Fazendo a coisa certa - Central do Estudante

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Organizadoras
Ângela Kretschmann
Evanisa Helena Maio de Brum
FAZENDO A COISA CERTA
DIÁLOGOS ENTRE JURISTAS E PSICÓLOGOS
A PARTIR DE MICHAEL SANDEL
Rio Grande do Sul – 2014
Florianópolis – 2014
Editora CONCEITO EDITORIAL
Presidente
Salézio Costa
Editores
Angela Kretschmann
Evanisa Helena Maio
de Brum
Assistente Editorial
Lourdes Fernandes Silva
Capa e Diagramação
Paulo H. Benczik
Revisores
Ana Marson
Celso Augusto Nunes da
Conceição
Valdnei Martins Ferreira
Álvaro Filipe Oxley da Rocha - PUCRS
André Karam Trindade - IMED
Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard - CESUCA
Celso Augusto Nunes da Conceição - CESUCA
Daniel Achutti - UNILASALLE
Elaine Harzheim Macedo - PUCRS
Conselho Editorial
Guilherme de Oliveira Feldens - CESUCA
Aline da Silva Piason
Ielbo Marcus Lôbo de Souza - UFSE
Ana Raquel Karkow
Ingo Wolfgang Sarlet - PUCRS
Débora Silva de Oliveira
Jaqueline Mielke Silva - IMED
Evanisa Helena Maio de Brum
Kelly Lissandra Bruch - CESUCA
Lauren Tonietto
Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira - UNISINOS
Márcia Elisabete Wilke Franco
Maúcha Sifuentes
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898
F287
Fazendo a coisa certa – Diálogos entre juristas e psicólogos a partir de Michael Sandel
- Organizadoras: Ângela Kretschmann; Evanisa Helena Maio de Brum - Florianópolis:
Conceito Editorial, 2014.
164p.
ISBN 978-85-7874-388-8
1. Direito 2. Psicologia 3. Diálogo 4. Ética 5. Michael Sandel
I. Kretschmann, Ângela II. Brum, Evanisa Helena Maio de (organizadoras)
CDU – 340
Este exemplar foi produzido com o apoio da Faculdade Inedi, Cesuca, que detém os direitos
autorais da obra, sendo decisão do titular distribuir, gratuitamente ou não, exemplares da
obra, até esgotar a edição.
Venda Proibida.
© Copyright 2014 Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Faculdade Inedi - CESUCA
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Conceito Editorial
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Editorial: Fone (48) 3205-1300 – [email protected]
Comercial: Fone (48) 3240-1300 – [email protected]
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SUMÁRIO
PREFÁCIO............................................................................................................... 7
1
FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A
LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA......................... 15
Ângela Kretschmann
Celso Augusto Nunes da Conceição
2
FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS DE JUSTIÇA DE SANDEL
SOB O OLHAR DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA, COGNITIVA E
COGNITIVO-COMPORTAMENTAL..................................................................... 43
Ana Raquel Menezes Karkow
Maria Verônica Schmitz Wingen
Lauren Tonietto
3
FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A
PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS...................................... 59
Camile Eltz de Lima
Emerson de Lima Pinto
4
O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA.................... 75
Evanisa Helena Maio de Brum
Fernanda Vaz Hartmann
5
A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA................................................ 85
Guilherme de Oliveira Feldens
Ney Wiedemann Neto
6
SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A
PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL............................................101
Lauren Tonietto
Andréia Mello de Almeida Schneider
Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
7
SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O
JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA ERICH FROMM...............113
Paula de Jesus Martins
8
QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO...........123
Maúcha Sifuentes
9
O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA........................................................135
Renato Selayaram
10
DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA
ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA..............................................................149
Aline da Silva Piason
Débora Silva de Oliveira
Márcia Elisabete Wilk Franco
PREFÁCIO
A reflexão sobre a coisa certa a fazer constitui uma reflexão moral
e, como tal, fadada a um esvaziamento de sentido se praticada isoladamente. A reflexão moral é uma reflexão coletiva, daí a ideia de uma
reflexão conjunta entre juristas e psicólogos, um diálogo aberto sobre a
pessoa e o comportamento. A análise do indivíduo e do seu comportamento ocupa lugar especial na Psicologia, tanto quanto no Direito, por
isso a ideia de um diálogo entre juristas e psicólogos a partir das situações-problemas, reais, trazidas por Michael Sandel em seu livro Justiça
– o que é fazer a coisa certa.
O resultado foi, como não poderia deixar de ser, uma experiência
única de interação, diálogo e, muitas vezes, de espanto. Perceber como
uma área distinta – e com a qual se necessita dialogar e compartilhar
decisões – é uma experiência única, em especial nessa situação, levada a
efeito a partir do desejo comum de partilhar algumas angústias teóricas
e práticas, em que professores do Direito e professores da Psicologia
pleitearam, de coração aberto, um espaço privilegiado e legítimo para
debater o que todos desejam saber: o que é a coisa certa a fazer. O resultado pode ser parcialmente vislumbrado neste livro que agora vem a
público, como uma pequena amostra do que foi discutido em conjunto.
A partir das apresentações de cada grupo, questões para o debate foram
postas pelo público e enfrentadas em conjunto. Sem dúvida, uma experiência que merece vir a público.
Na prática, Direito e Psicologia prestam auxílio mútuo buscando
a solução de conflitos e paz social. No Complexo de Ensino Superior de
Cachoeirinha/RS (Cesuca), o curso de Psicologia já possui seu núcleo
jurídico, através do qual presta assessoria ao Judiciário acompanhando
casos delicados envolvendo dilemas familiares. No mesmo sentido, a
Psicologia necessita do Direito para orientações legais em casos de peri7
go e de dano iminente. No mesmo sentido, o Serviço de Assistência Jurídica Gratuita (Sajug) do curso de Direito da Faculdade Inedi - CESUCA precisa da Psicologia em casos envolvendo Direito de Família, em
especial no caso de vulneráveis, menores e desassistidos. A colaboração
e interlocução entre os cursos de Psicologia e de Direito não é apenas
desejável, é necessária, e, nesse processo contínuo de aproximação, o
Seminário realizado na Mostra Científica do Cesuca 2013 mostrou-se
extremamente frutífero, permitindo, em especial, que vários professores
das duas áreas se conhecessem mais, trocassem experiências, iniciassem
um diálogo produtivo, que aqui agora é apresentado.
No presente livro, o primeiro capítulo traz como objeto principal
a importância da linguagem para a Psicologia e para o Direito. Os autores, Ângela Kretschmann e Celso Augusto Nunes da Conceição, buscam
identificar, nas relações entre pessoas, sociedade e o Direito, qual é o
papel real da linguagem na busca de acordos de vontade que – a princípio – tem como objetivo chegar à coisa certa. Nesse caminho, o artigo
procura mostrar o poder da linguagem nas relações humanas, o quanto
se deve ao bom uso da linguagem a vitória em várias disputas, em debates e em acordos, e o quanto podemos ser vítimas do seu mau uso, mas,
acima de tudo, e antes de tudo, destacar que a linguagem no contexto
de um diálogo envolvendo terapia (na Psicologia), ou interrogatório (no
Direito), não é um objeto que se manipula simplesmente; é, antes, “a
única coisa certa” que pode ser verdadeiramente compreendida.
No segundo capítulo, a reflexão segue com as autoras Ana Raquel
Menezes Karkow, Maria verônica Schmitz Wingen e Lauren Tonietto,
sob o título “Fazendo a coisa certa: as ideias de Justiça de Sandel sob
o olhar das Psicologias Evolucionista, Cognitiva e Cognitivo-Comportamental”, apresentando relações entre as diversas abordagens com o
Direito, para melhor compreender os mecanismos envolvidos no comportamento moral.
As autoras partem do caso real trazido por Michael Sandel acerca
do aumento do preço dos bens de consumo após a passagem de um
furacão. Quem tinha qualquer coisa para vender ou serviço para prestar
e cobrava muito mais depois da passagem do furacão foi tachado de
ganancioso. As autoras apresentam uma análise do conceito de justiça e
moral a partir de abordagens distintas da Psicologia.
8
A Psicologia evolucionista dirá que normas jurídicas e morais
existem, dado que o ser humano é compreendido a partir do paradigma
das espécies culturais, capazes de relações sociais. A Psicologia Cognitiva concebe que é antes através do pensamento que a qualidade da ação
moral pode ser aferida, enquanto a Psicologia Cognitivo-Comportamental passa a focar sua análise não apenas no indivíduo, mas também
no comportamento em si, que pode trazer compreensão sobre a própria
essência do ser humano, em especial se observado o modo como o próprio indivíduo compreende determinado comportamento ou ação, ou,
em outras palavras, como o indivíduo se percebe e percebe determinada
situação. De outro lado, também é possível destacar as distorções cognitivas, que levam um indivíduo a concluir de modo equivocado acerca de
determinado fato e, assim, pode enganar-se na decisão sobre uma ação a
ser tomada. É interessante apontar como as autoras alinhavam o raciocínio fazendo brotar a complementariedade entre as distintas abordagens.
O terceiro capítulo do livro, de autoria de Camile Eltz de Lima e
Emerson de Lima Pinto, principia com uma advertência: “Não defendemos o Direito como a principal ou a mais importante das Ciências existentes (superamos, aqui, o narcisismo). Pelo contrário, o Direito nada
mais é que ciência jurídica e social aplicada e, por isso, imprescindível
dialogar com outros ramos do saber”. Destacam a complexidade da sociedade contemporânea, enfatizando que “não há mais lugar para o absoluto, para o previsível, para a certeza e a segurança”. O resultado de insegurança, em que vive um indivíduo que pertence a uma nova espécie
de barbárie, são riscos imensos, que levam à concepção de “sociedade
do risco”. Nesse cenário de risco, o Estado perde seu poder como agente da segurança: cenário de criminalidade globalizada, e então a busca
no Direito Penal pela segurança perdida, com privilégio da tutela dos
interesses do Estado, e não do indivíduo, e primazia da razão de Estado
diante da razão jurídica, com uma lógica invertida, quando os autores
chamam a atenção para um Direito de exceção, nada garantista, com o
resgate de práticas inquisitivas e perversas. Tudo oposto para uma época
de democracia que ainda tenta se globalizar e para a qual o indivíduo é
que é valorizado.
O princípio da humanidade impede que o poder estatal aplique
sanções que ofendam a dignidade humana, concluindo que a tortura
não pode ser aceita, em nenhuma hipótese. Os autores não justificam a
9
defesa contra a tortura apenas em argumentos jurídicos, mas também
epistemológicos, demonstrando que a verdade não pode ser extraída da
dor, o critério da verdade não está na tortura, lembrando, ainda, o dualismo entre corpo e espírito que a tortura refaz – a fala do sujeito que é
torturado deixa de ser parte dele mesmo; é, antes, parte da verdade que
o torturador impõe.
No quarto capítulo, sob o título “O utilitarismo e a felicidade na
visão da Psicologia”, as autoras Evanisa Helena Maio de Brum e Fernanda Vaz Hartmann partem da questão sobre a possibilidade de se
traduzir valores morais em termos monetários, discutindo o que são
a moralidade e a felicidade, demonstrando a contínua fragilização dos
valores morais, ao mesmo tempo em que a busca da felicidade parece
suplantar qualquer outro valor, apontando, nessa linha, para a fragilização das instituições sociais e fragilização do próprio julgamento moral,
e para a importância que a educação ganha nesse cenário, como a saída
para a superação desse paradoxo.
No quinto capítulo, escrito por Guilherme de Oliveira Feldens e
Ney Wiedemann Neto, sob o título “A justiça, a solidariedade e a vida
boa”, são examinadas as obrigações de solidariedade entre membros do
mesmo grupo. Os autores apresentam a concepção liberal de John Rawls, como deveres naturais ou obrigações consentidas, voluntárias: os
primeiros, universais; os segundos, particulares. Ela exige que os direitos das pessoas sejam preservados, mas o cidadão tem o dever de não
cometer injustiças, mas nenhuma obrigação especial com os compatriotas. O artigo analisa um terceiro tipo de obrigação moral que Sandel
apresenta, com crítica ao individualismo e à neutralidade do Estado,
uma neutralidade que só serve para esconder os valores de determinada
sociedade, em especial, a ocidental. Surge, assim, a defesa das ideias de
comunidade como fundamentais para o próprio indivíduo.
Para chegar a essa conclusão, os autores partem da própria crítica à concepção de pessoa dos teóricos liberais, em especial de Rawls,
entendendo que a pessoa real é inserida em um contexto comunitário,
sempre, sob pena de desfiguração da própria identidade, afinal, a identidade pessoal tem relação com a identidade social. Daí sobrevêm as
obrigações de solidariedade, que envolvem responsabilidades morais
com os outros indivíduos com os quais a mesma história é compartilhada – em uma concepção narrativa da ação moral, à qual filia-se Mi10
chael Sandel. Os autores destacam, ainda, que, nessa linha, justiça não
se resume a uma distribuição equitativa de coisas, envolvendo também
concepções de honra e virtude, orgulho e reconhecimento, ou seja, envolve também reflexão sobre a vida boa, dentro de um contexto de uma
comunidade. Passo seguinte, os autores identificam, no ordenamento
jurídico nacional, situações já positivadas de solidariedade como obrigação moral, e logo a seguir, apresentam também os casos já enfrentados pela jurisprudência.
O sexto capítulo vêm sob o título “Somos donos de nós mesmos?
Reflexões da Psicologia a partir das ideias filosóficas de Sandel”, de Lauren Tonietto, Andréia Mello de Almeida Schneider e Fernanda Cesa
Ferreira da Silva Moraes. As autoras partem da análise da reflexão moral, que é uma busca coletiva, segundo Michael Sandel. Destacam que,
mais do que responder às inúmeras questões postas por Sandel, a partir
do olhar da Psicologia, buscam estabelecer uma discussão com as ideias
filosóficas apresentadas. Lembram que o desenvolvimento moral pressupõe aprendizado de regras sociais ou de convivência; lembram que,
a partir de Freud, o conjunto de proibições internalizadas pelo sujeito
é chamado de superego, e, quando as leis são internalizadas, o sujeito é
capaz de perceber o que é certo e errado.
Com os estudos de Piaget, vem a teoria sobre o desenvolvimento
moral, ao logo do qual desenvolve também “sentimentos morais” (como
o senso de justiça). Em seu último estágio, o indivíduo é capaz, inclusive, de realizar críticas às normas impostas. Piaget não indicou estágios
de desenvolvimento; ao contrário, apontou que as pesquisas eram insuficientes para tal conclusão. Estudos mais recentes com outros autores
mostram, segundo indicam as autoras, que o indivíduo pode desenvolver e avaliar questões sociais e emitir julgamentos morais de maneira
bem mais precoce do que os dados indicados por Piaget. As autoras
indicam que o sujeito está em uma caminhada permanente, rumo à autonomia moral.
As autoras chegam a Foucault, lembrando a necessidade da
criação de formas de controle, o que poderia se dar por causa da falta
de um desenvolvimento moral pleno e satisfatório. Indicam a linha tênue existente entre uma intervenção estatal para vigiar e punir e uma
que exista para organizar, ordenar e, assim, conduzir a sociedade e o
indivíduo à liberdade. Sugerem, assim, que se amplie a discussão sobre
11
a autonomia moral e a liberdade de escolha, sabendo-se que muitos
indivíduos nem sequer chegam à autonomia moral, permanecendo no
estágio de uma moral heterônoma, e deixam uma questão final: como
garantir a liberdade de escolha e de ação para aqueles que não atingem
a autonomia moral?
A seguir, no sétimo capítulo, a professora Paula de Jesus Martins
destaca a diferença entre as escolhas éticas do indivíduo e do Estado, e
bem assim, a tradicional e hoje já desgastada divisão entre as esferas do
“público” e do “privado”. A autora apresenta um contraponto à provocação de Michael Sandel, a partir do texto do psicanalista Erich Fromm,
considerando a teoria da autoridade racional e do primado da ética humanista. A autora, com uma percepção muito aguçada, analisa a estreita
relação entre o Direito e a Psicologia a partir de ações humanas que
obedecem a lei, voluntariamente, e ações que não obedecem, também
voluntariamente, pois não consideram a manifestação estatal legítima,
e não se sentem criminosos por determinados atos, ainda que previstos
em lei como crime. A autora traz uma relevante contribuição para este
diálogo, a partir do questionamento sobre o quê, efetivamente, motiva
nossas escohas, se a ética, ou o direito.
No oitavo capítulo, Maúcha Sifuentes enfrenta o dilema moral do
preconceito e da inclusão, no capítulo sob título “Quem merece o quê?
Discussões em tempos de inclusão”. Pelo texto da autora, é possível destacar que já não há mais espaço para a dúvida acerca das vantagens da
inclusão. Os resultados de estudos científicos, em especial após as conclusões no sentido de que o desenvolvimento é um processo cultural,
mostram que o ambiente de inclusão, na escola, em especial, é fundamental para o destino do indivíduo. Daí a importância da universalização do acesso à escola e a abolição de processos de seletividade. Ao final,
a autora indica uma necessária mudança de paradigma, principalmente
em torno da educação especial, para dar a melhor resposta à pergunta:
quem merece o quê?
No novo capítulo é aborado o bem comum, como direito fundamental do homem, com o professor Renato Selayaram. O autor toma
como ponto de partida o capítulo 10 de Michael Sandel, e passa a trabalhar a sociabilidade e a atração que o poder exerce nas pessoas, lembrando, com o grande senador e orador romano Cícero, que é o poder
político que requer maior cuidado de todos, justamente porque mo12
nopoliza o uso da força na sociedade. O autor aborda teorias sobre o
nascimento do estado, e a busca pelo bem comum, assim como, o encontro da felicidade individual, dentro do contexto de um bem comum,
partindo de Platão, Aristóteles e principalmente Maquiavel, até alcançar
a época contemporânea, que inverte bastante o foco, que antes era na
comunidade, e passa para o indivíduo. A partir da abordagem conjunta com o livro de Sandel, o autor retoma a preocupação com o bem
comum, a partir dos direitos fundamentais do homem, ressaltando o
quanto o conceito de bem comum “sofre hoje um descaso sistemático,
padecendo de um ostracismo”, e traz uma rica abordagem das variadas
formas pelas quais o discurso ético e político atual apresentam o conceito de bem comum, ora de feição mais individualista, ora mais comunitarista ou coletivista, para ao final destacar o sentido de justiça social,
e sua relação com indivíduo e com o bem comum, tópico principal do
capítulo 10 do livro de Michael Sandel, que aborda principalmente a
questão da desigualdade. Daí a fundamental contribuição do professor
Renato Selayaram, ao tratar da justiça social dentro desse contexto, e ao
deixar claras as funções do Estado na busca de uma justiça social, diante
de uma Constituição Cidadã, como a brasileira.
E ao final, no décimo capítulo, as autoras Aline da Silva Piason,
Débora Silva de Oliveira e Márcia Elisabete Wilk Franco enfrentam o
tema sob o título “Dilemas de lealdade: um olhar da Psicologia Social
e da abordagem familiar sistêmica”. Destacam que muitos dos dilemas
morais ficam muitas vezes sem uma solução, “pois o ser humano tem
uma necessidade de objetividade”, quer dizer, busca uma solução racional para os problemas morais. As autoras enfrentam o dilema do individualismo moral e da identidade coletiva, refletem sobre a interferência
dos laços afetivos nas escolhas dos indivíduos e, ainda, apresentam uma
oportuna comparação sobre os casos a partir da perspectiva do individualismo moral e da abordagem sistêmica e da Psicologia Social.
Acreditamos que este diálogo que iniciou tendo como base o livro
de Sandel possa se tornar uma prática frequente entre os profissionais
de nossa instituição de ensino. A vivência dessa experiência, que agora
é compartilhada, já nos revela o quanto esse diálogo é possível, apesar
de se constituir em uma difícil tarefa, pois, ainda que a Psicologia e o
Direito trabalhem com o mesmo objeto, “o comportamento humano”,
fazem-no com instrumentos e linguagem técnica distintas.
13
Para que esse encontro de conhecimento se transforme cada vez
mais em “diálogo”, são necessárias ações conjuntas, integradas e inter-relacionadas entre as áreas, bem como a tradução constante dos distintos saberes e a abertura a novos conhecimentos.
Ângela Kretschmann
Evanisa Helena Maio de Brum
14
1
FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO
A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO
DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
Ângela Kretschmann1
- Celso Augusto Nunes da Conceição2
Sumário: Introdução - 1. Consenso sobre a coisa certa a
fazer - 2. Fazer a coisa certa ou fazer certo a coisa? Um equívoco
linguístico de Sandel? - 3. A retórica e a argumentação: o mau
uso da linguagem - 4. A retórica e a argumentação: o “ser-aí”
da língua(gem) - 5. Conclusão: a dialética da boa retórica e seus
benefícios psicojurídicos - Referências bibliográficas
1 Professora e coordenadora do curso de Direito do Complexo de Ensino Superior de
Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos/RS).
Pós-doutora pelo Institut for Information, Telecommunication and Media Law (ITM), Münster,
Alemanha.
2 Professor das disciplinas de Português Jurídico e Direito e Linguagem no Complexo de Ensino
Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre e doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
15
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
INTRODUÇÃO
Um capítulo para contribuir com discussões psicojurídico-linguísticas teve início na ideia interdisciplinar de fazer um debate entre o
curso de Psicologia e Direito do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), a partir de um objeto que fosse comum a essas
duas áreas, o livro de Michael Sandel, Justiça – o que é fazer a coisa certa,
e a área da Linguística, como entrou nessa discussão?
Efetivamente, o debate foi centrado nessas duas áreas, mas como
a Linguística está presente no curso de Direito, com as disciplinas de
Português Jurídico e Direito e Linguagem, o professor que as ministra
encontrou na leitura dessa obra um aparente paradoxo em relação à referência a Locke, feita por Sandel (2013, p. 136 e 265), que afirma ser
o Direito natural. Coincidentemente, ou não, essa segunda disciplina,
Direito e Linguagem, busca, na história da semântica, a disputa das posições sobre o naturalismo e convencionalismo, e Locke se posiciona
convencionalista em relação a ela, a linguagem.
Diante disso, o professor da área da Linguística postulou a sua
inclusão no debate, especificamente no que se referia a “fazer a coisa
certa”, chamada do livro de Sandel. E, para reforçar a sua inclusão, argumentou que a linguagem é quase tudo, está em quase tudo e representa,
com certeza, tudo. Ela é tudo o que existe, mas é a forma especialmente
humana de conhecer tudo o que existe.
O diálogo principia, então, com a professora do curso de Direito
argumentando que o Direito é linguagem, e o professor de Linguística
contrapondo que a linguagem é uma abstração e que está na base de
todas as ciências que necessitam se comunicar. Sendo uma abstração,
como operar intelectualmente um objeto de reflexão? A Psicologia é
chamada à baila para constituir uma área tripartite para investida nas
complicadas relações de direito do cidadão, a fim de se agregar à discussão do que se apresenta nos estudos de Sandel, especificamente no
seu livro Justiça – o que é fazer a coisa certa e sobretudo, como fazer a
coisa certa sem considerar efetivamente a importância da linguagem,
uma vez que ela é a própria essência da comunicação humana, da qual
tanto o psicólogo quanto o jurista dependem para realizar seus ofícios.
Além disso, historicamente, o consentimento pela linguagem, ou
pelo seu silêncio, representou alguma forma de opressão da liberdade de
16
1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
agir, da liberdade de falar e até mesmo da liberdade de desejar algo com
autonomia e independência. Prova de que o uso da linguagem chega a
manipular nossos desejos.3
1. Consenso sobre a coisa certa a fazer
Um dos primeiros passos no estudo do Direito enfrenta o questionamento sobre o modo como surgem as relações entre o ser humano,
a sociedade e o Direito. Abordam-se muitos autores, alguns afirmando
a existência natural da sociabilidade, outros afirmando que há um contrato social, que é assinado entre os “súditos” ou cidadãos, e o Estado. O
capítulo 6 do livro de Sandel4 inicia justamente falando sobre a imaginária existência de um contrato social.
As tradições culturais são muito distintas nesse sentido. Para os
chineses, por exemplo, a relação entre Direito (como Lei) e o ser humano não é nada natural, pois natural é a relação que não necessita da
força da Lei para estabelecimento da ordem.5 Enquanto isso, a Lei é vista
de modo muito natural entre os ocidentais, que a entendem, não raras
vezes, como resultado natural da própria sociabilidade. Onde está a expressão de justiça? Na ordem chinesa, que abomina a Lei, ou na ordem
que a vê como um resultado natural do contrato social? Onde existem
sinais de consenso? Os chineses tinham orgulho de uma época em que
o “consenso” elaborado por meio de leis não era necessário, pois a educação bastava. Um consenso viciado pela ordem posta, não por uma lei,
mas por um poder familiar.6 A questão fundamental é como alcançar
o consenso – um consenso real, baseado em um diálogo de vontades
3 A respeito, reportagem interessante sob título “Math Will Rock Your World”, de BAKER e
LEAK, publicada no Bloomberg Business Week, em 22 de janeiro de 2006, disponível em: <http://
www.businessweek.com/stories/2006-01-22/math-will-rock-your-world>, acesso em: 14 de abril
de 2014, e que teria, inclusive, dado origem ao livro de BAKER, Stephen. Numerati: conheça os
Numerati, eles já conhecem você. São Paulo: Arx, 2009.
4 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
5 A respeito em: ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. São Paulo: Martins
Fontes, 2000. p. 96-97. SEN, Amartya. Human Rights and Asian Values. New York: Carnegie
Council Publications, 1997. p. 17-18.
6 QIANG, Chen. Chinese practice in Public International Law: 2003 (I). Chinese Journal of
International Law, Spring 2004, v. 3, i1, p. 331. CHUN, Lin. Cómo situar a China. Traducion de
Isabel Vericat. In: El mundo actual: situación y alternativas. Mexico: Siglo Veintiuno, 1996. p. 320.
17
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
livres e autônomas. Daí a importância da linguagem: seja na dialética de
um consenso, seja na postulação de uma verdade.
Como nos mostra Franz Mootz (2011, p. 31), os retóricos antigos, aqui ele se refere aos gregos, “entendiam bem que o ‘senso comum’
cultural, que serve como pano de fundo para toda compreensão, alimenta-se não de verdades asseguradas metodologicamente, mas sim do
‘provável’, conforme articulado no conhecimento contingente e historicamente definido” – daí virá a importância da phronesis aristotélica,
em especial esclarecida por Gadamer (1996), como capacidade de conversar com o outro e elaborar juízos morais práticos com base em uma
tradição comum (MOOTZ, 2011, p. 32).
Quando se fala de convencionalismo ou consensualismo no Direito, lembra-se do contratualismo, e quando se fala do Direito Natural,
lembra-se da própria natureza humana como propensa à sociabilidade.
E foi exatamente em relação a esse convencionalismo em oposição ao
naturalismo que suscitou na Linguística a sua participação no debate psicojurídico, especificamente quando Sandel faz alusão à posição de Locke,
que afirma ser o Direito natural. O leitor pode estar se perguntando o
porquê da expressão “psicojurídico” se o que suscitou a sua intromissão
foi somente quanto ao Direito. Respondendo previamente ao possível
questionamento do leitor, a Linguística também encontrou motivo para
sua inserção na Psicologia, uma vez que, como já apontado, tanto o jurista quanto o psicólogo dependem da linguagem, pois ambas as áreas de
ofício têm na comunicabilidade uma dependência na sua ação.
Sandel relembra a posição original de vários autores clássicos:
Locke falava de um consentimento tácito, que consentimos implicitamente em obedecer à lei, “até mesmo ao trafegar por uma estrada,
está sujeito a ela” (SANDEL, 2013, p. 177). Seria um modo de ratificar
a Constituição, o que o autor sugere sendo uma forma muito branda de
consentimento. Enquanto isso, para Kant, o consentimento era hipotético: uma lei é justa quando tem a aquiescência da população como um
todo, o que também é difícil compreender. Por esse caminho, chega-se
a uma afirmação de John Rawls: a maneira pela qual entendemos a justiça é perguntando a nós mesmos com quais princípios concordaríamos
em uma situação inicial de equidade – segundo ele, teríamos que nos
reunir e formular um contrato social, e definir juntos quais os princípios que escolheríamos – o que, efetivamente, não é suposto na socie18
1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
dade chinesa antiga, tal como já destacado, uma vez que determinado
comportamento já é pressuposto inquestionável e que induz respeito à
ordem posta pelos mais velhos. Ela não é colocada para discussão, o que
certamente, entre seus membros, seria algo até risível.
