RELIGIÃO E CONVERSÃO Do fundamentalismo light em

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GRUPO DE TRABALHO: MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS
MESA: RELIGIÃO E CONVERSÃO
Do fundamentalismo light em São Paulo: algumas reflexões sobre o processo de
conversão à ortodoxia judaica
Marta F. Topel
Programa de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas
FFLCH/USP
Introdução
A Lei de Hansen, segundo a qual “daquilo que o filho quer esquecer, o neto quer
se lembrar” constitui um interessante ponto de partida para discutir os processos de
configuração identitária dos imigrantes, seja qual for o contexto de análise. No que diz
respeito aos judeus paulistanos, encontramos um bom exemplo deste padrão, se
desenvolvermos um exercício comparativo entre os imigrantes judeus que aportaram na
cidade entre a primeira e segunda guerras mundiais, e as gerações que se seguiram.
Mais precisamente, a partir de 1990 o perfil identitário da comunidade judaica
paulistana sofreu mudanças significativas como conseqüência do grande número de
judeus seculares que abraçaram a ortodoxia.
Este fenômeno, conhecido como
movimento de teshuvá ou movimento de retorno às raízes, se expressa na multiplicação
de sinagogas e centros de estudos religiosos, na proliferação de espaços de lazer cujo
público alvo são os novos ortodoxos, bem como no desenvolvimento de atividades
variadas, como a organização de cursos e palestras, e
a celebração das festas do
calendário judaico seguindo as rígidas leis e costumes do ritual ortodoxo. Para uma
comunidade cujo referente identitário, durante décadas, se construiu ao redor dos
princípios e valores do judaísmo laico e liberal, o
processo mencionado indica a
existência de uma mudança ideológica sem precedentes.
Neste trabalho, o objetivo é caracterizar o movimento de teshuvá paulistano,
fazendo um contraponto com: 1) o perfil identitário dos primeiros imigrantes e as
gerações que lhes sucederam, e 2) as tendências mais difundidas no mercado brasileiro
2
de bens religiosos.
Ambas dimensões de análise nos trarão subsídios de grande valia
para compreender o atual processo de construção de uma identidade étnico-religiosa, cuja
singularidade aponta a uma brasilerização da ortodoxia judaica.
1. Modernização e assimilação. Os primeiros imigrantes judeus: alguns dados
A fase mais intensa da imigração judaica a São Paulo em particular, e ao Brasil em
geral, coincidiu com o profundo processo de industrialização e urbanização do país
(Rattner 1977: 16). Assim, nos anos anteriores e posteriores à Segunda Guerra, chegaram
a São Paulo judeus da Europa Central e Oriental, e judeus dos países do Levante, com o
objetivo de começar uma vida nova num lugar promissório, longe das perseguições ou da
precariedade característica de seus lugares de origem. Nessa “nova vida”, o judaísmo,
como sistema de valores, símbolos, idéias e comportamentos,
teve um papel
preponderante, de forma tal que, aos poucos, foi surgindo uma comunidade judaica
organizada que desempenhou diferentes funções entre os recém chegados e seus filhos: a
primeira geração de judeus-brasileiros.
Grosso modo, pode-se afirmar que as diretrizes que caracterizaram o processo de
adaptação da comunidade judaica paulistana à sociedade brasileira assemelham-se aos
padrões de inserção de outros grupos de imigrantes, e às premissas que orientaram a
formação de diferentes comunidades judaicas em outros países do
continente
americano1.
Assim, a comunidade judaica de São Paulo foi configurando a sua identidade
desde o início da imigração ao Brasil e nem o processo de modernização e laicização da
sociedade brasileira, nem a integração e “aculturação” dos judeus paulistanos a uma
sociedade que não colocou quaisquer obstáculos para sua plena participação social e
mobilidade ascendente, atuaram como fatores de desintegração do grupo ou da perda de
sua identidade étnica Rattner (1977).
1
Muito pelo contrário, os laços de solidariedade
- Cf. Glazer, N. 1957; Elazar, D.J. 1976; Goldscheider, C. & Zuckerman, A. 1984; Cohen, S.M. &
Fein, L.J. 1985.
