Uma nova visão mundial dos oceanos

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Tiago de Pitta e Cunha
Membro do Gabinete do
Comissário Europeu das Pescas
e Assuntos Marítimos
Uma nova visão mundial
dos oceanos
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Independentemente da visão que tenhamos do papel dos oceanos, o que é indisputável é que eles não podem
continuar a ser vistos como uma fonte inesgotável de recursos. Esta mudança de percepção é recente. Começou
a desenhar-se na década de 1990 na Cimeira do Rio, mas apenas foi verdadeiramente assumida pela comunidade
internacional já neste século na Cimeira de Joanesburgo em 2002. Pode parecer que a assunção de uma percepção
correcta do real valor dos oceanos e mares é uma questão de mero sentido filosófico. Todavia, uma visão de partida
que compreenda o valor, o potencial e as vantagens que podemos retirar do uso regrado do mar faz toda a
diferença e é, em última análise, basilar no quadro de uma reflexão sobre a governação dos oceanos. São muitos
os que têm vindo a advogar persistentemente que é essencial perceber esta curva de importância dos oceanos.
Reconhecer o valor actual dos oceanos e perspectivar o seu crescente papel nas sociedades do futuro é importante
para todos os países, mas é, sem dúvida, mais importante para uns do que para outros. Para os Estados costeiros
– onde se inclui Portugal – reconhecer o imenso valor político, estratégico, económico, ambiental e cultural dos
oceanos é fundamental. Também para a Europa, ainda mais do que para o mundo em geral, os oceanos têm um
papel crucial. Tiveram-no no passado, têm-no no presente e terão seguramente no futuro. De facto, os desafios
económicos e ambientais com que a Europa se confronta, por si só, exigem uma atenção especial aos assuntos dos
oceanos, bem como um proporcional investimento neste tema. Uma nova abordagem aos oceanos deve, pois,
materializar-se numa política marítima integrada, que se pretende que seja inovadora na governação do oceano
e inovadora pela sua ancoragem profunda na ciência, na investigação e na tecnologia. A iniciativa da Comissão
Europeia de lançar um debate sobre uma nova política marítima para a Europa constitui um desafio e uma
chamada clara. Os cidadãos da União não acalentam dúvidas e a opinião pública já se pronunciou em diversas
ocasiões pelos valores e pelos interesses que quer defender. Para os países costeiros da Europa, e por maioria de
razão para os países mais periféricos, é evidente o interesse geopolítico deste projecto. Os Estados-Membros têm
o papel principal a desempenhar neste processo, que na segunda metade deste ano se intensifica, com a adopção,
em Outubro, pela Comissão do pacote da política do mar. Neste contexto, os Estados-Membros da União
Europeia saberão ler os sinais do tempo e responderão positivamente à chamada da Comissão, participando
activamente na elaboração de uma moderna política marítima europeia para o século XXI.
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Irrespective of the vision we may have of the role of the oceans, what is indisputable is that they cannot
continue to be looked on as an inexhaustible source of resources. This change in perception is recent. It began
to appear in the nineties in the Rio Summit, but it was only truly taken on by the international community in
this century in the Johannesburg Summit in 2002. It may seem that the assumption of a correct perception of
the real value of the oceans and seas is a question of mere philosophical sense. However, a vision which includes
the value, potential and advantages which we can have from the judicious use of the sea makes all of the
difference and is, ultimately, fundamental within the framework of a reflection on the governance of the
oceans. There are many who have persistently advocated that it is essential to understand this curve of
importance of the oceans. To recognise the current value of the oceans and to imagine their growing role in the
societies of the future is important for all countries, but it is, without doubt, more important for some countries
than others. For the coastal States – which includes Portugal – to recognise the immense political, strategic,
economic, environmental and cultural value of the oceans is fundamental. Also for Europe, even more so than
for the world in general, the oceans have a crucial role. They had such a role in the past, they have it now, and
they will certainly have it in the future. In fact, just the economic and environmental challenges which face
Europe demand special attention for ocean affairs, as well as a proportional investment in this topic. A new
approach to the oceans should, therefore, be materialised in an integrated maritime policy, which one hopes will
be innovative in the governance of the ocean and innovative for its profound anchoring in science, research and
technology. The initiative of the European Commission of launching a debate on a new maritime policy for
Europe constitutes a challenge and a clear calling. The citizens of the Union do not harbour doubts and on
various occasions public opinion has already pronounced in favour of the values and interests it wishes to
defend. For the coastal countries of Europe, and even more so for the more peripheral countries, the geopolitical
interest of this project is evident. The Member States have the leading role to play in this process, which will
intensify in the second half of this year with the adoption in October by the Commission of the maritime
policy. Within this context, the Member States of the European Union will know how to interpret the signs
of the times and will respond positively to the call of the Commission, actively participating in the preparation of a modern European maritime policy for the 21st century.