Parece, assim, que a linguagem só é importante para uma sociedade que busca o consenso através do diálogo, mas não é verdade. Também o tirano precisa saber comunicar bem suas ordens se quiser vê-las
obedecidas. Como destaca Reboul (2000, p. 17), o tirano não faz o que
quer, apenas o que lhe agrada, pois fazer o que se quer implica saber do
que se trata, conhecer o objeto da vontade e seu valor real. Também aqui
é fundamental destacar que “o real das coisas” depende do sujeito autônomo para quem a linguagem é condição de possibilidade. Esse “valor
real”, como objeto do conhecimento, não pode ser pensado separado do
modo como nos aparece, ou aparece para o tirano. Há um sentido que
“é” antes do conhecimento, e a questão da condição de possibilidade
de estar-no-mundo ocorre através da linguagem – mas se o tirano não
é capaz dela... Ora, o caso do tirano é o mesmo de um juiz solipsista e autoritário, que julga conforme sua consciência, e não conforme a
Constituição.
E a busca da coisa certa a fazer seria a busca pela verdade ou pelo
consenso? Uma exclui a outra ou a busca não se refere nem à verdade
nem ao consenso? O que a coisa certa tem a ver com a verdade e o que
tem a ver com o consenso? Certamente o uso da linguagem em uma sociedade que busca um consenso deve ser mais apurado do que em uma
sociedade que só precisa compreender certos comandos de obediência.
Poderíamos ingressar aqui no campo da própria recepção de informação, distinta da compreensão, o que não vem ao caso, mas vale ressaltar,
uma vez que a compreensão situa-se na base de qualquer possibilidade
de reflexão crítica, o que é fundamental para a construção de um diálogo e de um diálogo que pode visar a um consenso... ou à decisão sobre a
coisa certa a fazer, que não coincide, necessariamente, com o consenso.
Michael Sandel demonstra que, se várias pessoas sentam para
elaborar as bases sobre as quais irão conviver, seria muito difícil chegar
a um consenso na questão dos princípios (SANDEL, 2013, p. 178), afinal, algumas pessoas são ricas, outras não; algumas são negras, outras
brancas; algumas têm alguma necessidade especial, outras não; algumas
têm uma imensa capacidade de uso da linguagem, outras não. Isso quer
19
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
dizer que o resultado do consenso poderá ser simplesmente o resultado
de uma barganha ou do poder de convencimento de alguém ou de um
grupo sobre os demais. E, por isso, segundo Rawls, o contrato social elaborado nesses termos de “consenso” – que se mostra viciado – é injusto.
Se desenharmos vários círculos no quadro para nossos alunos e
colocarmos em cada círculo um deles, sem que cada um saiba que personagem efetivamente irá representar, estarão todos sob o “véu da ignorância”, que Rawls sugere para que se possa sentar em uma mesa e discutir
sobre as regras de um contrato social. Assim, não sabemos nossa classe
social, não sabemos nossas necessidades especiais, não sabemos nossa
etnia, não sabemos nossa religião, nossas crenças, não sabemos nada,
então cada um terá de se preocupar com tudo. Ninguém sabe ali quem é
um importante jogador de futebol que ganha milhões ao ano, nem quem
nasceu sem as duas pernas e necessita de auxílio especial. Rawls chama
isso de “posição original de equidade” para a formulação de um contrato
hipotético. Em princípio, só assim saberíamos decidir com “isenção” de
interesses exclusivistas, individualistas e muito particulares.
E se efetivamente fosse possível essa posição original de equidade,
é também possível imaginar quais princípios básicos emergiriam primeiramente do “consenso”, resultado da “posição original de equidade” posta
pelo “véu da ignorância”. Sandel lembra que essa posição envolve as liberdades básicas para todos, e esse “tecido”, sobre a equidade social e econômica. A pergunta dos críticos de Rawls é: realmente as pessoas escolheriam esses dois princípios? (SANDEL, 2013, p. 178). Afinal, uma coisa é
estar “sob o véu da ignorância” acerca da posição original na sociedade, e
ainda outra coisa é o “véu da ignorância” relativamente à linguagem, que
é também um “outro” que postula por si próprio sua inclusão.
Retornando à questão concernente à dicotomia convencionalismo e naturalismo, em relação ao motivo por que a Linguística esteve
presente ao debate, Sandel provoca, talvez inadvertidamente, uma aparente contradição às afirmações de Locke. Por quê? Porque Locke participou do famoso debate da Tábula Rasa7 no século XVII, em que discutia com Leibniz sobre a origem da linguagem: é inata ou adquirida?
Locke a defendia como adquirida, retomando as ideias aristotélicas de
que “não existe nada no espírito humano que antes não tenha passado
7 PINKER, Steven. Tábula Rasa: a negação contemporânea da natureza humana. Tradução de
Laura Teixeira Motta. 2ª. Reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 23.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
pelos sentidos”, e Leibniz retomava a ideia plantonista de que tudo está
no cérebro. Na verdade, esse debate retoma uma das obras precursoras
no que se refere às discussões sobre a origem da linguagem: “Crátilo”.
Trata-se aqui de um dos Diálogos de Platão.8 Locke fez “a coisa certa”
com essa afirmação?
Em “Crátilo”, a ideia naturalista aparece quando apresenta o entendimento de que as coisas são o que são independentemente do nome
que têm: “– Ora, Sócrates, como poderia alguém dizer o que ele diz e
dizer algo que não é? Não é a falsidade dizer aquilo que não é?”.9 E depois de um longo diálogo, Crátilo responde afirmativamente à pergunta
de Sócrates, no sentido de que as coisas que são parece que podem ser
apreendidas sem recurso aos nomes:
Que outra maneira poderias esperar conhecê-las? Que outra maneira
restaria exceto a mais legítima e natural, a saber, apreendê-las na conexão
que possuem entre si – na hipótese de serem afins – e por meio delas
mesmas? De fato, aquilo que não é elas e delas difere não as denotaria,
mas denotaria algo que não é elas e que difere delas.10
Sócrates aceita seu raciocínio, mas também concorda com o convencionalismo de Hermógenes, criando, a partir daí, a figura do legislador
para dar nomes às coisas. Sócrates está fazendo a coisa certa concordando
com os dois? Podem duas ideias bem opostas estarem de acordo para
quem é considerado o mestre dos mestres da filosofia? Sócrates, através
de seu método maiêutico de tratar do conhecimento, fazia seus interlocutores entrarem em contradição com o entendiam saber, mas também os
inquiria para descobrirem o que não sabiam que sabiam. Sócrates já de8 Platão teria escrito nove diálogos insuspeitos (“Fedro”, “Protágoras”, “O Banquete”, “Górgias”,
“A República”, “Timeu”, “Teeteto”, “Fédon” e “As Leis”); outros diálogos, considerados suspeitos,
são: “Sofista”, “Parmênides”, “Crátilo”, “Filebo”, “Críton”, “Crítias”, “Eutífron”, “Político”, “Cármides”,
“Laques”, “Lísis”, “Eutidemo”, “Mênon”, “Hípias Menor”, “Ion” e “Menexeno” (alguns helenistas
duvidam da autenticidade, e por isso chegam a ser classificados às vezes como “quase suspeitos”,
ou mesmo “pouco suspeitos”. Já os diálogos “Alcibíades”, “Hípias Maior” e “Clitofon” aumentam
o grau de suspeição, e ainda outros 13 são classificados como apócrifos (a autenticidade está
fora de cogitação, como, por exemplo, “Hiparco”, “Teages”, “Minos”, “Da Justiça”, “Da Virtude”,
“Demódoco”, “Sísifo”). Ver em: PLATÃO. Platão: Diálogos: VII. Tradução e comentários de Edson
Bini. São Paulo: Edipro, 2011. p. 11.
9 PLATÃO. Platão: Diálogos: VI. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010. p. 118.
(Crátilo: 429 d)
10 PLATÃO. Platão: Diálogos: VI., cit. p. 134. (Crátilo: 438 e)
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
senvolvia aí o seu raciocínio baseado da intencionalidade. Na verdade, ele
também não tinha certeza das certezas de cada um. Ouvia as afirmações e
fazia as perguntas pertinentes para também aprender com eles.
Essas foram as primeiras especulações sobre a origem da linguagem, mas hoje sabemos que os dois tinham razão e que Sócrates,
concordando com eles, também tinha razão. Mas como é possível duas
ideias opostas em relação à linguagem terem seus raciocínios bem fundamentados mesmo sem terem conhecimento linguístico?
Na verdade, os dois estavam falando de coisas diferentes: Crátilo referia-se à linguagem, que é abstrata e natural, e Hermógenes à
língua, que é convencional, sendo um código estabelecido pelos indivíduos com o propósito de se comunicar. Sócrates fez a coisa certa porque
entendeu os dois argumentos e não ficou, enquanto viveu, tentando se
posicionar por um ou por outro. Como esclarece Gadamer, são posições extremas e que não precisam excluir-se mutuamente, trazendo um
exemplo esclarecedor: as crianças e os enamorados “tienen ‘su’ lengua, a
través de la cual se entienden en un mundo que sólo es proprio de ellos:
pero aun esto no se hace por imposición arbitraria sino por cristalización de un hábito linguístico”. Enfim, não se pode reduzir a linguagem
a um instrumento, e talvez Platão só quisesse mesmo mostrar, com esse
diálogo, diz ainda Gadamer, que, a partir da linguagem, não se pode alcançar nenhuma verdade objetiva: e a superação do “cerco” das palavras
através da dialética quer dizer que o acesso à verdade não é a palavra,
mas que só se pode conhecer a verdade de cada coisa a partir do conhecimento delas.11
Para compreender o texto de Sandel e ainda dialogar com a Psicologia, devemos deixar o texto falar e os psicólogos falarem. Aí sim
poderemos dizer algo sobre o que Sandel propõe sobre “a coisa certa”
a fazer. A pretensão de Sandel é fazer com que todos os que estudam o
assunto busquem na filosofia da linguagem os alicerces para poderem
discutir e argumentar de forma coerente as questões sociais de justiça e
de direito do cidadão – até devido a sua vinculação comunitarista. Mas
sendo comunitarista ou não, considerando o “ser-aí” da linguagem, o
que importa é deixar que ela mesma apresente-se, para se ter chance de
compreender o seu sentido e, assim, compreender o caso a decidir.
11 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: fundamentos de una hermenéutica filosófica.
Tradução de Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. V. I. 6. ed. Salamanca: Sígueme, 1996. p. 488-489.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
Não se pode estudar a área jurídica prescindindo dos conhecimentos de linguagem, que, desde os primórdios dos tempos, tem nessa
comunicação humana a necessidade de entendimento das partes que
exercem esse processo. Oferecer ao aluno do curso de Direito os fundamentos da linguagem como alicerce aos seus estudos é tão necessário quanto tornar-se competente no conhecimento das leis, doutrinas e
jurisprudência, para o jurista, ou das razões do comportamento, e das
emoções e motivações, para o psicólogo. Mas ainda não está aí a centralidade da linguagem: tanto para o Direito quanto para Psicologia, a
linguagem é e sempre será a essência da comunicação humana, e, como
essência, um ser também a ser compreendido. Daí que deve ser vista
também como o ser que também “está-aí”, tanto quanto o paciente e o
interrogado, tanto quanto o hermeneuta. O paradigma da linguagem
colocou-a como condição de possibilidade e lançou por terra o esquema sujeito-objeto.12 Baseado nisso, a Linguística sente-se à vontade para
entrar de vez na relação “psicojurídica”.
As relações que buscamos dependem da linguagem. E quando na
relação entre o Direito, a pessoa e a sociedade algo não dá certo, muitas vezes culpa-se alguém do mau uso da linguagem, e às vezes culpase inadvertidamente até a linguagem, como se a linguagem fosse em si
mesma capaz de perverter-se. Na realidade, e daí a importância de um
diálogo entre o Direito e a Psicologia, em geral, é o próprio ser humano
que muda, altera ou “perverte” seus desejos e ações e acaba fazendo um
uso também perverso da linguagem. Afinal, quando Morin (2005, p. 36)
pondera que “Uma língua vive de maneira surpreendente, esclarece que
as palavras nascem, deslocam-se, tornam-se nobres, decaem, são pervertidas, perecem, perduram”, explica que, afinal, a “linguagem é uma
parte da totalidade humana, mas a totalidade humana está contida na
linguagem” – e se a linguagem pôs engrenagem na cultura, fato é que a
escrita é o que trará a possibilidade de registro “para além da memória
individual e de crescimento indefinido dos conhecimentos”.13
12 STRECK, Lênio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 285.
13 Destaca o autor: “a linguagem, portanto, é a encruzilhada essencial do biológico, do humano,
do cultural, do social” (MORIN, Edgar. O Método 5 – a humanidade da humanidade: a identidade
humana. Tradução de Juremir Machado da Silva. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2005. p. 37).
23
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
Importante destacar a diferença entre o que é pensado e o que
é escrito. Em termos de linguagem pensada e manifestada somente na
oralidade, não há um comprometimento jurídico na mesma proporção
do que fica registrado por escrito. Estudos sobre a consequência da escrita em uma perspectiva sócio-histórica foram desenvolvidos por Goody
(1977, p. IX). No prefácio de seu livro,14 ele afirma que desejou “elaborar
o tema do contraste entre sociedades com escrita e sociedades ágrafas
para tentar levar adiante um pouco a análise dos efeitos da escrita sobre
os modos de pensamento (ou processos cognitivos)”, além de buscar a
análise de tais efeitos da escrita sobre as instituições da sociedades.
Esse autor é mencionado por Gnerre (1991) por se tratar de um
clássico que dá suporte ao seu trabalho, especificamente sobre as contribuições de psicólogos e de antropólogos no campo da escrita. Menciona, inclusive, a pesquisa que Luria15 (1976) fez em uma aldeia situada na
extinta União Soviética em 1931-32, que teve como propósito estudar as
consequências da introdução da escrita e da educação formal em sociedades camponesas e verificar as mudanças cognitivas entre os camponeses. Uma de suas observações mais relevantes foi a restrição imposta a
pequenos grupos ao acesso à escrita, caracterizando que o “poder” sabe
o poder que tem a linguagem.
Destacam-se, entre as situações experimentais desse teste, as categorizações abstratas e os silogismos. A primeira depende da Psicologia, e a segunda, da Lógica, sendo que esta estuda os processos argumentativos no uso da linguagem e que pode “perverter” a lógica dos
raciocínios válidos, mas que, aparentemente, convencem o interlocutor. Essa perversão não é recente. Ela já é estudada filosoficamente em
“O sofista”, outro diálogo platônico, em que se critica o sofista por ser
produtor de simulacros da verdade, ou seja, é a habilidade de produzir
discursos verdadeiros com base no método dialético. Na verdade, Platão
demonstrou a possibilidade da existência de falsidade em um discurso
como um processo de raciocínio natural.
Os aspectos mentalistas da linguagem estão em Platão, e a estrutura dos argumentos, em Aristóteles, que é considerado o “pai da lógica”
14 GOODY, Jaques. The Domestication of the Savage Mind. In: GNERRE, Maurizzio. Linguagem,
escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
15 LÚRIA, A. R. Cognitive Development: Its Cultural and Social Foundations. In: GNERRE,
Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
por ter formalizado o pensamento através de suas regras – regras essas
oriundas de um raciocínio semântico em sua base, denunciando, de certa forma, as artimanhas sofistas no uso dessas regras.
Quais as razões pelas quais desejamos, com sinceridade, entrar
em acordo com os demais, desejamos nos comunicar, nos entender e
viver nesse mundo que nos é comum? Muito provavelmente, alcançar os
mais variados objetivos. Também essa necessidade é natural? Para isso,
o foco na linguagem, pela linguagem, é de extrema importância, ainda
que por muito tempo se imaginasse que a sociabilidade, sendo parte da
natureza humana, fosse muito natural, conforme Aristóteles, apesar de
ele mesmo entender que a linguagem não era natural, que antes passava
pelos sentidos. Depois, contratualistas irão destacar que nos relacionamos, para o bem ou para o mal, a partir de um contrato, pois não temos
simplesmente uma natureza propensa ao relacionamento social. E para
um contrato, ainda que fictício, na expressão de Rousseau ou Hobbes,
por exemplo, é necessário que o que é expresso seja compreendido. Mas
o que é que realmente está ao alcance de nossa compreensão?
Gadamer advertiu que a teoria “convencionalista” da linguagem
reduz a correção das palavras a um ato de imposição de nomes que é
comparado ao batismo das coisas com um nome. O diálogo a partir de
Sócrates mostrará que também os componentes do logos – as palavras
– são verdadeiras ou falsas, ou seja, mesmo o “batizar” como uma parte
do “falar” implica o desvelamento do ser que se produz no falar. Ou seja,
tanto no convencionalismo quanto no naturalismo, há necessidade de
perceber o “ser” que se abre em seu significado, e é, portanto, no logos
que se situa a possibilidade de a linguagem comunicar o que é verdadeiro, pois “El ser que puede ser comprendido es lenguaje” (Gadamer,
1996, p. 495 e 567).
Além disso, plausível lembrar aqui a distinção entre a verdade,
que é uma possibilidade da linguagem, e o consenso de que já tratamos, considerando o que é consensual. Em princípio, não é verdadeiro,
necessariamente, pois o consenso apenas expressa uma possibilidade.
Essa questão é fundamental para um caso concreto em que se debruçam
psicólogos e juristas, pois, de um caso concreto envolvendo Direito de
Família, por exemplo, pode-se a partir de um diálogo e chegar a um
consenso, através da mediação, ou pode ser necessário o juiz decidir. No
caso de decisão, já não pode ser buscado o consenso, mas a aletheia, a
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
verdade do caso e a verdade da norma, sem esquecer que aplicar é compreender, aplicar a norma pressupõe a compreensão. E sendo a norma
produto da interpretação do texto e sendo toda aplicação interpretação,
a compreensão é que define a aplicação. Pois a aplicação já é uma resposta, e antes da resposta existe uma pergunta: a chave da coisa certa a
fazer, nesse caso, está na própria pergunta, pois, se não há pergunta, não
há resposta. E nesse caso, o que o texto fala sobre a norma? Essa será a
coisa certa a fazer, considerada a necessária jurisdição constitucional.
2. Fazer a coisa certa ou fazer certo a coisa? Um
equívoco linguístico de Sandel?
A questão da linguagem principia na própria compreensão dos
motivos pelos quais se deseja fazer a coisa certa, não apenas a partir da
reflexão sobre a coisa certa a ser feita – que é um passo além. Sobre isso,
mais uma indagação linguística foi suscitada: fazer a coisa certa ou fazer certo a coisa? Sandel utilizou a expressão de forma adequada em seu
livro Justiça? Uma ilação semântica foi possível cotejando com a dicotomia naturalismo e convencionalismo: a primeira expressão é natural,
por razões óbvias, e a segunda é convencional porque, para fazer certo
a coisa, é necessário estabelecer certas regras, ou seja, convencionar de
que forma deverá ser feita a coisa.
Isso foi um exercício semântico das questões opostas, evidenciando, através de suas provocações, a importância de se utilizar a linguagem
em situações e eventos que envolvam comunicação, seja falada ou escrita.
A coisa certa a fazer impõe, de fato, um convite à abertura do ser
que se pretende conhecer. “A coisa certa” comunica-se através do seu
“estar-aí” dentro da historicidade que envolve o próprio ser que busca
a resposta. Há uma comunicação entre sujeito e objeto que reflete na
própria compreensão e desejo de agir em direção à coisa a fazer. Na Psicologia, não são poucos os casos em que as pessoas precisam justamente
descobrir por que desejam fazer algo, pois, muitas vezes, estão infelizes porque nem sequer conseguem discernir acerca do que é desejado.
Alguns não conseguem discernir sobre o que desejam, e outros conseguem, mas não conseguem expressá-lo. Há outros que dissimulam acerca de sua intencionalidade. Como imaginar a possibilidade de consenso
ou acordo de vontades em uma sociedade tão frágil, plural e dividida?
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
Afinal, estamos diante de um ser humano, não de um “super-herói”, um
ser também frágil em sua natureza. E por isso mesmo não é possível
permitir que esse ser humano, que, às vezes, é um psicólogo, ou um
juiz, decida por sua própria consciência acerca do certo a ser feito, uma
vez que tanto o juiz quanto o psicólogo aplicam e compreendem (pois
aplicação pressupõe a compreensão, e não o contrário, pois a pergunta
precede a resposta). Deixam o caso falar por si e aplicam permitindo
que o texto da norma fale por si. Se fosse possível julgar conforme a
consciência, estaríamos diante de dois profissionais absolutamente autoritários e sem condição alguma de exercício da profissão.
O que nos interessa desvelar, portanto, é a clareza em torno do
significado da linguagem para a construção das relações e até que ponto
efetivamente é possível dizer que um diálogo é realmente possível, entre pessoas muito distintas, com visões de mundo distintas, tradições
distintas, concepções sobre o que é fazer a coisa certa de forma distinta.
Afinal, existiria apenas uma coisa certa a fazer, e ela poderia ser expressa, explicada, esclarecida, pela linguagem? Ou devem existir várias coisas certas que podem ser feitas, cabendo à linguagem apenas servir de
instrumento para aquele que pretende justificar uma ou outra ação que
pretende tomar? Para todas as perguntas realizadas existem respostas
que desvelam os perigos da redução da linguagem a um simples objeto,
os desvios significativos, que, em geral, têm como origem a perspicácia
do interlocutor, que, com uma linguagem, convence ou confunde o seu
ouvinte, tornando razoável ou mesmo “a coisa certa” a fazer o que é, a
princípio, não digno do ser humano.
Por isso pergunta-se primeiro: por que fazer a coisa certa se nem
mesmo sabemos desejá-la? Para desejá-la, devemos saber pôr as perguntas corretamente. Por isso insiste-se que a linguagem situa-se muito
antes da reflexão sobre o que é certo fazer; ela já é significativa para o sujeito porque ele recebe informações, trabalha tais informações de modo
mais ou menos consciente e passa a desejar e a lutar por determinado
interesse. E pode mais tarde, também transitando – sempre – através de
linguagem, dizer que foi enganado por ela – ou enganou-se por não estar preparado suficientemente para isso, que é a linguagem! Mas o que é
a linguagem, e como podemos escapar das armadilhas que nós mesmos
criamos a partir dela?
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
Enfim, quer-se fazer a coisa certa por causa de um desejo pessoal,
que muitas vezes tem relação com o desejo da comunidade em que a pessoa se insere – mas nem sempre. A coisa certa a fazer é, sem sombra de
dúvida, nem sempre uma motivação genérica e determinada, como um
desejo universal. É, antes, a preocupação de parte de alguns integrantes
da comunidade que pensam mais profundamente nas questões da vida e
no significado de sua inserção naquela comunidade porque valorizam o
grupo, valorizam a comunidade, a família, e não querem decepcioná-los,
e por isso almejam desvendar o mistério da coisa certa a fazer.
De todo modo, não é possível negar que há grande tendência em
acusar a linguagem pelo desvio de alguns integrantes para que nem sequer tenham desejo de almejar a coisa certa. A linguagem estaria desviando os jovens. Mas será ela a culpada de tudo? Ou ela não é culpada
de nada, somente quem a utiliza? E para complicar mais um pouco, de
que linguagem estamos falando? Será que esse desvio em que os jovens
se encontram e ao qual outros estão a caminho não seria motivado por
uma “corrupção” de sua própria língua pelo fato de a tecnologia facilitar
a criação de outros códigos linguísticos? Códigos esses que reduzem
palavras a simples abreviaturas e que são as referências escritas para se
ler algo? Como vão sair de uma leitura abreviada para a palavra completa? Na verdade, estão se excluindo do processo cognitivo da palavra
e de sua significação. Com isso, podemos arriscar uma inferência: esses
jovens irão ficar enclausurados no seu restrito código das redes sociais e
precisarão mais adiante fazer curso de uma outra língua: a portuguesa,
em se tratando do Brasil e dos países afins. E isso não se restringe ao
nosso mundo linguístico: é um processo mundial que atinge a todas as
pessoas que não se dão conta de quão importante é conhecer o código
de sua língua. E como entender tudo isso de maneira formal? É estudando filosofia, principalmente a da linguagem, que o entendimento do
certo e do errado começa a ficar mais claro.
Deve-se buscar compreender, desde logo, a importância da própria abertura que a pergunta suscita naquele que se envolve com ela,
pois, dentro de uma perspectiva de hermenêutica filosófica, a última
coisa que se deseja é ficar com a última palavra – é necessário enfrentar
a pergunta “o que é fazer a coisa certa?” sem ficar com a última palavra,
o que é possível lidando (ou “dialogar”) dialeticamente.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
3. A retórica e argumentação: o mau uso da linguagem
A retórica é uma herança greco-latina e tem relação com a aplicação de técnicas de persuasão. Na atualidade, existem muitos sentidos
para a retórica e fala-se até da retórica do sentido, mas aqui o que interessa ainda é a retórica como persuasão na arte de falar, discursar, de escrever. De todo modo, já na Grécia era fundamental (àquele com status
de cidadão) a liberdade para expressar-se. Sem essa liberdade, o cidadão
jamais conseguiria desenvolver suas habilidades para a comunicação e
linguagem.
Mas quando a retórica transforma-se em mero objeto de poder
do jogo político, acaba se reduzindo a um instrumento para vencer uma
argumentação, sem nenhum comprometimento com a ética – e aí, a
coisa certa a fazer. Sem dúvida, grande parte da imagem depreciativa da
retórica foi alcançada através de alguns sofistas, que se valiam da arte
do discurso para promoção e apoio político. A própria palavra “retórica”, até a atualidade, traduz-se para o leigo como algo falso, como uma
mentira, uma enrolação linguística. E por causa disso a retórica teria
permanecido muitos séculos alienada do debate filosófico. Na realidade,
a retórica seria uma parte da dialética: esta que se realiza em perguntas
e respostas, lembrando que “todo saber passa pela pergunta”, “perguntar
quer dizer abrir” e a “abertura do perguntado consiste em que a resposta
não está fixada” (Gadamer, 1996, p. 440).
Apenas no século XX, após as certezas do iluminismo iniciarem
sua queda, alguns filósofos debruçaram-se sobre a retórica e reconheceram-lhe um novo valor. Nietzsche (1999, p. 27-28), por exemplo, indicou que a linguagem é uma função basicamente retórica, fundada na
opinião, e não na ciência e, bem assim, que a própria atividade filosófica
é inseparável do estudo da linguagem. Em seu livro Da retórica, faz considerações a respeito do conceito da retórica no mundo contemporâneo:
[...] a retórica surge num povo que vive ainda em imagens míticas e
que ainda não conhece a necessidade incondicionada da confiança na
história; prefere ser persuadido a ser ensinado e por outro lado a falta
de recursos em que se encontra o homem na eloquência judiciária tem
de levar à arte liberal. Enfim é uma arte essencialmente republicana:
tem de se estar habituado a suportar as opiniões e os pontos de vista
mais alheios e mesmo sentir um certo prazer na contradição; deve-se
escutar de tão bom grado como quando nós próprios falamos, e deve29
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
se como ouvinte apreciar mais ou menos o desempenho da arte. A
formação do homem antigo culminava habitualmente na retórica: é a
mais elevada atividade intelectual do homem politicamente formado –
um pensamento que nos é bem estranho!
Mais adiante, ele faz a relação da retórica à linguagem chamando
de retóricos tanto um autor, um livro ou um estilo toda vez que se nota
neles uma aplicação constante de artifícios do discurso – e isso sempre
com uma nuance pejorativa. Leva-nos a pensar que não é natural, dando-nos a impressão de algo forçado. Garante, no entanto, que esse uso
é da maior importância para quem assim o julga saber o que é, para si,
natural. E ainda afirma que a retórica é uma arte consciente que foi se
aperfeiçoando a partir dos artifícios já presentes na linguagem e que não
existe naturalidade não retórica na linguagem à qual alguém pudesse
apelar, pois a linguagem é o resultado de artes puramente retóricas. E
como não poderia deixar passar, retoma Aristóteles quanto ao uso da
expressão “força” para designar a própria retórica, que é “a força de deslindar e de fazer valer, para cada coisa, o que é eficaz e impressiona, essa
força é ao mesmo tempo a essência da linguagem”.
Mas como pode a linguagem ser basicamente retórica, se a lógica,
sendo uma área específica da Filosofia, tem suas regras que levam de
premissas a deduções irrefutáveis? Certamente o terreno para essa discussão é meio movediço. Será que também se resolvem casos como esse
pela retórica de quem melhor se expressa?
Pode-se fazer uma aplicação retórica nessas regras, que foram
“abstraídas” da relação natural que o indivíduo tem com o seu pensamento. Antes é necessário deixar claro que se trata de um silogismo,
que é um argumento com base no raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas premissas, uma maior e a outra menor, as
quais derivam uma conclusão. Dito de outra forma, ele se constitui de
uma regra composta de três proposições, em que as duas primeiras são
premissas, e a terceira é a conclusão gerada pela sua relação.
