vontade. (KANT, 1997, p.21) O homem não sendo moral por espontaneidade, necessita do imperativo categórico que se apresenta como expressão do dever. O imperativo categórico 2 é a forma da ação, esta forma está ancorada no que Kant chamou de postulados, que são princípios da razão pura que, embora não possam ser demonstrados, são imprescindíveis para a lei moral. O imperativo se coloca justamente quando a ação pode ser desviada pela sensibilidade. É necessário para que o agir seja orientado por máximas universalizantes. As máximas são princípios subjetivos que orientam a vontade de qualquer pessoa razoável ganhando por isso, o estatuto de leis práticas objetivas. (PEGORARO, 1990, p.58) As máximas são leis da vontade que é boa quando é consoante à razão. As máximas são válidas quando podem ser universalizadas. A ação só é verdadeiramente consoante ao bem, mediante sua universalidade: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua 2 O imperativo categórico distingüe-se do imperativo hipotético por este último consistir num princípio da ação orientado para um fim e não por simples dever. 218 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA vontade, em lei universa.” Como afirma o próprio Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes. (1990, p. 59) A vontade boa em suma é a que determina a ação sem qualquer finalidade fora de si mesma, a ação pelo dever, pela razão, não com vistas a alcançar um fim externo, não como mero meio. Daí o critério para o discernimento entre a boa e a má ação se ancorar no critério da universalidade, pois só a razão, fonte máxima da vontade, é universal. O dever pode ser lido como o agir determinado pelo próprio homem, autônomo, livre de condicionantes externos, expressão de sua interioridade. A liberdade como transcendência, isenção de qualquer dado sensível, realização do homem enquanto seu projeto essencial, a superação de sua finitude, o mergulho em seu interior, em sua dimensão instituinte. A boa vontade consiste na experiência mais profundamente humana, e o deixar-se legislar por ela, torna o homem livre. A liberdade por sua vez é experiência íntima de todo sujeito. CRÍTICA À MORAL KANTIANA: A DESCONSTRUÇÃO POR NIETZSCHE O caminho de crítica à moral de Kant, dada a sua essência racional, certamente passa pela crítica da própria razão, nos termos (modernos) em que ele o define. De forma que criticar a ética Kantiana é de certa formal criticar a própria racionalidade moderna. Buscaremos aqui traçar alguns tópicos de crítica erigidos, traçando, como não poderia deixar de ser simultaneamente, a crítica à própria racionalidade. Neste sentido, podemos identificar duas linhas gerais de crítica. A primeira que, acreditando na racionalidade como princípio do real, aponta incongruências presentes na descrição desta por parte do filósofo pietista, mas o faz no sentido de elucidá-las, de forma a não invalidar a razão, mas dar cabo do propósito de Kant: a afirmação definitiva desta, por conseguinte de um fazer orientado por ela. Esta linha tem como representante mais significativo Hegel, que buscará a partir da noção de dialética como unidade de contrários resgatada em Heráclito, restaurar a visão ético219 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA racionalista, valendo-se de valiosas intuições kantianas. Mas, sobretudo, tentando superar limites desta, reafirmando a tendência “transcendentalista” já instaurada. Nesse ritmo de restauração da racionalidade, seguirão a mesma tônica, os filósofos idealistas do período, expressão que também poderá ser observada no chamado Romantismo alemão, movimento artístico e literário, cujo eixo é a idéia de criatividade e libertação do espírito. Outra linha é exatamente a que, muito mais que qualquer tipo de restauração de tal racionalidade, deseja subvertê-la, desconstruí-la, repensando a ação a partir de outros princípios, não reduzindo a experiência humana a uma forma de arbítrio unilateral e formal. Esta linha tem como marco de sua instauração as pontuações de Nietzsche, que a partir do seu trabalho genealógico em termos de busca das origens da moral ocidental, identifica a proposta kantiana como momento da elevação da razão pela tradição iniciada em Sócrates como tal, digna de crítica por abarcar em si as noções de universalidade, identidade e causalidade, que ele pretende superar com seu perspectivismo e reflexão genuína sobre valores. Sem sombra de dúvida, a vertente de crítica representada por Nietzsche é a que tem maior incidência na reflexão e moral contemporâneas, bojo no qual, posteriormente, produzirão suas teses filósofos como Foucault e Heidegger, grandes