O
s oceanos cobrem 70% da superfície do planeta que habitamos. Por esta simples razão eles
fizeram sempre parte da história da humanidade. Não obstante, durante séculos e milénios, até ao século
XX, os oceanos serviram basicamente dois propósitos principais: primeiro, o de sustentação
do modo de vida de povoações ribeirinhas através da pesca; depois, o de canal de ligação entre
pessoas e culturas ou de transporte de bens e
produtos entre diferentes regiões.
Estas duas actividades – pescas e transporte
marítimo – são, assim, as actividades marítimas por excelência, que designamos por actividades marítimas tradicionais. Quanto aos novos usos dos oceanos, isto é, à exploração dos
seus recursos energéticos, minerais e genéticos,
ou à sua utilização na geração de energia renovável, na instalação e passagem de pipelines, na
prestação de serviços ecológicos e na exploração do seu elevado potencial cénico e recreativo,
todos eles não passam – relativamente à longa
história da humanidade – de actividades ainda
muito recentes. Por exemplo, a exploração turística do mar de forma generalizada pela população mundial apenas ocorre há algumas décadas. De facto, até ao século XX o mar era mais
associado a sentimentos de temor e de perigo
do que ao lazer e à recreação. A sua exploração
para a instalação e mesmo a geração de energias
renováveis, ou para o aproveitamento dos seus
recursos genéticos (biotecnologia marinha) está
apenas a iniciar-se. Talvez por isso haja ainda
hoje quem associe particularmente os oceanos
ao passado, exclusivamente às actividades ditas
tradicionais e que marcaram outras épocas e
outros sistemas político-económicos.
Contudo, independentemente da visão que
tenhamos do papel dos oceanos, o que é absolutamente seguro, indisputável, é que eles não
podem continuar a serem vistos como uma
fonte inesgotável de recursos. Uma fonte que
está aqui – na Terra – completamente à nossa
disposição, para sempre.
De facto, hoje, face ao conhecimento que temos dos oceanos e que temos dos impactos
que a acção do homem neles provoca, não é
possível pensarmos que eles são invulneráveis
e indestrutíveis. Que deles podemos tirar in-
cessantemente o peixe e depositar o lixo. Ao
contrário do que até aqui pensámos, não mais
nos podemos dar ao luxo de continuar a ver os
oceanos como um dado adquirido. Um valor
perene e assegurado.
Esta mudança de percepção é recente. Começou a desenhar-se na Cimeira do Rio em 1992,
mas apenas foi verdadeiramente assumida pela
comunidade internacional já neste século na
Cimeira de Joanesburgo em 2002. Esta nova
percepção é fundamental. É fundamental, porque a preservação ambiental dos oceanos é uma
obrigação moral que temos para connosco e para
com as próximas gerações. Como nos diz o
Relatório da Comissão Mundial Independente
dos Oceanos, a vida no planeta Terra depende
inteiramente dos oceanos:
“They provide us with the food, energy
and water and they sustain the livelihoods
of hundreds of millions of people. They
are the main highway for international trade as well as the main stabiliser of the
world’s climate”1.
É fundamental também, porque apenas quando ganharmos efectivamente consciência da vulnerabilidade dos oceanos, da sua precariedade e
de que a abundância de outrora pode ser hoje
escassez – como acontece com os seus recursos
vivos – os passaremos a valorizar verdadeiramente. Ao contrário, enquanto olharmos para
eles como um depósito infinito e inesgotável,
sempre renovável, acabamos por desvalorizá-los
e, simplesmente, por considerá-los como que
inerentes à nossa própria existência.
