Maria_Luiza_Gorki_revisado - História

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MÁXIMO GORKI:
(O teatro a serviço da revolução – 1901 / 1914)
Maria Luiza Faria Brito
“O escritor é o porta-voz emocional de seu país e de
sua classe, é seu ouvido, olhos, coração; é a voz de sua
época. Deve saber tanto quanto seja possível o passado
para melhor compreender o seu tempo; e quanto melhor o
conheça, mais veraz e profundamente apreenderá o caráter universalmente revolucionário de nossa época e o
alcance de suas tarefas”.
GORKI, Máximo. Como aprendi a escrever, pág. 89.
“(...) o mérito de Gorki não está no fato de ter agradado,
e sim ter sido o primeiro na Rússia e, de um modo geral,
no mundo, a falar com desprezo e aversão da pequena
burguesia, e de ter falado justo no momento em que a
sociedade estava preparada para este protesto”.
Anton Pavlovitch Tchekhov
1. Introdução
Aleksei Maksimovitch Pechkov nasceu em 16 de março de 1868, pelo calendário russo antigo, na
pequena cidade de Nijni Novgorod – depois rebatizada de Gorki em sua homenagem –, e morreu em Moscou
em 18 de junho de 1936. Durante sua vida, adotou o pseudônimo literário Maksim “Gorki”, palavra russa
que significa “amargo”.
Considerado o maior escritor russo do século XX, sua vida abrangeu um período bastante turbulento
na história do país, marcado pela crise e o fim do czarismo e o início e a consolidação do regime bolchevista.
Autor de uma obra extensa, sua produção literária será fruto da sua experiência de vida, surgindo como uma
verdadeira crônica do cotidiano do povo russo.
Autor de inúmeros romances e peças teatrais, Gorki destacou-se desde o início de sua produção
literária como um feroz opositor do regime czarista, lutando por profundas transformações que trouxessem
felicidade ao povo russo. Mais do que tudo, sua obra será isso, um apelo incansável à revolução. Romancista
brilhante, mas é sobretudo para o Gorki dramaturgo que este trabalho se voltará.
(Maksim Gorki, 1900)
O trabalho cobrirá a produção teatral gorkiana em um período histórico que se estende de 1901,
quando escreve a sua primeira peça, até o final de 1913, ano que marca o seu retorno à Rússia após um
processo de anistia promovido pelo czar Nicolau II1. Com a Revolução de outubro de 1917, sobretudo a partir
de 1928, durante a época stalinista, quando do seu novo retorno da Itália coberto de glórias, o seu teatro vai
perdendo o fervor revolucionário, sendo apropriado pela propaganda bolchevista. Desde então, de uma arma a
serviço da revolução, transforma-se ( com sua conivência? ) em um instrumento da propaganda revolucionária.
2. O Contexto Histórico: a Rússia Czarista
A Rússia, no final do século XIX e início do XX, era o país de maior população da Europa. A maioria
dos seus habitantes vivia no campo, constituindo uma sociedade tipicamente agrária na qual predominava as
relações de trabalho servil, em acelerado processo de desintegração.
A situação do camponês era precária, vivendo em condições miseráveis, assolado pelas doenças,
subnutrição, fome e analfabetismo. Sua vida esteve vinculada à terra até 1861, quando o Czar Alexandre II
(1855-1881), impondo medidas modernizadoras ao país, libertou os servos da tutela dos senhores da terra.
A libertação dos servos, contudo, não se deveu a uma atitude humanitária do Czar. Ao contrário,
resultou da compreensão de que o atraso do país e a humilhante derrota sofrida na Guerra da Criméia (18541856) se deviam a esta instituição que era a servidão. O Czar percebeu o problema e antecipou-se a resolvêlo, como se pode ver na frase dita em uma audiência com a nobreza: “Melhor abolir a servidão de cima para
baixo do que permitir que ela seja abolida de baixo para cima ”.
A terra estava dividida em grandes e pequenas propriedades, e nos mirs, comunidades organizadas
por aldeias, os camponeses lavravam coletivamente a terra. Essas comunidades aldeãs, institucionalizadas
pelo “Estatuto de Abolição da Servidão”, poderiam, pela reforma agrária proposta, comprar terras,
organizando um fundo comum para serem periodicamente redistribuídas entre os camponeses.
