Sangue e Glória A Marcha dos Dez Mil Por Antônio Augusto Fonseca Júnior 1 Agradecimentos Um agradecimento muito especial para a Daiane, sempre presente. Agradeço também ao Leonardo, Fuad, Tiago e Rubens pelas opiniões. 2 Personagens Agathe hilota a seviço de Calícrates Ariaeus general persa de grande renome a serviço de Ciro Ataxerxes II Grande Rei da Pérsia Calícrates jovem guerreiro espartano Callimachus capitão árcade sob o comando de Proxeno Clearco general espartano aliado de Ciro Cleônimus soldado da Lacônia sob as ordens de Clearco Ciro o Jovem príncipe persa Crisantos exilado milésio Faedro guerreiro espartano protetor de Calícrates Megafernes nobre persa espião de Tissafernes Melia grega milésia, concubina mais jovem de Ciro Menon general grego tessálio aliado de Ciro 3 Mitridates comandante persa aliado de Ciro Nikon guerreiro espartano amigo de Calícrates Orontas nobre guerreiro persa Proxeno general grego da Beócia, amigo de Xenofonte Seleukos arqueiro cretense Sohrab guerreiro persa a serviço de Orontas Sophia grega de Focéia, concubina mais velha de Ciro Tissafernes sátrapa da Pérsia, inimigo mortal de Ciro Xenofonte guerreiro ateniense, discípulo de Sócrates 4 Parte Um Marcha Gloriosa 5 Capítulo Um Alguns homens já viveram histórias de mudar o mundo. Outros só mudaram a história quando pararam de viver. Um rei que não se encaixasse na primeira opção, poderia muito bem se encaixar na segunda. Essa era uma grande verdade nos tempos de glória da Pérsia, império único, cujo exército era formado por tantas nações quanto o homem era capaz de listar e cujas lanças eram tantas que sua fabricação destruía florestas e esvaziava minas. Assim, quando o Grande Rei da Pérsia, Dario, estava para falecer, chamou seus filhos até ele. Um deles era Ciro o Jovem, governante íntimo dos gregos e preferido da rainha. O outro era Ataxerxes Mnemon, aquele que levava a preferência do Grande rei e que reteve o trono após a morte do pai. Ciro, que viajara tanto para ver o pai morrer sem lhe deixar nada além de palavras e o que já detinha, viu-se acusado por um de seus pares. Tissafernes, governante de uma das sataprias também próximas à Grécia, levantoulhe seu dedo magro e apontou cada suposto crime que o príncipe já cometera. Foi graças a coragem grega que Ciro voltou, pois esse persa aprendera com observação o que seus antepassados aprenderam com a morte. Os gregos eram mais do que guerreiros, eram a morte encarnada dentro de uma guerra, preparada para ceifar as vidas de soldados como se um exército fosse um campo fértil a ser arado imediatamente. Ciro sobreviveu com ódio no coração, disposto a mostrar a Tissafernes o que acontecia com quem ousava manchar a glória do sangue real da Pérsia. A rainha Parisatis protegeu seu filho amado e ajudou-o em sua caminhada de volta, onde reuniria forças para sua guerra, uma que arrastaria a vida de homens de inúmeras 6 nações e as tragaria para um abismo de morte, morte na areia quente do deserto e diante de portões reais. Foi assim que a morte de um rei inspirou desgraça sobre os gregos. E um deles foi Xenofonte o Ateniense. A carta que o chamava para a empreitada estava sobre a mesa. Ele coçava a barba enquanto observava com relutância aquelas letras. Proxeno o Beócio o enviara a missiva convidando-o para comparecer à corte de Ciro. Seria uma distração para uma mente perturbada por problemas dos mais variados, desde a inquietude da alma até a política conturbada de Atenas. Cruzou as mãos diante do rosto e apoiou a testa nelas, pensando no que faria. Os escravos caminhavam pela casa limpando e preparando o desjejum, enquanto seu senhor, que nem dormira, meditava. Nem percebia a agitação do recinto, muito menos o queijo, o pão e o vinho colocados diante dele. Era pouca comida e ele não se importava. Eram tempos difíceis para Atenas e Xenofonte não desperdiçaria nada de sua amada cidade. Viveria apenas com o que fosse necessário. Levantou-se e caminhou para fora da casa. Atenas começava a se movimentar. Não era mais o tempo das multidões caminhando para votar. Antigamente o Conselho dos Cinco Mil subia o monte Pnix para decidir o futuro da cidade. Debatiam, discutiam e por fim levantavam suas mãos para confirmar suas preferências sobre leis. De lá de cima, veriam a casa de Xenofonte, a ágora, o mercado e o centro urbano. O Ateniense suspirou pensando sobre o que fazer. Precisava se aconselhar sobre o assunto. Deixar Atenas não seria fácil. Era parte de sua integridade e de sua honra participar de toda a política da cidade, mesmo que nem sempre fosse aceito por suas preferências oligárquicas. Quem o aconselhou sobre o difícil assunto foi Sócrates. 