PRODUCAO SOCIAL DO HABITAT: Estratégia dos excluídos para a conquista do direito à cidade e à moradia1 Prof. Dr. Luis de la Mora Comunidade Interdisciplinar de Ação, Pesquisa e Aprendizado Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano. UFPE Acumulação capitalista e exclusão urbana Ao considerar a cidade como uma simples mercadoria, a sociedade capitalista produz intrinsecamente a exclusão social, a segregação espacial e a destruição do patrimônio natural e cultural da presente e das futuras gerações. Nesse sentido, o Prof. Chesnais2 atribui ao processo de acumulação do capital comandado pelo capital financeiro a responsabilidade pelo caos urbano instalado e crescentemente agravado nas cidades do mundo, manifestado visivelmente pela segregação espacial, a favelização e deficit qualitativo e quantitativo de habitações, principalmente nas grandes cidades. Por sua vez, a Profa. Ermínia Maricato3 nos lembra que a produção informal do habitat constitui uma componente importante do crescimento das cidades latino-americanas. O deficit permanente decorre da subordinação da política urbana e habitacional aos interesses do capital. Já o Prof. Pedro Abramo4 descreveu as três lógicas que se sobrepõem na produção da cidade difusa ou da cidade compacta: a Lógica do Mercado, seja ele formal, seja informal; a Lógica do Estado, por meio da produção maciça de conjuntos habitacionais verticalizados, privilegiando a rapidez e a quantidade da construção, com algumas ações direcionadas para a urbanização dos assentamentos e o melhoramento das habitações; e, finalmente, a Lógica da Necessidade dos enormes contingentes de excluídos que se vêem constrangidos a ocupar as periferias, consideradas no sentido social e urbanístico, não necessariamente geográfico, com processos acentuados de verticalização, fragmentação dos lotes e ocupação intensiva dos assentamentos. Para encontrarem um lugar na cidade, e não serem condenados a se instalar “de Macacos pra lá!”5, os excluídos contam com uma única estratégia, a organização popular para exercer pressão cidadã, por meio dos movimentos sociais, como mencionou o prof. Aecio Gomes de Matos. 6 As quatro formas de produção do habitat A partir das proposições dos conferencistas que me antecederam, é possível identificar quatro formas diferentes, porem interdependentes e complementares de produção do habitat. 1. A produção empresarial do habitat 1 Publicado in: Novos Padrões de Acumulação Urbana na Produção do Habitat. Olhares Cruzados Brasil - Frnça. Editora Universitária, UFPE, 2010 2 Palestra pronunciada pelo Prof. François Chesnais, professor emérito da Universidade Paris-Norte em Villetaneuse, na abertura deste colóquio. 3 Palestra pronunciada neste colóquio pela Profa. Ermínia Maricato, professora titular e presidente da Comissão de Pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e membro do Conselho de Pesquisa da USP. 4 Palestra pronunciada neste colóquio pelo Prof. Pedro Abramo, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 5 Expressão do Interventor Agamemnon Magalhães (1893 – 1952), criador da Liga Social contra o Mocambo, referido-se aos mocambeiros, que se não tinham condições de morar em habitações higiênicas deveriam morar de Macacos pra lá (vilarejo situado nos limites do município do Recife) 6 Palestra pronunciada neste colóquio pelo Prof. Aecio Gomes de Matos, professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco. 1 A produção empresarial do habitat é regida pelas leis do mercado, baseada na lógica da rentabilidade para permitir a acumulação ampliada do capital. Para constituir uma demanda solvável no mercado imobiliário, as famílias devem enfrentar com sucesso o Mercado de Trabalho. O sucesso vai depender, por uma parte, da existência de oportunidades de trabalho, decorrente da dinâmica econômica da sociedade, e, por outra, da base educacional e formação profissional dos trabalhadores. Como essas duas dimensões não registram um desempenho qualitativa e quantitativamente suficiente, o número dos excluídos do mercado de trabalho explica a sua exclusão do mercado imobiliário. Assim, terão acesso ao habitat com qualidade suficiente aquelas famílias de alto e médio padrão social, que inseridas adequadamente no mercado de trabalho, dispõem dos meios suficientes para aceder ao mercado imobiliário, quase sempre mediante créditos imobiliários de banco oficial ou privado. Já as famílias com níveis de renda médio baixo ou baixo, terão de recorrer à produção estatal do habitat. 