Três perguntas sobre a formação do ator a Eugênio Barba Alexandre Pieroni Caladoi (ECA/USP) Resumo: O presente trabalho pertence ao campo heterodoxo gerado pelo encontro dos interesses da antropologia e dos estudos teatrais, dedicando-se, em particular, à denominada Antropologia Teatral. O problema que aqui se procura analisar é o de entender o modo como Eugenio Barba, fundador da International School of Theatre Antropology (ISTA), concebe o ensino-aprendizagem do métier de ator. Palavras chave: Formação de ator, Barba, antropologia teatral. Abstract (expanded): This article belongs to the heterodox field born from the encounter of anthropology and theatre studies and is concerned with the so called Theatre Anthropology. The main objective is to understand the way Eugenio Barba, founder of the International School of Theatre Antropology (ISTA), conceives actor teaching. For this work were mainly used texts from Eugenio Barba himself, namely the books The Paper Canoe, Beyond the Floating Islands and The Secret Art of the Actor, and the articles «La Course des Contraires» and «An Amulet Made of Memory: The significance of exercises in the actor’s dramaturgy». The texts «A study in Motley: the Odin Actors», de Janne Risum, e, Towards a Third Theatre, de Ian Watson were also used considering their relevance for this work. This text aims to make a provisional characterization of certain aspects of Eugenio Barba’s discourse on actor training that deserve critical enquire. First, it looks at the theatrological axioms on which Theatre Anthropology is based – what are the «principles that return»? Then, it draws a sketch of the way Barba understands the teaches-pupil relationship – who is a «bad father»? Finally, it seeks to identify the main elements that form part of his conception of training through time – when do we reach a «transparent body»? Keywords: Actor’s training, Barba, theatre anthropology. 1 Introdução O presente artigo pertence ao campo heterodoxo gerado pelo encontro dos interesses da antropologia e dos estudos teatrais, dedicando-se, em particular, à denominada Antropologia Teatral. O problema que aqui se procura analisar é o de entender o modo como Eugenio Barba, fundador da International School of Theatre Antropology (ISTA), concebe o ensino-aprendizagem do métier de ator. Para o presente estudo recorreu-se a textos do próprio Eugenio Barba, nomeadamente aos livros A Canoa de Papel, Além das Ilhas Flutuantes e A Arte Secreta do Ator, e aos artigos «La Course des Contraires» e «An Amulet Made of Memory: The significance of exercises in the actor’s dramaturgy», além de dois importantes textos sobre o trabalho do autor com o Odin Teatret, «A study in Motley: the Odin Actors», de Janne Risum, e, Towards a Third Theatre, de Ian Watson. Procura-se, neste ensaio, fazer uma caracterização provisória de certos aspectos do discurso de Eugênio Barba sobre a formação do ator que merecem alguma atenção crítica. Em primeiro lugar, busca-se identificar as premissas teatrológicas nas quais se fundamenta a Antropologia Teatral e o pensamento pedagógico de Barba – princípios que retornam? Visa-se, em seguida, delinear o modo como ele entende a relação professor-aluno, bem como esboçar os contornos que cada uma destas figuras assume na visão do autor – um mau pai? Finalmente, pretende-se apreender as bases sobre as quais a noção de treino assenta, assim como apontar os principais elementos que o constituíram no seu desenvolvimento até ao presente – um corpo transparente? Primeira questão: a Antropologia Teatral e os princípios-que-retornam. A Antropologia Teatral nasce, segundo Eugênio Barba, do desejo de entender os processos pelos quais os atores do Odin Teatret transitavam entre diferentes modos de comportamento na cena e na vida (BARBA, 1993: 20-21). Afirma o autor que foi a observação de que estes se serviam de distintas técnicas corporais, em particular, o fator que desencadeou as questões que constituem o objeto da Antropologia Teatral. A Antropologia Teatral surge, então, com a vontade de investigar os procedimentos dos 2 elementos do Odin Teatret, para se estender a um campo de indagação que visa compreender a atividade dos atores em geral, independentemente do estilo formalizado que esta possa assumir. Barba dá a seguinte definição: “A Antropologia Teatral é o estudo do comportamento cênico pré-expressivo que