Contudo, se à primeira vista essa medida poderia servir para reforçar a propriedade comunitária,
outros dispositivos legais acabariam por impor a sua desintegração. Por exemplo, as reformas levadas adiante
pelo ministro Stolypin, em 1906, estabeleceriam que, se um camponês pudesse pagar pela terra de uma só
vez, ele não só escolheria o seu lote como também se tornaria proprietário.
Com o tempo, isso vai provocando uma certa diferenciação social nas aldeias, fazendo surgir uma
categoria de camponeses independentes e com melhor padrão de vida (os kulaks), ameaçando assim seriamente a solidariedade de classe. Embora a comuna sobrevivesse até a revolução de 1917, ela perdeu sua
força, corroída pelo aparecimento dos kulaks e pelo desenvolvimento de relações capitalistas no campo.
1. Anistia concedida pelo Czar Nicolau II por ocasião do 300º aniversário do advento da dinastia dos Romanov, o
que fez regressar ao país muitos dos adversários políticos do regime.
Se a situação do camponês era ruim, a do trabalhador urbano não diferia muito. Suas condições de
vida eram precárias, a jornada média de trabalho situava-se entre 12 e 15 horas diárias, não havia escolas,
sendo obrigado desde os nove anos a ir para as fábricas. Percebe-se isso ao ler o depoimento de um
operário russo da época: “Nós nos vendemos aos capitalistas por um pedaço de pão preto; guardas nos
agridem a socos para nos habituar à dureza do trabalho; nós nos alimentamos mal, nos sufocamos com a
poeira e o ar viciado”.
O proletariado russo, concentrado em grandes centros urbanos desde o século XIX, mostrou-se
socialmente reivindicativo e politicamente contestador. Greves e motins eram frequentes, apesar da proibição
que vigorou até 1905, a organização de sindicatos era proibida, sendo violenta a repressão por parte da
polícia do czar a qualquer movimento popular.
A burguesia russa, relativamente fraca e pouco numerosa, representava os interesses das pequenas e médias empresas, pois o grande capital industrial estava sob o controle estrangeiro. De um modo geral,
voltava-se para o liberalismo, almejando transformar a Rússia numa monarquia constitucional, ao estilo inglês.
Do ponto de vista da estrutura política, o Estado russo organizava-se numa monarquia absolutista,
exercendo o czar poderes ditatoriais, governando por decretos e por instrumentos jurídicos de exceção. Imperava a ausência de liberdade individual, a censura à imprensa, a proibição de greves e o direito de reunião,
sendo arbitrária a decretação de penas de prisão e de exílio para aqueles que não se submetessem à vontade
do soberano. Enfim, era uma época de terror.
A burocracia, a aristocracia, o exército e a Igreja Ortodoxa eram os grandes sustentáculos do poder
na Rússia czarista. Numeroso, mas fraco, o exército era frequentemente utilizado na repressão às camadas
populares e às nacionalidades não-russas, sobretudo a partir de 1881, quando se adotou uma forte política de
russificação em relação às demais nacionalidades (finlandeses, letões, ucranianos, georgianos, lituanos,
armênios etc.) que faziam parte do império.
De um modo bastante resumido, seria esse o contexto histórico no qual nasceu e viveu Gorki. Contexto, aliás, que ele a partir do seu trabalho artístico lutou efetivamente para transformar.