2. A produção estatal do habitat Similar ao mercado imobiliário do processo de produção empresarial do habitat, existe na esfera governamental um mercado político, constituído, por um lado, pelo volume da oferta de unidades habitacionais mediante programas financiados por banco oficial e pelo orçamento geral da União, pelas políticas urbana e habitacional instituídas de forma compensatória para assegurar o direito à cidade e à moradia estipulados na Constituição Federal, e por outro, pela demanda da população que, a depender da sua força política, vai constituir uma “demanda solvável” no campo das políticas públicas. Assim como o lucro e a rentabilidade do empreendimento era a base da lógica da produção mercantil do habitat, no caso da produção estatal do habitat, a visibilidade e o potencial eleitoral dos programas é que vão determinar a efetivação ou não de determinados programas e projetos. Na nossa experiência, chegamos a ouvir de um gestor municipal a seguinte explicação para a interrupção de um programa de melhorias em 170 unidades habitacionais espalhadas em nove favelas consolidadas como ZEIS: o fato de serem pequenas intervenções dispersas em diversos locais não oferecia a necessária visibilidade ao projeto. Os programas governamentais utilizam a expressão “Habitação de Interesse Social”, mas diante da lógica subjacente às políticas governamentais, pensamos que poderia ser mais bem conceituada como “Habitação de Interesse Eleitoral”. O perfil político do governo e o balanço dos seus compromissos com diferentes setores da população: capital imobiliário e populações excluídas - vão determinar a conotação do leque das políticas urbanas e habitacionais: como estimulo à acumulação do capital e consequentemente a dinamização da indústria da construção civil e do mercado imobiliário, e/ou programas com maiores subsídios técnicos, fundiários e financeiros para facilitar o acesso à moradia e ampliar o volume das famílias incluídas. Os produtos dos programas habitacionais de interesse social priorizam a rapidez e a quantidade em detrimento da qualidade. Suas soluções arquitetônicas e urbanísticas são geralmente inadequadas, porque não são orientada pela lógica da necessidade, e sim pela lógica da legitimidade. Ao produzir habitações “para” os excluídos e não “com” os excluídos, esses programas são agressivos à cultura e à organização social das famílias e comunidades, e seus resultados financeiros são desastrosos, medidos pelo alto grau de inadimplência ou pela destruição do patrimônio imobiliário concebido e concedido 2 pelo Poder Público. 3. A produção espontânea do habitat A lógica da necessidade evocada acima faz com que as famílias excluídas do mercado imobiliário e das políticas compensatórias da Habitação de Interesse Social procurem nos interstícios da urbanização formal locais de escasso valor fundiário, em decorrência da localização: distante, em encostas ou áreas inundáveis. As casas são construídas pela própria família, parentes e amigos, que utilizam como materiais de construção elementos reciclados ou de baixa qualidade. A união e a solidariedade familiar e comunitária estão presentes nesses processos de produção espontânea do habitat, os quais respondem por mais ou menos 60% do parque habitacional das grandes metrópoles brasileiras. O acesso aos serviços urbanos é diversificado. O acesso formal à energia elétrica, mesmo na presença de algumas ligações clandestinas, é bastante generalizado, chegando a quase 100% das unidades com ligação à rede elétrica. O abastecimento de água é geralmente resolvido com ligações regulares à rede pública de distribuição, atendendo a 60, 70% dos domicílios. O restante faz uso de poços e chafarizes mediante a clássica “lata d’água”. Graves mesmo são as condições de esgoto sanitário e coleta de lixo. Não é de estranhar os altos índices de morbidade e mortalidade em decorrência de doenças infecto-contagiosas nos assentamentos ocupados pela população de baixa renda. O espetáculo do esgoto correndo pelas sarjetas, a céu aberto, a lama fétida que se forma nas