se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas. Por isso, lendo a palavra «ator», dever-se-á entender «ator e bailarino», seja mulher ou homem; e ao ler «teatro» dever-se-á entender «teatro e dança».” (BARBA, 1993: 21) Ressalta desta passagem, em primeiro lugar, a necessidade que Eugênio Barba manifesta de alargar o conteúdo semântico dos termos «ator» e «teatro». Com efeito, é este movimento que permite ao autor colocar lado a lado manifestações tão distintas como o Noh japonês, a dança Odissi indiana e o Teatro de Arte de Moscou, bem como desenvolver uma análise do comportamento cênico centrada na conduta corporal dos artistas. Em segundo lugar, este movimento faz-se, ora implícita ora explicitamente, a par com a convicção de que existe um domínio comum às distintas formas teatrais, aquilo que o autor denomina por pré-expressivoii. Antes de discutir um pouco esta noção, apontemos os três elementos fundamentais do que Barba considera o nível pré-expressivo: “Tendo seguido a trilha do ator-bailarino, alcançamos o ponto onde somos capazes de perceber seu núcleo: 1. na ampliação e ativação das forças que estão agindo no equilíbrio; 2. nas oposições que determinam as dinâmicas dos movimentos; 3. numa operação de redução e substituição, que revela o que é essencial nas ações e afasta o corpo para longe das técnicas cotidianas, criando uma tensão, uma diferença de potencial, através da qual passa a energia.” (BARBA, 1995: 20) O comportamento extra quotidiano é, portanto, estabelecido com base em três princípios – equilíbrio instável, tensão de forças contrárias e condensação do gesto. Para 3 Eugênio Barba, não se trata tanto de universais ou de leis mais de princípios comuns observáveis em diferentes formas codificadas de atuação, regras para uso do atorbailarino. A primeira questão que importa colocar é a de saber se as ditas técnicas que operam ao nível do comportamento pré-expressivo são separáveis das respectivas formas de representação, i.e., dos estilos de atuação. Num texto anterior ao supracitado, o autor refere-se ao pré-expressivo de forma que esta questão ganha evidência: “A Antropologia Teatral indica um novo campo de pesquisa: o estudo do comportamento pré-expressivo do ser humano em situação de representação organizada.” (BARBA, 1993: 24) Se, na primeira definição fornecida, o comportamento pré-expressivo “se encontra na base dos diferentes gêneros, estilos e papéis e das tradições pessoais e coletivas”, nesta outra, o comportamento pré-expressivo observa-se no “ser humano em situação de representação organizada.” Então, são estes princípios-que-retornam um denominador comum da prática do ator e independentes das formalizações artísticas? Ou, pelo contrário, a sua identificação decorre do universo amostrado e de uma determinada percepção do que é o teatro? Esta dificuldade decorre, pelo menos em parte, da falta de clareza na definição tanto dos fenômenos teatrais analisados quanto do método prosseguido nesse trabalho. Os principais exemplos referidos nos diversos textos, sem qualquer intenção sistemática, pertencem a formas teatrais orientais, nomeadamente o Noh, o Kabuki, o Kathakali, a Odissi e a Ópera de Pequim. Eugênio Barba fala de uma distinção consagrada na terminologia da dança tradicional indiana [Lokadharmi (comportamento quotidiano) e Natyadharmi (comportamento da dança)] para exemplificar e fundamentar a sua crença na existência do comportamento pré-expressivo (BARBA, 1995: 9). Parece-me importante salientar que estes são exemplos de formas de teatro-dança orientais e codificadas e que, como observa o próprio Barba, “No Ocidente, a distância que separa as técnicas corporais cotidianas das extracotidianas não é, com frequência, evidente ou conscientemente considerada.” Vale a pena observar que são a mímica corpórea de Etienne Decroux e o 4 ballet clássico as duas formas ocidentais, também elas codificadas, às quais o autor vai buscar elementos para confirmar a sua tese. Serão estas realmente regras identificáveis e aplicáveis no trabalho do ator que se move num contexto teatral a priori não codificado? A constatação de que nas definições aqui apresentadas de ator-bailarino e de préexpressivo, bem como nos textos analisados de uma forma geral, há muito poucas menções ao aspecto vocal do trabalho do ator, nuclear nas diversas tradições, mas com ênfases notoriamente distintas na relação entre verbalização e