INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES Jefferson Aparecido Dias* Introdução Um dos temas mais polêmicos da atualidade no Brasil é a possibilidade de internação compulsória de crianças e adolescentes no Brasil, tanto para o tratamento do transtorno mental, quanto em razão do uso de drogas, em especial o “crack”. Lamentavelmente esta discussão tem sido alimentada pela incapacidade do Estado e até mesmo da sociedade em tratar de forma adequada crianças e adolescentes com transtornos mentais, ou usuários de drogas que praticam atos que, de alguma forma, incomodam o que se convencionou chamar de “paz social”. Assim, crianças e adolescentes usuários de drogas, em especial o “crack”, previamente interditados ou não, estão sendo internados compulsoriamente em estabelecimentos que não possuem a mínima capacidade de oferecer atendimento médico adequado, sem a observância das formalidades previstas na lei. Realmente, existe uma grande incompatibilidade entre o que está previsto na lei e a prática adotada pela sociedade e pelo Poder Judiciário, uma vez que as possibilidades de internação compulsória têm sido desvirtuadas e, ao contrário de buscarem garantir atendimento médico e proteger as crianças e adolescentes, estão sendo adotadas como forma de puni-los. No presente texto, serão apresentados detalhes dos preceitos legais que permitem a internação compulsória e, ainda, a interpretação equivocada que tem sido realizada de tais preceitos. A internação compulsória no Código Civil Segundo o Código Civil, estão sujeitos a serem interditados, dentre outros, aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos; e os excepcionais sem completo desenvolvimento mental (art. 1767). No presente caso, o que nos interessa é a situação das crianças e adolescentes que sejam “viciados em tóxicos” e, ainda, a dos adolescentes em conflito com a lei, ou seja, aqueles que praticaram alguma conduta classificada como crime e, em seguida, foram diagnosticados como “deficientes mentais”. Importante destacar que, nos dois casos, o Código Civil permite a interdição das crianças e adolescentes e, também, admite que eles sejam “recolhidos em estabelecimentos adequados, quando não se adaptarem ao convívio doméstico” (art. 1.777). Aqui surgem duas dúvidas. A primeira delas é saber qual a motivação para a interdição e o consequente recolhimento e, a segunda, definir o que seriam os “estabelecimentos adequados”. * Jefferson Aparecido Dias é Doutor em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidad Pablo de Olavide, em Seviha, na Espanha e Procurador Regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo. Para a primeira pergunta, pela análise sistemática da legislação, chega-se à conclusão que tanto a interdição quanto o recolhimento em estabelecimento adequado tem como objetivo proteger a criança e o adolescente e, mais que isso, garantir-lhe um tratamento adequado que lhe permita superar os problemas de saúde que possui. Assim, incabível imaginar que tais medidas possam ser adotadas para punir a criança ou adolescente ou mesmo evitar que eles pratiquem atos que, de alguma forma, possa desagradar a sociedade. Claro que essa posição não é pacífica, existindo autores e autoridades que defendem que o adolescente somente poderá ser recolhido compulsoriamente se praticar algum ato infracional, ou seja, alguma conduta definida como crime, ocasião em que lhe poderá ser aplicada a medida socioeducativa de internação, nos termos do estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente, mas, infelizmente, não é essa a posição que tem prevalecido. Já em relação ao conceito de “estabelecimento adequado” a situação é ainda mais difícil, pois, lamentavelmente, o Poder Público brasileiro não conseguiu chegar a uma conclusão, pois enquanto alguns setores defendem a ampliação de uma rede de atendimento psicossocial baseada em equipamentos nos quais a internação seja excepcional, outros setores defendem as Comunidades Terapêuticas que se fundamentam na internação e, muitas vezes, sequer possuem equipe médica apta a fornecer tratamento adequado, isso sem contar os casos em que os adolescentes são internados em estabelecimentos prisionais. Nos dois casos mais famosos envolvendo adolescentes que praticaram crimes graves (homicídios) e, em seguida, foram diagnosticados como “doentes mentais”, optou-se por soluções completamente dissociadas da lei. No primeiro caso ocorrido no