ruas, são recorrentes nestes assentamentos. A produção espontânea do habitat, por meio da qual a iniciativa e o protagonismo das famílias conseguem apenas garantir o acesso ao solo, a uma habitação de dimensões e qualidades construtivas precaríssimas, desprovida de instalações hidráulicas, sem serviços de esgoto e coleta de lixo, distante dos corredores do transporte público, sugere-nos o desleixo das políticas públicas com a consequente ausência dos serviços urbanos básicos. Essa é a produção do habitat possível, é o habitat construído “pelos” excluídos. A produção espontânea do habitat é mais conhecida pelo termo “habitação popular”, é produzida de acordo com os valores culturais dos usuários e também em função das suas capacidades. O seu produto é caracterizado pela precariedade. É preciso articular as políticas urbanas às políticas habitacionais, na base de programas que conciliem a participação ativa dos usuários na cogestão dos programas habitacionais com a articulação interinstitucional das políticas públicas: Políticas Urbanas e Políticas Sociais Básicas. 4. A produção social do habitat A participação protagonística dos usuários e a articulação interinstitucional constituem a essência da quarta modalidade: a produção social do habitat. Essa modalidade se constrói mediante a síntese dialética das modalidades estatal e espontânea. A produção social do habitat não disputa espaço com essas duas modalidades incompletas. Ao sintetizar a energia das famílias e comunidades, com a determinação do Poder Público de agir de forma articulada, ela as completa. A produção social do habitat constitui uma especificidade das políticas públicas. Assim foi deliberado pelo Conselho Nacional das Cidades, e assim é reconhecido pelos administradores e dirigentes políticos democráticos. A produção social do habitat viria ser uma nova modalidade em que as lideranças dos movimentos sociais e os representantes de grupos de famílias se articulam com a Caixa Econômica Federal, empresas 3 estaduais de habitação, Prefeituras, empresas distribuidoras de energia elétrica e água e coletoras de resíduos sólidos e líquidos, para produzir socialmente o habitat junto “com” os excluídos, empreendendo processos de cogestão, em que as decisões em todos os níveis sejam tomadas levando em consideração os aspectos culturais, sociais, organizacionais, ambientais das famílias e dos locais, assim como as restrições urbanísticas, legais, tecnológicas e financeiras do sistema de gestão urbana. A afirmação do antigo arcebispo de Olinda e Recife: “Não acredito em desenvolvimento que não seja conduzido pelo povo”, expressa com contundência os fundamentos da produção social do habitat. As políticas e os programas habitacionais, numa sociedade democrática, devem ser conduzidos pelo povo, num processo de cogestão com as organizações governamentais e não governamentais que se disponham a efetivamente atuar “com” e não “para” o povo. “nâo acredito em desenvolvimento que não seja conduzido pelo povo” D. Helder Camara O próprio Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, nos ensinava que trabalhar “para” o povo era reproduzir a dependência e a subordinação. Trabalhar “com” o povo é construir a cidadania. 5. Antecedentes da produção social do habitat A cidade do Recife tem sido, ao longo da sua história, talvez em decorrência das suas profundas desigualdades sociais e a precariedade do habitat construído, o cenário de medidas antecipatórias muito importantes para a democratização das políticas públicas e do direito à cidade e à moradia. Em 1924, o médico sanitarista Amaury Medeiros, Diretor do Departamento de Saúde e Assistência do Estado de Pernambuco, sintonizado com as medidas sanitárias que vinham sendo implantadas no Brasil para erradicar das cidades focos de infecção, criou, em 1924, a Fundação da Casa Operária, para erradicar os mocambos que nessa época representavam 46% do total das unidades habitacionais do Recife. Com essa finalidade, construiu as vilas do Arraial, da Torre e de Afogados, colocando o Recife à frente das cidades brasileiras com programas destinados à erradicação dos mocambos. Depois da Revolução de 1930, Agamemnon Magalhães, interventor no Estado, resolve-se acabar com os “males que atravancavam o progresso”, entre os quais colocava os