E como gerar a “perversão” desse silogismo, provocando o mau
uso da linguagem? É muito simples: “desviar” as relações de afirmação e
negação entre as premissas. Esse “desvio” das regras da Lógica16 aristotélica gera o que se chama de falácia. E foram os sofistas os que geraram
16 A respeito em: CERQUEIRA E OLIVA. Introdução à Lógica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
raciocínios que pareciam lógicos, mas que as pessoas assumiam como
argumentos válidos. Para exemplificar, foi Aristóteles17 o filósofo que
conseguiu descrever a forma de como se elaboravam esses argumentos
e identificou a forma como esses sofistas enganavam as pessoas. É realmente um tipo de “retórica” com um poder de persuasão imperceptível
aos interlocutores.
Descrevendo melhor esses pseudoargumentos, os sofistas invertiam a afirmação dos elementos quando a regra era a do Modus Ponens:
em vez de afirmar o termo antecedente da premissa maior, faziam-no
com o predicado, dando a entender que a regra estava sendo bem utilizada. Com a negação, o procedimento de negar o termo antecedente em
vez do consequente gerava também um argumento inválido, mas que
parecia bem convincente. Importante destacar o problema que a Lógica
causou naquela época: por um lado, os peripatéticos a consideravam
como instrumento da Filosofia; por outro, os estoicos afirmavam que
ela era uma parte da Filosofia. E por aí as discussões em relação ao uso
da linguagem continuavam: utilizar-se das regras para argumentar era
“naturalmente” exercido pelos sofistas, que as defendiam como processo natural de persuasão, mas que não eram bem aceitas por pessoas que
conheciam a Lógica.
Aristóteles formalizou o silogismo baseado nos discursos dos
sofistas que usavam a retórica e formas de persuasão com argumentos
introduzidos pelo conetivo “porque”, e não o “logo”, sendo o primeiro
utilizado com maior frequência. Como foi possível depreender a maior
ocorrência de um em detrimento do outro? Quando argumentamos
algo, dizemos A porque B, e não A logo B. Apesar de esses conetivos
estabelecerem relação de causalidade entre uma ideia e outra, a causa
muda de posição dependente da conjunção,18 ou seja, com o “porque”, B
é a causa; com o “logo”, a causa é A.
A genialidade de Aristóteles foi “abstrair” a noção causal do cérebro humano19 e conseguir originar as generalizações a partir dos argu17 ARISTÓTELES. Órganon: Tópicos. Lisboa: Guimarães Editores, 1987.
18 Diferentemente do conetivo, que estabelece função sintática, a conjunção é morfológica, mas
está sendo utilizada aqui com o propósito de não repetir o termo.
19 Essa noção é uma entre várias – condicionalidade, temporalidade, adição etc. – que foram
afirmadas pelo seu mestre Platão, de que a linguagem estava no cérebro, gerando, a partir daí, o que
se conhece hoje como teoria inatista.
31
Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
mentos introduzidos pelo conetivo porque, isto é, quando afirmamos
algo e o argumentamos, temos um pressuposto geral. Por exemplo, em
“João é inteligente porque estuda” (A porque B), a generalização é “Todos os que estudam são inteligentes”. Por quê? A causa é ser inteligente
ou estudar? O conetivo porque introduz um causa ou uma consequência? Precisamos entender bem que esse porque introduz uma causa,
motivo ou razão, ou seja, é a ideia antecedente que implicou a outra.
Bem, agora ficou fácil: o porque20 introduziu a causa, que é “estuda” e
é essa mesma que na generalização será o termo antecedente: “Quem
estuda é inteligente”, sendo possível, a partir daí, gerar o silogismo para
garantir que não é falácia:
Quem estuda é inteligente. (PMa)
João estuda. (PMe)
Logo, João é inteligente. (Conclusão)
E se fosse “João estuda porque é inteligente”? Pelo raciocínio silogista, a generalização seria (e é!) “Todos os que são inteligentes estudam”; pelo sofisma ou falácia, a proposição é “Todos os que estudam
são inteligentes”. Estamos diante de dois raciocínios possíveis e que dependem da intenção de quem os utiliza.
Certo é, entretanto, que lógica e retórica sempre fizeram parte
do discurso no ofício de juristas e de psicólogos e, nesse sentido, a incapacidade de compreensão da lógica e a incapacidade de argumentação é a própria razão da falta de consenso. Quantas vezes as partes em
um processo podem entrar em acordo? Apenas não se conseguem fazer
compreender. E o quanto é fundamental hoje, na teoria contratual, que
a manifestação de vontade não tenha sido viciada por uma falha na própria intenção de contratar. Os perigos da linguagem e o uso da retórica
desde épocas imemoriais vêm sendo apontados. Lembre-se da inesquecível defesa do bem comum e do Estado, realizada por Cícero (Quinta
oração contra Catilinária, V, 11) contra Catilina:
Não vos admireis, astuto simulador, pedir que lhe se dê a possibilidade
de responder-me. Confia na sua eloquência mediante a qual arrastou
20 Esse conetivo sem acento porque não se trata de substantivo, e sim a própria conjunção.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
para a ruína tantos cidadãos; adquiriu tão vasto séquito de celerados, e
sabe alterar a cor (tornando) verdadeiro o falso e falso o verdadeiro.21
Tomando como exemplo a situação trágica trazida por Cícero, é
possível indicar que o inimigo do Estado e do bem comum, indicado
no texto citado, possuía grande poder oratório, vasta argumentação e
uma eloquência fascinante que arrastava simpatizantes. Diante de um
conflito argumentativo, é útil desembaraçar o significado e funções da
lógica e da retórica. Enquanto a retórica pode ficar centrada no objetivo
de persuadir, sem comprometimento com a verdade (dentro do conceito sofista, ao contrário do que irá defender Aristóteles), como algo
apenas negativo, a lógica serve justamente como instrumento de análise
das condições de validade do argumento posto. Já a dialética pressupõe
que os interlocutores colocam-se diante de condições previamente dispostas para o estabelecimento do próprio diálogo – afinal, quem deseja
persuadir não pode ser negligente com regras da arte da argumentação,
mas recorrerá a diversos instrumentos como os argumentos vinculados
à causa e ao efeito, à própria analogia e às metáforas. Apenas não se
podem confundir teorias da argumentação com a hermenêutica, e principalmente com a hermenêutica filosófica.
Nesse caso, Perelman (1996, p. 73 e 96) é quem restabelece a retórica no século XX, apresentando a proposta dos argumentos quase
lógicos que se assemelham a raciocínios formais e à falta de precisão do
argumento quase lógico. Pode parecer uma falta de lógica, como lembra Perelman, “mas a acusação só é pertinente relativamente àquele que
pretende proceder por via demonstrativa”, uma vez que o orador desenvolve razões de outra natureza para sua tese. Ele traz argumentos mais
ou menos fortes. E quando o raciocínio matemático atingiu seu ápice, os
argumentos quase lógicos padeceram e foram acusados de fracos, mas
recuperaram seu prestígio no decorrer do século XX, ainda que, para
convencer, precisassem do complemento dos argumentos baseados na
estrutura do real (que, em geral, apelam para ligações de sucessão, como
relações de causa e efeito, por exemplo, alegar as consequências boas
que de uma lei podem advir; e de coexistência, da pessoa e seus atos).
21 CÍCERO apud CARLETI, Amilcare. Cícero: As Catilinárias. Os grandes oradores da
antiguidade. São Paulo: Eud, 1987. p. 220.
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
Parmênides teria inaugurado a competição entre filósofos (adoradores da lógica) e dos mestres da retórica. Górgias irá mostrar o Ser
que não é, que “se existisse seria incognoscível, e que, se o conhecêssemos, esse conhecimento seria incomunicável: donde a importância da
retórica, da técnica psicológica, que age sobre a vontade do auditor para
obter sua adesão” (Perelman, 1993, p. 165). De todo modo, é indubitável
que, tanto no Direito quanto na Psicologia, as controvérsias possuem
caráter que não se prolongam de modo indefinido, ao contrário, e assim
como na argumentação filosófica, na argumentação jurídica e psicológica, sem querer equiparar as duas áreas, as aplicações ocorrem em domínios particulares, daí a importância da nova retórica:
Identificando esta com a teoria geral do discurso persuasivo, que visa
ganhar a adesão, tanto intelectual como emotiva, de um auditório, seja
ele qual for, afirmamos que todo o discurso que não aspira a uma validade
impessoal depende da retórica. Desde que uma comunicação tenda a
influenciar uma ou várias pessoas, a orientar os seus pensamentos, a
excitar ou a apaziguar as emoções, a dirigir uma acção, ela é do domínio
da retórica. Esta engloba, como caso particular, a dialética, técnica da
controvérsia (Perelman, 1993, p. 172).
Enfim, a retórica tem como fim prático a persuasão, enquanto a
dialética tem como fim a crítica e, finalmente, a lógica tem como propósito o julgamento da coerência das propostas argumentativas. A lógica
preocupa-se, como não poderia deixar de ser, com a estrutura do discurso e assim, de fato, ignora o processo argumentativo, visto sua vinculação com a forma, ainda que não se desconheça que existem abordagens
lógicas da própria argumentação. Essas abordagens têm relação com o
próprio significado de argumentação, pois sua eficácia teria relação com
a retórica, uma argumentação sólida teria relação com a lógica e uma
argumentação sincera e crítica teria relação com a dialética.22
E é por isso que não podemos pensar sobre a coisa certa sem o
uso e o conhecimento consciente da linguagem – e tampouco sobre o
22 ALVES, Marco Antônio Sousa. Lógica x Retórica x Dialética: diferentes abordagens da
argumentação. In: I ENCONTRO DE PESQUISA UFMG, Belo Horizonte, 2003. Comunicações
apresentadas no I e II Encontro de Pesquisa em Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais.
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Dialetica_diferentes_abordagens_da_argumentacao>. Acesso em: 24/5/2014.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
certo a fazer. Precisamos, a partir disso, abordar a boa retórica ou o bom
uso da linguagem, mas uma linguagem que ultrapassa os limites de um
simples instrumento crítico para o próprio conhecimento. E é mais um
motivo para se tratar da retórica em sua forma (intencional, ou não) e
no seu conteúdo, abordando também o que o emissor quer efetivamente
comunicar – se o faz de modo implícito ou explícito, por exemplo. Isso
apenas se a linguagem deixar de ser um objeto, submetido assujeitado
pelo sujeito que pensa que a pode instrumentalizar.
Como identificar na comunicação a intencionalidade sabendo
que a complexidade linguística passa necessariamente pela Filosofia?
4. A retórica e a argumentação: o “ser-aí” da língua(gem)
Citado anteriormente por Sandel quanto ao consentimento da
população em se tratando da justeza das leis, Kant entende essa anuência como hipotética. Mas como compreender esse processo? Como esse
grande nome da Filosofia ocidental foi novamente mencionado por Sandel em uma de suas aulas, especificamente quanto à intencionalidade,
para Kant, a ação é moralmente valiosa se tem a ver com o motivo, com
a qualidade da vontade e, principalmente, com a intenção. Não deixa
dúvidas ao afirmar que o valor moral depende do motivo pelo qual ela,
a intenção, é feita, mas ressalta que qualquer ação para ser moralmente
boa tem de passar pelo único tipo de intenção: a intenção do dever.
Esta seção é marcada pelo poder argumentativo da linguagem,
seja ela retórica, silogista ou, até mesmo, a nova retórica. Mas como
garantir o seu uso e a sua veracidade baseada na intencionalidade? A
intenção é particular de cada indivíduo e de caráter cognitivo. Como
saber se ela foi manifestada e como saber a sua forma de manifestação? Necessariamente, o contexto não pode ser descartado para estudos
dessa natureza. Já vimos que a Lógica clássica é puramente formal, e as
discussões sobre argumentação dependem de pontos de vista distintos,
provocando, assim, certa circularidade em função da subjetividade de
cada filósofo ou linguista. Existe disciplina que trata da intencionalidade? Se existe, deve ser da Psicologia, por ser a mente o seu objeto de
estudo. Existe sim, mas a área que estuda esse tipo de objetivo situa-se
dentro da Linguística: a pragmática.23
23 O primeiro filósofo a formalizar o cálculo conversacional foi Paul Grice (1975).
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
Filósofos da linguagem buscam na Linguística o suporte semântico para melhor estudar a pragmática. Paul Grice (1975) introduziu um
cálculo conversacional de natureza cognitiva para dar conta da intencionalidade do ato de fala. Como fez isso? Demonstrou-o mediante a
criação de máximas específicas que ocorrem no ato enunciativo. Exemplificando de forma simples o que é de alta complexidade, a fim de que
se tenha noção de como esse diálogo acontece: um falante A pede x querendo y a B. Este entende o que está implicado e responde y. Levinson
(2007, p. 19) apresenta esse cálculo na sua forma original:
F quis dizer (significado-nn) z ao enunciar E se e apenas se:
(i) F pretendia que E causasse algum efeito z no receptor O
(ii) F pretendia que (i) fosse conseguida simplesmente pelo fato de O
reconhecer esta intenção (i).
Importante destacar que a implicação no silogismo é lógico-dedutiva, sendo irrefutável a sua conclusão. Na pragmática, essa implicação foi batizada com o nome de implicatura, para designar uma implicação conversacional, mas que pode ser cancelada se o contexto não
permitir tal inferência. É claro que isso é uma noção do que realmente
é esse estudo.
Os estudos linguístico-pragmáticos não pararam por aí. Sperber e
Wilson (1986) estabelecem como ponto de partida o modelo inferencial
de Grice (1975) e desenvolvem uma teoria da comunicação para estudos dirigidos à compreensão de enunciados, ou seja, estudam os atos de
fala produzidos em situações contextuais específicas, chamada de Teoria
da Relevância, considerada com alto grau de complexidade. Isso se deve
em função de fazerem convergir o que segue:
(a) uma tradição respeitável em filosofia de linguagem da qual derivam
várias propostas teóricas em pragmática linguística, as quais, por sua
vez, formam uma intrincada rede de relações com estudos sintáticosemânticos e
(b) uma série de estudos recentes em psicologia cognitiva, com
ênfase em aspectos fundamentais do processamento de informações,
como atenção, representação do conhecimento, memória, processos
inferenciais, para citar alguns.
Diante dessa exposição linguística, fica clara a intrínseca relação
de dependência que as áreas em geral têm com a Filosofia da linguagem.
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
Na verdade, o objeto “linguagem”, por se tratar de uma abstração, e abstrações são ideias que estão na mente humana, estudadas também pela
Psicologia, está inserido em todas as áreas do conhecimento humano. A
linguagem não é o objeto mais importante a tratar nas ciências; ela, de
alguma forma, é a essência de todas elas e, além disso, um “ente” que é
necessário “deixar que fale de si”. Movimentos sociais sempre foram motivados por ideais. São as ideias as provocadoras de mudanças em todos
os níveis da civilização humana. E considerando a virada linguística, a
linguagem deixa inclusive de ser objeto, passa a único “ser” passível de
ser compreendido – incluindo seus pré-juízos.
5. Conclusão: a dialética da boa retórica e seus
benefícios psicojurídicos
Ao contrário de Platão, Aristóteles arriscou afirmar que o Direito
trata de questões contingentes, e não necessárias, como na Matemática.
O Direito trabalha com juízos de razoabilidade, e não com juízos de
certeza, portanto, o Direito necessita de juízos de valor, ao contrário das
ciências exatas – que há muito deixaram também de ser tão exatas, basta
citar a teoria da relatividade e mais recentemente a teoria das cordas.
Especificamente em sua obra Arte Retórica e Arte Poética, Aristóteles
(s./d.) aborda assuntos do gênero deliberativo sobre o que é necessário
e contingente, conforme excerto do item I do capítulo IV das matérias
que são objetos das deliberações:
[...] Quando ao que acontece ou acontecerá necessariamente, ou que
necessariamente não pode acontecer nem ter acontecido, não há nisso
matéria de deliberação. 3. Além disso, também não se delibera sobre
tudo o que é contingente. Com efeito, na linha do que é contingente
existem coisas que derivam da natureza ou são efeito do acaso. [...] 4. [...]
não é esse o objeto da Retórica, mas sim o de uma disciplina mais
penetrante e mais concorde com a verdade; enfim já concedemos
atualmente à Retórica maior número de assuntos de estudo do que os
que lhe pertencem propriamente. [...].24
24 Cf. Platão, Alcebíades, 107-108, e, primeiramente, Sócrates, em Xenofonte, Mem., III, 6. 7, que,
nesta via, se antecipou a Platão e Aristóteles.
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Ângela Kretschmann - Celso Augusto Nunes da Conceição
No Direito, os reflexos do Iluminismo trouxeram um compromisso nada velado com a segurança jurídica, a tal ponto que o cientificismo moderno vai representar no Direito a eliminação de qualquer
juízo de verossimilhança, ou seja, somente o que é certo – só da certeza
absoluta (como se ela existisse) poderia decorrer um juízo ou uma sentença do juiz. Com isso, a própria retórica forense acabou sendo eliminada do mundo jurídico, como explica Ovídio Araújo Baptista da Silva
(2009, p. 7-8), sob o argumento de que a função do juiz se restringe a
revelar o que disse o legislador, à aplicação pura da Lei como se fosse
simples deduzir e aplicá-la a um caso concreto. Segundo o autor, Platão estaria aqui retornando e substituiria o pensamento de Aristóteles,
que havia dominado na Idade Média. Isso vai resultar na atualidade na
crença – na qual ainda muitos sonhos repousam (e como Dworkin chegou a sonhar) – de que é possível encontrar a resposta correta para os
problemas práticos.
O que dizer então da Psicologia? Ainda que uma série de pesquisas envolvendo as reações do ser humano a diversas ações que possam
auxiliar no tratamento de doenças, de temores, de crises, fato é que cada
ser humano é único, e o resultado de pesquisas pode levar a uma previsibilidade, jamais a uma certeza. Mais certo ainda é que é necessário
diálogo e, muito obviamente, um bom uso da linguagem para que o
sujeito, que precisa de ajuda para superar suas dificuldades psíquicas,
possa libertar-se de seus medos e adquirir coragem para determinadas
mudanças em sua vida.
Não é possível negar, portanto, que tanto o jurista quanto o psicólogo, que tratam das dores do ser humano, necessitam dialogar entre si e se fazerem compreender perante aquele que é, muitas vezes,
hipossuficiente e necessitado de cuidados especiais. Há necessidade de
compreender seu próprio nível de compreensão linguística para que ele
próprio possa compreender aqueles que buscam auxiliá-lo: “Cuando tenemos al otro presente como verdadera individualidad, como ocurre
en la conversación terapéutica o en el interrogatorio de un acusado, no
puede hablarse realmente de una situación de posible acuerdo” (Gadamer, 1996, p. 463) – pois a conversação como processo por meio do
qual se busca chegar a um acordo refere-se não à opinião das pessoas
envolvidas, simplesmente, mas acerca do próprio opinar e entender, ou
seja, não interpretamos para compreender, mas compreendemos para
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1 • FAZER A COISA CERTA OU FAZER CERTO A COISA: SANDEL E A LINGUAGEM NO DIÁLOGO ENTRE DIREITO E PSICOLOGIA
interpretar. Dizendo de outra forma, a compreensão é o que se entende
da leitura unívoca, ao passo que a interpretação pressupõe dois entendimentos, necessitando para garantir o mínimo de duas “leituras” a argumentação de cada uma delas.
Finalizando o exercício discursivo para garantir que Sandel fez a
coisa certa, em especial pela enorme abertura que possibilitou através
da pergunta “O que é a coisa certa?”, torna-se necessário destacar o seu
princípio básico a fim de diminuir as discrepâncias opinativas que os
indivíduos têm no dia a dia: fazer com que a sociedade em geral se interesse pela Filosofia. Pode parecer utópico, mas se cada cidadão conhece os meandros argumentativos em todos os seus níveis de raciocínio,
juntamente com as leis naturais do comportamento humano, o mundo
certamente tomaria o rumo de uma saudável convergência civilizatória.
Afinal, estaríamos finalmente um pouco mais seguros de que, em um
diálogo, as partes estão efetivamente entabulando uma comunicação
compreensível.
Se desejarmos que a democracia paute a vida em sociedade, de
que adianta a democracia se os sujeitos não conseguem estabelecer um
diálogo em função da sua fragilidade linguístico-filosófica? A filosofia
da linguagem ou a invasão promovida pela Filosofia na linguagem mostra que não é possível subordinar a linguagem, submetê-la ou prendê-la
nos domínios do sujeito; ela não é passível de submissão. Para fazer a
coisa certa, é sumamente necessário, portanto, entabular um diálogo em
que a linguagem é parte integrante, como ser que também se revela, no
tempo e no espaço, diante dos que com ela se comunicam. O ser que
se compreende e compreende o ser da linguagem abre-se também para
uma nova pergunta, que, no contexto da hermenêutica filosófica, sempre precede qualquer resposta.
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2
FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS
DE JUSTIÇA DE SANDEL SOB O OLHAR
DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA,
COGNITIVA E COGNITIVOCOMPORTAMENTAL
Ana Raquel Menezes Karkow1
- Maria Verônica Schmitz Wingen2
- Lauren Tonietto3
Sumário: Introdução - 1. O olhar da Psicologia Evolucionista
- 2. O olhar da Psicologia Cognitiva - 3. O olhar da Psicologia
1 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre
e Doutora em Neurociências pela UFRGS. Atualmente, é Professora do curso de Psicologia do
Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência na
área de Pesquisa e Ensino em Neurociências. E-mail: [email protected].
2 Psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Supervisora da
Clínica de Saúde Mental no Núcleo de Orientação Acadêmico do Complexo de Ensino Superior
de Cachoeirinha (Cesuca – Faculdade Inedi), Experiência na área Psicoterápica de Orientação
Cognitivo-Comportamental. E-mail: [email protected].
3 Graduada em Psicologia (1999) e em Administração (habilitação em Comércio Exterior) pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Psicologia. Atualmente
é Professora e responsável pela área de Seleção, Acompanhamento e Capacitação de Pessoas do
Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência nas
43
Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
Cognitivo-Comportamental - 4. Ampliando a discussão e
integrando as abordagens - Referências Bibliográficas
INTRODUÇÃO
Este artigo relata o resultado das reflexões que surgiram a partir
da proposta de integração entre os cursos de Psicologia e Direito do
Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), da Faculdade Inedi, na cidade de Cachoeirinha/RS. As questões abordadas por
Michael J. Sandel (2012) são compreendidas aqui a partir de três diferentes abordagens da Psicologia: Evolucionista, Cognitiva e CognitivoComportamental.
O ponto de partida foram os conceitos centrais abordados por
Michel J. Sandel no seu livro Justiça – O que é fazer a coisa certa (2012).
O livro aborda questões sobre moral e justiça e inicia com o relato de
diversos casos em que a temática gira em torno de que tipo de justiça
adotar. O autor descreve que a justiça analisada é restrita às concepções
de liberdade, bem-estar e virtude, cada uma analisada sob os pontos de
vista de filósofo clássico e moderno. O objetivo principal do livro é a
construção de uma reflexão moral acerca da justiça tendo como ideia
central a sustentação da crítica por meio da ação e razão da coletividade.
Um dos temas que foram ampliados durante nossa discussão interdisciplinar é iniciado por Sandel (2012) quando ele relata uma reação
da população diante dos preços abusivos praticados durante a passagem
do furacão Charley, que devastou a Flórida (EUA) em 2004. Logo após
sua passagem, houve preços extorsivos em sacos de gelo, diárias de hotéis, consertos de telhados... Na época – e mesmo hoje, quem passar a
ter contato com essa história – o pensamento de muitos ia ao encontro
de depreciar essa conduta, criticando ferozmente o mercado que coage
pessoas fragilizadas em um momento de catástrofe. Tal sentimento é
bastante instintivo. Compadecemo-nos do sofrimento alheio, embora
seja facilmente explicado o aumento desses produtos sob os pressupostos da lei da oferta e da procura.
áreas de Relações Internacionais, Psicologia Organizacional, Educacional, Escolar e Clínica, com
ênfase em Psicologia Sociocognitiva, Habilidades Comunicativas e Desenvolvimento. E-mail:
[email protected].
44
2 • FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS DE JUSTIÇA DE SANDEL SOB O OLHAR DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA...
A reação de rechaço frente aos preços abusivos foi nomeada e
discutida como um ultraje. Conforme Sandel (2012), o ultraje é um
tipo de raiva que é despertado quando se acredita que as pessoas estão
conseguindo algo que não merecem. Esse tipo de raiva é causado pela
injustiça e tem como origem moral o argumento da virtude. A ganância é então considerada um defeito moral, pois implica a indiferença ao
sofrimento alheio.
O ser humano fundamenta toda a ordem jurídica, política e moral e a orienta no sentido do reconhecimento, do respeito de normas e
das regras que os indivíduos reconhecem mutuamente. A temática do
comportamento moral é altamente relevante e, assim, é possível estabelecer algumas relações entre as disciplinas de Direito e Psicologia. Os
mecanismos do comportamento moral são complexos e multifatoriais e
sua compreensão é tema de diversas disciplinas, entre elas o Direito e a
Psicologia. A seguir, o conceito de justiça e moral são discutidos a partir
de três diferentes abordagens da Psicologia: a Psicologia Evolucionista, a
Psicologia Cognitiva e a Psicologia Cognitivo-Comportamental.
1. O olhar da Psicologia Evolucionista
A Psicologia Evolucionista oferece elementos fundamentais para
a discussão acerca da justiça e da moralidade. O questionamento sobre a
origem, o sentido e a finalidade da justiça e da moral conduz à busca dos
fundamentos neurobiológicos da conduta humana. As normas jurídicas
e morais existem somente porque o homem é compreendido a partir do
paradigma das espécies culturais que estabelecem relações sociais.
Charles Darwin, através de pesquisa exaustiva, foi capaz de propor uma teoria para a origem da humanidade, que fundaria a Biologia
Evolutiva. Evans e Zarate (1999) descrevem a ideia da ancestralidade
comum: há cerca de 100 milhões de anos, microrganismos e plantas começaram a ocupar a superfície da Terra, abrindo caminho para alguns
invertebrados e anfíbios; a partir dos anfíbios, surgiram répteis, aves
e mamíferos; entre os mamíferos, os primeiros primatas surgiram em
torno de 55 milhões de anos atrás. A partir desses ancestrais primatas,
surgiram os grupos recentes de prossímios, macacos, grandes macacos
e a nossa espécie. O primeiro humano moderno de que se tem registro
data de 150 mil anos, encontrado na África. Incluindo os seres huma45
Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
nos nas explicações de sua teoria, Darwin abriu caminhos para novas
possibilidades.
Posteriormente, na história do estudo do comportamento humano, psicólogos tentavam entender a origem de nossos comportamentos.
Na segunda metade do século XX, dois grupos distintos de cientistas
concorriam para defender suas abordagens. Os etólogos liderados por
K. Z. Lorenz, N. Tinbergen e K. R. von Frisch defendiam as observações
naturalísticas do comportamento, a análise comparativa pela observação de um número variado de espécies e a compreensão do instinto e do
componente inato do comportamento.
Já os psicólogos comportamentalistas liderados por J. B. Watson e
B. F. Skinner, que tentavam descrever os processos psicológicos básicos,
com foco na aprendizagem e a descrição dos mecanismos, enfatizavam
os comportamentos expressos. L. Cosmides e J. Tooby destacaram a negligência aos mecanismos psicológicos por parte da sociobiologia e da
ecologia comportamental humana (LALAND; BROWN, 2002).
Neste momento da história surgem, então, os psicólogos evolucionistas, que propuseram uma mudança de foco no nível de explicação
do comportamento humano. Passaram a utilizar como nível de explicação não mais o comportamento, mas as adaptações que permitem
sua expressão, ou seja, os complexos mecanismos psicológicos evolutivos (COSMIDES; TOOBY; BARKOW, 1992, baseado em WILLIAMS,
1966). A publicação de The adapted mind (BARKOW; COSMIDES;
TOOBY, 1992) foi o marco do surgimento dessa escola e teve influência
de grandes teóricos do estudo do comportamento, como D. Symons, E.
O. Wilson, E. J. M. Bowlby, I. DeVore, R. L. Trivers e W. D. Hamilton
(LALAND; BROWN, 2002).
A Psicologia Evolucionista compreende a mente como um conjunto de mecanismos para processamento de informações, que tem
como substrato o tecido nervoso (COSMIDES; TOOBY; BARKOW,
1992) e, portanto, passível de sofrer pressões seletivas como qualquer
outro órgão. Esse conjunto de mecanismos é o responsável por nossas
atividades mentais conscientes ou não, pela regulação do nosso corpo
e pela expressão dos nossos comportamentos (TOOBY; COSMIDES,
2005), funções que refletem sua origem filogenética. Nesse sentido, a
Psicologia Evolucionista vincula os mecanismos psicológicos evoluídos,
adaptações subjacentes ao comportamento desenhados pela seleção
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2 • FAZENDO A COISA CERTA: AS IDEIAS DE JUSTIÇA DE SANDEL SOB O OLHAR DAS PSICOLOGIAS EVOLUCIONISTA...
natural. Tais mecanismos foram selecionados por resolver problemas
adaptativos enfrentados por nossos ancestrais que, em última instância,
têm influência sobre o sucesso reprodutivo individual.