3
intra-comunitários mostraram-se eficazes para acompanhar as mudanças estruturais do
grupo, logrando satisfazer as demandas dos imigrantes e das gerações subseqüentes.
Nesse contexto, isto é, entre 1920 e 19340, foram fundadas as primeiras
instituições comunitárias judaicas de São Paulo, dentre as quais se destacaram as
sinagogas, uma importante rede escolar e uma ampla gama de associações voluntárias,
como cooperativas e instituições de assistência aos mais pobres.
No que diz respeito às
sinagogas, foram criadas sobre a base do lugar de origem de seus membros fundadores, a
exemplo das sinagogas húngara, portuguesa, sírio-libanesa e egípcia. Todavia,
esse
judaísmo tradicional não ganhou a força necessária para prolongar-se muito além da
primeira geração e, como observou Rattner no que diz respeito aos anos `70, “a família
judaica de São Paulo perde, cada vez mais, a capacidade de transmitir a seus filhos uma
formação especificamente judaica, como se pode aferir claramente pelos resultados
obtidos no recenseamento, quanto à freqüência da sinagoga e à observância de preceitos
religiosos” (Rattner, 1977:62). Além do mais, o status de “bom judeu” sofreu mudanças
consideráveis nesta fase, e ser membro ou participante ativo de uma sinagoga já não
constituia um indicador de prestígio, sendo substituído pela atuação em instituições
judaicas laicas, como clubes, organizações de assistência social, movimentos juvenis e
instituições educativas. Entretanto, a identidade religiosa do grupo não se esvaeceu e, a
partir de meados de 1950, a CIP (Congregação Israelita Paulista), de orientação liberal,
transformou-se na instituição religiosa mais importante da cidade, tanto em relação ao
número de freqüentadores, quanto à sua função de servir como eixo para a configuração
do perfil religioso dos judeus paulistanos.
A transformação brevemente assinalada foi resultado da rápida ascensão social
da maioria dos membros do grupo e da incorporação de novas formas de visão de mundo
e de identificação judaica.
No período mencionado, então, observa-se a primeira
mudança na configuração da identidade dos judeus paulistanos como conseqüência do
intenso processo de modernização que se enraizou na sociedade brasileira como um todo
e das mudanças no judaísmo em nível mundial. Dentre estas últimas, merecem destaque
o Holocausto e o estabelecimento do Estado de Israel.
4
Em relação à influência de processos intra-comunitários na conformação do
judaísmo paulistano entre 1950 e 1990, é necessário mencionar o fim dos lugares de
origem dos imigrantes (os Landsmannschaften) como referente mais importante desse
judaísmo. Nesse sentido, o anseio dos imigrantes e seus filhos em encontrar um lugar
respeitável na sociedade brasileira, junto às boas vindas que esta dispensou aos judeus,
redundaram na modificação do padrão de inserção do grupo na sociedade de
acolhimento.
É possível mencionar, como expressão deste processo, a adoção do
português pela primeira geração de judeus brasileiros, com a conseqüente perda do
repertório cultural inextricavelmente ligado ao –e dependente do- domínio das línguas
iídiche, alemã, árabe e ladina. Não menos importante foi o deslocamento de um grande
número de judeus já nascidos no país a bairros povoados pelas classes média e alta
paulistanas e o contato em diversas áreas da vida social com segmentos progressistas da
sociedade maior, através do convívio nas Universidades públicas, do exercício de
profissões liberais ou da participação na indústria e no comércio.
2. O estabelecimento da ortodoxia judaica em São Paulo: diferenças com outros
movimentos religiosos brasileiros
Conforme assinalado, a partir de 1990, o perfil da comunidade judaica paulistana
sofreu mudanças radicais, resultado da influência da visão de judaísmo dos rabinos
doutrinários, expressada não só na quantidade de membros que lograram incorporar à
ortodoxia, mas também na sua ingerência em instituições judaicas que, até menos de uma
década, se guiavam estritamente pelos princípios do judaísmo secular2.
As razões desses fenômenos são várias, e dizem respeito a certas tendências
observadas na sociedade e cultura brasileiras, por um lado, e à domesticação de padrões
ideológicos que chegaram ao Brasil dos Estados Unidos e de Israel, por outro.