3. A politização da Arte: “o teatro a serviço da Revolução”
O menino nasceu2 em uma família pobre na cidade de Nijni-Novgorod, à beira do Volga, filho de
Maksim Savatievitch Pechkov, marceneiro, e de Varvara, filha do tintureiro Basílio Karchirin e de Akoulina
Ivanovna. (GORKI, 2007)
Sua infância e juventude foram marcadas por muitas dificuldades. Órfão de pai aos seis anos, e
sofrendo com as sucessivas ausências da mãe, é criado na casa dos avôs maternos, onde sofreu violência
física. Com a morte da mãe, logo após o seu sepultamento, o avô manda-lhe com seus dez anos partir por
entre os homens, ir ganhar o seu pão. Depois de viver e trabalhar nos mais diversos ofícios, cada vez mais
triste e amargurado, e sempre tolhido do seu maior prazer, a leitura, Gorki tenta sem sucesso o suicídio, o que
lhe deixaria profundas sequelas para o resto da vida. (GORKI, s/d)
2. Assim Gorki conta sobre o seu nascimento: “No ano de 1868, a 14 do mês de Março, às duas horas da noite, (...) a
natureza fez-me nascer duma pincelada objetiva. A despeito da importância deste fato, não conservo dele
nenhuma recordação pessoal; mas minha avó disse-me que, logo que me foi conferido espírito humano, soltei um
grito. Quero crer que foi um grito de indignação e de protesto”. (Apud. GOURFINKEL, 1964: 110)
(Casa do avô, onde Gorki viveu quando criança – primeira casa à esquerda).
Tendo frequentado pouco a escola, tenta sem sucesso alcançar a universidade, descobrindo então
que na Rússia esse lugar não era para pobres. Mas não desiste do sonho de instruir-se e tornar-se um
escritor. Sua verdadeira universidade, contudo, dirá mais tarde, será as andanças que fez pelo país, na qual
sentiria de perto as dores e as dificuldades do povo russo, de onde tiraria a inspiração para produzir os seus
livros.
Na Geórgia aproxima-se de grupos de orientação marxista, iniciando efetivamente a sua militância
política. Paralelamente, começa a escrever com regularidade, publicando em 1892 na revista Kavras o seu
primeiro conto, Makar Tchundra, considerado por ele a obra que lhe abrirá as portas do mundo literário. A
partir desse momento, passa a assinar Máximo “Gorki” (o amargo).
Deste então, não para mais de escrever. Publica em 1893 os contos Na Estepe e A Velha Izergui.
Porém, só se faz notar como escritor em 1895, quando publica em um influente jornal de São Petersburgo
sua novela Tchelkach. Em 1897 publica Malva, Konovalov e Gente Esquecida. Dois anos depois, em 1899,
escreve Vinte seis e uma e, em capítulos na revista marxista Jizn ( Vida ), Foma Gordeiev, texto considerado
aqui como o fechamento de um ciclo, menos político e mais literário.
Já possuindo uma certa fama como escritor, e seguindo um conselho de Tchekhov 3, Gorki muda-se
em 1899 para São Petersburgo, então capital do império, passando na cidade até 1906 a maior parte do seu
tempo, época em que se aproxima cada vez mais do Partido Social-Democrata Russo. Em 1901 publica na
revista Jizn ( Vida ) o seu poema revolucionário Canto do pássaro da tempestade, sendo de imediato o seu
exemplar recolhido pela polícia. Nesse ano é preso, sendo logo libertado por pressão da opinião pública.
É nesse período que dará uma grande virada na sua atividade literária, quando, mais uma vez
influenciado pelos conselhos do amigo Tchekhov, descobre o teatro 4. Essa descoberta transformará a arte de
Gorki num poderoso instrumento de luta, que ele porá efetivamente a serviço da conscientização do povo
russo, da revolução socialista. “Na cena – diz GOURFINKEL (1964: 20) – o homem novo de Gorki encontrava
um acréscimo de ressonância, graças ao poder emotivo da acção directa no público que faz do teatro uma arte
revolucionária por excelência”. A partir de então seus textos ganham uma dimensão mais política e panfletária.
3. Eis o conselho dado por Tchekhov em uma carta endereçada a Gorki, datada de 22 de maio de 1899: ”Um homem
de letras não pode viver impunemente na província. (...) A condição natural de um escritor é manter-se junto às
esferas literárias. (...) Mude-se para Petersburgo ou Moscou”. (Apud. ANGELIDES, 1990: 177)
4. Tchekhov tem um papel decisivo no direcionamento de Gorki para a dramaturgia, tanto pelo incentivo quanto pelo
fato de aproximá-lo de Stanislavski, diretor do Teatro Artístico de Moscou, grupo teatral do qual sua esposa
participava. Em uma carta a Gorki, datada de 6 de março de 1900, assim escreve: “Você precisa aproximar-se
desse teatro e observá-lo, a fim de escrever uma peça”. (Apud. ANGELIDES, 1990: 177)
Com a popularidade em alta, após ter sido eleito em 1902 acadêmico honorário pela Academia Russa,
e a escolha vetada a pedido o czar5, Gorki recebe do Teatro Artístico de Moscou um convite para encenar a
sua primeira peça, Pequenos Burgueses ( Meschane )6.