7 - Pretende se aliar a Ciro o Jovem? – perguntou o homem. - Sim. Foi um convite de Proxeno. O que me deixa em dúvida é como serei visto em Atenas depois disso. Sócrates esfregou o queixo e olhou para o movimento que começava a se formar na ágora. Outras conversas tinham início, talvez algumas com a mesma dúvida de Xenofonte. Não era o único tentado a se juntar a Ciro, principalmente na conturbada Atenas do pós-guerra. - Ele escolheu o momento certo – disse Sócrates. Xenofonte pensou naquilo. Nunca a Grécia tivera tantos guerreiros quanto naquele momento, todos em busca de emprego. As cidades passaram quase 30 anos lutando entre si; o resultado disso foi a miséria se espalhando após tantos recursos serem gastos devido à intolerância do homem. A maioria das pessoas não sabia o que era paz. Xenofonte, aos 29 anos, não conhecera nem um tempo em que não houvesse notícias de batalhas ou sobre a morte de um parente pelas lanças de um inimigo. Poucos dos homens nascidos durante a famosa guerra entre Esparta e Atenas sabiam lidar com a paz miserável que surgira com o fim das hostilidades abertas. Agora os atenienses estavam dominados, com uma muralha tão despedaçada em volta de sua cidade quanto seu orgulho em volta de seu coração. Os guerreiros não tinham contra quem lutar. Alguns inventavam batalhas, outros criavam jogos políticos, a maioria tentava retomar a vida e entender de novo o que era a paz que seus avós contavam que um dia existira. - Consulte o Oráculo de Delfos. Ninguém melhor do que os deuses para lhe aconselharem sobre isso. Eu sou só um homem e minha opinião é limitada por meu coração e pelo que vejo. Eu nada sei. Os deuses vêem tudo. 8 Assim Xenofonte partiu para Delfos e lá perguntou ao deus Apolo a quem ele deveria fazer sacrifícios para que sua jornada fosse segura e que voltasse com boa fortuna. Recebeu os conselhos e assim voltou para casa. - Ah, a ignorância da juventude. Ao menos a dedicação e a modéstia são suas virtudes – disse Sócrates quando o amigo contou-lhe sobre a viagem. - Não entendo. - Deveria ter perguntado se deveria partir ou não. Já perguntou aos deuses como deveria fazer a viagem. Eles lhe deram a resposta segundo a afirmação de que você já decidira ir. Seu coração lhe entregou ou os pensamentos nublados o traíram. Xenofonte sorriu. Era a mais pura verdade. Enganara a si mesmo com aquela pergunta. - Pois agora vá. Já disse aos deuses que iria e será muita desfeita da sua parte tê-los incomodado com uma falsa decisão. Xenofonte reuniu tudo o que precisava e partiu para encontrar o amigo Proxeno para a pior jornada de sua vida. ***** A miséria é a parceira eterna do homem. Nasce com ele, enxergando antes a luz do sol e o acompanha. Segue seus rastros como um cão farejando o solo e deixando pegadas fiéis. Também está a sua frente quando menos espera, em um serviço contínuo para tornar o mundo um perfeito reflexo da mente humana. Assim o homem carrega a miséria consigo, seja como acompanhante no mundo que o envolve ou sussurrando em suas mente novos modos de encontrá-la em sua face exterior. 9 Assim começou uma história que parecia glória, mas que na verdade era um conselho da miséria, que atiçou a ambição e o orgulho. O orgulho, por sinal, era parte integrante de uma alma jovem que aprendeu o que é sofrimento, mesmo depois de ter passado uma vida toda experimentando algo que já pensava, com todas as forças, merecer esse título. Seu nome era Calícrates, filho de lacedemônios, filho de Esparta, filho da guerra, filho da perseguição. Nasceu em fúria, cresceu cercado por medo e cultivou a ira. Completara 22 anos há pouco e tinha dificuldades para marcar os dias de sua vida em que não passara pensando em guerra, exercitar-se ou vingar-se. Enquanto não tinha condição de realizar a última opção, utilizava toda a força de sua frustração em métodos que envolviam melhorar seu corpo e sua habilidade para um futuro de morte. Outra batalha estava diante dele, surgindo após sua intensa procura pela ação e pelo sangue. Podia chamar de uma operação de vingança. Estava em um morro próximo a Chersonesos, colônia grega agora ameaçada pelos trácios. Calícrates não tolerava aquela ousadia. Os antepassados de Chersonesos haviam tomado aquele lugar com todas as suas forças e ali vivido há séculos. Agora os trácios, meros bárbaros, queriam retirar dali um povo que nascera para governar. Gregos. Esse era o nome desse povo. E acima deles só existiam os espartanos. O restante do mundo era feito de bárbaros, filhos da miséria, que chafurdavam no caos que ela deixava. Aqueles bárbaros haviam se juntado a Atenas durante a Guerra. O general ateniense, Alcibíades, conseguira a aliança daquele povo e os usou em batalhas decisivas contra Esparta. Aquilo fazia Calícrates ter ainda mais vontade de combater aqueles homens. 