expressões do pensamento filosófico do século XX. Limitar-nos-emos à explicitação da crítica de Nietzsche dada a sua radicalidade e sobretudo por que esta tem servido de fonte às elaborações éticas mais recentes. A crítica que Nietzsche estabelecerá não estará enfocada substancialmente à análise de um determinado sistema ético, mas sempre se dirigirá à noção geral de valor estabelecida pela tradição ocidental. Entende que com Sócrates tem início a construção da Metafísica no ocidente; tendo no cristianismo e na modernidade seu ponto de maior expressão. A tendência metafísica em termos éticos consistirá na necessidade de encontrar um fundamento de ordem atemporal e universal, para orientação do agir de todo e qualquer homem. Um fundamento, fonte de valores de ordem transcendental e superior. Tanto a tradição filosófica na expressão greco-latina, quanto na Moderna não mediram esforços no 220 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA sentido de apresentar como princípio do agir algo uno, indivisível e universal, seja numa expressão supra-empírica, seja numa imanente. Ora, Nietzsche desenha um novo perfil antropológico, ancorado numa recusa de elementos constantes e mensuráveis na experiência humana que designa como traços apolíneos, harmoniosos extremamente valorizados pela tradição. Por sua vez o novo homem irá caracterizar-se pelo que chama espírito dionísiaco, no desejo de superar modelos de comportamento padronizados, buscando vivências que não suplantem nenhuma de suas dimensões mais que permitam a livre expressão de suas pulsões sem a necessidade de alcançar harmonia, sem compromisso com qualquer tipo de perfeição e ordenamento. Em termos da expressão moderna da metafísica, embora o sujeito seja posto como a célula do sistema, sua constituição essencial é a única em cada um e em todos. A tendência apolínea seria expressa sobretudo na postulação pelos filósofos do período de uma racionalidade autônoma e unívoca. As ações seriam engendradas a partir de uma estrutura formal, subjetiva perfeita, livre de contradições. Estrutura esta que constituir-se-ia como a própria expressão do atemporal e incondicionado, ou seja, transcendente paradoxalmente imanente do homem. Em linguagem kantiana, a razão prática enquanto processo de totalização, de plenificação da autonomia humana, seria a expressão a partir da busca da interioridade, do que de mais perfeito e reto, sem percalços pode existir. Seria concretizada pela superação crescente da incidência do mundo empírico no agir humano, por conseguinte, superação de toda contradição e inconstância fugacidade e caos. Ora, fica expressa neste arranjo de Kant, a característica forma de valoração ocidental ancorada na edificação dos conceitos de Bem e Mal. O Bem automaticamente identificado ao culto apolíneo, das formas perfeitas e criadoras e o Mal, exatamente ao fugaz, não constante e particular dionísiaco. Aproximar-se do bem é livrar-se do empírico, particular, o que para Nietzsche significa mutilar o próprio homem, negar-lhe uma dimensão fundamental. A concepção moral em Kant, como em toda a modernidade para Nietzsche, tenta sustentar o argumento da autonomia do sujeito em relação a qualquer força ou tutela estranha no enobrecimento de uma suposta razão, poderosa e criadora. Com este recurso, convence-se de 221 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA ter contribuído para que o homem alcançasse a maioridade, a liberdade iludindo-se de ter-se libertado do dogmatismo metafísico da tradição. Entretanto, longe de promover o humano continuaria por meio da exaltação de uma de suas dimensões, a racional, não menos que Sócrates ou Jesus Cristo, negligenciando-o. Ao exigir a sublimação dos desejos, das pulsões mais originais do homem a partir da supervalorização da sua razão, erigindo um ideal asceta, Kant acaba que por reduzí-lo à razão que está muito longe de ser seu único e mais importante aspecto instituinte. Além da exaltação de uma razão livre, do empírico, busca superar influxos religiosos, mas não consegue esquivar-se da sustentação de um fundamento extratemporal como princípio do agir, mantendo vivo, ainda que noutra roupagem, o ideal asceta: Estes negadores, estes solitários, espíritos intransigentes, que pretendem a pureza intelectual, espíritos duros, severos, abstinentes, heróicos, honra do nosso tempo, estes pálidos ateus, antricristos, imoralistas, milistas, céticos, incrédulos estes raquíticos de espírito, que hoje encaram a consciência intelectual, estes pensadores livres, demasiado livres, crêem-se apartados do ideal ascético; e, contudo eu vou apontar-lhe uma coisa que eles não podem ver, porque não estão à necessária distância. E é que são precisamente os representantes do ideal ascético na sua forma espiritualizada, são a sua vanguarda, o seu sofisma mais sedutor, mais delicado e sutil. Não; estes não são espíritos livres, porque estão amarrados à verdade...