O texto da peça, escrito em 1901, recebe a princípio o título de “Cena em Casa dos Bessemenov:
Esboço dramático em Quatro Atos”. Avaliando o perigo que ela poderia oferecer, a censura faz na obra inúmeros cortes, o que chegou a provocar grande desagrado entre os seus leitores. Mesmo em parte censurado, o
livro obtém na época um grande sucesso de vendagem, sendo acolhido com grande entusiasmo pelo público.
Na peça, cuja ação se passa numa cidade de província da Rússia nos primeiros anos do século XX,
Gorki aborda de maneira vigorosa o conflito de geração no seio de uma família da pequena burguesia, como
um micro-cosmo da sociedade russa na época czarista, procurando mostrar a oposição entre os poderosos,
representantes de um modo de vida tradicional, e os grupos sociais emergentes que a eles se opunham.
(GORKI, 1976) Os seus personagens – seis se apresentam com maior destaque – vivem em um meio
mesquinho, revelando-se quase sempre impotentes para vencer as barreiras impostas por esse meio.
O velho Vassili Bessemenov, o mais conservador e o mais inflexível, é o patriarca falido que, apesar
de todo o esforço pelo bem-estar da família, não consegue concretizar algumas de suas expectativas em
relação aos filhos. Trabalhou sem descanso, se esforçou ao máximo, trapaceou para melhorar de vida, para
descobrir que tudo isso foi em vão. Com sua visão conservadora do mundo, não consegue compreender o seu
tempo, nem as novas gerações com os seus valores e comportamento, encarando tudo como extravagância,
imoralidade e final dos tempos.
A velha Akoulina Ivanovna, mulher dedicada ao marido e aos filhos, vivia constantemente angustiada
pelo permanente desejo de evitar o conflito no seio da família, tentando de tudo para fazer com que todos se
amassem. Bessemenov e Akoulina, aferrados aos antigos valores, culpam a tudo pela desagregação da família, estando prontos a condenar todos aqueles que se opunham às suas idéias.
Os filhos, Tatiana e Piotr, cada um por seus motivos, não conseguem romper com os valores sociais
que asfixiam a vida familiar, vivendo cercados por um muro de falsos deveres e obrigações. Piotr vive as
turras com o pai por causa da sua atividade política, é apaixonado por Elena, a quem o velho atribui uma
conduta imoral. Tatiana é uma solteirona de 28 anos que os pais desejariam ver casada, pelo menos para
evitar as insinuações dos amigos e dos vizinhos.
O casal Nil Vassilievitch, operário e afilhado de Bessemenov, e sua namorada Polia, são os personagens que na peça representam o modelo do “homem novo” – indivíduo sem nenhum compromisso com a
ordem social opressora, rebelde e amante da liberdade, o anunciador da nova sociedade. Ambos se
assemelham, sendo a moça descrita “como uma pessoa modesta e simples, capaz de qualquer heroísmo,
sem nenhuma ostentação”, estando os seus valores em permanente oposição aos da família Bessemenov.
Ansiosamente aguardada pelo público, não se sabia ao certo se a peça chegaria a estrear. Em meio
à grande tensão política da época, sua encenação foi a princípio recusada. Cercada de preocupação por
parte das autoridades de segurança, a peça é enfim liberada com alguns cortes e somente para a
apresentação perante um público seguro. Sua estreia é então marcada para o dia 26 de março na cidade de
São Petersburgo.
O afluxo de público foi grande na estreia, motivado não só pelo interesse cultural que despertava a
peça, mas também pelo desejo de promover um desagravo ao autor quanto ao veto a sua escolha como
membro honorário pela Academia Russa. O clima era tenso; o elenco antes da apresentação pede à plateia
que se mantivesse calma para que o autor não fosse prejudicado e assim pudesse continuar escrevendo.