Apenas uma vez efectuado esse processo interior de mudança de percepção, poderemos
atribuir aos oceanos o seu real valor. Passaremos a valorizá-los como um recurso natural.
Como valorizamos uma região de terra arável
ou um depósito mineral. Ou, ainda mais do
que um recurso, como um activo que é precioso
e que alguns estados, os estados costeiros, têm
a sorte de possuir e beneficiar.
É nesta mesma linha que o Relatório citado
da Comissão Mundial Independente dos Oceanos declara:
“In the Commission’s view, past approaches to the economics of the oceans have
been short-sighted. There has been a consistent underestimation of the value of
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the oceans and the ecological services they
provide. As a result, the uses of the oceans have failed to take into account external costs, which has contributed to unsustainable levels of exploitation of resources
and to the rapid deterioration of the marine environment”2.
Pode parecer, à primeira vista, que a assunção
de uma percepção correcta do real valor dos oceanos e mares é uma questão de mero sentido
filosófico. Todavia, não é assim. Uma visão de
partida que compreenda o valor, o potencial e
as vantagens que podemos retirar do uso regrado do mar faz toda a diferença e é, em última análise, basilar no quadro de uma reflexão
sobre a governação dos oceanos e mares.
Porquê? Porque quando os bens são valiosos e escassos nós tendemos a preservá-los, a
guardá-los e a investir no aproveitamento do
seu potencial. A questão é pois uma questão de
sentido prático e de carácter económico. Senão
vejamos: da mesma forma que o território se
tornou valioso com a descoberta da agricultura
e outros usos, passando a exigir ordenamento
e planeamento, também o mar, dado o seu valor para a realização de diversas e potencialmente
conflituais actividades, irá num futuro próximo ser objecto de maior apropriação e logo
exigirá o mesmo ordenamento e planeamento
na sua governação. É também uma questão de
carácter económico porque para investir no potencial do mar vamos necessitar fazer escolhas
de valor, tomar opções financeiras e canalizar
para a exploração deste recurso elevados fundos que, de outra forma, poderíamos utilizar
noutro destino.
Não é difícil perceber porque estamos hoje a
assistir à mudança de percepção sobre o valor do
mar. As razões estão, aliás, implícitas no que afirmámos acima. O agravamento da deterioração
ambiental dos oceanos, incluindo a sua acidificação, bem como o galopante agravamento da
escassez dos seus recursos vivos é proporcional
à importância crescente que é atribuída aos oceanos pelos Estados costeiros. Como decorre da
pura teoria económica, recursos mais escassos
tornam-se mais valiosos e geram maior procura
e competição, a qual, por sua vez, significa que
os oceanos irão seguramente ganhar importância durante o desenrolar do século XXI.
Há, contudo, outros factores que concorrem
igualmente para atribuir maior importância aos
oceanos. Efectivamente, estes também ganham, e muito, valor à medida que se vai generalizando na opinião pública uma consciência
ambiental de preservação do mar. Ora, ninguém
duvida da força da consciência ambiental da
opinião pública nos dias que correm. Ninguém
se esquece do impacto devastador que tiveram
as imagens dos famosos e infames naufrágios
do Erika e do Prestige. Tanto é assim que nada
que os Estados possam fazer para reforçar o
combate a esse tipo de acidentes – e podem
fazer mais do que fazem – será alguma vez tido
por suficiente por essa opinião pública que sente, que exige, que reage e que protesta.
Ou seja, para a importância dos oceanos concorre não apenas a descoberta do seu valor intrínseco para o funcionamento equilibrado do
planeta – como começamos a compreender
dado o papel crítico que os oceanos têm na
modulação do clima e dos ciclos hidrológicos –
mas também a apreciação positiva, subjectiva e
de intensidade crescente que a opinião pública
vem fazendo desse valor.