canto, contribui para alimentar esta dúvida. Outro ponto crítico na escolha dos exemplos prende-se com a possível circularidade do argumento, como sucede quando o autor salienta as semelhanças entre a prática de Gerzy Grotowski e as do teatro oriental, quando são conhecidas as influências deste último no desenvolvimento dos procedimentos e teorias do primeiro, em particular nos períodos do «Teatro das Fontes» e do «Drama Objetivo» (LENDRA, 2002: 148). Outro aspecto merecedor de um olhar crítico é o da metodologia e processo de análise que permite a Eugênio Barba fazer as suas afirmações. O autor serve-se da expressão «análise transcultural» (cf. nota 1) mas assume que não examina o contexto histórico-social em que as diversas formas teatrais ocorrem (BARBA, 1993: 70). O que entende ele por análise transcultural e quais são os métodos de investigação utilizados? O autor responde: “[A Antropologia Teatral] Não executa mensurações, não usa métodos estatísticos, não tenta deduzir as conseqüências para o comportamento do ator com base no conhecimento da medicina, biologia, psicologia, sociologia ou da ciência das comunicações. Baseia-se na pesquisa empírica da qual extrai princípios gerais. Desenvolvese numa dimensão operativa submetida à eficácia da ação cênica. Define um campo de perguntas e forja os instrumentos teóricos para explorá-lo. Individualiza leis pragmáticas.” (BARBA, 1993: 63) 5 Eugenio Barba recorre ao termo empírico para classificar o seu método de trabalho mas não explicita os procedimentos experimentais que utiliza. Antes salienta o aspecto operativo da sua investigação e a submissão desta a uma noção de eficácia. Parece, portanto, que as leis pragmáticas que identifica são mais um credo estético que um conjunto de elementos reconhecidamente partilhados pelas formas teatrais Ocidentais e Orientais. Segunda questão: a aprendizagem e o pai. A relação de ensino-aprendizagem que Eugenio Barba estabeleceu com os membros do Odin Teatret sofreu um processo de evolução: nos primeiros anos, ele dirigia os treinos “like a pillar of salt”, repetindo altas vozes de comando (RISUM, 2001: 96); já em 1972-73, afastou-se das sessões de treino, assumindo os atores veteranos uma progressiva importância na iniciação dos jovens atores (RISUM, 2001: 101). Quando se tenta esquematizar o modo como o autor concebe as figuras do professor e do aluno, já na década de noventa, é-se confrontado com a coexistência de elementos aparentemente contraditórios e que se poderiam fazer corresponder a cada um dos momentos da sua relação como pedagogo no Odin Teatret: por um lado, uma valorização positiva da figura do mestre, por outro, uma prática continuada de autodidatismo e de responsabilização dos formandos. No que corresponderia ao primeiro traço, Eugenio Barba apela à autoridade e ao ascendente de Gerzy Grotowski, em primeiro lugar, e, correlativamente, a Constantin Stanislavski; num segundo plano, surgem ainda Vsevolod Meyerhold e Etienne Decroux, bem como, pontualmente, Gordon Craig. Em suma, elege um panteão de destacados encenadores-pedagogos do século XX, praticamente todos partilhando a mesma crença na centralidade da visão do diretor no processo de criação teatral. Ao lado destes, o autor faz diversas referências à aprendizagem em contextos orientais, onde esta se processa num período consideravelmente longo e sob a tutela estrita de um mestre-guru, responsável pela transmissão do repertório tradicional. 6 Integra-se nesta linha de pensamento o criticismo que Eugenio Barba empreende contra os modelos oferecidos pela maioria das escolas e academias de teatro, onde se pratica uma certa especialização do ensino e, concomitantemente, uma fragmentação no tempo e no tema das atividades letivas. (BARBA, 1993: 135) Barba entende necessário que o processo formativo seja governado por um princípio integrador capaz de fazer emergir no formando uma identidade teatral individual na teia das experiências formativas. Para o autor, é o mestre que se configura como o agente por excelência deste processo, já que é ele que é capaz de estabelecer um vínculo único com cada aluno: “Há um período de aprendizagem e há uma relação de aprendizagem. O primeiro se refere a uma escola teatral onde múltiplos professores – segundo os horários que seguem o ritmo dos relógios – ensinam múltiplos materiais. E existe uma relação de aprendizagem, na qual uma só pessoa