5. Na primavera de 1902, Gorki é eleito pela Academia Russa de Ciência, em sua secção literária, acadêmico honorário. Ao tomar conhecimento da homenagem, o czar Nicolau II escreveu uma carta para o ministro da Instrução
pública reprovando o fato. Suspensa a escolha, Tchekhov e Korolenko, acadêmicos honorários, em solidariedade a
Gorki, apresentaram as suas demissões, fazendo ainda mais aumentar a sua popularidade como escritor.
6. Os meschane eram indivíduos que não pertenciam nem a nobreza, nem ao campesinato e nem ao clero, sendo eles
os habitantes da cidade (burgo). No sentido moral, meschanin (no singular) é o homem extremamente mesquinho,
incapaz de apreciar tudo quanto seja grande e belo.
Nos espetáculos que se seguem, antes do seu início, Nemirovitch-Dantchenko – um dos diretores do
grupo teatral – tinha o cuidado de dirigir-se para a parte popular do teatro, cujos lugares eram gratuitamente
distribuídos para o público estudantil, para pedir-lhes que se abstivessem de quaisquer manifestações mais
calorosas. Por precaução a polícia substituiu os arrumadores por agentes. Depois de São Petersburgo, a peça
é apresentada em Moscou e em outras cidades da Rússia, ultrapassando em dezembro do mesmo ano as
fronteiras do país, sendo encenada em Berlim e Viena.
Como os Pequenos Burgueses não havia dado problema à polícia, a censura resolveu autorizar a
encenação de uma nova peça de Gorki, Albergue Noturno7. Escrita durante o ano de 1902, a peça estreou no
dia 18 de dezembro, alguns meses depois da primeira, também encenada pelo Teatro Artístico de Moscou.
Com ela Gorki permanece na sua linha de utilizar-se do teatro como uma arma de luta pela revolução.
Em Albergue Noturno, Gorki trata de uma hospedaria onde convivem pessoas que tiveram boas posições sociais, mas agora decadentes, com pessoas do povo, todas vivendo de uma forma miserável (no
sentido econômico da palavra), mal tendo o que comer e como se agasalhar. A importância do albergue é
aqui crucial dado à impossibilidade de se viver na rua durante o terrível inverno russo. ( GORKI, 1972)
Dos inúmeros personagens que vivem no albergue, destaca-se a figura de Luka – na peça, o modelo
do “homem novo” –, um humanista que filosofa sobre a condição humana dos que vivem no fundo do poço, e
que consegue manter-se íntegro, embora massacrado, porque, apesar de tudo, tem uma grande esperança
na humanidade. Mergulhado no mesmo ambiente de miséria em que viviam os personagens do albergue,
Luka era diferente, porquanto desejava uma transformação radical da sociedade.
Gorki participou ativamente da montagem da peça, que na capital se constituiu num grande sucesso.
Contudo, foi na província que o público reagiu com maior exaltação teatral, a ponto de lá a censura requerer
uma autorização especial para cada montagem, tendo o texto que ser previamente aprovado. A peça foi ainda
proibida nos teatros populares e nas outras línguas do império. Apesar disso, teve inúmeras encenações em
diferentes cidades.
Além de alcançar um grande sucesso de público, a obra teve também um grande êxito de livraria,
vendendo na primeira edição cerca de 40.000 exemplares, ficando sua venda esgotada em duas semanas.
Durante o período de um ano, havia sido vendido em todo país um total de 75.000 exemplares, superando as
vendas do livro anterior. Antes da sua estreia, o amigo Anton Tchekhov leu e cobriu de elogios a obra8.
(Tchekhov e Gorki, 1900).
7. No original em Russo “Na Die”, significando exatamente “No fundo”. Traduzida para a língua francesa como “Les
Bas-Fonds”, e para o português, segundo a edição aqui utilizada, como “Albergue Nocturno”. A obra recebeu,
conforme as traduções, diferentes títulos: “Ralés”, “No Fundo”, “Os Ex-homens” e “O Submundo”.