Estado de São Paulo, o adolescente foi interditado e recolhido a uma unidade batizada de “Unidade Experimental da Saúde”, que, na realidade, é um presídio, no qual inexistem profissionais de saúde. No outro caso, ocorrido no Estado de Mato Grosso do Sul, o adolescente, também acusado da prática de homicídio, foi previamente interditado e recolhido no setor de saúde de um presídio estadual. O curioso, nos dois casos, é que os adolescentes foram punidos pela prática dos homicídios e depois de cumprida a sanção aplicada (medidas sócios educativas de internação), foram interditados a pedido do Promotor de Justiça e recolhidos de forma permanente nas mencionadas unidades, para um suposto tratamento médico que inexiste. Nestes casos, como se vê, o Código Civil tem sido desvirtuado e aplicado não para permitir o tratamento dos adolescentes, mas sim para sancioná-los. A internação compulsória de pessoas com transtornos mentais Além da interdição e da internação prevista no Código Civil, a legislação brasileira também prevê, na Lei nº 10.216/2001 (que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental) a possibilidade de outras três espécies de internação: 1) a internação voluntária, solicitada pela própria pessoa, 2) a internação involuntária, que é solicitada por terceiro, sem a anuência do paciente; e 3) a internação compulsória, assim classificada a que é determinada pelo Juiz (art. 6º) Antes de analisar cada uma das espécies de internação, importante esclarecer que, apesar da lei exigir um laudo médico apenas nos casos de internação voluntária e involuntária, é evidente que ele também deverá ser exigido no caso de internação compulsória, sendo que deverá caber ao médico, e não ao juiz, verificar a possibilidade de tratamento ambulatorial ou a necessidade de internação. No caso de internação voluntária a polêmica é reduzida, uma vez que ela é solicitada pelo próprio paciente, que reconhece a necessidade de se submeter a tratamento. Já no caso de internação involuntária, a principal dúvida diz respeito quanto a necessidade, ou não, de existir uma subordinação do paciente em relação ao terceiro que solicita a sua internação. Assim, no caso de crianças e adolescentes, a internação poderia ser solicitada por seus pais ou representantes legais, mas não por outras pessoas que não tenham relação legal com eles, como um médico ou outro profissional de saúde. A situação ganha importância no caso de adultos que, caso se exija a referida subordinação, precisariam ser interditados previamente, para somente depois seu representante legal devidamente nomeado pelo Poder Judiciário pudesse solicitar a sua internação. Na prática, porém, essa relação de subordinação não tem sido exigida, razão pela qual qualquer pessoa pode solicitar a internação de outra, desde que demonstre qualquer forma de interesse. A título de exemplo, tem-se admitido que um médico solicite a internação de sua paciente, como também que o marido solicite a internação da mulher, que também pode solicitar a internação do marido. Também tem-se admitido que os filhos solicitem a internação dos pais, bem como que qualquer pessoa com vínculo de parentesco o faça. No caso da internação compulsória, ou seja, aquela determinada pelo Poder Judiciário, tem sido bastante comum que tal medida seja aplicada como forma de sancionar crianças e adolescente que adotem posturas consideradas inadequadas pela sociedade, em razão do uso de drogas, como também estão sendo internados os adolescentes que, depois de cumprirem o limite máximo de internação por força de medidas socioeducativas aplicadas pela prática de crimes graves, são considerados incapazes de voltar a viver em sociedade. Como se vê, mais uma vez, a internação, seja ela involuntária ou compulsória, tem sido aplicada como forma de sanção e não para garantir a prestação de tratamento adequado para crianças e adolescentes. A atuação da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão Num primeiro momento, a divisão de atribuições prevista na legislação brasileira poderia levar à equivocada conclusão de que apenas o Ministério Público dos Estados teriam possibilidade de atuar no tema. A complexidade do tema e todas as suas nuances, porém, acabaram por exigir uma atuação do Ministério Público Federal, em especial da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), de forma integrada com os membros do Ministério Público dos Estados. Nesse aspecto, a PFDC