Desse modo, a Psicologia Evolucionista apresenta a hipótese de
que possuímos programas em nosso cérebro para promover a relação
entre a informação do ambiente interno e externo (físico ou social) e
o comportamento, o que, provavelmente, favoreceu a seleção de mecanismos psicológicos específicos para resolução de problemas adaptativos igualmente específicos (BARKOW; COSMIDES; TOOBY, 1992;
TOOBY; COSMIDES, 2005; YAMAMOTO, 2009).
Para a compreensão do comportamento moral através da Psicologia Evolucionista, deve ser discutido o conceito de cultura para esta
abordagem (LALAND; BROWN, 2002). Conforme a Psicologia Evolucionista, essa definição de cultura é adequada a um tratamento populacional. Como a cultura é essencialmente informação particularizada na
forma de variantes culturais, é possível rastrear a mudança na proporção de cada variante no conjunto de variantes culturais existentes em
dada população em certo instante de tempo. É importante explicitar o
conceito de cultura pressuposto por Richerson e Boyd, que afirmam que
a cultura é informação capaz de afetar o comportamento dos indivíduos
e que eles adquirem de outros membros de sua espécie a partir do ensino, da imitação e de outras formas de transmissão social (RICHERSON;
BOYD, 2005).
Segundo Sober e Wilson (1998), as normas sociais são adaptações culturais que são modeladas pelas consequências no ambiente ancestral que poderiam levar à evolução de processos mentais dotados dos
instintos sociais necessários para a vida em comunidades orientadas por
prescrições morais, jurídicas e religiosas. Tais marcadores simbólicos
possibilitam a interação seletiva com os membros da mesma comunidade, bem como respeitar normas sociais. Essa rede simbólica de variantes
culturais está na origem dos sistemas normativos humanos, como o Direito, a religião e a moral.
Os instintos sociais tribais seriam os seguintes: altruísmo e empatia; tendência a praticar punição moralista e a buscar recompensas;
tendência à igualdade; e instintos que favorecem a identificação com
marcadores simbólicos. Esses instintos sociais seriam o núcleo daquilo
que foi denominado de mente normativa: uma mente capaz de racioci47
Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
nar a partir de normas sociais e de aplicá-las a situações concretas, como
as que examinamos. A aplicação de uma norma social não é um processo consciente; muitas vezes, sabemos qual é a decisão correta, mas
não como justificá-la; e uma explicação possível para isso, compatível
com tudo o que se discutiu até aqui, sugere que essa decisão é, muitas
vezes, instintiva. Nossa mente opera a partir de uma gramática moral
universal, que estrutura nossa experiência moral e a forma pela qual
formulamos juízos normativos.
Compreender os fundamentos psicológicos do comportamento
moral é uma tarefa que depende de uma abordagem que perpassa a biologia evolucionista e que parte da premissa de que, para entender a estrutura da cognição humana, é necessário entender também o passado
evolutivo dos seres humanos. Franciscuss de Waal (2006) desenvolveu
diversos experimentos para compreender os pilares da moralidade entre os primatas. Entre os mais interessantes dos últimos estudos, encontra-se a evidência empírica de que não se refere já aos “grandes símios”
(bonobos, chimpanzés, gorilas) senão a primatas evolutivamente mais
modestos como os monos capuchinos. Em um dos experimentos, os sujeitos respondiam sistematicamente mostrando sentimentos de ultraje
quando eram recompensados de maneira injusta (pois o outro sujeito
recebia uvas realizando a mesma tarefa), com pepinos em lugar das mais
valoradas uvas. Ou seja, manifestações de ultraje surgem (os sujeitos experimentais jogavam as rodelas de pepino para fora da gaiola) quando
o experimentador não respeitava as regras naturais de reciprocidade, o
que induz a pressupor características elementares de justiça nessa sociedade de primatas (BROSNAN; DE WAAL, 2003). A justiça, a moral, o
Direito são as estratégias evolutivas da humanidade; a natureza humana
foi formada por um processo evolutivo em que se selecionaram essas
estratégias em benefício de determinados traços favoráveis a um tipo
novo e avançado de vida social: a cultura.
2. O olhar da Psicologia Cognitiva
Quando se discute sobre o que é fazer o certo, como Michel J.
Sandel nos instiga, é inevitável relembrar os conceitos do desenvolvimento da moralidade, amplamente estudados por Piaget e Kohlberg.
Em 1932, Jean Piaget publicou seu livro O juízo moral na criança
(1992), que descreve suas pesquisas acerca do surgimento de concei48
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tos como a moralidade e, através de uma série de experimentos, analisa como esse raciocínio moral se transforma e se desenvolve ao longo
da infância e da adolescência. Por meio do chamado Método Clínico
(DELVAL, 2002), Piaget investigava em crianças de diferentes idades a
resolução de dilemas morais, a representação do mundo, a causalidade,
entre outros temas.
Através dessa aplicação de dilemas morais simples, Piaget investigava as concepções que crianças de diferentes idades possuíam sobre
as regras de jogos, mentira, roubo, justiça, entre outras. Piaget utilizava algumas estratégias para as suas investigações; uma delas consistia
em pedir para que crianças brincassem com ele, ensinando-as como se
comportar diante das regras de alguns jogos, como o pique e o jogo
de bolinhas de gude. Piaget fingia não conhecer as regras que regulamentam as brincadeiras infantis a fim de poder questionar as crianças à
medida que o jogo era desenvolvido (SAMPAIO, 2007).
Piaget identificou que, de maneira geral, as crianças se comportavam de quatro maneiras distintas, que ele organizou sob forma de estágios. No primeiro estágio (de 0 a 2 anos), chamado de “Estágio Motor”,
as crianças não faziam uso da regra; simplesmente havia manipulação
motora, sem atividades sociais. No segundo estágio (2 a 5 anos), chamado de “Egocêntrico”, as crianças recebiam as regras do exterior e as
imitavam, sem interesse em encontrar um parceiro a fim de compartilhar a atividade; jogavam individualmente, mesmo estando em grupo.
No terceiro estágio (7 a 8 anos), conhecido como “Cooperativo”, surge
a interação social, bem como a necessidade de ganhar, aparecendo então a sistematização de regras, ainda que existam variações. Por fim, no
quarto e último estágio (11 a 12 anos), “Codificação das Regras”, ficam
definidas as regras do jogo e todos os participantes a seguem minunciosamente (QUEIROZ; RONCHI; TOKUMARO, 2009).
Quanto à moral, em uma perspectiva generalista, Piaget concluiu
que crianças muito novas se comportam de maneira heterônoma diante
de questões morais, e acreditava que o respeito unilateral pelas regras
estabelecidas por figuras de autoridade é a essência da moralidade. Nesse sentido, crianças por volta dos cinco anos ainda não são capazes de
refletir, de maneira autônoma, sobre questões morais, de questionar as
convenções socialmente estabelecidas e de construir uma consciência
moral independente dos adultos, até que fatores de ordem cognitiva,
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Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
afetiva e social interajam adequadamente. Entre esses fatores, por exemplo, estariam a diminuição do egocentrismo infantil, a descentração
cognitiva e o estabelecimento de relações sociais, nas quais predominam a cooperação e o respeito mútuo. A partir da interação desses e de
outros fatores, a criança passa a se reconhecer como igual diante das
outras pessoas, a conceber que as noções morais dependem do estabelecimento de acordos sociais que buscam privilegiar o grupo como um
todo e a ter uma consciência moral verdadeiramente autônoma, surgindo o senso de justiça (SAMPAIO, 2007).
Partindo dos referenciais teóricos de Jean Piaget, Lawrence Kohlberg, a partir de 1958, elaborou um modelo para o desenvolvimento da
moralidade humana. Em suas investigações, realizadas com sujeitos de
diferentes idades e de diferentes culturas, ele constatou a existência de
alguns padrões de raciocínio moral que independiam da língua e da
cultura, o que o levou a postular um caráter universal para o desenvolvimento do juízo moral, baseado em estágios de desenvolvimento rígidos
e hierárquicos. O princípio básico dessa universalidade, de acordo com
Kohlberg, seria a justiça, e assenta-se em uma perspectiva deontológica,
de uma moral do dever (ARAÚJO, 2000; BIAGGIO, 2006).
Para Kohlberg, assim como para Piaget, o desenvolvimento da
moralidade está ligado, sobretudo, ao desenvolvimento cognitivo e afetivo e às interações sociais estabelecidas ao longo da vida (SAMPAIO,
2007). Dessa forma, ao longo do desenvolvimento, pressupõem-se
transformações básicas nas estruturas cognitivas, conduzindo a formas
superiores de equilíbrio, resultantes de processos de interação entre o
organismo e o meio (BATAGLIA; MORAES; LEPRE, 2010).
Na época, foram considerados alguns eixos da teoria de Kohlberg:
a universalidade moral (em oposição ao relativismo cultural e ético); o
prescritivismo como uso de juízos morais (perspectiva deontológica); o
cognitivismo como o elemento de raciocínio do juízo moral (em oposição ao emotivismo); o construtivismo; e a ideia de que o pressuposto
metaético da justiça é primordial e de que os problemas morais como
dilemas são fundamentalmente problemas de justiça (KOHLBERG,
1992 apud ARAÚJO, 2010)
Analisando-se especificamente a cognição moral, podemos averiguar que, quando investigada na sua relação com a ação moral aparecem (a) as atitudes morais, expressas por crenças ou inclinações afetivas;
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(b) a informação moral ou reconhecimento das normas morais; e (c) o
julgamento ou raciocínio moral, baseado nas justificações e conclusões
em que são suportadas as decisões morais. (BLASI, 1980 apud CARITA;
TOMÉ, 2010). Dessa maneira, é a cognição moral, e não tanto a ação,
que permite distinguir condutas e aferir a sua qualidade moral. É sobretudo pelo pensamento que a qualidade moral da ação pode ser aferida
(CARITA; TOMÉ, 2010).
Dessa maneira, podemos pensar que, na problemática proposta
por Sandel sobre o que é fazer o certo, conceitos como o da cognição
moral – desde sua aquisição e desenvolvimento, suas ações e comportamentos – podem ser adjuvantes e norteadores de um entendimento
aprofundado sobre a essência do indivíduo e sua relação com a justiça.
3. O olhar da Psicologia Cognitivo-Comportamental
A Psicologia Cognitivo-Comportamental descreve inúmeros
princípios para a compreensão do comportamento moral e as ideias sobre justiça. Desde o surgimento do Behaviorismo ou Comportamentalismo, com J. B. Watson, em 1913 (Psychology as the Behaviorist views
it), passou-se a pensar não apenas nos indivíduos, mas sim nos comportamentos destes, sendo adotadas técnicas de experimentação com
processos interativos, diretamente observáveis, entre um indivíduo e
seu ambiente (NETO, 2002).
A partir da década de 1970, o modelo de processamento de informação e aprendizagem vicária, proposto por Albert Bandura, começou
a ganhar terreno e adeptos (KNAPP; BECK, 2008). Bandura (1986 apud
VASCONCELOS; PRAIA; ALMEIDA, 1995) entendia que uma parte
significativa daquilo que o sujeito aprende resulta da imitação, modelagem ou aprendizagem observacional, mas, mais do que isso, graças a
esse modo de processamento da informação, permite-se que condutas e
eventos ambientais sejam transformados em uma representação simbólica, que servirá como guia nas próximas ações.
Já em 1956, Aaron Beck iniciou a escola Cognitiva após trabalhar
sobre a depressão com Sigmund Freud. Beck (1956 apud BAHLS; NAVOLAR, 2004) definiu cognição como a “função que envolve deduções
sobre nossas experiências e sobre a ocorrência e o controle de eventos
futuros”, além de evidenciar o caráter biopsicossocial de sua teoria.
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Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
Desde então, um número crescente de teóricos e terapeutas começou a se identificar como “cognitivo-comportamentais” em termos
de orientação; alguns dos proponentes iniciais mais importantes de uma
perspectiva cognitiva e cognitivo-comportamental foram Aaron Beck,
Albert Ellis, Alciney Lorenço Cautela, Donald Meichenbaum e James
Mahoney (KNAPP; BECK, 2008).
Já no século I, Epitectus afirmava que “O que perturba o ser humano não são os fatos, mas a interpretação que ele faz dos fatos”. A base
do modelo cognitivo compartilha a premissa de que existe uma inter-relação entre a cognição, a emoção e o comportamento presentes nos
indivíduos (KNAPP, 2004). A Teoria Cognitivo-Comportamental, no
entanto, é um termo amplo que inclui tanto princípios da Teoria Cognitiva padrão quanto combinações ateóricas de estratégias cognitivas e
comportamentais (KNAPP; BECK, 2008).
Nessa abordagem da Psicologia, a ênfase recai na base cognitiva
do ser humano, ou seja, busca-se compreender de que maneira surge
o modo de pensar nos indivíduos e explica o porquê desses comportamentos. No livro Justice, de Michel J. Sandel (2012), são citados inúmeros exemplos que levam a refletir sobre “O que é fazer a coisa certa”.
Nenhuma área da Psicologia estará capacitada para dar uma resposta
definitiva sobre o tema, mas com as teorias cognitivas podemos, a partir
do estudo daquele indivíduo, entender de onde e por que surgem seus
pensamentos, explicar suas emoções e prever seus comportamentos.
Segundo Beck (1976 apud KNAPP, 2004), eventos quaisquer
ativam pensamentos, os quais geram, como consequência, emoções e
comportamentos. Eventos comuns podem gerar diferentes formas de
sentir e agir em diferentes pessoas. No entanto, não é o evento em si que
gera as emoções e os comportamentos, mas sim o que nós pensamos
sobre o evento. Nossas emoções e comportamentos estão influenciados
pelo que pensamos; nós sentimos o que pensamos (BURNS, 1989 apud
KNAPP, 2004).
De acordo com a Teoria Cognitiva, os indivíduos atribuem significado a acontecimentos, pessoas, sentimentos e demais aspectos de
sua vida; com base nisso, comportam-se de determinada maneira e
constroem diferentes hipóteses sobre o futuro. As pessoas reagem de
formas variadas a uma situação específica, podendo chegar a conclusões
também variadas (BECK, 1963). Em alguns momentos, a resposta habi52
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tual pode ser uma característica geral dentro daquela cultura; em outros
momentos, podem ser idiossincráticas, derivadas de experiências peculiares àquele indivíduo (BECK, 1963).
Outra premissa do modelo cognitivo é a de que estamos sujeitos a
distorções cognitivas, ou seja, distorções no nosso pensamento – o que é
muito prevalente em alguns transtornos. Essas distorções são caracterizadas como vieses sistemáticos na forma como indivíduos interpretam
suas experiências. Se a situação é avaliada erroneamente, essas distorções podem amplificar o impacto das percepções falhas. As distorções
cognitivas podem levar o indivíduo a conclusões equivocadas mesmo
quando sua percepção da situação está acurada (KNAPP, 2004).
Da mesma maneira, segundo o modelo cognitivo, todos possuem
crenças nucleares – ideias e conceitos enraizados sobre si mesmos, as
pessoas e o mundo. Tais crenças se constituem ao longo da vida e vão
moldando a percepção e a interpretação dos eventos, levando a pensar
de maneira consoante com suas crenças (KNAPP, 2004).
Portanto, quando Michel J. Sandel (2012) instiga a refletir sobre
“O que é fazer a coisa certa”, podemos dizer que cada sujeito formará
seu ponto de vista com base em seu processamento cognitivo, na forma
em que alicerçou seus pensamentos automáticos e crenças. Considerar
correto ou não aumentar os preços de produtos diante de uma catástrofe
dependerá das crenças formadas, dos conceitos estabelecidos, se estes
sofrem distorções ou não. Alguém pode se sentir desamparado, outro,
rejeitado, um terceiro, sem valor (BECK, 1976 apud KNAPP, 2004).
Cada sujeito fará o certo com base na sua singularidade e estabelecendo
seu senso de justiça conforme a sua interpretação dos eventos.
4. Ampliando a discussão e integrando as abordagens
O propósito do presente capítulo foi apresentar algumas relações
entre as diferentes abordagens da Psicologia – Evolucionista, Cognitiva
e Cognitivo-comportamental – e do Direito, no sentido de compreender os mecanismos envolvidos no comportamento moral.
Consideramos que a mente humana evoluiu como produto de
dois sistemas evolutivos; um deles com base em herança genética e o
outro, em herança cultural. Ao reconstruir a trajetória humana, deve-se
considerar os processos de coevolução entre genes e cultura, sendo pos53
Ana Raquel Menezes Karkow - Maria Verônica Schmitz Wingen - Lauren Tonietto
sível discutir sob uma perspectiva naturalista temas que, normalmente,
são tratados sem levar em consideração o conhecimento científico relevante produzido em diferentes áreas do saber.
Os estudos sobre desenvolvimento moral dentro da abordagem da
Psicologia Cognitiva apontam que o sujeito desenvolve sua moralidade
ao longo do ciclo vital, aprimorando sua noção de justiça ao longo do
processo de desenvolvimento. Na visão da Psicologia Cognitiva, a moralidade é o resultado da interação de fatores maturacionais (inatos) e desenvolvimentistas (adquiridos na interação do sujeito com seu ambiente).
Dentro do paradigma da Psicologia Cognitivo-Comportamental,
o comportamento moral é determinado pela maneira como se dá o processamento cognitivo – crenças, valores, conceitos, além da interpretação de eventos – que formam nosso pensamento acerca da justiça.
Os olhares das três abordagens psicológicas descritas neste capítulo enfocam diferentes aspectos do desenvolvimento humano no
que se refere ao desenvolvimento do pensamento e do comportamento
moral. Assim, as abordagens se complementam ao destacar diferentes
aspectos envolvidos na temática da justiça: os aspectos evolutivos e instintivos do comportamento, a maturação e o desenvolvimento cognitivo
e social necessários para alcançar a cooperação e a autonomia moral, e
a função do pensamento na determinação do comportamento humano.
A interdisciplinaridade na compreensão do comportamento humano possibilita um avanço no diálogo entre as ciências e a Filosofia,
tornando possível investigar, com maior profundidade, fenômenos
como a moral. Evidentemente, o assunto tratado não se esgota neste
texto. Pensar os fenômenos sociais, jurídicos e morais estabelecendo o
entrelaçamento de perspectivas e das ciências como o Direito e a Psicologia é o caminho para avançar nas reflexões e produções teóricas sobre
este tema.
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57
3
FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS
DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
1
Camile Eltz de Lima2
- Emerson de Lima Pinto3
Sumário: Introdução - 1. Felicidade versus democracia versus
direitos e garantias individuais - 2. Provocações ao utilitarismo
sob a ótica do direito - 2.1 Sociedade contemporânea e os
novos riscos: fim das certezas e seguranças prometidas - 2.2
Novos riscos e seus reflexos no direito penal e processo penal. Considerações Finais - Referências Bibliográficas
1 O presente artigo é resultado do evento Diálogos entre Direito e Psicologia, ocorrido no Cesuca,
no dia 12/11/2013.
2 Advogada. Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS). Especialista em Ciências Penais pela PUC-RS. Professora no curso de Graduação
em Direito no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca).
3 Advogado. Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
Mestre em Direito Público pela Unisinos. Especialista em Ciências Penais Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor no curso de Graduação em Direito na Unisinos
e no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Pesquisador do Cesuca.
59
Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
INTRODUÇÃO
O artigo em questão é fruto de diálogo realizado entre os cursos
de Graduação em Direito e em Psicologia, ambos oferecidos no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), tendo como
ponto de partida o livro (best-seller) de Michael Sandel4 intitulado Justiça – O que é fazer a coisa certa, mais especificamente o capítulo 2, assim
nominado: “O princípio da máxima felicidade/utilitarismo”.
Antes de tudo, importa destacar que leitura da obra do filósofo
americano Michael Sandel mostrou-se bastante interessante e desafiadora. O livro, muito provocativo, leva o leitor a constantes indagações,5
até mesmo de posturas adotadas e de correntes ideológicas seguidas.
A ideia principal consiste em trazer algumas das inquietações
que o capítulo proposto nos proporcionou. Nesse ponto, proveitosa a
realização de diálogo com a Psicologia, justamente para nos auxiliar na
reflexão e, até mesmo, na (re)afirmação das nossas convicções/valores.
Já adiantamos ao leitor que não defendemos o Direito como a
principal ou a mais importante das ciências existentes (superamos, aqui,
o narcisismo). Pelo contrário, o Direito nada mais é que ciência jurídica
e social aplicada e, por isso, imprescindível dialogar com outros ramos
do saber.
Sobre a temática, é preciso Salo de Carvalho:
A pretensão e a soberba gerada pela crença romântica de que o direito
penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impede
o angustiante e doloroso, porém, altamente saudável, processo de
reconhecimento dos limites. Tenho, pois, que a nós penalistas falta uma
dose de humildade e modéstia, para, ao adotar uma ética transdisciplinar,
estabelecer uma séria conversação com as demais áreas do saber,
procurando, neste diálogo, apre(e)nder, e não simplesmente impor uma
verdade absoluta com intuito de subjugar conhecimentos diversos.6
4 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria
Alice Máximo. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2013.
5 “Sandel não oferece respostas prontas. Ao estilo socrático, propõe mais perguntas do que
soluções, sustentando que é preciso refletir coletivamente para encontrar saídas. Uma das certezas
é que a busca pelo que é justo, acompanha a humanidade desde sempre, sendo um dos temas
clássicos da filosofia” (DUARTE, Letícia. Dilemas éticos. Zero Hora, Porto Alegre/RS, Caderno
PrOA, 25/5/2014, p. 6.
6 CARVALHO, Salo de. A Ferida Narcísica do Direito Penal (primeiras observações sobre as (dis)
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
Daí por que (justificada e acertada) a escolha do viés transdisciplinar, já que voltado à abertura e ao diálogo e, sobretudo, porque não
pretende, segundo ensina Cristina Rauter,7 construir uma teoria mais
e mais abrangente, que possa enfim dar conta de mais fenômenos, mas
um campo teórico não estável, que se transforma, se alarga e se encolhe,
cuja vantagem dessa instabilidade é a possibilidade de experimentação
constante e que impede a generalização de procedimentos singulares.
No ponto, cumpre colacionar a Carta da Transdisciplinaridade,
adotada no primeiro Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, em
1994, em seu art. 3º: “A transdisciplinaridade não procura o domínio
sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo
que as atravessa e as ultrapassa”.
Portanto, é sob a ótica transdisciplinar que abordaremos a temática.
1. Felicidade versus democracia versus direitos e
garantias individuais
O capítulo proposto8 tem como tema principal o utilitarismo.
Não por outro motivo aborda os ideais dos pensadores Jeremy Bentham
(1748-1832) e Stuart Mill (1806-1873).
Sob esta ótica, argumenta-se que “a coisa certa a fazer é aquela
que maximizará a utilidade”, definida por Bentham como “qualquer coisa que produza prazer ou felicidade e evite a dor ou o sofrimento”. Assim
sendo, cabe aos legisladores maximizar a felicidade da comunidade geral. E, na tensão entre prazer e dor, deve prevalecer o primeiro. Portanto,
sempre a decisão deverá proporcionar mais felicidade que sofrimento.
Deve-se, pois, promover o bem-estar geral.9
Todavia, uma das críticas que o autor do livro faz, apontando
para a vulnerabilidade do pensamento utilitarista, é que este não respeita os direitos individuais. Ao considerar apenas a soma das satisfações,
ignora-se o indivíduo – o que pode ser cruel.
funções do controle penal na sociedade contemporânea). In: GAUER, Ruth M. Chittó (Org.). A
qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 207.
7 RAUTER, Cristina Mair Barros. Clínica do Esquecimento: Construção de uma superfície. Tese de
doutoramento apresentada à PUC/SP, 1998. p. 6.
8 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa, p. 42-74.
9 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa, p. 48.
61
Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
Assim sendo, dentre as objeções que propõe Sandel ao utilitarismo e, nesse sentido atualizando o discurso, dentro desta ótica dos
direitos individuais, está a tortura. Apresenta um caso (emblemático)
sobre a justificativa (ou não) da tortura em interrogatórios de suspeitos de terrorismo. Considera uma situação em que uma bomba-relógio
está por explodir e que você está no comando de um escritório local da
CIA (Central Intelligence Agency). Você prende um terrorista suspeito e acredita que ele tenha informações sobre um dispositivo nuclear
preparado para explodir em Manhattan dentro de algumas horas. Você
tem razões para acreditar que ele próprio tenha montado a bomba. Ele
se recusa a admitir que é terrorista ou a informar onde a bomba está
colocada. Nessas condições, indaga-se: Seria certo torturá-lo para que
diga onde está a bomba e como desativá-la?
Pois bem. O argumento a favor da tortura começa com um cálculo utilitarista. A tortura (inegavelmente) inflige dor, reduzindo a felicidade; contudo, tem-se que milhares de inocentes morrerão se a bomba
explodir. Logo, o pensamento utilitarista irá argumentar que a tortura
é justificável se evitar a morte e sofrimento em grande escala. Avalia-se
tão somente o cálculo utilitarista em si.
Ocorre que a tortura, como sustenta o autor,10 viola os direitos
humanos, desrespeitando a dignidade dos indivíduos. Afinal, somos
seres merecedores de respeito. Portanto, é errado tratá-los como instrumentos da felicidade coletiva. As pessoas não podem ser usadas como
instrumentos para obtenção do bem estar alheio. Desta forma, não podemos levar em consideração números, abandonando escrúpulos sobre
dignidade e direitos humanos, até porque moralidade não deve trabalhar com o binômio “custos e benefícios”.
Logo, é errado violar os direitos de alguém, ainda que tal violação
viesse em prol da felicidade de uma população.
Prossegue o filósofo referindo que não se pode basear direitos em
cálculos sobre o que produzirá maior felicidade. Assevera que só porque
algo proporciona prazer a muitas pessoas, não significa que esteja acertado. O simples fato de a maioria, por maior que seja, concordar com
determinada lei, não faz com que ela seja (necessariamente) correta.
10 Avançando um pouco a leitura do livro-base (p. 135 e ss.), encontramos, no capítulo 5, algumas
críticas importantes sobre o utilitarismo.
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
2. Provocações ao utilitarismo sob a ótica do direito
Enfim, a partir da leitura do capítulo proposto e analisando-o
sob a ótica do Direito, alguns questionamentos vêm à tona: é possível,
na atualidade, adotar uma postura utilitarista, abrindo-se mão dos direitos e garantias individuais em prol de uma “segurança e bem-estar”
geral? Será que podemos dizer que o Direito, enquanto conjunto de
leis positivadas e vigentes em um determinado lugar e um determinado tempo, produz “felicidade”? Que felicidade é esta? Para quem ou a
serviço de quem?
2.1. Sociedade contemporânea e os novos riscos: fim
das certezas e seguranças prometidas
Antes de mais nada, é preciso quebrar alguns mitos/paradigmas.
Vivemos em um período (único) muito distinto em relação a
qualquer outro momento já experimentado pela Humanidade. Não
existe, portanto, continuidade (no sentido de linha do tempo, cujo
avanço – temporal – represente sempre evolução). Aliás, cumpre referir
que custou muito caro a defesa (diga-se de passagem, indefensável) das
teorias evolucionistas, que propunham um único destino (feliz) à Humanidade:
Para alguns darwinistas, como Tylor e Spencer, a sociedade evoluía em
fases sucessivas, ou seja, a história das sociedades também estava sujeita
a leis da natureza, tendo tendência de seguir linhas de desenvolvimento
semelhantes, independente da localização espaço-temporal, indo
necessariamente da selvajaria à barbárie e finalmente à civilização.11
A sociedade contemporânea é marcada pela complexidade. Aceleração, tempo, velocidade são significados que sofreram profundas
transformações e agora passam a representar os traços característicos
deste período marcado pelo constante dinamismo, “porque a vida, por
definição, é movimento, inscrito no tempo de maneira irreversível, sem
possibilidade de voltar atrás. O que já foi não voltará a acontecer, e qual-
11 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005. p. 152.
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Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
quer decisão, qualquer ação, modifica o curso da história de cada um
ou de todos”.12
Sobre esse indeterminismo, explica François Ost:
O nosso futuro, desta vez, seria verdadeiramente contingente,
verdadeiramente indeterminado. O amanhã seria de tal forma novo
que a nossa bagagem de experiência, desta vez, já não teria qualquer
utilidade e mesmo os nossos projectos e promessas (o impulso
prometeico) perderiam toda a pertinência.13
Assim, não há mais lugar para o absoluto, para o previsível, para a
certeza e segurança. A regra é o caos, a incerteza. Se, em outros tempos,
o homem alcançava as metas que havia projetado, agora, além de ter
presente a impossibilidade da certeza, sabe que, muito provavelmente,
alcançará resultados bem distintos dos que havia planejado/idealizado.