Finalmente, os oceanos ganham também
novo valor com o que designámos por “novos
usos do oceano”. Com efeito, a evolução da aplicação da ciência e das novas tecnologias, inclusivamente espaciais, ao oceano, os progressos da
oceanografia, da biologia marinha, da geologia
e de outras ciências, têm vindo a permitir verdadeiros saltos no nosso conhecimento sobre o
funcionamento e o potencial dos oceanos. Têm-se vindo a desenvolver novas tecnologias subaquáticas, as quais, por sua vez, abrem as portas
a novos usos dos oceanos, e.g., geração de energias renováveis, extracção de novos recursos minerais, perfuração de petróleo e gás a profundidades nunca antes pensadas, construção de
depósitos de sequestro de CO2; aproveitamento científico e comercial, através da indústria farmacêutica, alimentar e de cosmética, de organismos marinhos vivos descobertos recentemente,
como as bactérias residentes nas fontes hidrotermais da crista média atlântica.
Nada disto é novo. Pelo contrário, são muitos os que têm vindo a advogar persistentemente e há vários anos que é essencial perceber
esta curva de importância dos oceanos.
Na verdade, não receando repetir-me3, devo
reafirmar que reconhecer o valor actual dos oceanos e perspectivar o seu crescente papel nas
sociedades do futuro é essencial para todos os
países, mas é, sem dúvida, mais essencial para
uns do que para outros. Para os Estados costeiros – onde se inclui Portugal – reconhecer o
imenso valor político, estratégico, económico,
ambiental e cultural dos oceanos é fundamental, tanto mais que a área dos oceanos e mares
é uma área a que Portugal está inelutavelmente associado4.
Como vamos ver, também para a Europa,
ainda mais do que para o mundo, os oceanos
têm um papel crucial. Tiveram-no no passado, têm-no no presente 5 e terão seguramente
no futuro.
Como todos os continentes, a Europa é
marcada pela sua geografia, pelas suas heranças e culturas, de onde emanam as suas instituições e de onde emergem as suas escolas de
pensamento e as suas tradições. Ora, os oceanos e os mares são importantes nas tradições
e na herança cultural europeia principalmente
porque são determinantes na sua geografia.
Em rigor, na Europa deparamo-nos com um
continente que é praticamente e apenas o cabo
de uma massa continental mais vasta, a Ásia.
Ademais, tradicionalmente separada da Ásia a
oriente por vastos e inóspitos territórios, a
Europa emerge dos oceanos e mares que a contornam quase como uma ilha.
A influência do mar torna-se assim omnipresente. Tanto que para os Europeus, ao contrário
das montanhas, os oceanos e os mares nunca
foram vistos como barreiras, mas sim como fronteiras ou rotas de encontro com outros mercados, outros povos e outras civilizações.
Como áreas estratégicas por excelência que são,
as regiões costeiras da Europa foram sempre
lugares de encontro e lugares de conflito. Por
tudo isto, o mar tem marcado um lugar determinante na história da Europa e não é por acaso que alguns dos episódios mais importantes
desta história o têm como palco. Foi assim no
Mediterrâneo, no oceano Atlântico ou no mar
Báltico. Foi nas margens do mar Mediterrâneo
que nasceu grande parte da cultura europeia.
Foi aqui que a supremacia naval se manifestou
ao serviço de impérios e de comércios. Primei-
ro com os Fenícios, depois os Gregos, os Cartagineses e os Romanos. No oceano Atlântico
a supremacia naval dos Vikings levou-os a toda
a costa ocidental da Europa e aos grandes rios
de fronteira com o Leste. As políticas de supremacia naval foram-se sucedendo e expandiram-se à escala mundial com as viagens de descobertas dos Portugueses e Espanhóis. A partir
daqui o comércio, impulsionado por outros
povos europeus como os Holandeses e Ingleses, adquire dimensão mundial.
Com as viagens transoceânicas das descobertas tudo mudou. Comércio, banca, guerra e política tornam-se parte da mesma realidade. Tudo
isto, i.e., as vantagens adquiridas através do domínio dos mares, por sua vez, contribuiu em
muito para a estruturação dos modernos Estados europeus e permitiu a consolidação de um
novo e dinâmico grupo social: a burguesia, o
qual, por seu turno, contribuiu decisivamente
para o crescimento económico da Europa, para a
sua capitalização e por via dela para a posterior
industrialização do continente.