se coloca diante de nós, para transformar-nos em in-divíduos, fazer-nos encontrar nosso «país».” (BARBA, 1991: 99) O professor-mestre surge nesta concepção, portanto, como alguém que religa o aluno-discípulo dividido, como alguém que o guia até ao seu território pessoal e subjetivo. Não fica claro, no entanto, o modo como essa viagem se processa; se “Ser mestre é permanecer congruente e leal aos valores, dos quais se é depositário [,] se quer conservar em vida e transmitir.” (BARBA, 1991: 99), estará o país de cada um necessariamente inserido no seio da tradição? O segundo traço do entendimento do ensino-aprendizagem de Eugenio Barba parece deslocar a ênfase da figura do mestre, reconhecendo o caráter limitador e de especialização indexado ao modelo do mestre-discípulo, e colocar a tônica no formando, nas suas necessidades e seus desejos: “No nosso teatro, não existem professores, não existem pedagogos, são os atores que elaboram o próprio treinamento.” (BARBA, 1991: 54) Este segundo aspecto, sem negar a importância de uma referência forte na formação salienta a necessidade do formando desenvolver um olhar próprio sobre o que lhe é 7 transmitido. O mestre é considerado, deste ponto de vista, um pivot a partir do qual o discípulo desenvolve a sua própria formação e valores. Nas palavras do autor: “É necessário aprender do mestre algo diferente do que quer ensinar-nos. Mas o caminho da recusa passa por sua voz. Faz falta saber dialogar com esse mestre, cuja voz se mistura à voz dos mortos, que nos respondem com nossas palavras.” (BARBA, 1991: 100) Segundo esta perspectiva de Eugenio Barba, a figura do mestre ocupa o lugar de uma referência e o de um interlocutor com o qual o formando pode empreender um diálogo que lhe possibilitará fazer as suas próprias descobertas. Para esclarecer a sua convicção sobre a natureza da relação entre professor e aluno, o autor cita o maestro e compositor Pierre Boulez: “(...) ce sont «les rapports de mauvais père à mauvais fils» qui permettent l’évolution culturelle et esthétique. Etre un bon père d’un côté ou, de l’autre, un fils respectueux, c’est un risque à courir.” (BARBA, 1981: 37) A figura do mestre desenhada pelo autor revela-se uma revisitação do modelo que funde professor e pai, amplamente difundido no Oriente (ANTZE, 1995:33); uma reconfiguração que convida simultaneamente à aceitação e à interpelação do mestre, a uma compatibilização da tradição e da inovação. Mais difícil do que propor esta fórmula é colocá-la em prática. Necessariamente surgem questões relativas ao modo de apropriação e de transfiguração, ao grau de fidelidade e de transgressão. O próprio autor deixa entrever esta problemática no desenvolvimento da sua argumentação: “Le pire c’est le manque de rapports entre «père» et «fils». Influencier l’élève serait, selon l’opinion commune, negative. Les marques de l’influence révéleraient un rapport malsain. Mais avec cette façon de penser on n’arrive nulle part: tous, nous sommes influenciés par quelqu’un. Le problème est la charge d’énergie qui est mise en jeu dans le rapport: si l’influence est suffisamment forte qu’elle permette d’aller loin, ou bien si elle est si faible qu’elle ne produise qu’un petit déplacement ou une marche sur place.” (BARBA, 1981: 37) 8 Se por um “mau filho” se entender alguém que aprende com o mestre algo diferente do que ele nos quer ensinar, como compreender a questão aqui colocada da «carga de energia» investida e da perenidade da sua marca: será melhor para alguém encontrar o seu caminho levar um empurrão inicial que condicione toda a sua vida ou antes um apenas suficiente para o colocar em marcha? Esta questão ressurge ao considerar a seguinte afirmação de Eugenio Barba: “É essencial transmitir as próprias experiências aos outros, mesmo sob o risco de criar descendentes que, por excessivo respeito, apenas repetirão o que aprenderam. É natural alguém começar repetindo algo que não possui, que nem pertence à sua própria história nem surge de sua própria pesquisa. Esta repetição é o ponto de partida para o ator fazer sua própria viagem.” (BARBA, 1995: 246) A primeira frase do autor sugere uma certa consciência dos perigos inerentes a um processo formativo determinado por um só professor-mestre. Contudo, a frase seguinte parece esquecer já a prudência anterior, afirmando que repetir algo que não tem nenhuma relação consigo mesmo pode ser positivo