Em
relação ao primeiro tópico, destaca-se o papel cada vez maior da religião como reestruturadora da vida social.
Assim, de forma similar ao “andarilho da fé”, cuja
visibilidade é cada vez mais marcante no contexto da sociedade brasileira, os novos
2
- Cf. Topel, 2002.
5
ortodoxos explicam a opção religiosa como resultado da necessidade de outorgar um
sentido transcendental às suas vidas, e os depoimentos são claros quando apontam o
vazio do judaísmo laico e sua incapacidade de fornecer moldes para o desenvolvimento
de uma vida judaica autêntica e verdadeira.
Todavia, há diferenças substantivas entre as tendências que caracterizam o campo
religioso brasileiro e o movimento de teshuvá, e a observação etnográfica revela uma
conversão gradual que, à diferença do modelo cristão, por exemplo, não nos defronta com
um ritual de passagem -o batismo- que sela a conversão, dando origem a um novo
homem. Por outro lado, apesar de existir uma mudança nos pressupostos básicos através
dos quais o indivíduo compreende o mundo, a ênfase da ortodoxia judaica está colocada
na incorporação de práticas rituais que moldam o cotidiano das pessoas, e que incluem
regras que vão, desde a manutenção de uma rígida dieta alimentar 3 até as formas
prescritas pela religião para as relações maritais; desde como celebrar o sábado até que
medicamentos é permitido ingerir, passando pelas normas de recato na vestimenta, as
pessoas com as quais é impudico manter uma conversação, a complexa parafernália ritual
característica das festas do calendário judaico, só para mencionar alguns exemplos. Em
síntese, por constituir o judaísmo ortodoxo uma religião ortoprática 4, a transformação das
pessoas se expressa mais na esfera comportamental do que no âmbito das idéias.
Uma outra diferença significativa se relaciona com
a ausência do papel da
revelação, manifestação ou presença de Deus como estímulo no processo de conversão.
Nas longas conversações que mantive com pessoas que abraçaram a ortodoxia, as
menções a Deus foram quase que inexistentes. Em seu lugar, foi recorrente apontar a
Torá5, a sua verdade e a sua beleza, e a racionalidade e sabedoria contida nos preceitos,
considerados parte medular do judaísmo ortodoxo.
Vejamos, através de dois
depoimentos, como os baalei teshuvá explicam a escolha da ortodoxia dentre tantas
formas de judaísmo:
3
- Cf. Topel, 2003.
- Cf. Bell, C., 1997.
5
- Do hebraico: Pentateuco.
4
6
Você me pergunta por que, entre tantas formas de ser judeu, eu optei pela ortodoxia e eu
lhe respondo: porque é a única coerente! Eu já tenho experiência com o judaísmo
liberal e reformista e laico principalmente, e acho que é uma coisa que não faz sentido
nenhum, porque é simplesmente um folclore, um humanismo revestido de um folclore
judaico, freqüentado por pessoas que, na verdade, têm um desejo de abandonar... Mas
pela consciência pesada de estar abandonando, preferem freqüentar um local onde haja
um sacerdote da sua nova religião que é o humanismo, que participe de uma grande
mentirinha social que lhes diz que isso é o judaísmo, quando na verdade é um
humanismo com folclore judaico. Isso é fácil de se verificar porque sempre que o
humanismo se confronta com o judaísmo, esse tipo de pessoas sempre opta pelo
humanismo e não pelo judaísmo.
Porque eu entendo a própria palavra ortodoxia como a doutrina correta, parece que em
grego é a tradução de coisa certa. Então, a gente escolhe, a gente quer escolher a coisa
certa, o que é melhor para a gente. Eles [os ortodoxos] me mostraram a Torá, a beleza
da Torá, a força da Torá, então, na minha cabeça nada mais lógico do que aprender com
quem passa a Torá da maneira mais pura, do jeito mais correto. Eu não preciso que
alguém pegue essa Torá e a reforme para mim e a dê para mim reformada. Eu prefiro
pegar ela da fonte mais pura, do jeito mais certo que para mim é o ortodoxo.