mocambos recifenses, criando primeiro a cruzada e depois Liga Social contra o Mocambo, a que destrói 13 mil mocambos e constrói 7 mil casas, com a intenção de limpar a cidade das imundices. Trinta anos depois e num contexto radicalmente diferente, o governador Miguel Arraes, entre 1963 e 1964, desenvolveu o projeto de assentamento das famílias que tinham ocupado terrenos nos Montes Guararapes, o que provocou a reação do Exército, que pretendia simplesmente expulsá-los. O governador Arraes desapropriou um terreno pertencente à Ordem do Carmo, encomendou a um dos mais notáveis arquitetos modernos do Recife, o prof. Borsoi, para elaborar o projeto urbanístico e construtivo, e implantou um programa social considerado um paradigma de participação popular e uma aproximação entre o modernismo e o vernacular na arquitetura, no clima político da Frente do Recife e como expressão social do Movimento de Cultura Popular. O movimento militar de 1964 interrompeu o projeto, por considerá-lo subversivo. 4 Na mesma linha e formando parte do processo de democratização do país, o movimento Teimosinho, liderado pelos jovens da ocupação de Brasília Teimosa, em 1978, recusa a proposta do governo do Estado e da Prefeitura, pelo qual as famílias seriam indenizadas e deveriam deixar o local para permitir a construção de um ambicioso projeto urbanístico residencial e de turismo e lazer de alto luxo. A resistência popular, com o apoio de entidades de classe, como a OAB, IAB, universidades e principalmente da Igreja Católica dirigida por Dom Helder, através da Comissão de Justiça e Paz, forçou as autoridades a aceitar a cogestão na elaboração do que viria a ser o Projeto Teimosinho, destinado à regularização fundiária e a melhorias habitacionais e urbanísticas, com a participação ativa da comunidade por meio de assembléias, grupos de teatro e sessões de trabalho conjunto, com técnicos, assessores do movimento e as próprias lideranças do bairro. Esse processo manifesta claramente as características do que estamos chamando na atualidade de produção social do habitat. Em 1983, a Prefeitura do Recife elabora e faz aprovar pela Câmara Municipal a Lei de Uso e Ocupação do Solo, que instituiu 29 Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que eram favelas consolidadas e seriam objeto de intervenções de regularização fundiária e urbanística. A Comissão de Justiça e Paz organizou discussões com as lideranças dessas 29 áreas para elaborar um anteprojeto que viria a ser acolhido pelo primeiro prefeito eleito da cidade depois do regime militar e aprovado pela Câmara Municipal em 1987, o qual continha parâmetros e procedimentos para a regularização urbanística e fundiária, bem como o mecanismo de gestão democrática e articulada do programa, envolvendo lideranças comunitárias, técnicos da Prefeitura, assessores técnicos de ONGs. Para nós, o PREZEIS constitui uma iniciativa claramente enquadrada na produção social do habitat, porque reúne suas duas condições essenciais: a participação popular e a articulação interinstitucional. No ano 2000, 42% da população recifense (590 mil habitantes) residia em 150 mil domicílios situados em Zonas Especiais de Interesse Social, o que demonstra a extensão do fenômeno da produção social do habitat na nossa cidade. Os militantes pela Reforma Urbana no Recife tiveram conhecimento, pela primeira vez, do conceito de produção social do habitat, no Seminário Internacional realizado em outubro de 2001, na cidade de Montevideu, com um título nitidamente revolucionário de "Produção Social do Habitat e Neoliberalismo: o capital do povo versus a miséria do capital". Nesse seminário, os participantes criticam as posturas assistencialistas dos governos, exigem uma ação mais decisiva para assegurar o direito à moradia, aprofundam o conceito de produção social do habitat, e encomendam à Coalizão Internacional do habitat na Secretaria Regional do México a sistematização das experiências de produção social do habitat na América Latina para tornar mais visível a proposta, que foi discutida nas sucessivas sessões do Fórum Social Mundial. Mais próximas de nós, em novembro de 2006, na cidade de São Paulo, a ONG Habitat para a Humanidade, promoveu juntamente com a Coalizão Internacional do habitat, Habitat Nações Unidas, o Fórum