e pode auxiliar a descoberta do caminho pessoal. A tentativa de conciliar um modelo centrado no formando com outro centrado no formador coloca o autor num terreno movediço por onde o caminho está longe de ser óbvio. Terceira questão: o treino do ator e o corpo transparente. Apesar do que foi dito nas secções anteriores, Eugênio Barba é categórico em afirmar que a sua teorização não decorre da interiorização de modelos orientais (BARBA, 1993: 159). Pretende o autor que a Antropologia Teatral seja não apenas um conjunto de preceitos teóricos mas antes o enquadramento de uma práxis, de um modo de viver o teatro no qual, como se mostra em seguida, o treino do ator ocupa um lugar nodal. 9 De um ponto de vista historiográfico, o treino no Odin Teatret sofreu um longo processo de desenvolvimento cujo movimento geral foi o do treino de habilidades específicas para o treino enquanto forma de pesquisa individual do ator. Nos primeiros anos (1964-72), o treino assentava no “mito da técnica”, integrando abordagens de diversas tradições espetaculares, refundindo-as, e valorizando a capacidade de composição do ator (BARBA, 1995: 244); incluía exercícios de pantomima, de ballet, de ginástica, de rítmica, de ioga, por exemplo, (BARBA, 1991: 53). Posteriormente (1972-81), o treinamento, antes realizado em simultâneo e do mesmo modo por todo o grupo, diferenciou-se e individualizou-se, assumindo o caráter pessoal de cada ator. Assim, menos que a técnica por si, o treino centrou-se em outros valores: “autodisciplina cotidiana, personalização do trabalho, demonstração que se pode mudar, estímulo sobre os companheiros e sobre o ambiente.” (BARBA, 1991: 55) Este outro olhar para o treino fundamenta-se numa perspectiva própria sobre o desenvolvimento do ator, em boa parte marcada pela atitude dos atores de Kathakali face ao métier (RISUM, 2001: 98): “O que caracteriza o ator no início é a aquisição de um ethos. Ethos no sentido de comportamento cênico, isto é, técnica física e mental; e no sentido de ética de trabalho, de mentalidade modelada pelo ambiente humano no qual se desenvolve a aprendizagem.” (BARBA, 1993: 95) De acordo com este princípio, o ator deve desenvolver um comportamento pessoal face aos companheiros, ao trabalho e à arte desde o começo do seu caminho enquanto criador. Neste período, Eugenio Barba deixa de ser uma presença constante na sala de treino e são os atores mais experientes que assumem a responsabilidade pela iniciação dos novos membros do grupo. É também nesta fase que objetos e instrumentos musicais são integrados no treino, algo que não é alheio às intervenções teatrais do grupo em contextos rurais e espaços exteriores. Finalmente, desde 1981, o treino é desenvolvido essencialmente a partir de improvisações individuais estruturadas sobre os princípios-queretornam (WATSON, 1993: 62). Já cerca de 1974, a questão central do treinamento parece que deixa de ser o desenho de movimento e passa a ser o modo pelo qual o ator consegue 10 manter os impulsos vivos numa mesma forma estabelecida (RISUM, 2001: 104). Atualmente, os exercícios são criados como uma rotina com a qual o ator se compromete e cuja prática se propõe enquanto forma de desenvolver a sua presença cênica: “O exercício é uma ação que se aprende e se repete após tê-lo escolhido com objetivos muito precisos na mente. (...) O significado de um exercício reside, finalmente, em: 1. começar com uma ação precisa, que projeta todas as energias numa determinada direção; 2. dar um contra-impulso, uma outra descarga de energia no meio do processo, que produz um desvio de direção e uma mudança de dinâmica; e 3. manobrar para concluir numa posição precisa que contém o impulso (o sats) da próxima ação. Dessa maneira, constrói-se uma série inteira de exercícios que se pode aprender e repetir, tal como se repetem as palavras de uma língua. (...) É o ritmo que é importante, a ligação de um exercício ao outro e a maneira orgânica pela qual o ator dirige a sequência resultante.”iii (BARBA, 1995: 245) Tal como descreve Eugenio Barba, os exercícios são articulados numa frase que possa ser repetida. Além da disciplina e do estímulo, a prática dos exercícios contribui para interiorizar a percepção do ritmo e do sats, noções que devem algo à concepção de ciclo de atuação de Vsevolod Meyerhold e que se inscrevem numa lógica dominada pela noção de fluxo (RISUM, 2001: 99, 101). Estes