Os depoimentos pertencem a pessoas na faixa dos 22 aos 37 anos e surpreendem
pela percepção racionalista da realidade, sem qualquer viés místico 6, que reflete a autopercepção dos atores como indivíduos que conscientemente escolhem uma dentre muitas
alternativas conhecidas, tanto religiosas como laicas, salientando a superioridade da
ortodoxia7. A crítica ao judaísmo reformista, julgado como superficial, materialista e
hipócrita, se contrapõe à avaliação da ortodoxia como sistema coerente e verdadeiro que
dá sentido ao ser judeu.
Em uma época e contexto nacional marcados pela multiplicidade de identidades
coletivas, seja uma combinação de identidades étnicas e religiosas, ou de múltiplas
identidades religiosas que convergem num mesmo ator social (Sanchis, 1997; Cipriani,
6
- Plantado num contexto sócio-cultural onde florescem religiões e expressões religiosas nas quais o
milagre ocupa um papel destacado no recrutamento de novos membros, o judaísmo ortodoxo nos depara
com uma realidade diferente, que transforma o discurso dos rabinos, isto é, a palavra, no veículo principal
para a aproximação e posterior conversão de fieis.
É necessário acrescentar, ainda, que outras
manifestações da experiência religiosa difundidas em diversos cultos da sociedade brasileira, como
possessão, transe, êxtase, sessões de cura, exorcismo, e expressões místicas dos mais diversos tipos, não
existem nos serviços religiosos judaicos.
7
- Esta interpretação dos baalei teshuvá paulistanos assemelha-se à dos novos ortodoxos norteamericanos, entre os quais fizeram pesquisa Danzger (1989), Davidman (1991) e Kaufman (1993).
7
1998; Brandão, 1994), os baalei teshuvá paulistanos se encontram numa posição oposta:
a luta contra a ambigüidade que observam nesse tipo de alternativas (“não dá para
combinar humanismo e judaísmo”) e a procura pela doutrina correta, que julgam ser
monopólio de uma única instituição: a ortodoxia. Nessa ordem, fica claro que se bem a
matrilinearidade é condição
necessária para ser judeu, não é suficiente, porque o
judaísmo puro e verdadeiro só pode ser encontrado na ortodoxia
Dizendo de outro modo, os baalei teshuvá não só rejeitam quaisquer empréstimos
religiosos ou a incorporação de rituais e símbolos de outras confissões –e de outras
formas de judaísmo-, mas fazem questão de seguir à risca todos os preceitos judaicos no
afã de não transgredir nenhuma norma do que consideram ser uma religião e uma forma
de vida impolutas. É possível observar, também, que a “liberdade” que caracteriza a vida
moderna é concebida pelos novos ortodoxos como empecilho para a conquista da
felicidade. Finalmente, o relativismo de valores representado pela sociedade secularizada
por um lado, e pelo judaísmo reformista e laico, por outro (estes últimos, sempre
receptivos à incorporação de idéias, símbolos e valores alheios), é concebido como
superficial, desconcertante, “louco”, “contraditório”, “uma mentirinha social”, que acaba
erguendo-se como uma barreira que afasta o indivíduo da procura de uma vida coerente
e, como correlato, dotada de sentido. Esta, por sua vez, só pode ser lograda numa
comunidade que privilegia os laços de coesão social entre seus membros, e que respeita
os valores genuínos, isto é, os valores não reformados do judaísmo. A coerência da
ortodoxia, que tanto salientam os baalei teshuvá quando explicam seu processo de
conversão religiosa, pareceria protegê-los da ambigüidade de valores que distingue a vida
social, e que tem sido tematizada por diversos estudiosos da religiosidade
contemporânea8. Nas palavras de Berger:
O cosmos sagrado emerge do caos e continua a enfrentá-lo como seu terrível contrário.
Essa oposição entre o cosmos e o caos é freqüentemente expressa por vários mitos
cosmogônicos. O cosmos sagrado, que transcende e inclui o homem na sua ordenação
da realidade, fornece o supremo escudo do homem contra o terror da anomia. Achar-se
numa relação “correta” com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo das
8
- Cf. Weber, 1993; Durkheim, 1996; Berger, 1985; Geertz, 1987; Hervieu-Léger, 2000.