Onde quero chegar é a fazer notar que o mar
esculpiu o passado da Europa e, consequentemente o seu presente, a um ponto e com uma
profundidade que vai muito para além do que,
de um modo geral, se pensa. Por outras palavras, a questão que podemos colocar é qual teria sido o destino da Europa sem o mar? Não
foi ele que lhe trouxe a ambição, a riqueza e o
poder, que de outra forma esta nunca poderia
almejar? Por isso, para muitos países e cidades
da Europa a aquisição de poder e de desenvolvimento económico estão directamente relacionados com o mar. Assim aconteceu maxime com
a Grã-Bretanha, não sendo uma coincidência
que, no dealbar do domínio marítimo britânico, Sir Walter Raleigh tenha dito à Rainha Isabel I que: “aqueles que controlarem o mar, controlarão o comércio. Aqueles que controlarem
o comércio controlarão a riqueza do mundo e
através dela controlarão o próprio mundo”.
Hoje, todos sabemos bem que impacto tiveram estas palavras.
Da mesma maneira que não devem restar
dúvidas do papel central do mar no passado da
Europa e, nomeadamente, no seu desenvolvimento económico e industrial – sem o mar, a
burguesia europeia não teria reunido o capital
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38
necessário para a Revolução Industrial nem as
matérias-primas nela utilizadas chegariam à
Europa – também não deve haver dúvidas do
impacto do mar no presente da Europa.
Na realidade, não obstante o transporte aéreo, a conquista espacial e o desenvolvimento
de mercados de serviços sofisticados, ou de
novas tecnologias, como a nanotecnologia, a
verdade é que a Europa continua a depender
do mar. Desde logo, porque sem ele não poderá competir num mundo em acelerada globalização. É que, como sabemos, o primeiro
impacto da globalização faz-se sentir essencialmente no comércio internacional, o qual vai
continuar a ser objecto de uma expansão sem
precedentes durante as próximas décadas. Ora,
o comércio internacional em geral e o comércio
externo da Europa em particular, por sua vez,
é em cerca de 90% transportado por mar, através de uma rede de transportes que depende
em larga medida da competitividade da indústria do transporte marítimo e da indústria portuária. Ou seja, mais globalização significa mais
comércio e mais comércio significa inevitavelmente mais economia marítima.
Por aqui podemos perceber que para continuarmos economicamente competitivos, na
Europa, vamos ter de expandir infra-estruturas de transporte e manter uma frota de marinha mercante que é a primeira do mundo. Dito
de outra forma, para sermos mais competitivos no futuro precisamos de começar a investir
mais no mar no presente e, logo, de apostar no
desenvolvimento das adequadas políticas marítimas. Mas, o que torna tudo mais complicado, é que o desenvolvimento das infra-estruturas portuárias e a multiplicação do número de
navios a singrar as costas europeias também
vai significar uma factura ambiental mais pesada para pagar. Como ultrapassar este problema? Como resolver e mesmo antecipar os conflitos de usos que o incremento de actividades
marítimas tradicionais – como o transporte
marítimo – e a concorrência de novas actividades marítimas, ou da ocupação do espaço marítimo, com a utilização do mar para a maricultura offshore, para a instalação de parques offshore,
de grande escala, geradores de energia do vento,
ou mesmo para a geração de energia das ondas,
irão eventualmente originar?
A resposta da Comissão Europeia é clara. Ela
passa por adoptar uma nova abordagem aos
oceanos e aos mares, que permita a sua governação não mais numa perspectiva sectorial, interesse a interesse, e fragmentada, mas numa
perspectiva holística e integradora de todas as
partes em questão na governação dos assuntos
marítimos. É assim que o Livro Verde da Política Marítima Europeia nos indica sem ambiguidades que:
“Os princípios da boa governação apontam para a necessidade de uma política marítima europeia que englobe todos os aspectos dos oceanos e mares. Tal política
deverá ser integrada, inter-sectorial e multidisciplinar, e não uma simples compilação de políticas sectoriais verticais. Deverá
considerar os oceanos e os mares partindo
de um conhecimento profundo da forma
como funcionam e do modo de preservar
a sustentabilidade do seu meio e dos seus
ecossistemas. Deverá também determinar
de que forma o processo de decisão e a
conciliação de interesses concorrentes em
zonas marinhas e costeiras podem conduzir a um clima mais propício ao investimento e ao desenvolvimento de actividades económicas sustentáveis.