indicou representante para atuar na Comissão Permanente da Infância e da Juventude, órgão que congrega representantes dos Ministérios Públicos dos Estados, com o objetivo de garantir uma atuação integrada entre tais instituições. Além disso, também foi realizada a indicação de membro para atuar junto ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), órgão que é composto, de forma paritária, por representantes do Poder Público e da sociedade civil. Essa integração da PFDC com os Ministérios Públicos Estaduais e, em especial, com os representantes da sociedade civil, já permitiram algumas conquistas, como a reprovação, no âmbito do CONANDA, das propostas que visam a alteração da Constituição e da lei para promover a redução da maioridade penal e, também, a rejeição da ampliação do prazo de internação no caso da prática de atos infracionais por adolescentes, ou seja, condutas consideradas como crime. Além disso, dessa integração, também resultou a propositura pelo Ministério Público Federal, em conjunto com a Conectas Direitos Humanos, a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), o Instituto de Defesa dos Direitos de Defesa (IDDD) e o Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região, de medida judicial visando o fechamento da Unidade Experimental de Saúde, existente em São Paulo e acima mencionada, com base em recomendação constante de relatório do Subcomitê de Prevenção da Tortura, vinculado à ONU – Organização das Nações Unidas (íntegra do relatório disponível em: http://midia.pgr.mpf.gov.br/pfdc/hotsites/sistema_protecao_direitos_humanos/docs/sistema_nacoesu nidas/orgaos-monitoramento/subcomite-tortura/recomendacoes_SPT.pdf). Neste ponto, também de grande importância tem sido o compromisso do Ministério Público Federal, por meio da PFDC, perante os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos, o que tem permitido o monitoramento das recomendações recebidas pelo Brasil. Conclusões A legislação brasileira é bastante generosa na garantia de tratamento adequado às crianças e adolescentes com transtornos mentais e, também, àqueles que sejam usuários de drogas. Nesse tratamento, a internação é tida como medida excepcional, que somente é passível de ser aplicada nos casos em que o tratamento ambulatorial se mostrar inadequado ou insuficiente para garantir a vida e a saúde das crianças e adolescentes. Essas medidas estão previstas não apenas no Código Civil, como também na Lei nº 10.216/2001, que trata especificamente do tratamento das pessoas com transtornos mentais. Na prática, porém, a lei não tem sido devidamente cumprida e a adoção da internação compulsória como medida punitiva e até mesmo de segregação tem se intensificado, apesar de não terem sido criadas as unidades médicas necessárias para o oferecimento de tratamento adequado. Assim, além de serem punidas por meio de internações compulsórias, as crianças e adolescente têm sido recolhidas em unidades com características prisionais, na qual, muitas vezes, sequer existe a garantia de tratamento médico. O risco é que essa adoção indiscriminada da internação compulsória crie depósitos de crianças e adolescentes, não com o objetivo de garantir tratamento adequado, mas apenas para retirá-las do convívio social, pois a sociedade não os deseja ter próximos. O pior cenário é que volte a ocorrer no país novas tragédias como a que se convencionou chamar de “Holocausto brasileiro”, caso ocorrido no Estado de Minas Gerais, no hospício de Barbacena, conhecido como “Colônia”, onde, entre os anos de 1930 e 1980, morreram mais de 60 mil pessoas supostamente com transtorno mental. Dentre tais pessoas, porém, existiam muitas que não eram doentes e apenas foram internadas por terem praticado atos considerados inadequados para a época. Assim, grande é a responsabilidade do Ministério Público que, mais que solicitar a interdição e a internação compulsória de crianças e adolescentes, como lhe permite a lei, deve lutar para que ela seja adotada como medida excepcional e, quando adotada, seja realizada de forma a garantir o tratamento adequado ao paciente. Nesse sentido, muitos ainda são os desafios, mas a atuação integrada do Ministério Público Federal, por meio da PFDC, em conjunto com os Ministérios Públicos dos Estados e com representantes da sociedade civil, tem permitido a adoção de medidas visando garantir os direitos humanos das crianças e adolescentes, inclusive para as futuras gerações.