elementos seriam justamente os eixos da composição pessoal do ator, a forma de se inserir no espetáculo. O primeiro aspecto problemático relativamente ao treino que merece destaque prende-se com a crença de Eugenio Barba de que “Não existe uma relação obrigatória de causa e efeito entre procedimentos técnicos e formas expressivas. Edifícios profundamente diferentes estão apoiados no mesmo terreno.” (BARBA, 1993: 162) Ora, se “A good exercise is a paradigm of dramaturgy, i.e., a model for the actor” (BARBA, 2002: 100), se o treino prepara o actor para se inserir no espetáculo, não estarão na estrutura dos exercícios inscritos, de forma mais ou menos visível, elementos de uma estética particular? 11 Será que todas as dramaturgias colocam o actor perante situações enformadas pelo modelo de desenvolvimento em três fases que os exercícios preconizamiv? A mesma crítica se pode fazer ao objetivo dos exercícios enquanto “meios de tirar do corpo a obviedade cotidiana, para evitar que seja somente um corpo humano condenado a parecer a si mesmo, a apresentar e a representar a si mesmo.” (BARBA, 1993: 54) Poderão exercícios concebidos de acordo com o modelo acima descrito preparar um actor para formas teatrais que assentam na «encenação do eu», como a performance art (PAVIS 2001: 284-285) ou aquelas que valorizam uma aproximação entre arte e vida, como o happening? Parece insustentável pretender que um conjunto de procedimentos de treino de atores esteja apartado de princípios estéticos determinados em maior ou menor grau. Um segundo aspecto problemático das noções de Eugenio Barba associadas ao treino está associado à sua concepção do humano. O autor fala com frequência de Constantin Stanislavski, o pai de todos os homens de teatro ocidentais (BARBA, 1991: 91), nomeadamente para corroborar a crença que com ele partilha nas idéias de verdade do actor no palco e de unidade do indivíduo: “Ele buscava a verdade no palco, como sinceridade total, como autêntica vitalidade. O ator não deve «parecer» o personagem que representa. O ator deve ser o que representa. Essa é a palavra-chave: ser, tornar-se unidade, indivíduo, in-divíduo, não dividido.” (BARBA, 1991: 91) Assim, o treinamento seria a forma pela qual o actor consegue encontrar a sua verdade e ultrapassar a sua situação fragmentada, uma condição que, segundo Eugenio Barba, decorre da vida quotidiana, civilizada. Nesta perspectiva, o autor sustenta a sua argumentação na dicotomia natural / cultural, indicando que o treino é a forma de transcender a limitação imposta pela cultura. Segundo o autor: “Há aqui uma armadilha: o que chamamos espontaneidade não é senão um conjunto de reflexos condicionados, automatismos que nos atam e dos quais não podemos nos livrar. Se alguém quer libertar-se desses automatismos, se 12 quer desaculturar-se, terá de lutar contra a espontaneidade, o «natural». Tem de inventar um método, pôr em marcha um procedimento que freie os automatismos. Assim, tem de concentrar-se no oposto do natural: algo artificial.” (BARBA, 1991: 94) Para Eugenio Barba, portanto, para o actor se afastar do natural-artificial tem que passar ao artificial-artificial; fala em “novo condicionamento”, em “ser dirigido para uma nova forma de «cultura» e passar por uma nova «colonização» (BARBA, 1995: 245). Este argumento parece ainda mais paradoxal se considerar o que o autor revela ser para si o objetivo mais profundo do treino: “No nível pessoal – pouco claro, cheio de sombras – sentia que sob o álibi de um trabalho que outros definiam como teatro, eu tentava anular o ator no meu companheiro de trabalho, lavá-lo do personagem, destruir o teatro das nossas relações, e encontrarmo-nos, eu e ele, como homens, como companheiros de armas que não têm necessidade de se defender, ligados, mais do que irmãos, pelas dúvidas e ilusões de anos passados pacientemente juntos. (...) Ter a coragem de ser transparente e deixar entrever o poço da própria experiência.” (BARBA, 1991: 63) O que é que oferece uma garantia de que a segunda colonização será melhor que a primeira, o fato de a segunda ser feita com base em princípios-que-retornam? Ou o de ser levada a cabo por um mau pai? Além disso, coloca-se a questão ontológica de saber o que é o homem e, em particular, a de refletir se é ele um ser uno ou se é antes a fragmentação e a multiplicidade a sua condição. Não será paradoxo bastante que a transparência se obtenha por um novo processo de colonização, por uma nova socialização, uma nova aquisição de automatismos? E, em última análise, não será um ser humano transparente uma quimera análoga à de uma linguagem transparente? 