(NIETZSCHE, 2001, p. 32) Fundamentalmente, Kant representa um grupo de pensadores que pretenderam e de fato ergueram certa crítica ao que até então tinha-se discutido em termos morais no ocidente, entretanto, como Nietzsche sinaliza, foi muito menos radical do que pretendeu em suas reflexões. Muito mais que romper com a tradição, consumou seu projeto. Segundo a visão de Nietzsche, quando Kant impõe limites ao conhecimento humano coloca fora de seu conhecimento questões morais, pois o incondicionado atua mas não se dá a conhecer, não pode ser explicitado. Critica então a legislação kantiana dos valores morais a partir de um universo supra-sensível e incognoscível. Cria assim uma cisão radical entre moral e metafísica, encontrando a inspiração da primeira numa vivência temporal que procurará desmascarar na genealogia da moral. A genealogia da moral procurará detonar qualquer possibilidade de fundamentação transcendental dos valores, o que quebra a espinha dorsal do sistema kantiano. 222 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA O idealista (...) tem todos os grandes conceitos na mão ( e não somente na mão!), joga-os com um benevolente desprezo contra o ‘entendimento’, os ‘sentidos’, as ‘honras’, o ‘bemviver’, a ‘ciência’, vê tais coisas abaixo de si, com forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais o espírito paira (...) o puro espírito é a pura mentira (NIETSZCHE, 2000, p.38) Entendendo os valores como humanos, recusa ideais de que procedam de qualquer ordem formal, incondicionada. Afirmando que tal interpretação leva os homens ao desprezo da vida que é fundamentalmente jorrar de forças todas as direções, sem compromisso com qualquer tipo harmonia e linearidade, supostamente garantida por um comportamento racional. O caminho de afirmação do homem, de sua autonomia adotada por Kant lhe soa frágil porque ignora o que há de mais genuíno neste, em nome de um fato atemporal que não pode sequer conhecer. Assim, conclui que a maioridade proclamada por Kant, consiste apenas na consagração do propósito da própria tradição, que desejou inicialmente negar. Em suma, a grande revolução copernicana em termos morais atribuída ao produto final da obra de Kant, explicitada na Crítica da Razão Pura não passou de uma ilusão de ótica, estratégia interna a auto-justificação da Tradição. Como já havíamos adiantado, a crítica de Nietzsche é demolidora e alimenta uma corrente de filósofos que produzirão reflexões no campo ético no século XX, inaugurando os primeiros sintomas do niilismo contemporâneo, classificação que ele próprio atribui ao processo de implosão interna que se verificará no tempo presente. É ainda “moderno, demasiado moderno” por apresentar como interior ao próprio sujeito as possibilidades de sua autonomia, mas desloca do sua força do plano cognitivo para o humoral, tornando equivalentes as dimensões apolínea e dionisíaca e, condenando radicalmente a absolutização da primeira embora engenhosamente elaborada por Kant. Kant eleva o projeto moral racional de forma brilhante e rigorosa, por sua vez, Nietzsche propõe a desconstrução dos propósitos e mecanismos da razão prática ao ampliar o status do elemento “irracional” na estrutura da ação humana desenhada em sua critica à moralidade das metanarrativas. Ainda que possa ser questionado quanto à sua reprodução da tendência essencialista da tradição, é inegável que contribuiu de forma significativa para a sua “queda” como referência incontestável para a fundamentação de discursos sobre a ação em especulações contemporâneas. 223 Revista Eletrônica Acadêmica de Direito Law E-journal PANÓPTICA REFERÊNCIAS ANTISERI, Dario, REALE, Giovane. História da filosofia-v.1. São Paulo: Paulus, 1993. BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. 8ª impr. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. CASTAGNOLA, Luís, PADOVANI, Umberto. História da Filosofia. 9 ed. São Paulo: Melhoramentos, 1972. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994. DELEUZE, Gilles. A Filosofia de Kant. Lisboa: Edições 70, 1987. FERRO, Mário, TAVARES, Manuel. Análise da obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes de Kant. Lisboa: Editorial Presença, 1995. FREITAG, Bárbara. Intinerários de Antígona: A questão da moralidade. Campinas: Papirus, 1992. 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