Caracterizada, então, a falência de todo o discurso, para não falar mito, que, por diversos séculos, acompanhou a Humanidade: ou
seja, o próprio projeto da Modernidade, que proporcionaria, por força
do império exclusivo da razão, o bem-estar, progresso e felicidade na
Terra. Pensava-se equivocadamente que a racionalidade resolveria todos os problemas e que bastaria o controle, a ordem, para alcançar-se
o progresso.
No entanto, não precisou muito tempo para constatar que todo
esse otimismo deu lugar ao pessimismo. A Humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, passou a se afundar em
uma nova espécie de barbárie (intitulada por Michel Löwy de “barbárie
civilizada”). Basta perceber tudo o que a racionalidade instrumental foi
capaz de fazer: ao progresso linear e seguro, causa e efeito de um evidente bem-estar social, tem-se um regresso.
Vive-se, assim, em uma profunda crise epistemológica, na qual
a técnica supera o humano, tudo por conta de uma ciência sem limites: um instrumento de puro poder. Ruth Gauer acertadamente coloca
assim a questão: “Existem limites para a ciência? O que nos espera não
12 RAUX, Jean-François. Prefácio: Elogio da Filosofia para construir um mundo melhor”.
In: MORIN, Edgar; PRIGOGINE, Ilya (Orgs.). A Sociedade em Busca de Valores. Para fugir à
alternativa entre o cepticismo e o dogmatismo. Lisboa: Piaget, 1996. p.13.
13 OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999. p. 324.
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
pode sequer ser imaginado, muito menos os métodos que serão empregados para atingi-lo”.14
Dentro desse quadro, é preciso destacar também que os riscos,
que sempre ameaçaram as sociedades humanas, tornam-se os grandes
responsáveis pelo aumento (cada vez em um grau maior de intensidade)
da insegurança que se faz presente no mundo de hoje.
Os riscos contemporâneos são qualitativa e quantitativamente diferentes daqueles que se faziam presentes nas sociedades pré-industrial
e industrial. São incalculáveis, imprevisíveis e “potencialmente globais
no âmbito do seu alcance”.15 Regem a vida de tal maneira que a sociedade contemporânea passa a ser denominada de sociedade de risco.
Sobre a legitimidade e os valores, Sérgio Cadermatori16 esclarece que o culto à legalidade simplesmente formal representou um efeito
perverso que afetou a própria ideia de legitimidade que passou a ser
compreendida como uma simples questão de efetividade, e não de justiça como elemento fundante de todo o fenômeno jurídico. As normas
componentes do sistema não devem ser apenas formalmente corretas,
mas também devem conformar-se com valores tidos como necessários
para a existência de uma sociedade livre. Tornou-se necessário superar essa visão dogmática-legalista, e eis algumas críticas que lhe foram
corretamente produzidas: a) quanto à noção jurídica, a legitimidade
constrói-se em uma época de sociedade globalizada pluralista e fragmentária; b) a legitimidade possuía uma certa noção supralegal ligada
ao Direito natural; c) a noção axiológica reforça a noção de valores que
foi suplantada em período positivista; d) a supremacia da legalidade deve-se ao fim do poder pessoal e ao advento da democracia; e) redução
da legitimidade a mero elemento interno da categoria legalidade dentro
de uma instrumental perspectiva moral (ideologias da legitimidade: 1)
ideologia da legitimidade racional, 2) ideologia da legitimidade histórica e 3) ideologia da legitimidade existencial).
Assim, não há, então, como negar o próprio mal-estar que rege a
civilização: “A busca da felicidade, promessa da modernidade, não con14 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p. 195.
15 GOLDBLATT, David. Teoria social e ambiente. Tradução de Ana Maria André. Lisboa: Piaget,
1996. p. 232.
16 CADERMATORI, Sérgio. Estado de Direito e legitimidade: Uma abordagem garantista. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 99; 101.
65
Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
seguiu apagar o sentimento profundo sempre presente do eterno sofrimento”.17 Freud foi categórico, nesse sentido, ao afirmar que a felicidade
(plena) é impossível de ser alcançada; tem-se que (apenas) se contentar
com espasmos de felicidade.
Ocorre que, diante desse cenário de risco (total), fim das certezas
e insegurança, aliado a outros problemas advindos das transformações
tecnológicas (principalmente daquelas que dizem respeito às esferas da
telecomunicação e da cibernética, cujo expoente, seguramente, é a internet), científicas, econômicas e sociais, especialmente após o encerramento da Segunda Guerra Mundial, o Estado perde seu poder enquanto
agente capaz de trazer segurança e garantir proteção aos seus indivíduos
– sintoma este de fracasso do Welfarismo (penal) enquanto modelo de
Estado cujo traço essencial de suas políticas poderia ser traduzido na
promoção de bem-estar aos seus cidadãos, ou seja: uma verdadeira promessa de felicidade social.18
Surgiu, com essa nova tendência, na Europa, um processo de migração, gerando para os indivíduos que migram para outros Estados-partes certa (des)nacionalização; também paralelas com os fluxos migratórios estão as diversas dificuldades enfrentadas pelas nações, como
na área da segurança pública, aumentando com isso a criminalidade
globalizada,19 pois há uma grande circulação de pessoas, facilitada pela
evolução dos meios de transporte, não havendo, assim, grandes dificuldades em cruzar fronteiras. Já com o deslocamento das empresas para
os países mais atrativos, percebem-se, nesse caso, os sérios danos causados em relação ao meio ambiente, ocasionando grandes poluições. E,
não podendo deixar de mencionar, há outro grande fator negativo que
se forma a partir da globalização econômica, isto é, o grave problema
das (des)igualdades sociais, que se aprofunda cada vez mais nas marcas
da pobreza absoluta e da exclusão social. Em suma, o pensamento único
17 GAUER, Ruth Maria Chittó. O Reino da Estupidez e o Reino da Razão, p. 180.
18 Sobre o Estado social, refere François Ost: “Preocupado com a realização efectiva das promessas
de liberdade e de igualdade para todos, o Estado social pretende dominar os principais riscos,
impondo segurança generalizada” (O tempo do Direito, p. 336).
19 FERRAJOLI, Luigi. Razones jurídicas del pacifismo. Madrid: Editorial Trotta, 2004. p. 86-87.
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
na era globalizada20 é o da liberdade da informação, sendo esta democratizada.21
2.2. Novos riscos e seus reflexos no direito penal e
processo penal
Encontra, portanto, no Direito Penal, espaço para desempenhar
tal tarefa. Nesse aspecto, salienta Aury Lopes Jr.: “como consequência
desse cenário de risco total, buscamos no direito penal a segurança perdida. Queremos segurança em relação a algo que sempre existiu e existirá: violência e insegurança”.22 Desta forma, acrescenta o autor:
o sistema penal é utilizado como sedante, através do simbólico da panpenalização, do utilitarismo processual e do endurecimento geral do
sistema. [...] Os programas urgentes, contudo, permitem resultados
rápidos, visíveis e mediaticamente rentáveis, mas com certeza não se
institui nada durável numa sociedade a partir, unicamente, da ameaça
da repressão.23
Ao (pretender) garantir a proteção dos principais (quando não de
todos) bens e interesses da Humanidade, acaba “projetando no imaginário coletivo a existência de segurança social garantida pela severidade
20 HABERMAS, Jürgen. O Estado-Nação frente aos desafios da globalização. São Paulo: Novos
Estudos Cebrap, 1995. p. 98. Globalização significa transgressão, remoção de fronteiras e, portanto,
representa uma ameaça para aquele Estado-nação que vigia quase neuroticamente suas fronteiras.
Anthony Giddens definiu globalização como a intensificação das relações mundiais que ligam
localidades distantes, de tal maneira que os acontecimentos locais são moldados pôr eventos que
são a muitos quilômetros de distância e vice-versa. A comunicação global ocorre tanto por meio de
linguagens naturais (na maioria das vezes através de meios eletrônicos) como por códigos especiais
(são os casos, sobretudo, do dinheiro e do direito).
21 IANNI, Octavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1997. p. 21. A
realidade política global compreende a formação e atuação das corporações transnacionais da
mídia, que organizam e agilizam não somente os meios de comunicação e informação, como
também a eleição, seleção e interpretação dos fatos, sejam sociais, econômicos, políticos ou
culturais. Isso não significa, obrigatoriamente, uma aceitação pacífica por parte da população, mas
é claro que os meios de comunicação, informação e análise organizados na mídia e na indústria
cultural agem com muita força e preponderância no modo pelo qual se formam e conformam as
mentes e os corações da grande maioria pelo mundo afora.
22 LOPES JR., Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal. In: GAUER, Ruth M.
Chittó (Org.). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003. 147.
23 LOPES JR., Aury. (Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal, p. 168.
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Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
da lei”.24 É dentro desse quadro que se desenvolve uma cultura de emergência, que é definida por Fauzi Hassan Choukr como sendo:
aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema
repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones
culturais empregados na normalidade. [...] Tal declinação da cultura
normal não se dá pela inserção tópica das regras fora da extratificação
codificada pois, se assim fosse, toda lei extravagante deveria ser
rigorosamente considerada como emergencial ou de exceção. A
caracterização da presença do subsistema se dá com a mitigação,
direta e indireta, de garantias fundamentais estabelecidas no pacto
da civilidade, esta devendo ser entendida não apenas o texto interno
constitucional mas, igualmente, os textos supranacionais que versem
sobre esta matéria, vez que fornecerão a base daquilo que vai se
denominar sistema, regulando sua legitimidade operacional ao nível
normativo e interpretativo.25
A consequência que isso acarreta para o processo “é o emprego de
mecanismos cada vez mais tendentes à supremacia estatal”.26 Destaca-se,
já em um primeiro momento, que é a primazia da razão de Estado27 sobre
a razão jurídica como critério informador do Direito e do processo penal,
em um contexto em que o Estado é um fim, não fundado senão sobre si
mesmo. Tutelam-se, pois, os interesses do Estado, e não mais os do indivíduo. Inverte-se, desta forma, a lógica que deveria imperar: império do Estado de Direito no qual o Estado é um meio justificado pelo fim de tutela
dos direitos fundamentais dos cidadãos. Adverte Luigi Ferrajoli:
el principio de la razón de estado es incompatible con la jurisdicción
penal dentro del marco del moderno estado de derecho, de forma tal
24 OLIVEIRA, Lenôra Azevedo de. A proteção do Bem Jurídico Ambiental e os Limites do Direito
Penal Contemporâneo. In: CARVALHO, Salo de (Org.). Leituras Constitucionais do Sistema Penal
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 76.
25 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo Penal de Emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 5-6.
26 Nesse aspecto ressalta Aury Lopes Jr.: “a sociedade, acostumada com a velocidade da
virtualidade, não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade
de uma imediata punição” ((Des)Velando o Risco e o Tempo no Processo Penal, p. 165).
27 “La razón de estado esta guiada por principio por la lógica partidista y conflitctual del
amigo/enemigo [...], admite procedimientos inquisitivos dirigidos a identificar al enemigo con
indagaciones directas sobre las personas mas allá de las acciones cometidas” (FERRAJOLI, Luigi.
Derecho e Razón: Teoría del garantismo penal. 4. ed. Tradução de Perfecto Andrés Ibáñez, Alfonso
Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayon Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocio Cantanero Bandrés.
Madrid: Trotta, 2000. p. 815).
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
que cuando interviene – como en el derecho penal de la emergencia
– para condicionar las formas de la justicia o, peor, para orientar un
concreto proceso penal, entonces ya no existe jurisdicción sino otra
cosa: arbitrio policial, represión política, regresión neoabsolutista del
estado a formas premodernas.28
Evidenciado que esse Direito de exceção, nada garantista, pauta-se em uma política criminal apenas preocupada com a eficiência do
sistema, com o êxito funcional, enfim, com ter respostas, imediatas de
preferência. Ou seja, é uma política criminal de resultados.29 Ocorre
que: “não há ‘cultura’ emergencial que justifique a adoção de medidas
que violem a CR ou a estrutura democrática de processo.30
Sustenta Luigi Ferrajoli:
La cultura de la emergencia y la práctica de la excepción, incluso antes
de las transformaciones legislativas, son responsables de una involución
de nuestro ordenamiento punitivo que se ha expresado en la reedición,
con ropas modernizadas, de viejos esquemas substancialistas propios
de la tradición penal premoderna, además de en la recepción en la
actividad judicial de técnicas inquisitivas y de métodos de intervención
que son típicos de la actividad de policía.31
Ao lado de um Direto Penal de exceção, temos também um Direito Processual de emergência, caracterizado, basicamente, pela mitigação de garantias fundamentais. Sobretudo com a luta contra o crime
organizado, o Estado passa a adotar medidas, enaltecendo seu poder
tal que as garantias constitucionais, como constata Alberto Zacharias
Toron, soam como retórica inútil:
28 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón: Teoría del garantismo penal. 4. ed. Tradução de Perfecto
Andrés Ibáñez, Alfonso Ruiz Miguel, Juan Carlos Bayon Mohino, Juan Terradillos Basoco e Rocio
Cantanero Bandrés. Madrid: Trota, 2000. p. 812.
29 Sobre o tema, adverte Luiz Flávio Gomes: “O que importa é o ‘bom funcionamento’ do sistema
penal (não importa o custo), para ‘aniquilar’ o inimigo, pouco valendo a tradição clássica iluminista
e ‘garantista’ que procura tutelar o cidadão contra as abusivas invasões do poder punitivo estatal”
(GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e
político-criminal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 47).
30 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e
político-criminal, p. 49.
31 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 807.
69
Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
Assim, a prisão provisória facilitada ao máximo, com um escasso
controle judicial, ou mesmo a ampliação de seu prazo, isto para não falar
nas escutas telefônicas, na quebra dos mais diferentes tipos de sigilo,
nos flagrantes controlados e na infiltração de agentes, trarão consigo
uma espécie de estado “democrático-policial” que só teve paralelo nos
períodos mais duros do regime militar. O paradoxo, no entanto, está em
que tudo agora é feito sob o manto legitimador da democracia.32
Nesse cenário, impossível discordar que, diante de um verdadeiro
processo penal de resultados, “o processo penal se transformou numa
máquina incontrolável sem as garantias tradicionais em favor do processado”.33 Retorna-se à prática inquisitiva, em que há uma visível ampliação de poderes, sobretudo da polícia: agora conta-se com os agentes
infiltrados, indiscriminada utilização das escutas telefônicas, nas quais
os “princípios fundamentais ou não valem mais ou valem apenas limitadamente”.34
Por isso, salutar a manifestação de Luiz Flávio Gomes:
[...] se não pretendemos transformar o Estado Constitucional de Direito
em um Estado policialesco (do terror), o primordial – em qualquer país
– é não abrir mão dos direitos e garantias fundamentais, bloqueandose toda possibilidade de um direito e de uma jurisdição de exceção.
Impõe-se sempre procurar examinar se as medidas (legais ou prestes a
se tornarem) encontram respaldo ou se conflitam com o ordenamento
jurídico em vigor. Uma coisa é o político-criminalmente ‘desejado’,
outra bem diferente é o jurídico-constitucionalmente possível.35
Impressiona, portanto, o modo como se resgatam certas práticas inquisitivas, que ganham roupagens cada vez mais incrementadas
e perversas, aniquilando, desta forma, o próprio sistema acusatório,
degradando, pois, o processo penal que visava atingir uma finalidade
garantista.
32 TORON, Alberto Zacharias. Prefácio do livro Crime Organizado, de Luiz Flávio Gomes, p . 8.
33 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e
político-criminal, p. 42.
34 HASSEMER, Winfried. Segurança Pública no Estado de Direito. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, a. 2, n. 5, São Paulo: Revista dos Tribunais, jan./mar., 1995, p. 60.
35 GOMES, Luiz Flávio. Crime Organizado: enfoques criminológico, jurídico (Lei 9.034/95) e
político-criminal, p. 44.
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3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
O Estado luta com toda a força e severidade (para não falar irracionalidade) não contra os culpados, como deveria ser em um Estado em que predomina a razão de Direito, mas contra os inimigos, pois
“cualquiera que atenta contra la seguridad o la supervivencia del estado
no es un delincuente sino un enemigo y contra él no valen las reglas del
derecho sino las de la fuerza”.36
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se a vida em sociedade pressupõe o Direito, podemos, de alguma
forma, afirmar que haverá “felicidade” na medida que se reconheça o
homem enquanto homem e que o indivíduo esteja em primeiro plano
– a democracia pressupõe modelo político em que o indivíduo é valorizado, assumindo papel de destaque.
O reconhecimento do valor do homem enquanto homem implica
o surgimento de um núcleo de prerrogativas que o Estado não pode
deixar de reconhecer. E, assim, toda lei que viole a dignidade da pessoa
humana deve ser reputada como inconstitucional.
Todos os habitantes estão submetidos, mediata ou imediatamente,
à unidade fundamental de decisão e devem contribuir para a unidade de
ação central. Desse modo, o Estado precisa de uma Constituição normativa, entendida como a ordenação consciente da realidade social segundo
um plano, ideia consagrada pelas revoluções liberais e que precisa ser (re)
legitimado na sociedade contemporânea a partir de novos paradigmas,
conforme foi abordado sucintamente na sociedade civil, poder constituinte e direitos humanos como fio condutor de uma nova compreensão
de sociedade garantista e de um Estado garantista e dirigente.
Por isso, a importância do princípio da humanidade, que, conforme sustenta Cezar Bitencourt, impede que o poder punitivo estatal
aplique sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados.37
E aqui fazendo-se um link com o capítulo do texto, tem-se que a
tortura não pode, sob hipótese alguma, ser aceita e praticada.
36 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 829.
37 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. v. 1. 17. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012.
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Camile Eltz de Lima - Emerson de Lima Pinto
Muito se tentou legitimar a absurda relação entre tortura e verdade. Deixando de lado a discussão de que a “verdade” (absoluta/real) não
existe, é um contrassenso pensar, assim como o torturador o concebia,
que a verdade pode ser extorquida de alguém pela pressão da dor. Existe
verdadeira incompatibilidade entre dor e verdade, pois “a dor não pode
tomar o cadinho da verdade, como se o critério dessa verdade residisse
nos músculos ou nas fibras do infeliz”.38
Ademais, outra questão interessante de se colocar é a de que não
está separando o corpo e sujeito – separação esta que está entranhada
na cultura ocidental. Refere Maria Rita Kehl que não temos um vocabulário que expresse a unidade fundamental: um homem é seu corpo. Dizemos “meu corpo” como se o eu que fala se representasse de um outro
lugar, fora do corpo sem o qual ele não existe: seria bem mais apropriado, refere a autora, que disséssemos “eu/corpo”. No entanto, argumenta
que a tortura refaz o dualismo corpo/mente ou corpo/espírito, porque a
condição do corpo entregue ao arbítrio e à crueldade do outro separa o
corpo e sujeito. Sob tortura, o corpo fica tão assujeitado que é como se
a alma ficasse separada dele. A fala que representa o sujeito deixa de lhe
pertencer, uma vez que o torturador pretende arrancar de sua vítima a
palavra que ele quer ouvir, e não a que o outro teria a dizer.39
É necessário, portanto, estabelecer critérios de racionalidade e civilidade à intervenção penal, deslegitimando qualquer modelo de controle social maniqueísta que coloca a defesa social acima dos direitos e
garantias individuais.
Como diz Luigi Ferrajoli, Estado e Direito não são fins, mas
meios para a realização da dignidade do homem. É que o Estado que
mata, que tortura, que humilha o cidadão não só perde qualquer legitimidade como contradiz a sua própria razão de ser, que é servir de tutela
dos direitos fundamentais do homem, colocando-se no mesmo nível
dos delinquentes.40
38 KEHL, Maria Rita. Três perguntas sobre o corpo torturado. In: KEIL, Ivete; TIBURI, Márcia
(Orgs.). O corpo torturado. Porto Alegre: Escritos Editora, 2004. p. 13.
39 KEHL, Maria Rita. “Três perguntas sobre o corpo torturado”, p. 10-11.
40 FERRAJOLI, Luigi. Derecho e Razón, p. 396.
72
3 • FELICIDADE E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DIÁLOGOS A PARTIR DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
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74
4
O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA
VISÃO DA PSICOLOGIA
Evanisa Helena Maio de Brum1
- Fernanda Vaz Hartmann2
Sumário: Introdução - 1. A felicidade e a Psicologia - 2. O
desenvolvimento do julgamento moral - Considerações Finais Referências Bibliográficas
INTRODUÇÃO
A partir da leitura do capítulo sobre utilitarismo do livro Justiça –
O que é fazer a coisa certa, de Sandel (2013), propomo-nos a pensar sobre estas questões considerando os argumentos de Mill e Bentham, que
apresentam sua reflexão a partir do seguinte questionamento: É possível
traduzir valores morais em termos monetários? É possível mensurar e
comparar todos os valores e bens em uma única escala de medidas? Para
Jeremy Bentham, o utilitarismo tem como mais elevado objetivo moral
maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor
(SANDEL, 2013). Entretanto, para Sandel (2013), Bentham não atribuiu
1 Doutora em Psicologia pela UFRGS, Coordenadora do Curso de Psicologia do Cesuca e Diretora
da Área de Ciências Biológicas e da Saúde da mesma Instituição.
2 Mestre em Psicologia pela UFRGS e Professora do Curso de Psicologia do Cesuca.
75
Evanisa Helena Maio de Brum - Fernanda Vaz Hartmann
o devido valor à dignidade humana e aos direitos individuais e reduziu
equivocadamente tudo que tem importância moral a uma única escala
de prazer e dor.
Tendo como base este pensamento, Jonh Stuart Mill tentou salvar o utilitarismo, reformulando-o como uma doutrina mais humana
e menos calculista. Para ele, o utilitarismo está baseado nos interesses
permanentes do homem como um ser em evolução, tendo como questão central o respeito à liberdade individual que levará à máxima felicidade humana. Destaca que as pessoas devem ser livres para fazerem
o que quiserem, contanto que não façam mal aos outros. Por fim, tanto
Bentham quanto Mill seguem com a ideia de que o objetivo final do
utilitarismo é a felicidade.
Para refletir sobre o exposto acima, o presente artigo apresenta
uma discussão utilizando dois enfoques teóricos: a moralidade e a felicidade. Em relação à moralidade, cada vez mais se fala em uma crise de
valores morais que surge em diferentes cenários, entre eles a família, a
escola, a igreja, a política e a justiça. Esses cenários deveriam representar
a estruturação da sociedade, no que tange à moralidade (PONCIANO,
1999). Concomitante a isso, a busca pela felicidade tem se apresentado
como premente na sociedade atual, parecendo superar qualquer outro
valor e, por vezes, chegando a suplantar a moralidade. Nesse ponto de
reflexão, é possível perceber que os conceitos de moralidade e felicidade
se cruzam. Desta forma, começaremos por aprofundar o conceito de
felicidade, após o de moralidade e, por fim, apresentaremos uma discussão buscando aproximar os dois conceitos.
1. A Felicidade e a Psicologia
A felicidade tem sido objeto de estudo da Filosofia há séculos e
assim como era discutida por Bentham e Mill (SANDEL, 2013), o era
também por Aristóteles, Schopenhauer e Platão (SPONVILLE, 2012). Já
para a Psicologia, a história é bastante diferente, pois a felicidade estava
entre os objetivos da Psicologia até a Segunda Guerra Mundial, os quais
eram: 1) curar as doenças mentais; 2) tornar a vida das pessoas mais
produtiva e feliz; e 3) identificar e criar talentos. Após a Segunda Guerra Mundial, os dois últimos objetivos foram esquecidos e a Psicologia
passou a focar somente o primeiro. Isso aconteceu porque o impacto
da guerra foi enorme para a Psicologia – assim como o foi para muitas
76
4 • O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA
outras áreas do conhecimento; precisávamos lidar com inúmeros sobreviventes que retornaram da guerra com transtornos mentais e, além
disso, nessa época, houve o incentivo financeiro, profissional e social
do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos aos psicólogos e pesquisadores que se debruçassem sobre o tema dos transtornos
mentais (SELIGMAN, 2002). Esse movimento fortaleceu a Psicologia
Clínica, bem como a acuidade diagnóstica e o tratamento das doenças
mentais. Entretanto, por outro lado, enfraqueceu o estudo dos aspectos
virtuosos dos seres humanos.
O estudo dos aspectos virtuosos dos seres humanos, especificamente o estudo da felicidade foi retomado por Seligman (2011), fundador do movimento científico intitulado Psicologia Positiva.
A Psicologia Positiva tem como objetivo buscar o florescimento
através do desenvolvimento do bem-estar e enfatizar os aspectos positivos do desenvolvimento humano. Tem como base para sua formulação
duas correntes teóricas: a Psicologia Humanista, que também enfatiza
os aspectos positivos do desenvolvimento humano, e a Psicologia Cognitiva e Comportamental, que procura mudar o pensamento e o comportamento das pessoas (PALUDO; KOLLER, 2007).
Dentro da concepção da Psicologia Positiva, Seligman (2011) utilizou o termo técnico bem-estar para referir-se à felicidade, o qual se organiza como um constructo de cinco elementos: Emoção Positiva, Engajamento, Sentido, Relacionamentos Positivos e Realização. A Emoção
Positiva refere-se à satisfação com a vida, que pode envolver variados
sentimentos, tais como felicidade, alegria, amor, paz, prazer, entusiasmo. O Engajamento ocorre diante da sensação de que o tempo parou,
quando a pessoa fica completamente absorvida pela tarefa. Nesse momento, o pensamento e o sentimento estão ausentes e só é possível dizer:
“Aquilo foi divertido!” ou “Aquilo foi maravilhoso!” em retrospectiva. O
Sentido está relacionado a pertencer e servir a algo que seja maior. São
aquelas coisas que dão sentido à vida, tais como formar uma família,
lutar por uma causa, fazer um trabalho voluntário, fazer o trabalho ser
diferenciado. É uma sensação subjetiva, quem a sente não pode estar
enganado sobre a sua sensação, sobre seu próprio prazer. Desta forma,
o que a pessoa sente é que define a questão. Relacionamentos Positivos referem-se a ter relações positivas com as pessoas, pois poucas
coisas positivas são solitárias. E, por fim, a Realização, que se refere aos
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Evanisa Helena Maio de Brum - Fernanda Vaz Hartmann
momentos nos quais a pessoa se sente realizada. A realização deve ser
buscada por ela própria, mesmo quando não produz emoção positiva,
sentido ou relacionamentos positivos. Desta forma, persegue-se a realização por ela mesma.
Além do constructo do bem-estar, acima descrito, Seligman (2011)
destaca a importância de que cada um conheça suas forças pessoais e
que encontre formas novas e mais frequentes de utilizá-las. Esse conhecimento pode ser adquirido através do teste VIA (SELIGMAN, 1990b).
As forças pessoais são apresentadas pelo autor em seis eixos: 1) Sabedoria e Conhecimento; 2) Coragem; 3) Humanidade e Amor; 4) Justiça; 5)
Temperança; e 6) Transcendência. Descobrir quais são as forças pessoais
pode auxiliar, por exemplo, a escolha de atividades correspondentes a
essas forças e, por seguinte, ao realizar essas atividades, a pessoa terá um
maior engajamento e, por fim, sentirá um maior bem-estar.
Outro aspecto importante que a Psicologia Positiva apresenta é
que a quantidade de coisas boas pesa mais para a felicidade do que a
qualidade dessas coisas (DIENER e LUCAS, 2000). Para aumentar a
quantidade de coisas boas, Seligman (2009) propõe a atividade denominada de três bênçãos. Para fazê-la, a pessoa deve, todas as noites, reservar cinco minutos antes de dormir e fazer uma lista do que foi bom no
seu dia (fato). Ele sugere que sejam coisas simples, como encontrar amigos, comer o prato favorito, por exemplo. Depois a pessoa deve escrever
por que isso foi bom (sentimento) e por que aconteceu (causa). A ideia
da atividade é a valorização das pequenas coisas boas, que, por vezes,
passam despercebidas no dia a dia, bem como ressaltar que são coisas
simples que geram sentimentos positivos e que muitas delas podem ser
novamente produzidas diante da análise de suas causas. Desta forma, a
felicidade, aqui denominada de bem-estar, pode ser alcançada através
do conhecimento das forças pessoais, bem como através de exercícios
específicos que promovam cada um dos cinco elementos que compõem
o constructo do bem-estar.
2. O desenvolvimento do julgamento moral
Até aqui nos debruçamos em compreender o conceito de felicidade para a Psicologia a partir dos pressupostos de Seligman, fundador
da Psicologia Positiva; cabe-nos agora buscar o autor da Psicologia que
se dedicou a compreender a moralidade.