8. Em carta escrita a Gorki, datada de 19 de julho de 1902, assim se manifesta sobre a obra: “Li sua peça No Fundo.
É nova e, sem dúvida, excelente. O segundo ato é muito bom: é o melhor e mais forte, e, quando eu lia, especialmente o final, quase dancei de alegria. O tema é escuro e opressivo; talvez a platéia, não acostumada com essas
coisas, saia do teatro e você tenha que dar adeus à sua reputação de otimista”.
A peça que se segue ao Albergue Noturno é escrita dois anos depois, em 1904, recebendo o título
de Os Veranistas ( Datchniki ). Nela, a tendência ao manifesto panfletário tornou-se ainda mais evidente.
Sem ter, contudo, alcançado o sucesso obtido pelos dois trabalhos anteriores, a peça não deixou de
fazer algum barulho, sendo acolhida pelo público como um comício político. Durante uma apresentação em
São Petersburgo, a parte mais conservadora da plateia tentou fazer uma manifestação contrária, sendo logo
abafada pela parte progressista, em maioria, fazendo uma aclamação ao autor que se encontrava no teatro.
A situação política e social no país tornava-se cada dia mais tensa, era grande o perigo de uma
convulsão social. A gota d’água deu-se no dia 9 de janeiro de 1905, quando em um movimento pacífico os
operários, apoiados pelo padre Gapon, decidiram realizar uma caminhada ao Palácio de Inverno para entregar
uma petição ao czar Nicolau II pedindo melhores condições de vida e de trabalho. O ato terminou em uma
grande chacina. Indignado com a selvageria realizada pela guarda imperial, Gorki escreve o manifesto “Apelo
a todos os cidadãos russos e à opinião publica dos Estados Europeus ”. Identificado o seu autor, é preso
em 11 de janeiro e encarcerado na fortaleza Pedro e Paulo, sendo solto no dia 20 de fevereiro mediante
pagamento de fiança9.
Durante o tempo em que passou na prisão, Gorki escreve a peça Os Filhos do Sol ( Dieti Solntza ),
considerada por ele mesmo como de pouco brilho. Em seu texto, Gorki faz uma severa crítica à
intelectualidade russa que não se alinhava com a luta revolucionária. Na obra o seu discurso assume um
aspecto político e panfletário ainda mais radical, com um teor mais forte e incisivo.
A crise no país se aprofunda após o massacre em frente ao Palácio de Inverno, episódio conhecido
como o “domingo sangrento”. Por todo lado ocorrem greves e manifestações populares, situação agravada
pela revolta de marinheiros10. As elites russas prevendo o pior pressionam o czar que, não vendo outra saída,
promulga no dia 17 de outubro de 1905 um decreto em que se comprometia em transformar a Rússia numa
monarquia constitucional, prometendo ampliar as atribuições do recém-criado Parlamento ( Duma ) e a
garantir ao povo o exercício das principais liberdades democráticas. Essas concessões não foram oficialmente
cumpridas.
Em dezembro explode o processo revolucionário.11 O governo manda prender os principais líderes
de oposição ao regime, sendo Lênin exilado na Finlândia e Trotsky mandado à Sibéria. Nesse clima de
intensificação da perseguição política, Gorki é convencido pelos amigos a deixar o país, o que faz em janeiro
de 1906. Atravessando a fronteira com a Finlândia, chega a Berlim, indo depois para Paris. A seguir, cruza o
Atlântico com objetivo de buscar refúgio nos Estados Unidos.
9. A perseguição por parte da polícia czarista foi uma constante na vida de Gorki. Em outubro de 1889 é preso em
sua cidade natal, Nijni-Novgorod, por causa da descoberta de uma tipografia clandestina, mas logo solto por
falta de provas. Em 5 de maio de 1898 é mais uma vez preso em sua cidade e conduzido para Tbilisi, sendo
encarcerado no castelo de Metek, mas também logo solto. Em 4 de março de 1901 é detido ao tomar parte da
manifestação de estudantes ocorrida em São Petersburgo – transformada em uma chacina por parte da polícia
a cavalo – sob a acusação de ser o autor do manifesto “Refutação da Versão Governamental”, sendo outra vez
libertado por falta de provas.