10 - Calícrates – alguém chamou. Ele não olhou para trás. Não era seu hábito. Sabia que quem chamara já estava subindo a colina para se colocar a seu lado. – Clearco chama. O jovem espartano cruzou os braços sob a capa vermelha. Acabara de ouvir o único nome que respeitava e temia, aquele que poderia chamar de pai tanto pela intensidade que o amava quanto pela força com que o odiava. Seus olhos cor de cedro apontaram para a vila de Chersonesos. Os trácios estavam se movimentando para entrar em formação. Sabiam que Clearco de Esparta estava ali e já deveriam estar tremendo. - Amanheci com a alma manchada por ódio mais uma vez, Faedro - disse o filho de Esparta para o companheiro. - Então a lave com o sangue deles. Calícrates olhou de soslaio para o outro guerreiro. Seus olhos eram como dois escudos rebatendo quaisquer palavras que pudessem tocar sua alma. Aquelas atravessaram a defesa, pois ele sorriu. Os dois eram diferentes. Calícrates era aquele do sangue perfeito, descendente de heróis e deuses. O brasão de seu escudo não era apenas o lambda de Esparta; sob ele estava a serpente, drakon, símbolo de Ares. Seus cabelos negros terminavam em um rabo de cavalo preso por fios dourados e a espada era marcada com símbolos de honra e glória de muitos antepassados. Não usava barba e o rosto tinha apenas uma única marca, a de um pequeno corte na têmpora esquerda. Faedro era diferente. O rosto era largo, com um nariz grande um pouco torto devido a muitas brigas nas ruas. Havia uma cicatriz descendo na face esquerda, logo abaixo de seu olho esverdeado. O corpo tinha marcas de chicotadas e facadas. Sua carne era um monumento ao 11 sofrimento físico. Sua alma era uma obra prima da honra e da bravura. Era o puro exemplo de Esparta em vestimenta, fosse pela capa vermelha, pela ausência de adornos e futilidades ou pelo lambda desenhado no escudo. Calícrates virou-se e começou a descer a colina para se encontrar com o único que lhe dava ordens, Clearco. Já de longe via o homem supervisionando os guerreiros gregos, os hoplitas. Aqueles soldados portavam grandes escudos e lanças; eram a infantaria pesada do exército. Eram a força da falange, que lutava unida. Cada um carregava mais de trinta quilos, boa parte deles apenas no escudo, na lança e na espada curta. Os hoplitas que serviam a clearco eram em sua maioria lacedemônios, nascidos e criados na região grega dominada por Esparta. Dentre eles, haviam os espartanos, legítimos cidadãos treinados na arte da guerra desde a infância. Respiravam a guerra e expiravam morte. Calícrates parou entre eles e um escudeiro entregou-lhe seu escudo e sua lança pesada. Agora era mais um dentre muitos. Um entre irmãos. À esquerda estava um quarto de sua vida, a qual protegeria a todo custo. À direita estava mais um quarto, que o protegeria a todo custo. No centro estavam os outros dois quartos, que matariam sem cessar. Faedro tomou à direita de Calícrates. Ouviram Clearco gritar: - Gregos! Vocês são gregos! Não precisam de outra motivação para vazar os corpos desses trácios e impedir que eles tomem as terras de quem tem o mesmo sangue de vocês. Vocês vão lutar e vão matar. Não hesitem, pois cada hesitação poderá custar a vida de uma família que aqui vive. O homem ao lado de Calícrates fez uma crítica contra as palavras de incentivo e as respostas animadas 12 dos outros hoplitas mercenários que estavam atrás deles. Foi calado quando o filho de Esparta o cutucou com o escudo. Não era uma tarde para uma das brincadeiras de Nikon. Clearco voltou com aqueles olhos de grande felino. A fera parecia ter farejado insubordinação. Parou em frente aos homens, sem se importar quem eram, apontando-lhes o brilho dos olhos negros. Então virou-se, a capa vermelha e os cabelos longos esvoaçando com o vento que subia a colina trazendo o cheiro de suor dos trácios. - Sintam esse cheiro. É o cheiro de medo que vem de um sangue selvagem