Nacional de Reforma Urbana, O Ministério das Cidades, a Caixa Econômica Federal, vinte universidade, mais de trinta prefeituras, movimentos nacionais de luta pela moradia, o Seminário Internacional Produção Social do Habitat, estratégias organizativas para a eliminação da moradia inadequada no contexto da América Latina. Na Carta de São Paulo, os participantes reconhecem que mesmo que o conceito de produção social do habitat tenha mais de trinta anos como prática e construção conceitual, nessa oportunidade, porém, sua vigência se reforça desde a perspectiva do direito à moradia e à cidade, como parte constitutiva dos Direitos Humanos, e à realização de uma vida digna para todas e todos. Destaca-se a implicação, protagonismo e capacidade propositiva dos habitantes como eixo central das decisões e ações que configuram seu habitat. 5 Foi debatido como o constante crescimento da população urbana e particularmente dos assentamentos informais na América Latina nos chama a desenvolver políticas mais integrais numa relação indissolúvel com as políticas urbanas, do solo e demais políticas sociais que envolvam os diferentes atores que constroem as cidades. Tudo isso demanda uma decidida ação do Estado, brindando novos marcos regulatórios, sistemas de financiamento e espaços de concentração e controle social com um adequado acesso à informação, como a geração de instrumentos de promoção que favoreçam o acesso à cidade e à moradia com um ativo protagonismo dos habitantes. Por fim, subscrevem a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, a qual tem como princípios básicos o exercício pleno da cidadania, a gestão democrática das cidades e a função social da propriedade e da cidade. Acordaram desestruturar os paradigmas tradicionais de formação de profissionais nas universidades e de atuação nos organismos de planejamento, financiamento e implementação de programas habitacionais. Reafirmaram o compromisso de contribuir para eliminar as barreiras (institucionais, burocráticas, financeiras, tecnológicas e jurídicas) que impedem o acesso à moradia digna a grande parte da população da América Latina. 6. Significado da produção social do habitat 7. A produção social do habitat implica: a) Produção um processo de produção que utilizar insumos: terrenos, materiais, mão de obra, tecnologia, etc. procedimentos peculiares de trabalho coletivo, protagonizado pelos usuários, mas articulado com os parceiros governamentais e não governamentais. Esperar resultados arquitetônicos, urbanísticos, ambientais, sociais, econômicos, políticos, culturais, compatíveis com a construção da cidadania e a superação das situações multidimensionais da exclusão. b) Social A produção social implica ações coletivas baseadas na solidariedade. A organização do espaço físico só pode ser atingida e conservada de forma sustentável com a consolidação da organização social. c) Do habitat Entendido na totalidade, considerando a casa, os seus serviços básicos, a qualidade do entorno. A produção social do habitat deve colocar o ser humano no centro de todo o processo. Se habitação é um direito, esse direito não pode ser concedido. Aquilo que é concedido é dádiva. Os direitos se conquistam. E quem conquista direitos é o sujeito da história. Logo, o protagonismo dos processos de produção social do habitat deve ser do usuário. Por outro lado, não se trata simplesmente de construir casas, mas de fortalecer a família, a 6 comunidade, os grupos excluídos. E esse fortalecimento deve focalizar as dimensões econômicas: melhorar a renda da família; ambientais: preservar a qualidade do ambiente natural e construído; respeitar e afirmar os valores culturais do grupo para consolidar sua autoestima e fundamentar o seu empoderamento. 