8
ameaças do caos. Sair dessa “relação correta” é ser abandonado à beira do abismo da
incongruência (Berger, 1985: 39-40).
Se estas ponderações têm algum sentido, podemos afirmar que a vida densamente
ritualizada que caracteriza o judaísmo ortodoxo é concebida pelos baalei teshuvá como
um baluarte perante as incertezas e o caos que, não necessariamente, se expressam em
calamidades –sejam pessoais ou coletivas, próximas ou distantes. Não é casual, portanto,
que os baalei teshuvá, com o objetivo de proteger essa nova forma de vida, tentem
reduzir ao máximo os contatos com o mundo não ortodoxo, que em várias entrevistas foi
identificado como “o mundo lá fora”, dando origem a uma expressão de judaísmo
tipicamente pós-moderna, que manifesta um dessideratum oposto àquele que caracterizou
a Modernidade. Assim, se a maioria dos imigrantes que chegou a São Paulo entre as
décadas de 1940 e 1950 tentou, por todos os meios, se assimilar à sociedade mais ampla,
hoje presenciamos o fenômeno inverso: o retorno a bairros étnicos e a recuperação e
defesa do particularismo judaico, em lugar de salientar seus componentes universalistas.
E se bem os rabinos doutrinários orientam para um processo de afastamento gradativo do
mundo secular que não implique traumas que possam até interromper o processo de
teshuvá, todo o arcabouço de crenças, valores, símbolos e rituais que aprendem e
incorporam os baalei teshuvá desemboca, necessariamente, no distanciamento de um
mundo que é considerado alheio e pernicioso para os objetivos de quem escolheu o
caminho da observância religiosa.
A seguinte observação do rabino Steinsaltz, autor do
livro A teshuvá, um guia para o judeu recém praticante, é ilustrativa desta forma de
conceber o judaísmo:
O eu autêntico somente pode ser preservado delimitando limites e fronteiras, de dentro
para fora. Tanto a natureza judaica coletiva quanto a intelectual estão continuamente
sob a ameaça do envolvimento com os estranhos. E como esse envolvimento nem sempre
é percebido conscientemente, ele precisa de vigilância constante (Steinsaltz, 1994:112).
Fazer um mapeamento desses fenômenos nos permitiu observar as formas através
das quais o judaísmo ortodoxo tem instituído rituais e práticas que redundam na
configuração de um sistema de vida que se opõe, de forma radical, às manifestações
religiosas que vemos proliferar na sociedade brasileira contemporânea, caracterizadas
9
pelo hibridismo e sincretismo, “nomadismo da fé” e “religião difusa” (Brandão, 1994;
Pace, 1997; Sanchis, 1997).
Por sua vez, os diacríticos que mais tarde ou mais cedo devem incorporar os
baalei teshuvá, como o uso do solidéu entre os homens e a peruca entre as mulheres,
constituem um meio de comunicar a todos os outros sua condição de pertencerem a uma
comunidade particular: a comunidade de judeus observantes. Uma outra função destes
diacríticos é favorecer o controle social que a comunidade exerce sobre seus membros.
Acredito que se pode ir um pouco mais longe até e, como Levi (s/d), afirmar que a
comunidade judaica ortodoxa é uma comunidade mobilizada, na qual a vestimenta, ou
como Levi faz questão de denominá-la, “o uniforme”, é parte indissociável de uma
ideologia que se expressa na necessidade de ficar separada -e se diferenciar- de tudo o
que lhe é alheio. Em outras palavras, uma ideologia que tem como objetivo principal
“preservar o gueto judaico” (Levi s/d, 31).
Da perspectiva das teorias da etnicidade (Barth, 1969), isto significa colocar em
prática mecanismos para estreitar as fronteiras do grupo, impermeabilizando-o perante as
influências do mundo exterior. Finalmente, se como observara Durkheim (1996), os
rituais religiosos têm como função principal promover a coesão do grupo, parece-me
pertinente assinalar o fato de que o isolamento crescente que as comunidades ortodoxas
se impõem, não só aumenta a solidariedade entre seus membros, mas também lhes
proporciona as condições ideais para tomarem consciência de si mesmas, celebrando,
através do cumprimento do mandamento Divino, a sua existência e continuidade
enquanto grupo étnico-religioso.