que hoje vocês derramarão! Um escravo trouxe o escudo e a lança do general e ele se colocou na parede de escudos. A falange estava formada. Mil guerreiros gregos. Mil hoplitas divididos em companhias começando a marchar com passos firmes, descendo a colina. Seguiam sob ritmo da música, acompanhando os passos um do outro. Clearco cuidava para que a formação não se desfizesse. Os gregos poderiam ter esperado em território superior, mas os trácios nunca subiriam. Apenas debandariam e esperariam para atacar quando menos se esperasse. Clearco resolveu lhes dar tempo para que se reunissem como haviam feito nos últimos três dias, apenas atiçando os gregos e depois sumindo. Agora, quando haviam entrado em formação diante da cidade, estavam presos. Seriam forçados a lutar enquanto esperavam criar uma armadilha. Os gregos desceram em formação. Alguns homens se empolgavam com a batalha ou eram tomados pelo nervosismo. Tentavam correr. Os líderes das companhias, enomotarchoi, continham-nos. Ainda não era a hora. 13 Os trácios esperavam, gritando impropérios em sua língua bruta e levantando as armas sujas de sangue de outros gregos ou de soldados que haviam capturado em armadilhas nos dias anteriores. Batiam espadas e lanças nos escudos, incitando os gregos para uma corrida. Clearco gritou para todos se conterem. As lanças começaram a ser baixadas, mas ninguém correu. Ainda não era a hora. A marcha continuou lenta, apenas com o som de escudo batendo em escudo e o tilintar das armaduras. A música continuava, marcando os passos. Finalmente os advinhos sacrificaram um animal para Ártemis, protetora de Esparta, e então os gregos investiram, lanças baixadas apontando para o inimigo. O general gritava para manterem a formação. A vanguarda avançava corajosamente. A retaguarda incitava todos a seguirem em frente. Quem temeu, foi empurrado. Vinham depressa, mas Clearco gritava com toda força para se manterem como uma muralha de ferro, bronze e madeira. Assim eles obedeciam na expectativa do choque. As primeiras lanças dos trácios foram arremessadas. Escudos foram erguidos sem que a corrida parasse. Nenhum guerreiro foi atingido, apenas o som de pontas de metal rebatendo nas proteções. Os trácios sabiam que os gregos estavam chegando para matá-los. Aqueles que vinham eram espartanos com o lambda da Lacedemônia pintado no bronze do escudo. Quem os liderava era Clearco de Esparta, homem considerado implacável até mesmo pelos soldados lacedemônios, aquelas cuja bravura e dureza resistiam a tudo. Não deveria haver batalha. Os gregos se cansariam após serem mortos individualmente em emboscadas e depois sumiriam. Foi o que tentaram fazer, mas ao virarem para sua direita viram a cavalaria se aproximar. 14 Arrependeram-se por não terem trazidos seus próprios cavalarianos, essência de seu exército. A idéia da armadilha não fora das melhores. Uma parte do exército de Clearco se destacou e cobriu a ala esquerda. Naquela velocidade alcançariam facilmente os trácios. Alguns adversários tentaram correr para os muros de Chersonesos, mas a maioria teve a hombridade de ficar e colocar as armas em riste. Aqueles eram trácios, povo do vento e do fogo, que tinham a coragem de nascer no meio da violência e da matança. Mostrariam aos gregos que morreriam lutando e ainda levariam alguns deles para as profundezas. Assim a maioria deles esperou pelo impacto, quando os escudos e lanças gregos bateriam em seus braços. Alguns se mantiveram por falta de alternativas, outros impulsionados pelo fervor dos companheiros. Aqueles que ficaram por pura coragem foram os primeiros a morrer, mas se foram gloriosamente. Calícrates acompanhou toda a corrida quase sem respirar, tomado pelo fervor da batalha. Sua força contagiava os companheiros. Sua expectativa era tanta que mordia os lábios para conter os brados de guerra. O pobre trácio que o encarou o fez com coragem. Tentou firmar sua lança para atingir os pés do espartano, porém Calícrates já conhecia aquele ataque. Moveu os pés como se dançasse em um festival para a morte. Golpeou com a lança, sem que o escudo pequeno do trácio pudesse defendê-lo da ponta de metal que visitou suas entranhas como um ladrão que carregou de volta a vida e o sangue do guerreiro. O som do trovão se espalhou entre as fileiras quase que igualmente. Foi uma onda batendo contra uma parede de tijolos soltos que não resistiu à violência da maré espartana. O choque dos metais ecoou seguido por gritos e 15