13 Conclusão. Procurou-se fazer aqui uma aproximação crítica às concepções de Eugenio Barba sobre a formação de atores. Na primeira secção fez-se uma breve caracterização dos elementos fundamentais da mundivisão teatrológica desenvolvida pela Antropologia Teatral, destacando-se aí a ênfase desta em «princípios-que-retornam», bem como o caráter pouco claro da metodologia utilizada para chegar a eles. Na segunda secção abordou-se a questão da aprendizagem e da figura do mestre, tendo sido mostrado como o autor configura este segundo a analogia do «mau pai». Finalmente, analisou-se a importância do treino na teoria de Eugenio Barba e na prática do Odin Teatret, articulandoa com uma problematização da crença na possibilidade de um «homem transparente». Estabelecer com precisão a concepção de Eugenio Barba sobre a formação de atores é uma tarefa difícil, uma vez que se trata acima de tudo de uma matéria essencialmente prática e que o autor é “essentially a creative artist, a poet both in the theatre and in his writings about it.” (WATSON, 1993: 18) Afirmações como “Isto é uma constante na vida do ator-bailarino: a reconstrução de regras artificiais caminha passo a passo com a sua infração.” (BARBA, 1995: 18), apesar de apelativas, são difíceis de analisar e de compreender no que se refere a consequências operativas; seria importante para um estudo como o que aqui se almejou debruçarmo-nos sobre os relatos dos atores do processo de formação, observar os registos vídeo existentes sobre esta matéria e, idealmente, presenciar e experienciar as atividades pedagógicas desenvolvidas. Em guisa de observação final é pertinente observar que Eugenio Barba parece professar uma visão quasi religiosa da vida no teatro: encontramos elementos do culto dos mortos e dos antepassados com uma forte ênfase na noção de tradição; pode falar-se de um dogma assente nos três princípios-que-retornam, sobre o qual repousa toda a prática; há a defesa da necessidade de uma figura intermediária para aceder ao conhecimento secreto; há, inclusive, a proposta de ritos, ainda que estes assumam um caráter tendencialmente pessoal – Janne Risum afirma que o treino é uma forma de “credo” do actor em relação ao teatro (RISUM, 2001: 101) e o próprio autor mantém que “De fato, 14 todos os exercícios físico são exercícios espirituais, que são parte do desenvolvimento total da pessoa, a maneira de fazer com que suas energias físicas e mentais brotem e sejam controladas (...).” (BARBA, 1995: 246) Bibliografia BARBA, Eugenio, 2002, «An Amulet Made of Memory: The significance of exercises in the actor’s dramaturgy» in ZARRILLI, Phillip (ed.), 2002, Acting nd (Re)Considered, New York, Routledge, 2 , pp. 99-105. BARBA, Eugenio et SAVARESE, Nicola, 1995, A Arte Secreta do Ator, resp. trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo – Campinas, Editora HUCITEC. BARBA, Eugenio, [1993] 1994, A Canoa de Papel, trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo Campinas, Editora HUCITEC. BARBA, Eugenio, [1991] 1991, Além das Ilhas Flutuantes, trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo – Campinas, Editora HUCITEC. BARBA, Eugenio, 1981, «La Course des Contraires» in Les voies da la création Théâtrale – La formation du comédien, IX, 1981, Paris, Éditions du Centre National de la Rechercher Scientifique, pp. 14-60. ANTZE, Rosemary Jeanes, 1995, «Aprendizagem – Exemplos Orientais» in BARBA, Eugenio et SAVARESE, Nicola, 1995, A Arte Secreta do Ator, resp. trad. Luis Otávio Burnier, São Paulo – Campinas, Editora HUCITEC, pp. 30-33. BONFITTO, Matteo, 2002, O ator compositor, São Paulo, Perspectiva. GORDON, Mel, 2002, «Meyerhold’s Biomechanics» in ZARRILLI, Phillip (ed.), 2002, Acting (Re)Considered, New York, Routledge, 2nd, pp. 106-128. KIRBY, Michael, 2002, “On Acting and Not-Acting” in Phillip ZARRILLI (ed.), 2002, Acting (Re)Considered, Routledge, New York, 2nd. LENDRA, I Wayan, 2002, «Bali and Grotowski – Some parallels in the training process» in ZARRILLI, Phillip (ed.), 2002, Acting (Re)Considered, New York, Routledge, 2nd, pp. 148-162. 