3. À guisa de conclusão
Do ponto de vista dos estudos religiosos, é possível afirmar que estamos em
presença de um movimento fundamentalista, uma vez que o que sobressai na concepção
10
ortodoxa é a idéia da Bíblia como livro revelado, no qual, a priori, é proibido fazer
quaisquer modificações, sendo que a função principal das mitzvot ou preceitos é obedecer
à vontade Divina, através da manutenção de um rígido código ético e
legal.
Paralelamente, e como faz questão de destacar Grossman (1987: 391):
O “povo sagrado”... contradiz, pela lógica de sua legitimidade transcendental, todas as
nações do mundo. E pela mesma lógica, o Livro do qual o povo sagrado é custódio,
desqualifica a legitimidade e as mudanças de sentido de todos os outros livros.
Isto ficará mais claro se lembrarmos que já na primeira teofania, o Deus bíblico se
apresenta ao homem como um Deus que comanda (Urbach, 1979:315), quando proíbe
Adão e Eva de comer do fruto da árvore do conhecimento. Contudo, é na teofania na qual
o Deus de Israel se revela ao povo todo para com ele, através do outorga da Lei, selar o
pacto que o transformará numa nação de sacerdotes, que encontramos a matriz do
sagrado no judaísmo: “Sereis consagrados a mim, pois eu, Iahweh, sou santo e vos
separei de todos os povos para serdes meus” (Lev. 20:26). Eis neste versículo o
imperativo do imitatio Dei em toda sua força! O povo de Israel deve ser santo porque
Deus é santo e assim o ordena. No intuito de melhor compreender este tópico, é preciso
levar em consideração que no hebraico bíblico, o termo santo ou sagrado, kadosh,
significa “colocar à parte”, “estar colocado à parte”, “distinguir de”, “ser distinto de”9, e
só Deus é verdadeiramente sagrado ao estar à parte dos acidentes do mundo, por ser além
das contingências: só Deus é necessário e transcendente (Harvey, 1977:9).
Harvey
ilustra esta idéia lembrando que a sacralidade do sábado, a primeira entidade imbuída do
sagrado encontrada na Bíblia hebraica,
é análoga à sacralidade de Deus.
Mais
precisamente, Deus é santo porque criou o mundo mas está à parte dele, assim como o
sábado foi consagrado por ser distinto dos outros seis dias da semana.
Dentro desta
perspectiva, carregar o jugo das mitzvot, isto é, seguir à risca os preceitos, é o caminho
aberto ao judeu e ao povo de Israel para serem santos assim como Deus é santo, tornando
a aliança uma realidade concreta, cuja consecução é fonte de bênçãos e sua
desobediência, motivo de infortúnios. A importância e função dos preceitos: consagrar
o povo de Israel, revela até que ponto o judaísmo não é uma religião de dogmas ou
9
- Even-Shoshan, A. 1992.
11
valores, nem constitui uma crença abstrata ou confessional, e sim uma fé essencialmente
prática, ancorada num sistema complexo de atos e rituais religiosos, cuja obrigatoriedade
radica, exclusivamente, na aceitação da autoridade legislativa de Deus e das instâncias
judaicas reconhecidas como seus agentes legítimos, tornando todo o que é alheio,
perigoso.
Estas características do movimento de teshuvá refletem seu distanciamento das
categorias mais utilizadas para compreender as diversas manifestações religiosas no
Brasil de hoje, transformando-o num caso atípico ou erigindo-se num sinal de alerta para
uma reformulação conceitual dessas categorias, já que na literatura especializada não
encontramos referências a movimentos fundamentalistas, só menções a “raros casos de
ortodoxias decadentes” (Brandão, 1994:59). Mas se o afastamento –e até a abominaçãodos valores e símbolos da sociedade maior constitui um traço distintivo do movimento de
teshuvá paulistano, o olho aguçado consegue observar
algumas influências da
religiosidade brasileira, o que permite elencar a hipótese de que se o gueto existe, suas
fronteiras não estão hermeticamente fechadas ao “mundo lá fora”.