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4 • O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA
Elegemos Kohlberg (1969; 1971; 1972) um autor que dedicou
seus estudos ao entendimento do desenvolvimento do julgamento moral nos indivíduos. Kohlberg foi um pesquisador norte-americano que
se interessou pelo estudo do desenvolvimento moral considerando a
aplicabilidade do enfoque cognitivo, redefinindo os estágios de julgamento moral propostos por Piaget (1973). Ele realizou suas pesquisas
sobre julgamento moral, apresentando aos sujeitos uma sequência de
histórias ou dilemas morais hipotéticos destinados a colocar o indivíduo diante de um conflito entre a conformidade habitual a regras ou
à autoridade em oposição a uma resposta utilitária ou de bem maior.
Os dilemas apresentam conflitos entre padrões simultaneamente aceitos
por grande parte da comunidade.
A partir do estudo dos dilemas, Kohlberg (1969) percebeu que
o desenvolvimento do julgamento moral ocorre em diferentes culturas
exatamente da mesma forma, ou seja, o desenvolvimento moral não
implicaria o “conhecimento” das regras da cultura dos valores. O que
importa é que o julgamento muda em sua forma cognitiva no padrão do
raciocínio apresentado. Desta forma, o desenvolvimento moral ocorre
a partir de estágios que evoluem conforme as mudanças na forma cognitiva do raciocínio ao longo do desenvolvimento, o que independe do
conteúdo do problema moral analisado.
Kohlberg (1969) dividiu o desenvolvimento do julgamento moral
em três níveis: pré-convencional, convencional e pós-convencional. No
nível pré-convencional, o valor moral localiza-se nos acontecimentos
externos, a orientação é para a obediência e o castigo; há uma deferência egocêntrica, sem questionamento, direcionada para o poder daquele
que se considera superior, ou direcionada a uma tendência para evitar
aborrecimentos. A orientação é ingenuamente egoísta, ou seja, a ação
tida como correta é a que satisfaz instrumentalmente às próprias necessidades. Já no nível convencional, o valor moral localiza-se no desempenho correto de papéis, na manutenção da ordem convencional
e em atender às expectativas dos outros. Neste nível, a orientação do
bom menino e da boa menina é o que orienta as escolhas. Há, portanto,
uma orientação para obtenção de aprovação e para agradar aos outros,
o que gera uma conformidade com imagens estereotipadas ou papéis
naturais e julgamento em função de intenções, bem como uma orientação de manutenção da autoridade e ordem social com um fim em si
79
Evanisa Helena Maio de Brum - Fernanda Vaz Hartmann
mesmo. Por fim, o terceiro nível, o pós-convencional, em que o valor
moral localiza-se na conformidade para consigo mesmo, com padrões,
direitos e deveres que são ou podem ser compartilhados. Nesta etapa,
o comportamento é regido pela orientação contratual legalista. O dever
é definido em termos de contrato ou de evitar a violação dos direitos
dos outros e da vontade e bem-estar da maioria. O indivíduo passa a se
orientar através da consciência ou de princípios sociais prescritos, mas
para princípios de escolha que envolvem apelo à universalidade lógica
e a consistência.
A teoria de Kohlberg até hoje é bastante reconhecida como referência na estruturação de postulados que sustentam o desenvolvimento
do juízo moral; entretanto, recebeu, e ainda recebe, muitas críticas. Uma
delas (SASTRE et al., 1994 apud ARAÚJO, 2000) diz respeito ao fato de
o autor não ter considerado, no estudo da moralidade humana, a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, as
quais são inerentes aos conflitos morais enfrentados no cotidiano.
Na tentativa de dar respostas às críticas lançadas à teoria de
Kohlberg, dois de seus colaboradores ampliaram seus estudos: Selman
e Gilligan. Selman direcionou seus estudos em um paradigma cognitivo-evolutivo-estrutural, propondo um modelo teórico em que o desenvolvimento moral está relacionado com o desenvolvimento social e centrado na capacidade do sujeito em adotar papéis sociais, incorporando
a afetividade e a representação de valores sociais dos sujeitos. Gilligan
também buscou integrar em seu modelo teórico a representação de valores sociais e as necessidades afetivas dos sujeitos, centrando-se, entretanto, em análises de gênero (ARAÚJO, 2000).
Outros estudiosos seguiram esse propósito, investigando o papel
das emoções e dos sentimentos nos raciocínios morais dos seres humanos. De maneira geral, a preocupação desses investigadores centrou-se
no estudo da atribuição de emoções e sentimentos a personagens que infringiam normas sociais e/ou morais (NUNNER-WINKLER; SODIAN,
1988; ARSENIO; KRAMER, 1992; LOURENÇO, 2000; ARAÚJO, 1999;
DE LA TAILLE, 2000). Todos esses trabalhos partem da concepção de
que a compreensão da moralidade pressupõe a confluência de aspectos
cognitivos e afetivos na explicação do funcionamento psíquico humano.
Dentro dessa concepção, Araújo (2000) investigou a influência
que diferentes estados emocionais podem exercer no raciocínio dos su80
4 • O UTILITARISMO E A FELICIDADE NA VISÃO DA PSICOLOGIA
jeitos ao se defrontarem com conflitos morais. Para tanto, 90 professores, de escolas públicas e privadas, foram investigados. Foi apresentado
um mesmo conflito aos sujeitos: “Uma professora flagra um aluno fumando maconha na escola”. Esse mesmo conflito foi apresentado em
duas situações distintas: 1) para um grupo, não foi dado nenhuma informação sobre o contexto em que os fatos se deram nem características
específicas da protagonista e dos demais envolvidos no conflito; e 2)
para o outro grupo, foram dadas várias informações sobre o contexto
em que o conflito ocorreu, as características dos personagens envolvidos, detalhes de suas vidas, da comunidade a que pertenciam, das relações existentes entre elas, bem como dos sentimentos e emoções presentes na situação. Posteriormente, foi perguntado aos dois grupos de
professores “O que deveria fazer a professora, protagonista da história?”.
Antes de responder à questão, os professores foram divididos em três
grupos e expostos a diferentes emoções. O primeiro grupo experienciou
emoções positivas, como satisfação, felicidade e alegria; o segundo grupo, que chamaremos de grupo neutro, não foi induzido a experienciar
nenhuma emoção específica; e, por fim, o terceiro grupo experienciou
emoções negativas, como insatisfação, frustração, desagrado e tristeza.
Os resultados revelaram tanto no grupo que recebeu mais informações quanto no que não recebeu que, enquanto a grande maioria dos
sujeitos que experienciou estados emocionais positivos (90%) resolveu
o conflito apresentado, no grupo negativo esse percentual caiu para
50%. Os sujeitos supostamente alegres e/ou satisfeitos não compreenderam que a professora deveria encarar o conflito vivido somente como
um dever moral que tinha de ser resolvido, mas também como uma
necessidade própria que ajudaria o aluno e a levaria ao bem-estar. Esse
dado deixa claro que o estado emocional, de fato, influenciou a forma
por meio da qual os sujeitos organizaram seu raciocínio.
Os sujeitos sob um estado emocional positivo situam a conduta
da protagonista em um universo no qual não há contradições entre seus
desejos e seus deveres, enquanto para os sujeitos em estado emocional
negativo esses dois universos, de desejos e deveres, são vistos de forma
dicotômica, ou seja, tendem a não manter a coerência entre deveres e
desejos (ARAÚJO, 2000).
Desta forma, o estudo de Araújo (2000) revelou que o estado
emocional pode se constituir em força motivacional ética, que possibili81
Evanisa Helena Maio de Brum - Fernanda Vaz Hartmann
ta uma integração entre os desejos e os deveres inerentes às normativas
sociais. O pensar e o sentir passam a ser vistos como ações indissociáveis, em que a afetividade influencia de maneira significativa a forma
pela qual os seres humanos resolvem os conflitos de natureza moral;
assim como a organização dos pensamentos influencia os sentimentos,
o sentir também configura a forma de pensar.
Essa compreensão retoma a perspectiva filosófica aristotélica que
postula que a moralidade está na busca virtuosa da felicidade, do bem.
Ao assumir a posição da correlação entre felicidade e moralidade, acredita-se que vivenciar emoções positivas implicaria uma maior possibilidade de as pessoas abstraírem elementos, atribuírem significados e estabelecerem relações e/ou implicações semelhantes (ARAÚJO, 2000). Em
um mundo cada vez mais conturbado, conseguir manter princípios coerentes na forma de raciocinar em face de dilemas de natureza moral pode
ser uma arma poderosa para a adaptação e o bem estar dos indivíduos,
bem como para constituir cidadãos conscientes de seu papel na sociedade e, consequentemente, a construção de uma sociedade mais evoluída.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dessa reflexão, voltamos ao início do nosso texto, onde
apontamos a fragilização das instituições sociais e, consequentemente,
estaríamos expostos a uma fragilização do julgamento moral. Acreditase que as instituições de educação podem cumprir um papel significativo nessa transformação, criando espaços de convivência e atividades
que integram as dimensões da emoção e do pensamento moral. As instituições de educação, através de seus educadores, devem se comprometer com a formação de jovens que, ao mesmo tempo, conheçam os conteúdos da ciência contemporânea, mas também reflitam sobre os limites
éticos da aplicação dessa ciência; pessoas conscientes de seu papel para
a construção de uma sociedade mais justa e solidária; que saibam lidar
com seus próprios sentimentos e afetos; e que saibam lutar (virtuosamente) pela felicidade própria e das outras pessoas.
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Martins Fontes, 2012.
84
5
A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E
A VIDA BOA
Guilherme de Oliveira Feldens1
- Ney Wiedemann Neto2
Sumário: Introdução - 1. Comunitarismo e moral narrativa
- 2. Estado neutro e deveres de solidariedade - 3. Justiça e
vida boa - 4. A solidariedade como obrigação moral - 5. A
obrigação de solidariedade no ordenamento jurídico pátrio - 6.
O dever de cuidado na jurisprudência - Conclusão - Referências
Bibliográficas
INTRODUÇÃO
Na concepção liberal, caracterizada nos dias atuais pelo pensamento de John Rawls, as obrigações surgem de duas maneiras: como
deveres naturais que temos em relação aos seres humanos como tais e/
ou como obrigações voluntárias nas quais incorremos por meio do con1 Doutorado em Filosofia (Unisinos), Mestrado em Direito (Unisinos), Professor Direito de
Família e Sucessões, e de Iniciação à Prática, de Direito da Faculdade Inedi, Complexo de Ensino
Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Advogado.
2 Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Mestre em Poder Judiciário
pela Fundação Getulio Vargas (FGV Direito-Rio). Professor do curso de Direito da Faculdade
Inedi, Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca).
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Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
sentimento. Os deveres naturais são universais. As obrigações voluntárias são particulares. Dessa forma, a justiça liberal exige que respeitemos
os direitos das pessoas (como estabelecidos na estrutura neutra), e não
que promovamos seu bem (isso dependerá dos acordos que tivermos
feito e com quem os fizemos).
Nesse cenário, o cidadão comum não tem nenhuma obrigação
especial para com seus compatriotas além do dever universal e natural
de não cometer injustiças. Tal ideia não considera as responsabilidades
especiais que temos para com nossos compatriotas. Não considera os
deveres de lealdade e de responsabilidade cuja força moral consiste, em
parte, no fato de que viver de acordo com eles é parte inseparável de nos
concebermos como os indivíduos únicos que somos (membros de uma
nação, família ou povo, como parte de sua história).
Nesse contexto, o presente artigo visa analisar juridicamente
a existência do terceiro tipo de obrigação moral apresentado por Michael Sandel através do estudo de normas e decisões judiciais. Assim,
direcionando o estudo em torno de sua crítica ao individualismo e à
atomização da sociedade moderna, será dado ênfase a uma defesa de
recuperação das ideias de comunidade como algo essencial na formação
da identidade dos cidadãos.
1. Comunitarismo e moral narrativa
Michael Sandel é um dos principais autores da corrente filosófica denominada de comunitarismo. Ao lado de nomes como Alasdair
MacIntyre, Charles Taylor e Michael Walzer, Sandel, com raízes no aristotelismo, apresenta uma forte desconfiança com as propostas de uma
moral abstrata, defendendo uma ética das virtudes e uma concepção
política que leve em conta as tradições. Segundo ele, princípios de justiça somente poderiam ser tematizados a partir de sociedades reais, e não
de uma concepção abstrata de pessoa, consequência dos modelos universais, pois toda identidade, seja cultural, étnica ou social, é determinada por fins não escolhidos por indivíduos desinteressados, mas sim por
indivíduos inseridos em um determinado contexto social.3
3 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em John
Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 118.
86
5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
As críticas de Sandel se concentram, justamente, na recusa da
concepção de pessoa adotada pelos teóricos liberais, mais especificamente, Rawls, afirmando que ela não é condizente com a noção de pessoa real, inserida em um contexto político, cultural e ligada a alguma
comunidade.4 Segundo Sandel, as exigências impostas pela concepção
universal de pessoa são significativas, pois forçam a exclusão de qualquer outra relação que não seja voluntarista entre um eu e seus fins,
qualquer fim cuja adoção ou busca possa comprometer ou transformar
o eu e qualquer possibilidade de que o bem da comunidade possa consistir em uma dimensão constitutiva desse tipo. Para ele, um leque de
concepções do bem não poderá florescer em uma sociedade verdadeiramente liberal, porque os fundamentos metafísicos individualistas e o
caráter não social de seus princípios de justiça geram a incapacidade de
reconhecer as variedades da experiência humana moral em torno das
quais as concepções do bem humano mostram seu verdadeiro valor.5
A concepção kantiana de pessoa moral dá origem a um “Eu” desfigurado, típico da cultura liberal.6 Segundo Sandel, em posição contrária
ao individualismo subjetivista liberal, cada um deveria estabelecer uma
ordenação coletiva, e não individual, junto à comunidade, tentando evitar a desfiguração de sua própria identidade. Tal realidade é ainda mais
agravada dentro da racionalidade própria dessa cultura, fundamentada
em uma falsa neutralidade que serve apenas como um padrão de julgamento de qualquer tradição. Nessa mesma linha, MacIntyre denuncia a
total incapacidade do pensamento liberal de absorver visões diferentes
que possuem outra concepção de pessoa moral, já que o tipo de consenso proposto é apenas um acordo que visa proteger a própria sociedade
liberal democrática.
Outra crítica diz respeito justamente ao individualismo reinante
nas teorias liberais, que faz com que pensadores como Rawls entendam
mal a relação entre indivíduos e sociedade.7 No pensamento liberal, não
se compreende que as concepções de bem e os valores morais derivam
4 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University Press,
1982. p. 14.
5 Ibid., p. 172.
6 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 372.
7 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista en John
Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 136.
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Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
da própria sociedade na qual os cidadãos estão inseridos, não sendo
possível desvincular a identidade pessoal da identidade social (daí a
expressão moral narrativa). A sociedade é vista apenas como um instrumento para atingir benefícios individuais, sendo constituída por indivíduos com interesses formados independentemente do meio no qual
estão inseridos.8 Há uma pretensão irreal de uniformizar e excluir as
diferenças, sem levar em conta que a formação dos conceitos de justiça
e liberdade passa, necessariamente, pela relação com os outros.
Além de todas essas oposições, Sandel põe em foco a pretensão
de universalismo das modernas teorias da justiça. Segundo o autor, cada
pessoa deve ser vista inserida em suas origens, tradições e em outros
valores do grupo a que pertence, não devendo tais diferenças ser exterminadas por um procedimento de uniformização.9 Cada grupo deve
ter direito de escolher suas próprias metas e seus próprios valores. MacIntyre, por exemplo, defende uma política de inclusão que proteja as
diferenças pela legislação, para que não haja a depreciação de determinadas culturas e um predomínio absoluto de uma cultura dominante.10
Dessa forma, a identidade social requer um reconhecimento
contínuo e igualitário, capaz de, ao mesmo tempo, assegurar a proteção
contra o arbítrio e a manutenção das diferenças. Assim, um princípio
da igualdade universal exigiria o reconhecimento das diferenças. Por
outro lado, a ética liberal não leva em conta essas exigências, pois configura-se, antes, em uma ética do direito do que do bem, formulando
princípios básicos relativos apenas a como a sociedade deve agir diante
das diferentes exigências individuais.11
2. Estado neutro e deveres de solidariedade
Sandel ainda conecta uma última crítica voltada contra a ideia
de um Estado neutro quanto a valores morais, responsável pela construção de uma sociedade cega às diferenças, impeditiva da construção
8 MULHALL, Stephen; SWIFT, Adam. Rawls and Communitarianism. In: FREEMAN, Samuel
(Org.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University, 2001, p. 460-485.
p. 467.
9 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? São Paulo: Loyola, 1991. p. 367.
10 QUINTANA, Oscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em
John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1996. p. 145.
11 TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. p. 203.
88
5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
de identidades que, sob essa suposta neutralidade cultural, expressaria
justamente a tradição cultural ocidental.12 Segundo o autor, não é possível o Estado manter-se em neutralidade, pois, ao legislar, ele não pode
evitar emitir juízos morais sobre determinados assuntos.13 Assim, essa
pretensa neutralidade serve mais para esconder o domínio de uma cultura determinante, já que, levando-se em conta o exposto por Taylor, a
prioridade do justo sobre o bem pressupõe o comprometimento com a
valorização, tipicamente liberal, da autonomia.14
Como exemplo de crítica ao Estado neutro, Sandel cita o debate de
1858 entre Abraham Lincoln e Stephen Douglas em relação à escravidão.
Douglas, com base na neutralidade de Estado, propôs que se deixasse
cada Estado-membro decidir a questão. Lincoln, contrariamente, sustentou a não adoção de tal postura frente a um mal moral indiscutível, pois a
neutralidade do Estado favoreceria os interesses escravagistas.15
A prioridade total às obrigações voluntárias e naturais não faz
referência a uma moral substantiva.16 Não leva em conta a existência de
um terceiro tipo de obrigação: as obrigações de solidariedade. Elas são
particulares, e não universais. Envolvem responsabilidades morais que
devemos ter não apenas com os seres racionais, mas com aqueles com
quem compartilhamos uma determinada história. Não dependem de
ato de consentimento. Seu valor moral fundamenta-se no reconhecimento do fato de que minha história de vida está implicada na história
dos demais indivíduos.
Pode-se citar como obrigação moral de solidariedade a obrigação
especial que os membros da família têm entre si. Os pais têm responsabilidades especiais com relação aos filhos. E também os filhos têm
12 Para Taylor (1998, p. 81), “existe uma forma de política de igual respeito, guardada religiosamente
num liberalismo de direitos, que é hostil à diferença, porque (a) insiste na aplicação, sem qualquer
exceção, uniforme das regras que definem esses direitos, e porque (b) desconfia dos objetivos
coletivos. É evidente que isto não significa que este modelo procure abolir as diferenças culturais.
Afirmá-lo seria uma acusação absurda. Mas digo que é hostil à diferença, porque não pode ajustarse àquilo a que os membros das sociedades distintas aspiram realmente: a sobrevivência”.
13 CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia
constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004. p. 98.
14 TAYLOR, op. cit., p 77.
15 SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge: Cambridge University
Press, 1982. p. 99.
16 CITTADINO, op. cit., 1999, p. 90.
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Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
responsabilidades especiais com relação aos pais. Além disso, posso ter
para com meus companheiros algumas responsabilidades especiais relativas às comunidades às quais pertenço. Orgulho e vergonha são sentimentos morais que pressupõem uma identidade comum. A capacidade
de sentir orgulho e vergonha pelos atos de membros de nossa família e
de nossos concidadãos tem a ver com a responsabilidade coletiva. Ambos requerem que nos vejamos como pessoas inseridas em um grupo
– presas a vínculos morais que não escolhemos e implicadas nas narrativas que moldam nossa identidade como agentes morais.
O fato de pertencer a um determinado grupo nos torna, de certa
forma, responsáveis. Não podemos ter orgulho de nosso país e de seu
passado se não estivermos dispostos a assumir a responsabilidade de
trazer sua história até os dias atuais, liberando-nos da dívida moral que
possa vir com ela.
As obrigações de solidariedade podem competir com os deveres naturais para com qualquer ser humano. Podemos ter obrigações de
solidariedade ou sociedade por razões que não têm relação com uma
escolha – razões ligadas às histórias por meio das quais interpretamos
nossa vida e ligadas aos grupos aos quais pertencemos. Está em questão
como concebemos a liberdade humana. E também a nossa concepção
de justiça. Michael Sandel filia-se à concepção narrativa da ação moral,
a de que o indivíduo se define como tal a partir da história na qual se
vê inserido.
3. Justiça e vida boa
Vivemos em um período de transformação e de transição acerca
do papel do Estado, seus limites e suas obrigações. Vale a pena a reflexão
que nos traz Michael Sandel em seu best-seller Justiça – o que é fazer a
coisa certa.17 Nos capítulos 9 e 10, o autor aborda essa intrincada questão, que nos remete a questionar a noção atual de justiça, o que a seguir
analisaremos.
Com a eleição de Ronald Regan, em 1980, os conservadores cristãos tornaram-se uma voz proeminente na política republicana dos Estados Unidos da América. Defendiam a oração nas escolas, demonstra17 SANDEL. Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa Matias e Maria
Alice Máximo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 259-330.
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5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
ções religiosas em praças públicas, restrições legais à pornografia, ao
aborto e à homossexualidade.
Os liberais, em oposição, argumentaram que juízos morais e
religiosos não têm lugar na política. Em 1993, o filósofo John Rawls
publicou o livro Liberalismo político, no qual sustentou que as pessoas
têm afetos, devoções e lealdades, convicções religiosas, filosóficas e morais, apegos e lealdades. Apesar disso, argumentou que esses valores não
podem ser a base de nossas identidades como cidadãos. Para Rawls, o
governo não pode endossar uma concepção particular do bem. Os cidadãos não podem introduzir suas convicções morais e religiosas no
debate público sobre justiça e direitos. Se o fizerem e seus argumentos
prevalecerem, estarão impondo uma lei fundamentada em uma determinada doutrina moral ou religiosa.
Foi Barak Obama que propôs que os progressistas adotassem um
raciocínio público mais abrangente e mais aberto à fé. A tentativa de dissociar os argumentos de justiça e direitos dos argumentos da vida boa é
equivocada porque nem sempre é possível decidir questões sobre justiça
e direitos sem resolver importantes questões morais e, mesmo quando
isso é possível, pode não ser desejável. É um erro insistir na ideia de que
convicções morais e religiosas não desempenham nenhuma função na
política ou na lei. “Nossa lei é, por definição, uma codificação da moralidade, grande parte dela fundamentada na tradição judaico-cristã”
(OBAMA, 2006).
Segundo Michael J. Sandel, a justiça é invariavelmente crítica e
indissociável de concepções divergentes de honra e virtude, orgulho e
reconhecimento. Justiça não é apenas a forma certa de distribuir as coisas. Ela também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas. Uma sociedade justa requer um raciocínio conjunto sobre a vida boa. O desafio
é imaginar uma política que leve a sério as questões morais e espirituais,
mas que as aplique a interesses econômicos e cívicos, e não apenas a
sexo ou aborto.
Uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade.
Precisa incutir nos cidadãos uma preocupação com o todo, ou seja, uma
dedicação ao bem comum. Precisa encontrar meios de se afastar das
noções da boa vida puramente egoístas e cultivar a virtude cívica.
Ainda que não seja possível ao governo permanecer neutro nas
divergências morais e religiosas, é possível conduzir a política com base
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Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
no respeito mútuo. Respeitar as convicções morais e religiosas dos outros não significa ignorá-las. Suprimir as divergências pode provocar
retrocessos e ressentimentos.
Um comprometimento público maior com nossas divergências
morais proporcionaria uma base para o respeito mútuo mais forte, e não
mais fraca. Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal
mais inspirador do que uma política de esquiva do debate. Ela é também
uma base mais promissora para uma sociedade justa.
4. A solidariedade como obrigação moral
Isso nos remete de volta à reflexão de Sandel a respeito da solidariedade como obrigação moral. Na concepção liberal, as obrigações
surgem de duas maneiras: como deveres naturais que temos em relação aos seres humanos como tais e como obrigações voluntárias nas
quais incorremos por meio do consentimento. Os deveres naturais são
universais. As obrigações voluntárias são particulares. A justiça liberal
exige que respeitemos os direitos das pessoas (como estabelecidos na
estrutura neutra), e não que promovamos seu bem (isso dependerá dos
acordos que tivermos feito e com quem os fizemos).
Para Rawls, segundo a concepção liberal de obrigação, o cidadão
comum não tem nenhuma obrigação especial para com seus compatriotas além do dever universal e natural de não cometer injustiças. Isso não
considera as responsabilidades especiais que temos para com nossos
compatriotas. Não considera os deveres de lealdade e de responsabilidade cuja força moral consiste, em parte, no fato de que viver de acordo
com eles é parte inseparável de nos concebermos como os indivíduos
únicos que somos (membros de uma nação, família ou povo, como parte de sua história).
Essas identidades não são contingências que devemos deixar de
lado quando deliberamos sobre moral e justiça. Elas são parte de quem
somos e, portanto, parte de nossas responsabilidades morais. Existe uma
terceira categoria de obrigações. São as obrigações de solidariedade ou
sociedade, que não podem ser explicadas em termos contratuais. Elas
são particulares, e não universais. Envolvem responsabilidades morais
que devemos ter não apenas com os seres racionais, mas com aqueles
com quem compartilhamos uma determinada história. Não dependem
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5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
de ato de consentimento. Seu valor moral fundamenta-se no reconhecimento do fato de que minha história de vida está implicada na história
dos demais indivíduos.
Resumindo, Sandel divide a responsabilidade moral em três categorias: a) deveres naturais-universais, não requerem consentimento; b)
obrigações voluntárias-particulares, requerem consentimento; c) obrigações de solidariedade-particulares, não requerem consentimento.
Podemos citar como obrigação moral de solidariedade a obrigação especial que os membros da família têm entre si. Os pais têm responsabilidades especiais com relação aos filhos. E também os filhos, têm
responsabilidades especiais com relação aos pais.
Além disso, podemos ter para com nossos companheiros algumas responsabilidades especiais relativas às comunidades às quais pertencemos. Orgulho e vergonha são sentimentos morais que pressupõem
uma identidade comum. A capacidade de sentir orgulho e vergonha pelos atos de membros de nossa família e de nossos concidadãos tem a
ver com a responsabilidade coletiva. Ambos requerem que nos vejamos
como pessoas inseridas em um grupo – presas a vínculos morais que
não escolhemos e implicadas nas narrativas que moldam nossa identidade como agentes morais.
5. A obrigação de solidariedade no ordenamento
jurídico pátrio
A seguir, listamos alguns artigos de lei em que podemos demonstrar que, no Brasil, essa questão da solidariedade como obrigação moral
já está, inclusive, positivada. No Direito Material, destacamos as seguintes normas insculpidas no Código Civil, que consagram essa obrigação
de solidariedade entre os parentes.
Os pais têm obrigação, perante a sociedade, de reparar os prejuízos que tenham sido causados por seus filhos, enquanto forem menores
de 18 anos de idade.18
Além disso, os pais têm o dever de criar e educar os filhos, enquanto forem menores, assumindo a sua guarda e mantendo-os na sua
18 “Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia.”
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Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
companhia, exigindo deles obediência, respeito e a prestação de serviços de colaboração adequados à sua idade e condição.19
Na hipótese de não cumprimento desses deveres, ou de abuso do
poder familiar, os pais responderão processo judicial, de iniciativa de
algum parente ou do Ministério Público, podendo o poder familiar ser
suspenso ou revogado, colocando-se o menor em família substituta, de
forma temporária ou definitiva, por adoção nesse segundo caso.20-21
Por outro lado, os deveres de solidariedade entre os parentes se
estendem também no sentido do provimento de necessidades de natureza alimentar ou de educação.22 Há uma regra, porém, de que a obrigação deve recair preferencialmente sobre os parentes mais próximos,23
priorizando-se os ascendentes aos descendentes.24
E essa obrigação de solidariedade no Brasil é tão intensa que não
cessa com a morte daquele que tem o dever de prestar alimentos, estendendo-se aos seus herdeiros, na proporção das forças da herança.25
Também merece registro que, mesmo com a extinção do casamento, o ex-cônjuge poderá ser chamado a prestar alimentos, tanto por
19 “Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
I - dirigir-lhes a criação e educação;
II - tê-los em sua companhia e guarda; [...]
VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.”
20 “Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes
ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público,
adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo
o poder familiar, quando convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados
por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.”
21 “Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.”
22 “Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos
de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender
às necessidades de sua educação.”
23 “Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos
os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.”
24 “Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de
sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais.”
25 “Art. 1.700. A obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor, na forma
do art. 1.694.”