15 PAVIS, Patrice, 2001, Dicionário de Teatro, trad. J. Guinsburg et al., São Paulo: Editora Perspectiva. RISUM, Janne, 2001, «A Study in Motley: the Odin Actors» in WATSON, Ian (ed.), 2001, Performer Trainning, Amsterdam, Hardwood Academic Publishers, pp. 93115. WATSON, Ian, 1993, Towards a Third Theatre, New York, Routledge. Weblinks: http://www.odinteatret.dk/general_information/general_info_frameset2.htm Alexandre Calado (todos os direitos reservados ao autor) [email protected] i Alexandre Calado é pesquisador e artista português; doutorando na ECA‐USP aonde desenvolve pesquisa sobre formação de atores e a crise do sujeito. Mestre em História e Filosofia da Ciência pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa ‐ Portugal (2005). É licenciado em engenharia do ambiente pela mesma instituição. É bacharel e licenciado em teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa. Dentre seus trabalhos mais relevantes como performer solo se destaca “Da beleza ou o sistema nervoso dos peixes” (2008) apresentado no Brasil, Portugal e Reino Unido. ii A noção de pré‐expressivo está associada às de “princípios que retornam” e de “comportamento extraquotidiano”: “Em uma situação de representação organizada, a presença física mental do ator modela‐se segundo princípios diferentes dos da vida cotidiana. A utilização extracotidiana do corpo‐mente é aquilo a que se chama «técnica». As diferentes técnicas do ator podem ser conscientes e codificadas; ou não conscientes, mas implícitas nos afazeres e na repetição da prática teatral. A análise transcultural mostra que nestas técnicas se podem individualizar alguns príncipios‐que‐retornam. Estes princípios aplicam‐se ao peso, ao uso da coluna vertebral e dos olhos, produzem tensões físicas pré‐expressivas. Trata‐se de uma qualidade extracotidiana da energia que torna o corpo teatralmente «decidido», «vivo», «crível»; desse modo a presença do ator, seu bios cênico, consegue manter a atenção do espectador antes de transmitir qualquer mensagem. Trata‐se de um antes lógico, não cronológico.” (BARBA, 1993: 23) Mas como pensar, no contexto teatral, um momento anterior à emissão de mensagens? Como Michael Kirby (KIRBY, 2002), pode argumentar‐se que qualquer elemento é passível de constituir mensagem para um espectador, desde que enquadrado numa situação teatral, sem que isso dependa da intenção ou do comportamento do intérprete. Por outro lado, pode perguntar‐se se «decidido», «vivo» ou «crível» são valores que independem de uma opção estética. iii É de notar que Eugenio Barba utiliza a noção de partitura para explicitar que os elementos fulcrais do exercício são também os do ator em cena: “O termo partitura implica: a forma geral da ação, seu ritmo em linhas gerais (início, ápice, conclusão); a precisão dos detalhes fixados: definição exata de todos os segmentos da ação e de suas articulações (sats, 16 mudanças de direção, diferentes qualidades de energia, variações de velocidade); o dínamo‐ritmo, a velocidade e intensidade que regulam o tempo (no sentido musical) de cada segmento ‐ é a métrica da ação, o alternanar‐se de longas e curtas, de tônicas (acentuadas) e átonas; a orquestração da relação entre as diferentes partes do corpo (mãos, braços, pernas, olhos, vozes, expressão facial).” (BARBA, 1993: 174) Sobre os antecedentes da noção de partitura de ações físicas ver o bom trabalho de síntese de Matteo Bonfitto, O Ator Compositor. Esta passagem é particularmente interessante por reunir boa parte dos materiais que Barba considera estarem ao dispor do ator no seu trabalho criativo. Mais uma vez se observa que não há nenhuma referência explícita ao trabalho vocal do ator, à sua relação com o texto e a palavra. Nem menção a qualquer outro elemento da cena, plástico, sonoro ou conceptual. iv De novo, voltamos ao problema dos axiomas e a um entendimento de teatro que não é necessariamente universal: “Porém, o que é o teatro? Tratou‐se de reduzir esta palavra a algo tangível, e o que encontro são homens, mulheres, seres humanos que se reúnem. O teatro é uma relação particular num contexto escolhido. (...) Neste contexto privilegiado, nesta relação «escolhida», no momento da verdade, todas as teorias desaparecem, todas as intenções e bons propósitos se desvanecem. Só fica o ator.” (BARBA, 1991: 90) Considerando a própria definição sugerida por Barba, está o teatro realmente restrito ao ator? E os outros homens e mulheres, os espectadores? E tal contexto escolhido, que relevância tem afinal? 17