8. Da ocupação ao Conjunto Habitacional Dom Helder Câmara O processo de gestão da construção do Conjunto Habitacional Dom Hélder Câmara constitui o primeiro e único exemplo de autogestão e protagonismo das 200 famílias que ocuparam um terreno subutilizado da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos localizado no bairro da Iputinga (Recife). As famílias eram constituídas majoritariamente por casais jovens, com um ou dois filhos, que, não tendo casa própria para morar, moravam em casas alugadas ou coabitavam nas casas de familiares. Mobilizados e organizados pelo Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas, membros de 200 famílias, após tentativas fracassadas de ocupar outros terrenos na área, conseguiram, com o apoio da Prefeitura do Recife, durante a primeira gestão do prefeito João Paulo (2001 – 2004), a promessa da transferência da propriedade dos Correios para a implantação de um projeto habitacional. As políticas de inclusão social mediante o acesso à moradia recebem um importante reforço com a criação do Ministério das Cidades e a colocação em cargos de primeiro escalão técnicos e acadêmicos participantes do Fórum Nacional de Reforma Urbana Não é por acaso que o tema da primeira Conferência Nacional das Cidades foi “Uma Cidade para Todos”. Concluída a conferência, com a criação do Conselho Nacional das Cidades, e a inclusão como conselheiros de representantes das quatro organizações que congregam os movimentos de luta pela moradia no Brasil, a Secretária Nacional de Habitação convoca suas lideranças para informá-las de primeira mão do lançamento do Programa Crédito Solidário, oferecendo a cada central a oportunidade de apresentar projetos de construção de 2 mil unidades habitacionais para cada uma das quatro organizações. Esse programa oferece crédito para a compra de terreno, reforma ou construção de unidades habitacionais, com amortização em vinte anos, sem juros. O Movimento de Luta nos Bairros, filiado à Central dos Movimentos Populares, recebeu a orientação de negociar o crédito junto à Caixa Econômica em Pernambuco. Para isso criou uma organização civil chamada Associação de Habitação Popular do Nordeste, e assim possuir personalidade jurídica que representasse as 200 famílias. Quando receberam a documentação que deveriam devolver preenchida com todo rigor que um contrato de financiamento de 3 milhões de Reais implica, resolveram procurar assessoramento técnico entre profissionais amigos do movimento, e junto com eles se dirigiram à Reitoria da UFPE a fim de demandar apoio 7 profissional para a elaboração do Projeto de Trabalho Técnico-Social. Fomos convocados pelo pró-reitor de Extensão para, na qualidade de profissional da área e na época coordenando o programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares,7 assumíssemos a responsabilidade de assessorar a direção do Movimento na elaboração e execução posterior de tal projeto. Foi realizado o cadastramento das famílias, e um perfil sociodemográfico dos seus componentes. Posteriormente, colaboramos na discussão do regimento do mutirão,8 e na fase final da construção do regulamento do condomínio. Ao longo do processo foram realizadas duas jornadas de sensibilização para as famílias, com um dia de duração, as quais compareceram com os filhos menores. Grupos de estudantes organizaram atividades para entretenimento e formação das crianças, enquanto os pais discutiam que construir uma comunidade é mais difícil do que construir casas. Os autoconstrutores não eram necessariamente membros das famílias que iriam residir no conjunto. As vezes eram familiares, amigos, ou até mesmo pessoas contratadas pela família que não podia dispor de 16 horas por semana para dedicar-se à construção. Assim, foram organizadas as oficinas no próprio canteiro de obras, na primeira hora de trabalho de alguns expedientes, para realizar oficinas de sensibilização para o trabalho coletivo, segurança e técnicas construtivas, tais como trabalho com ferro, alvenaria, hidráulica. Num determinado momento, foi julgado oportuno contratar mestres de obra e equipes de pedreiros, porque se viu que o mutirão não estava dando os resultados esperados. Mas depois de um mês eles desistiram e voltaram ao regime de mutirão. Houve vários conflitos sérios ao longo do processo: primeiro, os participantes do projeto que não vinham cumprindo com o compromisso assumido de dar 16 horas por semana de trabalho ao mutirão. Cerca de 20 famílias foram excluídas depois de tensas discussões em assembleia. Um conflito mais grave foi o provocado por um grupo de oposição à liderança do MLB na condução do processo, o qual acusou os dirigentes da Associação de favoritismo e de manipulação política. Houve denuncia ao Ministério Público Federal para destituir a diretoria e nomear outra. Esse movimento não teve sucesso e o MLB conseguiu