94
5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
ocasião da separação,26 como no futuro, por necessidade superveniente.27 Apenas há uma modulação, nesse último caso, que cuida do caso
de o ex-cônjuge ter sido ou não culpado pela separação, fato que tem
relevância na quantificação dos alimentos a serem arbitrados.
Além disso, ninguém desconhece a obrigação alimentar que os
pais têm com relação aos filhos, especialmente quando ainda são menores, havendo a extinção do casamento,28 ou mesmo a obrigação do
genitor para o filho havido em relação extraconjugal.29 Inclusive, o fato
de o filho completar 18 anos de idade, atingindo a maioridade civil, não
é causa de extinção de obrigação alimentar, que somente cessará por
decisão judicial que avaliará as condições particulares do caso e a capacidade do jovem adulto de prover o seu sustento.
Prosseguindo, também no Direito Instrumental podemos citar
algumas normas, extraídas do Código de Processo Civil, as quais definem algumas restrições importantes, em consideração a essa obrigação
de solidariedade entre parentes.
De regra, os parentes não podem depor como testemunhas no
processo judicial, sendo ouvidos em casos excepcionais, mas sem o
compromisso de dizerem a verdade, senão como meros informantes,
cujas informações serão levadas em conta com restrições.30
26 “Art. 1.702. Na separação judicial litigiosa, sendo um dos cônjuges inocente e desprovido
de recursos, prestar-lhe-á o outro a pensão alimentícia que o juiz fixar, obedecidos os critérios
estabelecidos no art. 1.694.”
27 “Art. 1.704. Se um dos cônjuges separados judicialmente vier a necessitar de alimentos, será o
outro obrigado a prestá-los mediante pensão a ser fixada pelo juiz, caso não tenha sido declarado
culpado na ação de separação judicial.
Parágrafo único. Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes
em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurálos, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.”
28 “Art. 1.703. Para a manutenção dos filhos, os cônjuges separados judicialmente contribuirão na
proporção de seus recursos.”
29 “Art. 1.705. Para obter alimentos, o filho havido fora do casamento pode acionar o genitor,
sendo facultado ao juiz determinar, a pedido de qualquer das partes, que a ação se processe em
segredo de justiça.”
30 “Art. 405. Podem depor como testemunhas todas as pessoas, exceto as incapazes, impedidas
ou suspeitas. [...]
§ 2o São impedidos: [...]
I - o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou colateral, até o terceiro
grau, de alguma das partes, por consangüinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público,
ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova,
que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito; [...]
95
Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
Por último, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo em nosso ordenamento jurídico. Daí, a testemunha poderá recusar-se a depor sobre fatos que possam lhe causar prejuízo ou de seus
parentes, sem que isso lhe acarrete qualquer sanção.31
6. O dever de cuidado na jurisprudência
A partir da jurisprudência, veremos outros casos de obrigação
moral, nas relações de família, como a paternidade “socioafetiva”, que se
estabelece em adoções irregulares, relações entre padrasto e enteados etc.
Podemos citar o paradigmático julgamento do Superior Tribunal
de Justiça (STJ), por sua 3ª Turma, no Recurso Especial n. 1.159.242SP, da relatoria da ministra Nancy Andrighi, em 24/4/2012, em decisão
assim ementada:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.
COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à
responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar
no Direito de Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no
ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com
locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se
observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida
implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de
omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente
tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia
- de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo,
daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por
abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade
de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe
um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero
§ 4o Sendo estritamente necessário, o juiz ouvirá testemunhas impedidas ou suspeitas; mas os seus
depoimentos serão prestados independentemente de compromisso (art. 415) e o juiz lhes atribuirá
o valor que possam merecer.”
31 “Art. 406. A testemunha não é obrigada a depor de fatos: [...]
I - que lhe acarretem grave dano, bem como ao seu cônjuge e aos seus parentes consangüíneos ou
afins, em linha reta, ou na colateral em segundo grau.”
96
5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade,
condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou,
ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria
fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso
especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos
morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia
estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.
(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA
TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012)
Como se vê das orientações interpretativas que se extraem da
própria ementa do julgado, reporta-se à obrigação de cuidado que os
pais devem ter com os filhos, na forma do já citado artigo 1.634 do
Código Civil.
A omissão do dever de cuidado é ato ilícito, causando o abandono material ou afetivo danos inclusive de ordem psicológica aos filhos,
passíveis de compensação pela via da indenização por dano moral.
Do brilhante voto da eminente relatora, alguns trechos podemos a
seguir destacar, que conduzem o raciocínio ao encontro dos argumentos
sustentados com Sandel, no sentido da solidariedade como um dever.
A perda do pátrio poder não suprime, nem afasta, a possibilidade
de indenizações ou compensações, porque tem como objetivo primário
resguardar a integridade do menor, ofertando-lhe, por outros meios, a
criação e educação negada pelos genitores, e nunca compensar os prejuízos advindos do malcuidado recebido pelos filhos.
Perquirir, com vagar, não sobre o dever de assistência psicológica
dos pais em relação à prole – obrigação inescapável –, mas sobre a viabilidade técnica de se responsabilizar, civilmente, àqueles que descumprem essa incumbência, é a outra faceta dessa moeda e a questão central
que se examina neste recurso.
Sob esse aspecto, calha lançar luz sobre a crescente percepção do
cuidado como valor jurídico apreciável e sua repercussão no âmbito da
responsabilidade civil, pois, constituindo-se o cuidado fator curial à formação da personalidade do infante, deve ele ser alçado a um patamar
97
Guilherme de Oliveira Feldens - Ney Wiedemann Neto
de relevância que mostre o impacto que tem na higidez psicológica do
futuro adulto.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes
legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa
materialização, no universo metajurídico da Filosofia, da Psicologia ou
da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos,
distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas:
presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em
favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos
– quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade,
cuidar é dever.
Apesar das inúmeras hipóteses que poderiam justificar a ausência
de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, não pode
o julgador se olvidar que deve existir um núcleo mínimo de cuidados
parentais com o menor que, para além do mero cumprimento da lei,
garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma
adequada formação psicológica e inserção social.
CONCLUSÃO
O fato de pertencer a um determinado grupo nos torna, de certa
forma, responsáveis. Não podemos ter orgulho de nosso país e de seu
passado se não estivermos dispostos a assumir a responsabilidade de
trazer sua história até os dias atuais, liberando-nos da dívida moral que
possa vir com ela.
Afirmamos, com Sandel, que as obrigações de solidariedade podem competir com os deveres naturais para com qualquer ser humano.
Podemos ter obrigações de solidariedade ou sociedade por razões que
não têm relação com uma escolha – razões ligadas às histórias por meio
das quais interpretamos nossa vida e ligadas aos grupos aos quais pertencemos. Está em questão como concebemos a liberdade humana. E
também a nossa concepção de justiça. Sandel filia-se à concepção narrativa da ação moral, a de que o indivíduo se define como tal a partir da
história na qual se vê inserido.
98
5 • A JUSTIÇA, A SOLIDARIEDADE E A VIDA BOA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos
da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2004.
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In: FREEMAN, Samuel (Org.). The Cambridge Companion to Rawls.
Cambridge: Cambridge University, 2001.
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neocontratualista em John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre
Editores, 1996.
SANDEL, Michael. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge:
Cambridge University Press, 1982.
__________. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloísa
Matias e Maria Alice Máximo. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000.
99
6
SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS?
REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR
DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
Lauren Tonietto1
- Andréia Mello de Almeida Schneider2
- Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes3
Sumário: Introdução - 1. A teoria libertária: um viés
psicológico é possível? - 2. Desenvolvimento moral na sociedade
contemporânea - Referências Bibliográficas
1 Doutorado em Psicologia e Mestrado em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação em Psicologia e em Administração – Habilitação
em Comércio Exterior – pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente, é
Professora e responsável pela área de Seleção, Acompanhamento e Capacitação de pessoas do
Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Experiência nas
áreas de Relações Internacionais, Psicologia Organizacional, Educacional, Escolar e Clínica, com
ênfase em Psicologia Sociocognitiva, Habilidades Comunicativas e Desenvolvimento.
2 Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Graduação em Psicologia pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) e em Administração
de Empresas pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Atualmente cursando
especialização em Teoria e Clínica Psicanalítica no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre
(CEPdePA), também exerce atividade em consultório particular e como professora do Complexo
de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi). Tem experiência na área de
Psicologia com ênfase em Psicoterapia/Psicanálise e Avaliação Psicológica/Técnicas Projetivas.
3 Mestrado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Residência Integrada em Saúde pela Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul (ESP/RS).
101
Lauren Tonietto - Andréia Mello de Almeida Schneider - Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
INTRODUÇÃO
O livro intitulado Justiça, escrito por Sandel (2012), professor de
Filosofia da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, convida o
leitor a refletir sobre dilemas morais. Ele acredita que, desta forma, o
leitor exposto ao conflito moral por meio da leitura questionadora possa
repensar a sua atitude, recuando e avançando em opiniões e princípios.
Diversas de suas aulas estão disponíveis na internet e apresentam o mesmo tom questionador do livro aqui comentado.
A ideia de produzir este artigo sobre as questões levantadas por
Sandel ao longo de sua obra surge a partir do evento “Diálogos entre o
Direito e a Psicologia”, realizado no Centro de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca), no mês de novembro de 2013. Esse evento teve
como objetivo analisar o livro de Sandel sob os diferentes olhares, do
Direito e da Psicologia. O capítulo do livro de Sandel aqui discutido é
o de número 3, cujo título é “Somos donos de nós mesmos: a ideologia
libertária”.
Segundo o próprio Sandel (2012), a reflexão moral não é uma
busca individual, e sim coletiva. Ela requer um interlocutor, que pode
ser um amigo, um vizinho, um compatriota. Inclusive o interlocutor
pode ser imaginário, como quando discutimos com a nossa consciência.
No entanto, não se pode, segundo ele, descobrir o significado da justiça
ou a melhor maneira de viver apenas por meio da introspecção. Seguindo este preceito, a iniciativa de estabelecer um diálogo entre professores
do Direito e da Psicologia acerca dos dilemas morais que afligem a sociedade atual se mostrou altamente produtiva.
Neste terceiro capítulo, o autor levanta diferentes questionamentos: as pessoas devem ser livres para utilizarem seu próprio corpo e seus
bens e riquezas? Quais os limites da intervenção do Estado na liberdade
individual? A intervenção excessiva do Estado configuraria uma restrição da liberdade e dos direitos fundamentais?
Mais do que responder a tantas questões, buscamos aqui estabelecer uma discussão sobre as ideias filosóficas de Sandel, a partir do
Graduação em Psicologia pela PUCRS. Atualmente, Doutoranda em Psicologia pela PUCRS.
Também atua como psicóloga no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS II) de Gravataí/RS e como
professora do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).
Experiência na área de Psicologia com ênfase em Saúde Mental.
102
6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
olhar da Psicologia, após uma interlocução com o Direito, no evento
anteriormente mencionado neste texto. Para tanto, será apresentado o
que propôs o autor em seu livro Justiça (SANDEL, 2012) sob o olhar da
Psicologia.
Sandel (2012) inicia partindo de uma publicação da revista Forbes, a respeito da listagem dos americanos mais ricos. Ali se constata
que apenas 1% dos americanos possui mais de um terço da riqueza do
país inteiro, sendo que a soma dessa riqueza é ainda maior do que a riqueza de 90% da população menos favorecida em conjunto. Esses dados
evidenciam a discrepante desigualdade econômica vivenciada no país
e levantam indagações acerca dos critérios de justiça social. Há os que
pensam que a desigualdade é injusta e que os ricos tem o dever de ajudar
os pobres. Entretanto, há os que acreditam que não há injustiça quando
a desigualdade resulta das escolhas feitas, de forma livre e sem fraude,
em uma economia de mercado. Todavia, o que caracteriza a liberdade
de escolha? Não seriam nossas escolhas frutos da nossa natureza e das
circunstâncias que a vida nos impõe? Será que somos realmente livres
para escolher? E o quanto autônomos nós somos?
A “teoria libertária” abordada no texto de Sandel (2012) trata do
respeito à liberdade de escolha. Segundo o autor, essa teoria se chama “libertária” porque o direito individual fundamental é o direito à liberdade.
Segundo essa teoria, o indivíduo não deve estar submetido a
qualquer uso que a sociedade assim determine, justamente porque é livre. Isso seria viver como se bem entende, desde que não afete os direitos de outras pessoas. A teoria libertária é caracterizada, em síntese, pela
total liberdade de escolha, nenhum paternalismo, nenhuma legislação
sobre a moral e nenhuma distribuição de renda ou riqueza. Portanto,
segundo a teoria libertária, seriam aceitáveis e ideais as escolhas individuais referentes a como dispor do próprio corpo, como o uso de cinto de
segurança e capacete, o uso de contraceptivos, a prostituição, o aborto,
a venda de órgãos, o suicídio e até mesmo o canibalismo consensual.
O indivíduo também deveria ter a liberdade de decidir como dispor de
seus bens, sem qualquer intervenção estatal. Os empresários deveriam
estabelecer salários livremente, de acordo com as leis da livre oferta e
procura, sem que o Estado determinasse pisos e tetos salariais.
103
Lauren Tonietto - Andréia Mello de Almeida Schneider - Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
1. A teoria libertária: um viés psicológico é possível?
A discussão que se impõe a partir da teoria libertária é que a decisão de um indivíduo afeta, mesmo que indiretamente, a vida de outros, causando eventuais prejuízos. Então, se refletirmos sobre o fato de
que cada indivíduo está inserido em uma cultura, fica mais evidente
perceber que decisões individuais não atingem apenas o indivíduo, mas
pessoas com as quais ele se relaciona e também a cultura local. A cultura
carrega consigo as regras de uma sociedade, e isso é o que organiza as
pessoas que nela convivem. O aprendizado e a internalização de regras
sociais, que viabilizam a convivência entre as pessoas, integram o processo de desenvolvimento humano, que será discutido a seguir.
No âmbito do desenvolvimento humano, o desenvolvimento moral é uma das áreas estudada pela Psicologia do Desenvolvimento. O
desenvolvimento moral tem estreita relação com o desenvolvimento de
outras áreas, como a afetiva (emocional), a cognitiva e a social – ou sociocognitiva, como mais recentemente tem sido estudada (TOMASELLO,
2003; 2009), já que as áreas social e cognitiva estão muito relacionadas.
O desenvolvimento moral pressupõe o aprendizado de regras sociais ou de convivência, de leis morais e legais necessárias para as relações humanas e para a vida em sociedade. Ao longo do desenvolvimento, e a partir de suas experiências, o sujeito vai aprendendo o que deve
ou não fazer, o que pode ou não fazer, o que é certo e o que é errado,
e o que é, enfim, a sua personalidade. Contudo, é necessário lembrar
que as regras sociais e as leis vigentes em uma sociedade podem variar
de acordo com a cultura local. Assim, comportamentos e pensamentos
aceitos em uma determinada sociedade podem ser rejeitados em outros
contextos.
Na abordagem comportamental, desenvolvida por Skinner, o
aprendizado das regras sociais ocorre por meio do reforço positivo ou
recompensa aos comportamentos considerados adequados, e da punição aos comportamentos que não são socialmente aceitos. Então, os
comportamentos punidos tendem a ser extintos, de acordo com essa
teoria comportamental.
Já na teoria psicanalítica, considerando a perspectiva do desenvolvimento afetivo proposta por Freud ao longo de sua obra, a internalização das leis morais tem seu ápice quando ocorre o complexo de Édipo
104
6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
e sua resolução. Uma das maiores leis que a criança deve internalizar
refere-se à proibição de concretizar o amor romântico com um dos genitores, o que configuraria o incesto. O conjunto de proibições internalizadas pelo sujeito é chamado, em Psicanálise, de superego. A instância
psíquica chamada de superego é constituída das leis, normas ou proibições internalizadas. Quando as leis são internalizadas, o sujeito é capaz
de saber por si próprio o que é certo e errado, o que pode ou não pode
fazer e o que deve e não deve fazer, sem necessitar que alguém lhe diga
o que fazer. Na Psicanálise, portanto, o superego é uma das instâncias
psíquicas necessárias para a constituição do aparelho psíquico, sendo
que a lei é organizadora do psiquismo.
Piaget (1932/1994), um dos maiores estudiosos do desenvolvimento cognitivo e social, desenvolveu uma teoria sobre o desenvolvimento moral, que, posteriormente, foi aprofundada por outros autores,
como Kohlberg (BIAGGIO, 2006). Piaget identificou que o desenvolvimento moral ocorre em paralelo ao desenvolvimento cognitivo e em
etapas sucessivas de complexidade crescente.
O primeiro estágio do desenvolvimento moral, chamado de anomia, de acordo com Piaget (1932/1994), caracteriza-se pela ausência de
normas ou regras sociais. Esse estágio seria típico das crianças muito
pequenas, com dois anos de idade, no máximo. Nesta etapa, a criança
está aprendendo normas e regras de convivência. O segundo estágio seria a heteronomia, caracterizada pela obediência a regras morais transmitidas pelos outros (pais, professores, outros adultos ou crianças mais
velhas). Nesta etapa, a criança respeita regras, mas sem ter uma crítica
construída sobre elas. O terceiro estágio, chamado autonomia autornomia moral, identificado por Piaget (1932/1994) a partir dos sete ou oito
anos de idade, configura um momento do desenvolvimento a partir do
qual a criança já é capaz de ser crítica frente às normas impostas, questionando-as e construindo suas próprias regras.
Ao longo do desenvolvimento moral, observa-se também o desenvolvimento do que Piaget (1932/1994) denominou “sentimentos
morais”, que compreende o senso de justiça, a gratidão e a reparação.
Nesse contexto, o sujeito aprende também a justiça distributiva. Conforme Sampaio, Camino e Roazzi (2009), justiça distributiva designa “um
constructo relacionado à maneira como as pessoas avaliam as distribuições de bens positivos (renda, liberdade, cargos políticos) ou negativos
105
Lauren Tonietto - Andréia Mello de Almeida Schneider - Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
(punições, sanções, penalidades) na sociedade” (p. 632). Para os autores, ao fazer julgamentos distributivos, os indivíduos avaliam em que
medida a distribuição favoreceu ou prejudicou os envolvidos, seguindo
parâmetros que determinam qual método é mais ou menos justo para
ser aplicado no contexto da distribuição em questão.
Piaget (1932/1994) observou a existência de três períodos evolutivos na noção de justiça distributiva: no primeiro, dos cinco aos sete anos
de idade, o comportamento infantil refletia os efeitos da coação adulta,
havendo uma predominância da noção de retribuição baseada no respeito unilateral e na obediência, e as crianças defendiam que a distribuição mais justa era aquela que estivesse de acordo com as determinações
estabelecidas por figuras de autoridade. Na segunda etapa, entre oito e
12 anos de idade, de acordo com Piaget, haveria uma predileção pelo
igualitarismo absoluto e as crianças tenderiam a defender que a justiça
consiste em distribuir todos os tipos de bens, benefícios ou punições em
partes exatamente iguais, buscando garantir que ninguém fosse prejudicado e que todos saíssem satisfeitos com a divisão. E, partir dos 12 anos
de idade, na terceira etapa, haveria uma tendência das crianças a utilizar
o princípio da equidade, no qual as condições e características individuais das pessoas envolvidas na distribuição seriam consideradas muito
importantes na hora de tomar decisões. Nesse caso, a equidade não buscaria privilegiar uns em detrimento de outros, mas objetivaria tornar a
igualdade mais efetiva, através da análise e ponderação cuidadosa das
questões pessoais relevantes (PIAGET, 1932/1994, p. 238).
No que diz respeito especificamente à questão da equidade, Piaget (1954/2001) julga que esta só se torna possível a partir do desenvolvimento da reversibilidade lógica e do sentimento de reciprocidade:
a primeira permite que o indivíduo seja capaz de ponderar/avaliar diferentes perspectivas e de fazer reverter mentalmente qualquer tipo de
ação, enquanto a reciprocidade impõe o desejo de que haja tratamento
igualitário e respeito mútuo entre as pessoas.
Apesar de ter observado a ocorrência de mudanças significativas nos julgamentos morais das crianças ao longo da infância, Piaget
(1932/1994) considerou que seus dados eram insuficientes para ele poder falar em estágios de desenvolvimento bem delimitados. Nesse sentido, a predominância de um princípio distributivo em determinada faixa
etária poderia não significar, necessariamente, que a preferência por tal
106
6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
princípio deveria ser sempre esperada naquele nível de desenvolvimento. O próprio Piaget não investigou se os resultados obtidos em suas
investigações com crianças genebresas, sujeitos de seus estudos, eram
replicáveis em outras amostras.
Tomando como base os trabalhos de Piaget (1932/1994), William
Damon (1980) investigou, sistematicamente, como os julgamentos distributivos transformam-se da infância até a adolescência. Além de constatar uma sequência evolutiva nas noções infantis sobre a justiça, esse
autor observou que crianças bem novas (por volta dos três anos de idade) já eram capazes de avaliar questões sociais e de emitir julgamentos
morais utilizando critérios que estavam além do respeito unilateral, próprio da fase de heteronomia moral. Com base nesses resultados, Damon
(1980) afirmou ser necessário considerar a existência, entre as crianças
pequenas, de uma sofisticação moral maior do que a que foi proposta
por Piaget (1932/1994).
Estudos mais recentes (TOMASELLO, 2003; 2009) confirmam o
proposto por Piaget (1932/1994) a respeito do desenvolvimento sociocognitivo, mas mostram que os bebês e as crianças desenvolvem certos
aspectos relacionados com o desenvolvimento moral mais precocemente do que propunha Piaget. Bebês de cerca de nove meses já conseguem
compartilhar um foco de atenção de um adulto com o qual interage
e reconhecer sentimentos dos outros. Antes dos dois anos de vida, os
bebês também já compartilham a ação realizada por outros adultos
(atenção e ação compartilhadas) e demonstram conhecimento e solidariedade frente aos sentimentos dos seus interlocutores. E, em torno
de quatro anos de vida, as crianças já conseguem colocar-se no lugar
do seu interlocutor, formulando uma teoria sobre como o outro pensa e
sente, chamada “teoria da mente”, que seria a habilidade da criança em
reconhecer e atribuir sentimentos, valores e crenças em outras pessoas.
Com tais habilidades comunicativas, a criança torna-se mais autônoma
para tomar suas decisões sobre o que deve ou pode fazer, considerando
a perspectiva do outro, além da sua própria. O respeito à perspectiva
do outro é fundamental para que se possa realizar um julgamento mais
eficaz sobre o que se deve ou pode fazer.
Em suma, as três teorias psicológicas aqui apresentadas enfocam
a importância do conhecimento e aplicação das regras sociais para a
vida em sociedade. Ao longo do desenvolvimento humano, o sujeito
107
Lauren Tonietto - Andréia Mello de Almeida Schneider - Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
se torna autônomo em suas decisões, quando tiver internalizado essas
regras sociais e seus determinantes culturais. No entanto, não se pode
esquecer que qualquer decisão tomada afeta, em algum grau, a vida de
outro. Por isso, pode-se concluir que a autonomia moral é mais uma
meta do que uma realidade, já que não é possível ser totalmente autônomo sem ferir os direitos alheios. Assim como o psicanalista Winnicott
(1983) apontou, ao longo de sua obra, que o desenvolvimento afetivo
parte da dependência absoluta a uma dependência relativa, e rumo à
independência, talvez possamos pensar que, no âmbito do desenvolvimento moral, o sujeito também ruma à autonomia moral, a qual nunca
será totalmente atingida.
2. Desenvolvimento moral na sociedade
contemporânea
Considerando as regras sociais e culturais e o desenvolvimento moral, entende-se, neste momento, que a teoria libertária rejeita o
paternalismo e defende a redistribuição de renda de forma facultativa.
Conforme afirma Cavalcanti (2011), o Brasil seria um Estado formado por uma sociedade livre. Isso, segundo ele, significa afirmar que o
Estado deve ser compreendido como meio para uma sociedade livre,
pressupondo um Estado que de fato seja neutro, isento e isonômico.
Dessa forma, a sua atuação não pode se basear em determinadas pretensões de verdade em matéria religiosa (o que não cabe aprofundar
nesse momento), mas sim, deve se valer de critérios de justiça política,
de razões públicas generalizáveis para todos os cidadãos, e não de visões
específicas para determinados grupos. O autor ressalta que a laicidade
estatal não é um projeto de valores, e sim um instrumento para criar
um espaço de liberdade e de pluralismo, que não pretende ditar como
os cidadãos devem se portar para ter uma vida feliz, mas sim criar uma
sociedade de paz e de liberdade.
Essa discussão nos remete a Foucault (1979, 2009) em suas obras
Vigiar e Punir e Microfísica do Poder, quando aborda as diversas formas,
das mais expressas às mais sutis, que uma sociedade e seus governantes possuem para controlar os indivíduos, suas ações e seus pensamentos. Considerando as ideias levantadas por Sandel (2012), o governo
necessita criar formas de controle para vigiar e punir aqueles que não
cumprem as regras sociais, o que pode ser consequência da falta de um
108
6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
desenvolvimento moral pleno e satisfatório em algumas sociedades. Até
que ponto um governo intervém para organizar a sociedade ou intervém para vigiar e punir? É justo exercer um controle que restringe a
liberdade individual? Parece-nos, neste momento, que há uma linha
muito tênue entre os dois tipos de intervenções, e discuti-las, certamente, mereceria um outro capítulo.
Sandel (2012) afirma que, mesmo sendo donos de nosso próprio
corpo, não somos livres para fazer o que quisermos, pois isso pode ferir
a liberdade do outro. Existem, portanto, outras questões morais. Essas
questões envolvem a noção e a necessidade do sujeito de pertencimento
a uma sociedade que possui leis e regras que devem ser cumpridas. Esse
processo inicia ainda na infância, com a formação de um superego, até
chegar ao desenvolvimento moral pleno.
Para estudos e trabalhos futuros, sugere-se ampliar a discussão
sobre a autonomia moral e a liberdade de escolha. Conforme problematizou Piaget (1932/1994), o que leva alguns sujeitos a ter uma ação
incompatível com seus pensamentos? Ou seja, por que alguns sujeitos
chegam à construção de um pensamento moral, mas não agem moralmente? E, por outro lado, sabe-se que muitos sujeitos não chegam
à autonomia moral, permanecendo no estágio da heteronomia moral.
Assim, como garantir a liberdade de escolha e de ação para sujeitos que
não atingem a autonomia moral? E como garantir os direitos desses
sujeitos e de seus interlocutores? Esses questionamentos ainda intrigam e nos conduzem a outros dilemas morais que ainda precisam ser
explorados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BIAGGIO, Angela. Lawrence Kohlberg: ética e educação moral. São
Paulo: Moderna, 2006.
CAVALCANTI, Nicolau da Rocha. Estado laico e sociedade livre. O
Estado de São Paulo. São Paulo, 29 jun. 2011.
DAMON, W. Patterns of change in children’s social reasoning: A twoyear longitudinal study. Child Development, n. 51, p. 1010-1017, 1980.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal,
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109
Lauren Tonietto - Andréia Mello de Almeida Schneider - Fernanda Cesa Ferreira da Silva Moraes
__________. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 36. ed. Petrópolis:
Vozes, 2009.
FREUD, Sigmund. Obras completas. 2. ed. Buenos Aires: Amorrortu,
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SAMPAIO, Leonardo Rodrigues; CAMINO, Cleonice P. Santos;
ROAZZI, Antonio. Justiça distributiva: uma revisão da literatura
psicossocial e desenvolvimentista. Psicologia em estudo, Maringá,
v. 14, n. 4, dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722009000400003&lng=en&nr
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SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 6. ed. Rio de
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TOMASELLO, Michael. Constructing a language: A usage-based theory
of language acquisition. Cambridge: Harvard University Press, 2003.
TOMASELLO, Michael. Why we cooperate? Cambridge: Massachusetts
Institute of Technology, 2009.
WINNICOTT, Donald Woods. O ambiente e os processos de maturação.
Porto Alegre: Artmed, 1983.
Glossário de termos da Psicologia
Aparelho psíquico: Modelo criado por Freud para designar que
a mente é organizada e funciona de acordo com os aspectos econômico (quantidade de energia), topográfico (inconsciente, pré-consciente e
consciente; ou Id, ego e superego) e dinâmico.
Cognição: Conjunto de habilidades mentais, necessárias aos seres humanos, para que possam adquirir conhecimento.
Complexo de Édipo: Fase do desenvolvimento infantil inerente a todos os seres humanos, reconhecido e defendido pela Psicanálise,
que ocorre em torno dos quatro ou cinco anos de idade, de acordo com
110
6 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? REFLEXÕES DA PSICOLOGIA A PARTIR DAS IDEIAS FILOSÓFICAS DE SANDEL
a teoria freudiana. É um período marcado pela apresentação das leis
sociais e culturais em que a criança deve perceber que não existe amor
incondicional.