10. Caso da revolta ocorrida no encouraçado Potemkin, navio de guerra russo sediado no Mar Negro.
11. “O estopim da revolução foi o fuzilamento, em 9 de janeiro de 1905, da massa operária que se concentrara
pacificamente diante do Palácio de Inverno. A partir daí, sucedem-se amplas mobilizações proletárias e camponesas: no verão, os operários de Ivanovo-Voznessensk criam o primeiro sóviet, em junho subleva-se a tripulação
do encouraçado Potemkin e em outubro eclode a greve geral nacional. A 17 de outubro, o czar é obrigado a
publicar um manifesto, prometendo a promulgação de uma constituição contemplando a liberdade de expressão,
de reunião etc. A promessa não foi cumprida. Em dezembro, explodiu a revolução pelas armas: somente
empregando a artilharia o governo controlou Moscou. Em 1906, mais de um milhão de operários participaram de
greves, e, no primeiro semestre, a rebelião camponesa atingiu mais da metade dos distritos do país. Contra as
massas, o governo passou a empregar o método das expedições punitivas, que realizaram verdadeiras carnificinas. O fracasso da revolução, porém, não impediu a grande influência que ela exerceu tanto na preparação
político-revolucionária das massas (Lênin caracterizou os anos de 1905/07 como um “ensaio geral” para o levante
de 1917), quanto no estímulo a outras movimentações populares, especialmente na Ásia (Turquia, Pérsia e China)”.
(LÊNIN, 1982: 9; Prefácio à Segunda Edição, Nota do Tradutor).
Sua passagem pelos Estados Unidos é muito fecunda. Em 1906 escreve a peça Os Inimigos ( Vragi ),
onde o tema central é a luta de classes, nela tratando da relação conflituosa entre patrões e empregados.
Como era de se esperar, a sua apresentação foi proibida pelas autoridades na Rússia 12. No país a peça só
seria encenada em 1933 pelo Teatro Acadêmico Dramático de Leningrado e, dois anos depois, remontada pelo
Teatro Acadêmico de Moscou.
No mesmo ano, começa a escrever talvez o seu romance mais famoso, A Mãe ( Mat’ ). Inspirado em
fatos reais que havia presenciado nas fábricas de Sormovo e, na figura do operário Zamalov – representado
no romance pelo personagem Pavel Vlassov –, o romance é publicado numa revista americana, só recebendo
versão em russo numa edição impressa em Berlim. A imprensa operária logo dela se apropriou, espalhando
pela Europa milhões de exemplares sob a forma de folhetins. Na Rússia só circulavam, e de modo
clandestino, os exemplares da edição alemã em russo, somente sendo impressa legalmente no país a partir
de 1917.
Em outubro de 1906, impedido de retornar à Rússia, Gorki fixa residência em Capri, onde permanece
até o final de 1913. Nessa sua passagem pela Itália escreve alguns romances, como: Os Bárbaros em 1906,
A Vida de um Homem Desnecessário em 1908 e, no mesmo ano, A Confissão, dedicada ao amigo
Chaliapin. Em 1909 escreve A vida de Matvei Kozhemiakin e, no ano seguinte, A cidadezinha de Okurov.
Ainda em Capri, no ano de 1908, escreve a peça Os Últimos, onde busca retratar o conflito entre
pais e filhos e a ruína de uma família burguesa no período da crise do czarismo.
Na peça Ivan Kolomnitzev, o chefe da família é um policial corrupto que não hesita em prender um
jovem suspeito de cometer um atentado contra o czar, apesar de sua evidente inocência. Ciente disso, seus
filhos Piotr e Vera tomam partido do jovem contra o pai, sendo apoiado pelos outros irmãos, Nadia e Alexandre. Aqui Gorki põe em discussão um tipo de sociedade que estimula a corrupção e a existência de pessoas
venais, como o caso do personagem Kolomnitzev. No final do último ato, só resta à mãe, a impotente Sofia,
pedir perdão aos filhos por tê-los postos no mundo.
(Maksim Gorki volta à Rússia, caricatura de 1914).