manter a hegemonia até o fim do processo. No final, foi realizado o sorteio das casas que por serem construídas em regime de mutirão, eram todas iguais. O sorteio foi realizado em três datas sequenciais. Na primeira data, participaram do sorteio aqueles que tinham atingido um mínimo de horas trabalhadas, e o mesmo critério foi utilizado para os outros dois sorteios. Por decisão da assembleia, a família de um deficiente visual foi a primeira a ter o direito de escolher sua casa. Logo em seguida, à medida que as pessoas eram sorteadas, elas escolhiam suas casas. Assistimos a um momento muito impressionante: ao longo do mutirão uma comunidade foi nascendo. Antes as pessoas moravam dispersas na zona oeste da cidade. Não havia comunidade. À medida que a 7 O Programa Conexões de Saberes é um projeto de extensão institucional que concede bolsas de estudo a universitários originários de escolas públicas, pertencentes a famílias com renda inferior a 3 S.M, e sendo a primeira geração que ingressa na universidade. Esses estudantes, inicialmente 25, posteriormente 115 dos mais diversos cursos, realizaram atividades de sensibilização, formação e organização das atividades vinculadas ao processo de construção das casas em regime de mutirão, para assegurar a qualidade do habitat socialmente produzido. 8 A produção social do habitat não deve ser confundida com autoconstrução. É basicamente um processo de autogestão. Os moradores do conjunto Dom Helder optaram pela regime de mutirão a fim de poder dispor de maiores recursos para a compra de materail de construção, e assim poder contar com uma casa de maiores dimensões. 8 colaboração foi se materializando durante o processo de construção, algumas redes solidarias foram sendo tecidas. Durante um dos sorteios, percebi como algumas pessoas reunidas estavam se pondo de acordo para escolher casas vizinhas na mesma rua, e depois batizar a rua com o nome “Rua da Amizade”. Percebi que, assim como as casas foram sendo construídas, uma comunidade estava nascendo. 9. Avaliação de um processo e especificidade dos resultados Qualquer avaliação precisa de um ponto zero ou grupo de controle para fundamentar a comparação. Como queríamos avaliar os resultados a partir das peculiaridades do processo, escolhemos a comunidade do Projeto do Conjunto Habitacional Abençoada por Deus para destacar as comparações possíveis com o Projeto do Conjunto Residencial Dom Helder Câmara. a) Nome. Os participantes do conjunto Dom Helder, optaram por nomear o conjunto como “Conjunto Residencial” e não “Conjunto Habitacional” a. Eles tiveram liberdade de escolher o nome que quiseram: Residencial e não Habitacional. Os moradores do Conjunto Abençoada por Deus, receberam o nome de Conjunto Habitacional, porque é assim que a Prefeitura denomina os conjuntos. b. Afirmaram sua autoestima ao escolher um tipo de conjunto que os identifica como conjunto privado, de classe média, e não conjunto popular, que recebe o nome de “conjunto habitacional” c. A escolha do nome de D. Helder vincula o conjunto a um processo de luta emancipatório de sujeitos de direitos. No muro interior está escrito o nome do conjunto com a legenda: Quem Luta, Conquista! b) Concepção e concessão do conjunto a. Os habitantes do conjunto habitacional Abençoada por Deus receberam os apartamentos concebidos e concedidos pela Prefeitura. Eles não discutiram o projeto arquitetônico ou urbanístico do conjunto. Não terão de pagar nada, uma vez que são recursos a fundo perdido do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Não há sentimento de identificação e apropriação do lugar. b. Os habitantes do conjunto D. Helder discutiram a tipologia: apartamentos, casas, duplex, e optaram pela solução que lhes pareceu a mais adequada. Deverão pagar um crédito de R$ 15 mil por família em vinte anos, sem juros. Há uma profunda identificação e apropriação do lugar. Não pelo fato de tê-lo autoconstruído, mas de ele ter sido autogerido. c) Zelo e cuidado com o ambiente natural e o construído a. Em Abençoada por Deus, o centro comunitário e o mobiliário em concreto da pequena área de lazer foram destruídos nos primeiros quinze dias de ocupação do conjunto. b. Os moradores do conjunto Dom Helder, assim que receberam suas casas, começaram a realizar os acabamentos: ampliação de cômodos, forro de gesso, cerâmica, grades, jardim individual. 