Para esse efeito, é necessário aumentar a
cooperação e promover a coordenação e a
integração efectivas das políticas relacionadas com os oceanos e os mares a todos
os níveis.”
Em poucas palavras, os desafios económicos e ambientais com que a Europa se confronta, por si só, exigem uma atenção especial aos
assuntos dos oceanos, bem como o correlativo
e proporcional investimento neste tema. Uma
nova abordagem aos oceanos deve, pois, materializar-se numa política marítima integrada,
que se pretende inovadora tanto na governação
do oceano como pela sua ancoragem profunda
na ciência, na investigação e na tecnologia.
Apenas a combinação destes dois factores
(inovação na governação e inovação científica e
tecnológica) permitirá no futuro não só manter a competitividade das indústrias marítimas
europeias – instrumental no processo de globalização mundial – mas também expandi-las
e simultaneamente assegurar que o cumprimen-
to destes objectivos6 não seja feito com maior
prejuízo da já de si delicada situação ambiental
da Europa e do mundo.
Resta-nos pensar o futuro. Qual o papel que
os oceanos e mares desempenharão no futuro?
No futuro será cada vez mais importante
combater as alterações climáticas. Será fundamental enveredar por uma disciplina que nos
mantenha rigorosamente no rumo do desenvolvimento sustentado e será mais difícil aos
poderes públicos gerir a exigência crescente, mas
justificada, da opinião pública pela preservação
ambiental. Tal exigência começa pela qualidade
do ar que respiramos, passando pela água potável que consumimos e acabando na preservação da biodiversidade do planeta. Tudo, sem
deixar de fora a biodiversidade marinha, a qualidade da água do mar ou a manutenção dos
ecossistemas aquáticos.
Neste cenário, os oceanos e os mares irão desempenhar um papel ainda mais importante do
que desempenham hoje. Desde logo, dada a função determinante que o oceano tem na modulação do clima, torna-se imperativo e inadiável fazer um fortíssimo investimento na compreensão
do funcionamento do sistema oceânico do planeta. Saber como se geram e circulam as correntes, o que as afecta. Como se relacionam as mudanças na salinidade e na acidificação dos oceanos
e qual o impacto nos recursos vivos. Saber em
que medida, ou até que ponto, o oceano absorve o CO2 que expelimos. Precisamos igualmente de saber mais sobre os processos químicos e
químico-biológicos que se desenrolam no oceano, para assim os conhecer melhor.
Ou seja, o oceano – o seu conhecimento – é,
pois, uma munição-chave no combate às alterações climáticas. Na realidade, o oceano contribui simultaneamente para o desenvolvimento das suas causas e sofre particularmente com
os seus efeitos. Pelo degelo dos pólos, os oceanos alteram a sua salinidade e o funcionamento das suas correntes, que por sua vez podem
vir a alterar o clima atmosférico de vastas regiões do mundo. Pela subida da temperatura da
água, pela acidificação e pela subida do nível
do mar, os oceanos sofrem os efeitos das alterações climáticas e através deles nós também
sofremos. Sofremos com a diminuição da biomassa, com a escassez dos recursos vivos ma-
rinhos, com as invasões de algas tóxicas e com
a erosão costeira.
Neste sentido, a estreita interligação que existe entre o sistema oceânico e as alterações climáticas irá determinar no futuro uma maior
importância dos oceanos. Isto torna-se ainda
mais claro quando lemos o discurso que proferiu a ministra dos Assuntos Estrangeiros
britânica, Margaret Beckett, em Berlim, no
Outono de 2006:
“The basic science of climate change is no
longer in dispute. But what we have been
hearing over the past weeks and months is
that the scale and urgency of the challenge
we face is worse than we had feared”.
… “Now we must make climate security
one of Europe’s greatest priorities. That
is why I have put Europe at the heart of
my strategy on climate change. It is why at
Lahti European Leaders clearly stated that
the EU had to be strong leaders in tackling
climate change”… “The greatest security
threat we face as a global community won’t
be met by guns and tanks. It will be solved by investment in the emerging techniques of soft power – building avenues of
trust and opportunity that will lead to a
low-carbon economy.”