A primeira marca desta influência se relaciona com certa transumância observada
entre os baalei teshuvá paulistanos que, à diferença de seus pares em Israel e nos Estados
Unidos, não se filiam a uma única congregação ortodoxa, participando ativamente das
atividades desenvolvidas por distintas sinagogas.
Conseqüentemente, encontramos a
adoção de comportamentos e símbolos de correntes racionalistas e místicas, sem ver nisto
uma contradição de princípios.
O depoimento que se segue, pertencente a um rabino
norte-americano, muito ativo em aproximar judeus paulistanos à ortodoxia, é eloqüente:
No Brasil eu me identifico com cada judeu da mesma forma em que nos Estados Unidos
eu me identifico com meu grupo. O que acontece em todos os lugares onde existe uma
comunidade judaica maior é que cada grupo é por si, como em Nova Iorque, por
exemplo, onde até há rachas entre os diferentes grupos. Mas aqui em São Paulo há uma
compreensão maior, de alguma forma, os judeus aqui são mais unidos que nos Estados
Unidos, em Israel e até na Argentina; as pessoas aqui são diferentes.
12
O tamanho relativamente pequeno da comunidade judaica local, com certeza,
constitui parte da explicação para compreender a falta de fronteiras entre as diversas
congregações ortodoxas.
Contudo, para torná-la mais abrangente é fundamental
acrescentar as características do mercado brasileiro de bens religiosos, dentre as quais, o
nomadismo pareceria ser a mais relevante.
E se bem no caso dos novos ortodoxos ele
restringe-se à peregrinação entre comunidades judaicas, ainda assim, estamos perante um
fenômeno tipicamente brasileiro, isto é, inexistente em outras comunidades de baalei
teshuvá, tanto em Israel como na diáspora.
A segunda tipicidade do movimento de teshuvá paulistano –que deu origem a uma
comunidade ortodoxa com características próprias- diz respeito à inexistência de uma
ortodoxia segundo os moldes rígidos conhecidos em Israel, nos Estados Unidos e em
outros países da Europa. É esta uma das razões pelas quais um número significativo de
baalei teshuvá viaja ao exterior para ter um contato mais íntimo com uma comunidade
ortodoxa consolidada, preparada para brindar cursos em nível avançado –tanto para
homens quanto para mulheres, provendo uma estrutura de plausibilidade (Berger, 1985)
que lhes dá amparo e os provê dos recursos necessários para afiançar seus laços com o
mundo ortodoxo. Por outro lado, o fato destacado por vários rabinos, de no Brasil não
existir uma inquietude por parte dos judeus laicos em defender a teoria da evolução
quando confrontados com a visão judaica, e de não haver um sentimento anti-religioso
entre os judeus seculares, sem lugar a dúvidas exerce uma influência nos modos de
recrutamento de novos membros que, por sua vez, têm conseqüências nas formas em que
se delineou a comunidade ortodoxa paulistana.
acrescentar a completa
A estes critérios é necessário
aceitação dos baalei teshuvá pelos judeus ortodoxos por
nascimento, fenômeno que não encontramos nem na sociedade norte-americana, nem na
israelense, e que mereceria um estudo, com o objetivo de tentar rastejar suas causas e
desdobramentos.
Em suma, os novos ortodoxos de São Paulo conseguiram transformar o judaísmo
paulistano, reconfigurando-o ao redor dos princípios e diretrizes que chegaram ao Brasil
dos dois centros irradiadores de valores judaicos: Israel e os Estados Unidos, onde na
atualidade se encontram as duas maiores comunidades judaicas. Todavia, o processo de
13
domesticação dessa matriz religiosa sofreu numerosos aggiornamentos. Uma expressão
visível dessa adequação é certa maleabilidade das fronteiras do grupo com a decorrente
abertura a idéias, valores e configurações exógenas, o que permite esboçar a hipótese da
criação de um fundamentalismo em terras brasileiras, porém, de um tipo que poderíamos
denominar light.
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