No final de 1913, com a ameaça de guerra na Europa e aproveitando-se da anistia concedida pelo
czar por ocasião do 300º aniversário do advento da dinastia dos Romanov, Gorki decide regressar à Rússia.
12. No relatório da censura, datado de 13 de fevereiro de 1909, proibindo a encenação da peça, lê-se: “Nessas
cenas representa-se com vigor sua inimizade mortal entre os operários e patrões, sendo os primeiros
representados como firmes, lutadores, que avançam conscientemente para a meta estabelecida – a destruição
do capital – enquanto os segundos aparecem como egoístas tacanhos. Aliás, segundo uma das personagens, é de
todo indiferente quais sejam as qualidades do patrão; basta que ele seja ‘patrão’, para que constitua em inimigo
para os operários. O autor prevê, pela boca da mulher do diretor da usina, Tatiana, a vitória dos operários. Essas
cenas são do começo ao fim uma pregação contra as classes possuidoras, e por isso não se pode autorizar sua
encenação”. (GORKI, 1966: 108-09)
Mesmo tendo as ações contra ele arquivadas, o serviço de segurança do Estado lhe impõe severa vigilância.
Porém, seu ânimo não arrefece, continua junto com os bolchevistas a trabalhar pela revolução.
3. Conclusão
A atividade teatral nunca foi para Gorki uma profissão, nem um agradável passatempo, tampouco
algo lucrativo que serviria para entreter a elite abastada e a pequena burguesia russa. Ao contrário, o teatro
sempre lhe serviu como uma poderosa arma de luta, um precioso instrumento para a construção de um novo
homem, aquele que iria edificar uma nova sociedade.
Não sendo a transformação da sociedade algo espontâneo e nem a tomada de consciência por parte
dos homens um processo imediato, Gorki acredita poder fazer do teatro um instrumento de conscientização
do povo russo, um elemento a mais posto a serviço da ação revolucionária. Deste modo, o teatro perde o seu
papel de “arte pela arte”, ganhando na concepção de Gorki uma dimensão político-pedagógica, cuja função é
servir como um elemento difusor de uma nova concepção de mundo que se contraponha aos valores sociais
dominantes incutidos ao longo do tempo nas gerações de trabalhadores: trabalho, hierarquia, obediência,
propriedade, ordem, patriotismo e muitos outros.
Concluindo, o teatro deixa de ser para Gorki apenas arte e diversão, é agora um instrumento para a
construção do “novo homem” na Rússia, uma arma posta a serviço da Revolução.
TEATRO: difusão de uma nova concepção de mundo.
(ação político-pedagógica).
|
Edificação do “homem novo”.
↓
Revolução Socialista
(sociedade mais justa e igualitária)
Cronologia:
1861 – Abolição da servidão na Rússia.
1868 – Nasce em Nijni-Novgorod Aleksei Maksimovitch Pechkov.
1892 – Gorki publica seu primeiro conto, Makar Tchundra.
1898 – Fundação do Teatro Artístico de Moscou, por Stanislavski e Nemirovitch-Dantchencko.
1902 – Gorki é eleito acadêmico honorário pela Academia Russa de Ciência, sendo a sua escolha vetada
pela interferência do czar Nicolau II.
– Recebe do Teatro de Moscou o convite para encenar a primeira peça teatral, Pequenos Burgueses.
1905 – 9 (22) de Janeiro: “O Domingo Sangrento”; manifestação de operários conduzida pelo padre Gapon,
realizada em frente ao Palácio de Inverno do czar, brutalmente reprimida pela guarda imperial.
1906 – Em janeiro Gorki deixa a Rússia buscando refúgio nos Estados Unidos.
– Em outubro fixa residência na ilha de Capri, na Itália, onde permanece até o final de 1913.
1914 – Início da Primeira Guerra Mundial.
– Aproveitando-se da anistia concedida pelo governo imperial, Gorki retorna à Rússia.
1936 – 18 de Junho: Morte de Gorki em consequência de uma pneumonia.
BIBLIOGRAFIA
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KONDER, Leandro. Os Marxistas e a Arte. Breve estudo histórico-crítico de algumas tendências da estética
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LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia. O Processo de Formação do
Mercado Interno para a Grande Indústria. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Col. Os Economistas).
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