O que isto significa é que estamos a acordar
– talvez de forma um pouco abrupta – para um
novo e formidável desafio. O desafio das alterações climáticas em que as zonas costeiras da Europa e os seus oceanos e mares estão directamente implicados e por ele são afectados. Para
lhe fazer face vai ser preciso uma nova aposta na
investigação científica que permita juntar esforços e recursos de vários países europeus. Por
isso se escreve no Livro Verde sobre uma Futura
Política Marítima para a União Europeia que:
“Urge conceber uma visão para a investigação sobre o meio marinho na Europa,
a fim de elaborar uma estratégia que permita tirar o melhor partido dos programas-quadro e de outras fontes de financiamento na Europa, evitar duplicações,
colmatar lacunas e criar sinergias. Essa estratégia deveria incluir mecanismos que
permitissem optimizar a coordenação, a
cooperação e o diálogo entre a Comissão
e os decisores políticos, o sector e as co-
39
40
munidades científicas nos Estados-Membros e nos países terceiros.”
Voltando ao presente, que relevância pode
ter para os países, para as organizações e para
os cidadãos da União Europeia a iniciativa da
Comissão de lançar uma política marítima para
a Europa?
Sem entrar pelo conteúdo do Livro Verde,
que teve por fim lançar um debate na Europa
sobre a importância estratégica e económica
dos oceanos e mares7, limito-me a comentar o
alcance desta iniciativa política. Para os países
costeiros da Europa, e por maioria de razão
para os países mais periféricos, é evidente o
interesse geopolítico de um projecto da Comissão que se focaliza nos seus oceanos e
mares. É a primeira vez em 50 anos de história da União Europeia que os oceanos e mares
são objecto no seu todo da atenção das várias
instituições europeias.
Assim, subsequentemente à Comissão também o Comité das Regiões se manifestou já
sobre o Livro Verde e sobre o projecto da política marítima, endossando-o entusiasticamente. Para as regiões marítimas da Europa,
entre outros interesses, faz-se notar a necessidade da criação de um fundo costeiro que permita responder aos desafios destas regiões.
Para além deste também o Comité Económico e Social se debruçou sobre a política marítima, igualmente aplaudindo o seu conteúdo.
O Parlamento Europeu, por sua vez, nomeou
um relator para elaborar um relatório sobre o
Livro Verde a apresentar em Julho de 2007. A
iniciativa da Comissão foi também muito
aplaudida pelos presidentes dos comités parlamentares especializados que se relacionam
com os oceanos e mares. Finalmente, o Conselho, formado pelos Estados-Membros também já se pronunciou, convidando à participação na consulta pública do Livro Verde, nas
conclusões do Conselho Europeu de Junho
de 2006, e fazendo informalmente, através da
Presidência Finlandesa, uma apreciação positiva dos temas em debate.
A nova abordagem aos assuntos e à governação do mar, e a atenção particular e concreta que
lhe está a ser devotada pelas instituições europeias constitui, por isso, uma franca janela de
oportunidade para stakeholders e Estados-Mem-
bros, que não deverá ser desaproveitada. Como
todas as oportunidades, trata-se de uma oportunidade única. Não aconteceu nos 20 anos
anteriores nem irá acontecer nos próximos 20.
Mas está a acontecer agora, em 2007.
Os Estados-Membros, em particular, têm o
papel principal a desempenhar neste processo
que, na segunda metade do ano se intensifica,
com a adopção, em Outubro, pela Comissão,
do pacote da política do mar.
Portugal, que assegura a Presidência da União
nesse período, tem uma oportunidade flagrante de contribuir activamente para a construção
europeia num domínio – atrevo-me a dizer –
que lhe é vital e de que pode retirar inúmeras
vantagens. Como consta do Relatório da Comissão Estratégica dos Oceanos:
“[…] a exiguidade do território terrestre e
os limitados recursos naturais nele existentes, por um lado, e a vastidão do Mar
sob jurisdição nacional, por outro, são argumentos suficientes para Portugal investir verdadeiramente na gestão e exploração
efectiva das amplas áreas marítimas que se
encontram sob a sua jurisdição.”