9 d) Redes de sociabilidade a. Em Abençoada, o sorteio dos apartamentos foi direto. Os apartamentos eram sorteados e eram atribuídos à pessoa sorteada. Assim, as redes de solidariedade construídas durante os anos de convivência nas palafitas foram destruídas. b. Em Dom Helder, foram constituídas redes de solidariedade ao longo do processo, e elas se mantêm pela escolha da casa. e) Organização social e política a. Em Abençoada, depois de quase dois anos de estarem instalados nos apartamentos, não conseguiram instalar o condomínio. As tensões sociais aumentam por falta de uma instancia legitima que dirima os conflitos. A liderança eleita para presidir a associação é uma pessoa com fortíssimas ligações com a administração municipal. Há riscos de cooptação. b. Em Dom Helder, o condomínio foi instalado dois dias antes da inauguração do conjunto. A liderança está identificada com o Movimento de Luta nos Bairros, independentemente do poder municipal. 10. Conclusões A análise comparativa realizada no item anterior não nos deve induzir a pensar que tudo está resolvido entre os moradores do conjunto Dom Helder. O individualismo foi se desenvolvendo ao longo do processo. Parece que a luta pelo acesso à terra é algo que tem um potencial mais aglutinador de forças sociais que a construção das casas, e mais ainda do que a consolidação e a manutenção da qualidade do ambiente socialmente produzido. Em Dom Helder, a primeira obra realizada foi a construção de um muro de mais de 3 m de altura, isolando o conjunto do resto do bairro. Quando se discutia a creche que a prefeitura irá construir e manter em funcionamento no interior do Conjunto Dom Helder, houve protestos quando foram informados de que a creche deveria estar aberta para receber crianças das comunidades vizinhas... Se recusaram terminantemente, votariam pela não construção da creche, para não permitir a “entrada de intrusos” na intimidade do condomínio. Felizmente, foi encontrada uma solução salomônica: a creche será construída no limite do terreno, com uma porta para o exterior, para receber as crianças do entorno, e outra porta no interior para receber aquelas do condomínio. Ao receberem as casas, uma das primeiras reformas foi a instalação de grades, dentro de um condomínio fechado, com guarita vigiada, e tendo como vizinhos os colegas de dois anos de trabalho solidário durante a construção do condomínio. A equipe da universidade, agora constituída pela CIAPA, tem o compromisso de continuar apoiando as iniciativas das famílias, organizadas em torno do seu síndico e vice-sindico do Conjunto Dom Helder, para fazer dele um exemplo das qualidades de um habitat socialmente produzido. Bibliografia Documentos 10 Carta de São Paulo: DECLARAÇÃO DO SEMINÁRIO INTERNACIONAL PRODUÇÃO SOCIAL DO HABITAT. ESTRATÉGIAS ORGANIZATIVAS PARA A ELIMINAÇÃO DA MORADIA INADEQUADA NO CONTEXTO AMERICA LATINA. Habitat para a Humanidade, São Paulo, Nov. 2006 Declaração de Montevideu. Seminário Internacional. "Produção Social do Hábitat e Neoliberalismo: o capital do povo versus a miséria do capital". Montevideu, Outubro de 2001. Bibliografia FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed. Vozes, 1978. GASPAR, Lúci Amaury de Medeiros. Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 6 ago. 2009. LIMA, Jacqueline de Cássia Pinheiro Modernização e Higienismo Social: Projetos de Habitações Populares em Recife e Rio de Janeiro durante o Estado Novo (1937-1945). IUPERJ/UCAM. http://www.espacoacademico.com.br/035/35elima.htm MIRANDA. Lívia Desenvolvimento Humano e Habitação no Recife. Desenvolvimento Humano do Recife. Atlas Municipal. Em http://www.recife.pe.gov.br/pr/secplanejamento/pnud2006/doc/analiticos/Desenvolvimento%20Humano%20 e%20Habita%C3%A7%C3%A3o%20no%20Recife.pdf MORA, Luis de la Produção Social do Habitat. Habitat para a Humanidade/MDU, Dez.2008. MORAES, Demostenes Andrade de Apontamentos sobre Reforma Urbana e Produção Social do Habitat. Habitat para a Humanidade. Recife. 2009 SOUZA, Diego Beja Inglez de Reconstruindo Cajueiro Seco:Arquitetura, política social e cultura popular em Pernambuco (1960-64). Palestra MDU, 17/ 02/09 http://www.ufpe.br/mdu/arquivos/Palestra%20Reconstruindo%20Cajueiro%20Seco.pdf 11