Concluindo, o paradigma do desenvolvimento sustentável, consagrado internacionalmente
na última década do século XX, vai conjuntamente com o desafio das alterações climáticas
condicionar fortemente todo o contexto político do século XXI. Esse paradigma, que os
poderes públicos continuam a almejar implementar, veio alterar radicalmente a percepção que
se tinha dos oceanos. Estes, não só pelas suas
múltiplas potencialidades e usos, extremamente relevantes para a competitividade da economia, para o seu crescimento e para o bem-estar
da humanidade, mas também pela destruição
acelerada do ambiente marinho, têm vindo a
ganhar uma importância sem precedentes aos
olhos da comunidade internacional e, em particular, dos países costeiros.
Por isso, conforme temos vindo repetidamente a sustentar, afirmamos que uma boa
governação das zonas marítimas sob jurisdição
nacional, pelos respectivos países costeiros,
constituirá sem dúvida um trunfo importante
para o progresso futuro das nações.
Neste quadro, desenvolver e interiorizar uma
nova abordagem aos oceanos e mares, bem
como reconhecer o seu exacto valor deve ser,
para a Europa, mais do que para outras regiões
do mundo, muito importante.
Portugal tem vindo a desenvolver alguma
massa crítica neste contexto, nomeadamente ao
estabelecer, através de sucessivos governos, a
Comissão Estratégica dos Oceanos, a Estrutura de Missão para o Levantamento da Plataforma Continental e a Estrutura de Missão para
os Assuntos do Mar. No final do ano passado
foi mesmo adoptada, em Conselho de Ministros, uma Estratégia Nacional para o Mar8.
Portugal tem igualmente desempenhado
junto da comunidade internacional, incluindo
na União Europeia, um papel de destaque na
área dos oceanos e mares.
Tal não significa, no entanto, que Portugal
tenha, de facto, decidido fazer uma opção fundamental de investimento no domínio dos
oceanos. Na verdade, esta opção só se materializará com um empenhamento profundo do
aparelho do Estado e uma adesão genuína da
sociedade no seu todo9.
Neste contexto, a iniciativa da Comissão
Europeia de lançar um debate sobre uma
nova política marítima para a Europa constitui um desafio e uma chamada clara. Os
cidadãos da União não acalentam dúvidas e a
opinião pública já se pronunciou em diversas ocasiões pelos valores e pelos interesses
que quer defender.
Pela minha parte, estou certo de que os Estados-Membros da União Europeia saberão ler
os sinais do tempo. Responderão positivamente
aos anseios da opinião colectiva e à chamada da
Comissão, participando activamente na elaboração de uma moderna política marítima europeia para o século XXI.
41
1
Vide o Relatório da Comissão Mundial Independente dos Oceanos, intitulado “The Ocean, our Future”, Cambridge University Press, p. 15. Esta Comissão funcionou entre o final de 1995 e 1998, Ano
Internacional dos Oceanos e data em que apresentou
na EXPO 98, em Lisboa, o seu Relatório. Foi composta por cerca de 46 personalidades independentes, provenientes de outros tantos países, e foi presidida por Mário Soares.
2
Idem p. 19.
3
Vide Revista Negócios Estrangeiros, n.º 3, Fevereiro de 2002, artigo do autor, “Oceanos e mares:
uma aposta nacional para o século XXI”, p. 205.
4
Vide o Relatório da Comissão Estratégica dos
Oceanos, “O Oceano: Um Desígnio Nacional para o
Século XXI”, Julho 2004.
5
Vide Livro Verde sobre uma Futura Política Marí-
tima para a União: uma Visão Europeia dos Oceanos e
Mares, COM (2006) 275, de 7 de Junho de 2006.
6
Tais objectivos de crescimento e reforço da
competitividade são o cerne da actual Estratégia de
Lisboa, que orienta toda a acção da Comissão Europeia, e que é focalizada no emprego e no crescimento económico.
7
Este documento pode ser consultado em: http:/
/ec.europa.eu/maritimeaffairs/index_en.html.
8
Publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 237,
de 12 Dezembro de 2006.
9
Note-se que a responsabilidade primeira cabe
aos poderes públicos que deverão ser capazes de
emitir para a sociedade os sinais necessários, sem os
quais os elementos, as organizações e as empresas
que a compõem não sentirão confiança nem estímulo para avançar.
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