Internalização: Processo inconsciente em que a pessoa adota as
ideias, normas ou valores de uma sociedade ou cultura como suas.
Introspecção: Na Psicologia, é entendido como um método em
que o sujeito pode se auto-observar. Foi inicialmente proposto pela Escola Estruturalista, baseada na observação e na análise sistemática de
uma consciência individual, tendo em vista uma finalidade especulativa.
Instância psíquica: Termo usado por Freud para designar as estruturas da mente (Id, ego e superego)
Personalidade: Modo de pensar, agir e sentir de um indivíduo.
Formada pelas vivências acumuladas ao longo da vida e pelo conhecimento formal adquirido.
Superego: Herdeiro do complexo de Édipo, surge quando a
criança internaliza as leis sociais e culturais.
111
7
SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS?
PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE
O JURISTA MICHAEL SANDEL E O
PSICANALISTA ERICH FROMM
Paula de Jesus Martins1
Sumário: Introdução - 1. O homem como indivíduo e
o homem ator social: a medida da outorga de parte de sua
liberdade - 2. A motivação ética de nossas escolhas, ou qual a
principal motivação de nossas escolhas? A ética ou o Direito? - 3.
Conclusão: a primeira escolha é a quem outorgamos o poder de
nos comandar - Referências Bibliográficas
INTRODUÇÃO
O capítulo terceiro do livro “Justiça: o que é fazer a coisa certa
O que é Justiça discute em que medida somos donos de nós mesmos,
sugerindo uma visão crítica sobre as normas legais que visam à determi1 Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica do Serviço de Assistência Jurídica Gratuita (Sajug).
Professora da Disciplina de Direito Civil. Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista (MBA) em Direito Tributário pela Fundação
Getulio Vargas (FGV). Especialista em Direito Internacional pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Advogada.
113
Paula de Jesus Martins
nação de regras de conduta, muitas vezes de conteúdo estritamente privado.2 O questionamento surge em decorrência da observação de que
uma série de normas e de textos legais é dirigida a atividades ou escolhas
de cunho estritamente pessoal. O autor provoca se é válido o Estado
assumir a condição de “dono”, determinando o que é certo ou errado a
ser feito. É quase uma confirmação da ética em Spinoza ao afirmar que
o homem não é capaz de fazer as suas escolhas,3 e sobre tal realidade o
leitor é confrontado a concordar, ou não, com a condição de subordinado absoluto do Direito Estatal.
O tema não é novidade no estudo, principalmente, da Filosofia
e do Direito. Abordagens sobre o fundamento ético das escolhas promovidas pelo indivíduo e pelo Estado, e a legitimidade e representação
entre esses atores sociais, levantam a discussão sobre a competência instituidora desse poder. Tal tema foi trabalhado por Fromm e o presente
artigo propõe apresentar suas justificativas para responder às perguntas
de Sandel. Propõe-se fazer um contraponto, respondendo à provocação,
do texto do psicanalista a partir da teoria da autoridade racional e do
primado da ética humanista.4
1. O homem como indivíduo e o homem ator social: a
medida da outorga de parte de sua liberdade
A primeira questão que se apresenta para discussão é a clássica
dicotomia entre os limites do público e do privado: em que medida o
Estado pode ou deve interferir nas escolhas pessoais de seus subordinados. Ou seja, conforme o modelo político, elencam-se temas que devem
ser objeto de maior ou menor intervenção do Estado e, por isso, regrados de forma impositiva, somente cabendo ao indivíduo cumprir com
a norma.
Em uma divisão clássica do Direito, a área chamada de Direito
Público é aquela dirigida a toda a coletividade; seu regramento reflete
um interesse geral e que pode ser relacionado à ordem interna ou externa, no que se refere ao Estado no qual surge. Consequentemente, o
2 SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
3 SPINOZA, Benedictus de. Ética. São Paulo: Autentica, 2007.
4 FROMM, Erich. Análise do Homem. São Paulo: Zahar Editores, 1984.
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7 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA...
caráter cogente dessas normas é a regra geral. Ao contrário, no Direito
Privado, eis que dirigido às relações interpessoais, a liberdade de escolhas deveria ser respeitada ao máximo, pautada validamente nos princípios de Direito, mas com amplo respeito à vontade do agente.
O próprio Estado a que a obra se refere, o Estado moderno, não
foi a única forma de sociedade a que o homem esteve vinculado. Bedin
ressalta que “[...] é importante observar que este processo de centralização e concentração política que deu origem ao Estado moderno esteve
também sempre referido a um grupo humano específico [...]”.5
Sandel trabalha apresentando como referência a teoria libertária,
a ideia de um Estado mínimo. Enfatiza que essa teoria foi mais difundida na década de 1980 e que serviu de fundamento para outras teorias
que primavam pelos direitos individuais, pela ampla liberdade do homem, na sua autodeterminação. E que o cerne moral dessa teoria libertária é que o homem deve “ser dono de si mesmo”.
Trabalhando sempre com exemplos e questionamentos práticos,
a obra passa a discutir até que ponto somos mesmo donos de nós, demonstrando o número expressivo de decisões que afetam somente o indivíduo e que são transferidas para o Estado. E tal questionamento surge ainda mais ruidoso, pois se dá no âmago de um Estado que se funda
sob o paradigma da proteção às liberdades individuais. Para o sistema
normativo estadunidense, é extremamente “cara” a edição de qualquer
norma que visa restringir liberdades individuais em prol do Estado.
E, para isso, observa-se que Sandel utiliza a premissa de que a
atuação estatal, uma vez definida, é legítima; que as diretivas estatais devem ser cumpridas pelo simples fato de emanarem daquele que possui o
poder de coerção sobre o indivíduo. Não há um aprofundamento maior
nas várias situações em que, a despeito da existência da norma, não há
aceitação pelo subordinado, restando a imaginação de uma eficácia plena dessa norma, uma vez que imposta.
Isso deve ser refletido com mais profundidade, pois essa eficácia só acontece quando se verifica a legitimação da norma. Conforme
adiante trata Fromm, a autoridade somente se estabelece ou pela eficácia da coerção – no estabelecimento de uma autoridade irracional – ou
5 BEDIN, Gilmar Antonio. A Idade Média e o Nascimento do Estado Moderno. Ijuí: Ed. Ijuí, 2008.
p. 85.
115
Paula de Jesus Martins
na competência da autoridade de onde emana a norma – autoridade
racional.6 Deve-se questionar se essa norma, e como tal um dever ser
absoluto e coercitivo, tem o condão de modificar ou induzir a determinada conduta.
Höffe indaga: “liberdade de dominação ou dominação justa?”.7 E
conclui:
A legitimação funcional põe valor em compreender o Estado social
não como estado de bem-estar. Pois a expressão de bem-estar se situa
muito próxima do bem-estar e da felicidade. A opinião de que o Estado
moderno poderia e deveria ajudar os homens a alcançar a felicidade é,
porém, uma expectativa, talvez até uma promessa, de cujo cumprimento
o Estado não é capaz, nem autorizado. A legitimação funcional do Estado
começa, por isso, como uma desmistificação; ela aponta para o fato de
que ocasionalmente se insinua, no projeto político da modernidade, um
elemento que é, ao mesmo tempo, irreal e ilegítimo.8
Ou seja, as escolhas feitas pelo Estado não visam e não alcançarão
o melhor benefício ao indivíduo subordinado, porque não é esse seu
papel. No entanto, uma norma editada e percebida dessa forma tem o
condão de obrigar? É o que se questiona.
E tratar o tema enfrentando a relação de atualidade, por quê? Porque os homens não são estáticos e imutáveis, quer no tempo, quer no
espaço. Porque o homem é fruto da soma de suas condições natas, de
suas experiências e do meio no qual está inserido. E para fazer esse diálogo, a proposta deste artigo foi a de utilizar a obra de Erich Fromm, a
qual se tornou um best-seller na década de 1980, à semelhança do ocorrido com a obra de Sandel. Este, um jurista, e aquele, um psicanalista. E
ambos trabalhando a justificativa das escolhas feitas pelo homem e para
o homem.
Todos os dias, e por um número imenso de vezes, o ser humano
toma decisões sobre suas condutas, das mais corriqueiras às mais importantes. Como obrigação, o estudo do Direito já as separa como vínculos obrigacionais decorrentes da lei ou do contrato, assinala Venosa.9
6 FROM, Erich. Análise do Homem, p. 21.
7 HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 194.
8 HÖFFE, Otfried, cit.. p. 425.
9 VENOSA, Sílvio de Savo. Direto Civil – Teoria Geral das Obrigações e Teoria geral dos Contratos.
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7 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA...
Assim, ou o homem está obrigado a uma regra de conduta (fazer ou não
fazer) por força da lei e é irrelevante ele estar de acordo com esta, ou
não. Ou, por sua manifestação da vontade, está vinculado a uma obrigação por sua mera liberalidade, por ter-se obrigado voluntariamente.
Sobre as obrigações voluntárias, é próprio de seu livre arbítrio
decidir a conveniência de se obrigar ou não. Somente está obrigado a
pagar a prestação do carro aquele que decidiu comprá-lo. Mas parar ao
sinal vermelho é obrigação de todos, independentemente de prévia e
formal manifestação de adesão. Dessa forma, parte-se para fazer a distinção entre temas que merecem ou que necessitam ser objeto de regras
estatais, e os que não necessitam – algo que o Direito já classifica como
cogentes ou voluntárias, mas sob o enfoque da natureza de Direito Público ou de Direito Privado dessas normas.
Então, pergunta-se: por que seguimos algumas dessas regras emitidas pelo Estado e outras não? Por que algumas são recepcionadas pelo
indivíduo como merecedoras de acatamento? Um número grande de
condutas pode ser listado como condutas usuais, ainda que contrárias
à lei do Estado, como downloads de programa de computador, músicas;
adquirir produtos no estrangeiro superior à cota legal; ultrapassar sinal
vermelho na madrugada etc. E em que medida esses infratores se percebem como tal? Como criminosos? Talvez não se percebam, pois não
conferem legitimidade àquele Estado, àquela norma. E sem esse sentimento de pertencimento, de submissão ao poder estatal, a norma se
mostra ineficaz, ainda que válida e exigível.
Portanto, deve-se questionar, primeiro, a legitimidade daquele
que emana a norma, se deve ser recepcionado e não ser uma norma
autoritária, sem sentido. E, nesse ponto, Fromm trata de forma simples
e profunda a distinção entre as normas autoritárias, que se justificam
somente no poder da coerção, e as normas democráticas, em que o subordinado compreende a função da norma. Ao ultrapassar o valor de
cota para importação de bens, e disfarçá-la na bagagem a fim de enganar o agente fiscal da fronteira, o contribuinte não compreende que
está cometendo um crime de sonegação e evasão fiscal, sujeito à prisão.
Que está prejudicando os cofres públicos nas ações sociais a que esse
numerário se destina: promoção da educação, saúde, segurança. Pelo
São Paulo: Atlas, 2013. p. 5 e 380.
117
Paula de Jesus Martins
simples fato de que não acredita ser o Estado capaz de realizar esses
atos. Não encontra legitimidade no Estado para lhe tomar valores que
não acredita terem destinação devida. Ao contrário de se perceber como
um tutelado e protegido, vê o Estado como um usurpador. E isso, para
exemplificar apenas esse ato contrário à lei.
2. A motivação ética de nossas escolhas, ou qual a
principal motivação de nossas escolhas? A ética ou o
Direito?
Retornando à questão da motivação das escolhas realizadas pelo
homem, passa-se a enfrentar aquelas condutas que não foram objeto de
opção, mas de imposição. E esta pode se dar por diferentes fundamentos
de autoridade.
Norteando a percepção sobre o fato de se fazer escolhas, Fromm
trata da ética, passando a diferenciar a autoridade racional da irracional.
E o faz questionando o afastamento que a psicanálise fez da ética. Critica o fato de considerar a ética como inata, como única e perene pelo
simples fato de se pertencer à raça humana:
Se não abandonarmos, como faz o relativismos ético, a procura de
normas de conduta objetivamente válidas, quais os critérios que
poderemos achar para elas? A espécie de critérios dependerá do tipo de
sistema ético cujas normas estudaremos, Por força, os critérios da ética
autoritária serão fundamentalmente diferentes dos da ética humanista.10
Fromm se detém na análise da ética das escolhas, e, neste ponto, enfrenta o mesmo tema que Sandel, mas por ótica distinta. Sandel
questiona se a escolha da conduta deveria ter sido dada por aquele que
possui a autoridade de fazê-lo, de forma que acaba por questionar sua
legitimidade, ainda que por via indireta. Fromm vai trabalhar essa legitimidade da autoridade classificando-a como racional ou irracional.
E isso será fundamentalmente importante quando se passa a verificar a
aceitação da norma pelo subordinado a que se destina.
Ao traçar definições sobre os tipos de autoridade, o psicanalista
classifica como irracional a norma que se ampara no medo e no poder,
10 FROM, Op. Cit., p. 62.
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7 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA...
aquela que não admite críticas. O subordinado cumpre o ditame pelo
simples fato de se ver amedrontado pela possibilidade de punição, “um
sistema assim não se baseia na razão e no conhecimento, mas no temor
à autoridade [...]”.11 Esta ética autoritária nega a capacidade do homem
de saber o que é bom ou mau.
Bobbio destaca a mesma relação chamando a atenção para o fato
de que a prática é de se analisar a questão sob o ponto de vista do Estado
“[...] aquele que está no alto e que se torna deste modo o sujeito ativo da
relação, sendo o outro tratado como sujeito passivo”12 e o assemelha à
relação pai e filho. Fromm afirma que tal situação é bem distinta, pois a
relação de patriarcado pressupõe a autoridade, mas não ocorre o mesmo com os governantes.
Já ao conceituar a autoridade racional, afirma que esta tem origem na competência. Sua autoridade é baseada em motivos racionais.
Não só admite como propicia meios de ser constantemente submetida à
aceitação. É próprio do sistema democrático de Direito. Transportando
o conceito ao sistema político, seria como o processo de pleitos, em que,
sistematicamente, são convocados os eleitores para decidir aqueles que
lhes representarão na edição dessas normas às quais se tornarão subordinados. Ou seja, a autoridade emanada da norma é percebida como
escolha feita pelo eleitor ao outorgar o mandato ao seu eleito.
Aplicando-se essa premissa das leis estatais para o mundo jurídico, seria como se uma lei não fosse compreendia pelo indivíduo, cabendo-lhe apenas cumprir, sem questionar. Ocorre que, exatamente quando uma lei é publicada, passa a ser exigível de todos a ela submetidas;
porém, seu cumprimento se dá no plano do medo pela punição.
Bobbio vai utilizar da expressão “desobediência civil” como uma
das possibilidades do subordinado não cumprir às leis, com o intuito de
modificá-las. Afirma que o dever fundamental de toda pessoa submetida a um ordenamento jurídico é respeitá-lo, e que esse dever chama-se
obrigação política, mas, se for legítimo:
A observação da obrigação política por parte da grande maioria dos
sujeitos, ou sejea a obediência geral e constante às leis, é ao mesmo
tempo a condição e a prova da legitimidade do ordenamento, “se por
11 FROM, Op. Cit., p. 22.
12 BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2009a. p. 63.
119
Paula de Jesus Martins
poder legítimo” se compreende, weberianamente, aquele poder cujos
comandos são, enquanto comandos, isto é, independente de seu
conteúdo.13
Para se compreender o que se entende por desobediência civil,
diferenciando da desobediência em geral, aquela é consubstanciada no
caso da lei ilegítima (emanada de quem não tem o poder), a lei inválida
(inconstitucional) e a lei injusta. E aqui retorna-se ao questionamento
inicial de Sandel: e o que é justo?
3. Conclusão: a primeira escolha é a quem
outorgamos o poder de nos comandar
O grande valor da obra de Fromm ao responder sobre o conteúdo
de escolhas, como às propostas por Sandel, é reaproximar a questão da
ética e da liberdade, a qual é necessária à felicidade, mas que normas,
mesmo que éticas, podem não favorecer a sociedade como um todo. E
se o padrão normativo não se encontrar como representativo daquele a
que se destina, restará infrutífero, a menos que seja tirânico.
Perguntar-se se deixamos de ser donos de nós mesmos, porque
a norma dita, de forma coercitiva, o que se deve fazer, não fará eco ao
indivíduo que percebe essa norma como emanada de sua vontade ou
de sua delegação de autoridade, àquela racional e competente. Assim, a
sociedade fará a introjeção da norma; não mais uma norma exterior, superior, alheia aos seus anseios; e sim algo que lhe faz sentido, que possui
uma justificativa, ainda que não lhe traga benefício individual e direto.
O homem, como ser social, abdica de parte de sua liberdade individual em função do coletivo e é próprio da contratualidade, a partir
do estado natural. Mas vai lhe arrancar, tomar-lhe de volta, pela forma
da desobediência, da autotutela de seus direitos, caso não se perceba
representado pelo Estado que lhe obriga. Essa é a questão que deve ser
enfrentada pelos governantes atuais.
13 BOBBIO, Norberto. O Terceiro Ausente. São Paulo: Manole, 2009. São Paulo: Manole, 2009b.
p. 112.
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7 • SOMOS DONOS DE NÓS MESMOS? PROPOSTA DE DIÁLOGO ENTRE O JURISTA MICHAEL SANDEL E O PSICANALISTA...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEDIN, Gilmar Antonio. A Idade Média e o Nascimento do Estado
Moderno. Ijuí: Ed. Ijuí, 2008.
BOBBIO, Norberto. Estado Governo Sociedade. São Paulo: Paz e Terra,
2009a.
__________. O Terceiro Ausente. São Paulo: Manole, 2009b
DOWER, Nelson Godoy Bassil. Instituições de Direito Público e Privado.
São Paulo: Saraiva, 2008.
FROMM, Erich. Análise do Homem. São Paulo: Zahar Editores, 1984.
HÖFFE, Otfried. Justiça Política. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2001.
SANDEL, Michael J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. São Paulo: Autêntica, 2007.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Teoria Geral das Obrigações e
Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, 2013.
121
8
QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM
TEMPOS DE INCLUSÃO
Maúcha Sifuentes1
Sumário: Introdução - 1. O caso de Callie: uma janela
para olhar a inclusão escolar - 2. Inclusão escolar: algumas
contribuições de teorias psicológicas - 3. O caso de Callie e o
tema da meritocracia - Considerações Finais - Referências
Bibliográficas
INTRODUÇÃO
Diversos são os dilemas morais enfrentados, cotidianamente,
no bojo das relações sociais. Michael Sandel, notório filósofo de temas
como ética, moralidade e justiça, discute, na obra Justiça – O que é fazer
a coisa certa? (SANDEL, 2013), situações reais controversas e conflitantes que trazem à tona reflexões interessantes sobre diversas questões
contemporâneas. No presente artigo, busca-se analisar, sob a perspectiva da Psicologia, um caso extraído do texto “Quem merece o quê?”,
que compõe a obra supramencionada. Para tanto, serão apresentadas,
1 Docente do Curso de Psicologia Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca
– Faculdade Inedi). Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Psicóloga na área de Transtornos de Desenvolvimento e Inclusão Escolar.
123
Maúcha Sifuentes
sucintamente, algumas contribuições de teorias psicológicas acerca da
inclusão escolar, tema que emerge a partir do caso analisado. Além disso, a questão da meritocracia, inerente ao debate acerca do movimento
inclusivo, também será tratada.
O referido caso que ilustra a discussão desse excerto relata um
acontecimento ocorrido no Texas (EUA) com Callie Smartt, aluna do
primeiro ano do Ensino Médio. Callie era popular na escola e participava da torcida organizada da Andrews High School. A adolescente
tinha paralisia cerebral, e, por isso, era cadeirante, o que não diminuía o
entusiasmo que inspirava nos jogadores e fãs de futebol americano, com
sua presença sempre animada à beira do campo nos jogos do time de
juniores da escola. No final da temporada, no entanto, Callie foi expulsa
da torcida organizada.
A expulsão se deveu à pressão que outras meninas da torcida e
seus pais exerceram sobre a diretoria da escola, que informou à Callie que se ela quisesse participar no ano seguinte teria de treinar como
todas as demais e se submeter à rigorosa rotina de exercícios físicos,
incluindo splits e acrobacias. O pai da capitã da torcida comandou o
movimento contra a permanência de Callie, alegando preocupação com
a segurança desta. Por outro lado, a mãe de Callie manifestou sua indignação, afirmando que tudo era fruto da inveja dos aplausos que a filha
sempre recebia.
O caso traz à tona o questionamento sobre o que é necessário
para ser da torcida organizada. A controvérsia é acerca do que é essencial nessa organização. São as acrobacias e alta performance necessárias
em seu desempenho? Tomando de empréstimo a ilustração do caso, o
paralelo que cabe aqui é o de questionar-se: qual a essência da educação? Qual seu propósito?
1. O caso de Callie: uma janela para olhar a inclusão
escolar
O caso acima relatado pode servir como convite para pensar, de
forma mais ampla, a questão da inclusão escolar. A situação-problema
que se forjou era a de que, para seguir participando da torcida organizada, Callie teria que treinar como todas as demais e se submeter à
rigorosa rotina de exercícios físicos, incluindo acrobacias e movimentos
124
8 • QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO
ginásticos. Os contrários à permanência de Callie advogavam que, para
ser uma boa líder de torcida, a pessoa deve ser capaz de apresentar uma
alta performance acrobática. De outra forma, os favoráveis à Callie defendiam que a mesma cumpria bem o objetivo a que se propunha, que é
o de promover o espírito escolar e animar os fãs.
Os que lutaram pelo afastamento em questão, defendendo a necessidade dos movimentos atléticos e saltos grandiosos, expuseram que
é dessa forma que as meninas costumam levantar a torcida. Essa perspectiva representa a resistência à mudança de paradigma, o que também
pode ser conduzido na análise da situação análoga, qual seja da inclusão
escolar. Há uma dificuldade em subverter o paradigma atual presente
no contexto educacional, que é de mais preocupação com a forma que a
educação é oferecida do que com sua intencionalidade. Intencionalidade esta que deveria privilegiar a promoção do desenvolvimento integral
do sujeito. A lógica de valorizar as acrobacias e splits mais do que o
espírito de animação da torcida é a mesma lógica presente na escolarização, que é a conteudista. Valoriza-se mais a reprodução de fórmulas e
informações do que o desenvolvimento do sujeito, sua autonomia e os
processos mentais envolvidos na aprendizagem.
Esse ponto, possivelmente, seja um dos de mais difícil compreensão pela população em geral ao analisar a questão da inclusão escolar.
Muitos ponderam que é falso considerar que os alunos com deficiência
são capazes de acompanhar o desempenho escolar esperado. Contudo,
não é sob essa premissa que se baseia o movimento inclusivo. Não há a
expectativa generalizada de que as pessoas com deficiência apresentarão
o mesmo desempenho e no mesmo tempo de seus colegas. Isso porque,
mesmo entre as pessoas com deficiência, há diversidade em aquisições,
habilidades e competências – tal como qualquer aluno. As pessoas com
deficiência, como qualquer ser humano em processo de aprendizagem,
não se resumem apenas a sua inteligência, muito menos a sua deficiência. A premissa aqui é a de buscar desenvolver as potencialidades de
cada indivíduo.
2. Inclusão escolar: algumas contribuições de teorias
psicológicas
A polêmica sobre a expulsão de Callie relaciona-se ao paradoxo
excluir-incluir, movimento contínuo no cotidiano social. No que se re125
Maúcha Sifuentes
fere ao campo da educação, o Brasil assume, há cerca de duas décadas, e
na última de forma mais intensa, políticas públicas no sentido da inclusão escolar de pessoas com deficiência (BRASIL, 2008).
A incerteza acerca dos benefícios da inclusão para os alunos com
deficiência, gradativamente, vai sendo superada pelos resultados dos
estudos científicos. Nesse sentido, já se conhece o efeito positivo e estimulante do meio escolar regular no desenvolvimento de pessoas com
deficiências (MANTOAN, 1988; LI, 2002; SANINI, 2011; SERRA, 2004;
SIFUENTES, 2011; YANG et al., 2003). Esses resultados podem ser avalizados por diferentes perspectivas psicológicas, especialmente na área
das teorias da aprendizagem e da Psicologia do Desenvolvimento. Ao
longo dos anos, as teorias do desenvolvimento social (etológica, piagetiana, da aprendizagem social, sistemas dinâmicos, sociointeracionistas,
sócio-histórica, dentre outras), apesar da diversidade na abordagem
teórica e metodológica, são unânimes em reiterar que a interação social
é a condição de construção do indivíduo e base para o desenvolvimento
humano (HÖHER-CAMARGO; BOSA, 2009).
Vygotsky (1995), eminente teórico da aprendizagem, defende que
não se pode estabelecer limites a priori para as pessoas que possuem
algum tipo de deficiência. O autor afirma que “o que decide o destino
da pessoa, em última instância, não é o defeito em si mesmo, mas suas
consequências sociais, sua realização psico-social [sic]” (p. 19). Para ele,
o desenvolvimento é um processo cultural, em que o funcionamento do
sujeito tem sua origem e se transforma nas relações sociais (VYGOSTSKY, 1995). O desenvolvimento, por sua vez, é um processo intrinsecamente relacionado à aprendizagem, e atua por meio de um processo
dialético (VAN DER VEER; VALSINER, 1996).
Note-se que as situações de interação social assumem papel decisivo, pois são concebidas como um espaço simbólico gerador de conhecimento, de apropriação de significados e de construção de subjetividades; por conseguinte, atuam como promotoras de aprendizagens
que impulsionam o desenvolvimento (COLAÇO et al., 2007). Portanto,
o “destino” da criança com deficiência dependerá das suas relações com
outros sujeitos, do seu engajamento em diferentes esferas de atividade
da cultura e da qualidade das suas experiências. O sujeito, ao inserir-se
na vida coletiva, encontra as bases para a constituição das suas funções
internas, fazendo-se indivíduo (PINTO; GÓES, 2006).
126
8 • QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO
O contato da criança com deficiência com pares em casa, na
comunidade e na escola torna-se importante para a promoção de um
contexto que possibilite o desenvolvimento de suas competências sociais (GURALNICK, 2002). Porém, por possuírem algumas limitações,
essas crianças, frequentemente, são consideradas como incapazes de
contribuir e de participar das atividades em grupo. Por essa razão, muitas vezes, acabam sendo isoladas do contato com parceiros e suas relações acabam por se restringir a adultos (SOUZA; BATISTA, 2008). A
diversidade no meio social e, especialmente, no ambiente escolar, é fator
determinante do enriquecimento das trocas, dos intercâmbios intelectuais, sociais e culturais que possam ocorrer entre os sujeitos que neles
interagem.
Além da abordagem vygotskyana, outra perspectiva teórica no
campo da Psicologia útil para embasar esse tópico refere-se à Teoria da
Aprendizagem Social, de Albert Bandura (1977). Esse aporte teórico faz
referência a uma situação de aprendizagem interpessoal, na qual um
sujeito (o observador) aprende os comportamentos realizados por outro
(modelo). Ao propor a Teoria da Aprendizagem Social, enfatizou que o
ser humano pode aprender não apenas por meio da experiência direta (o tipo de aprendizagem explicado pelo condicionamento operante
clássico e operante), mas, também, pela observação do que acontece
a outros quando agem no ambiente social e físico. O autor enfatiza a
importância da observação e da modelagem dos comportamentos, atitudes e respostas emocionais dos outros. A modelagem é a mudança
no comportamento, pensamento ou emoções, que ocorre por meio da
observação de outra pessoa – um modelo.
O aprendizado seria excessivamente trabalhoso, para não mencionar
perigoso, se as pessoas dependessem somente dos efeitos de suas
próprias ações para informá-las sobre o que fazer. Por sorte, a maior
parte do comportamento humano é aprendido pela observação através
da modelagem. Pela observação dos outros, uma pessoa forma uma
ideia de como novos comportamentos são executados e, em ocasiões
posteriores, esta informação codificada serve como um guia para a ação
(BANDURA, 1977, p. 22).
Por conseguinte, a relação com modelos mais apropriados, do
ponto de vista de alguns comportamentos sociais e cognitivos, é enri127
Maúcha Sifuentes
quecedora para pessoas com deficiência. Essa relação é oportunizada no
espaço escolar.
Além disso, o conceito de autoeficácia, também de Bandura,
vem recentemente recebendo destaque no campo da inclusão escolar,
mas com outro enfoque, qual seja o do papel do professor. De acordo
com Bandura (HALL; LINDZEY; CAMPBELL, 2000), a autoeficácia é
definida como a crença nas próprias habilidades para apresentar comportamentos que possibilitem alcançar o resultado almejado. No caso
do professor, caracteriza-se pela crença na possibilidade de poder organizar e implementar ações exigidas que permitam alcançar resultados
acadêmicos (BZUNECK; GUIMARÃES, 2003).
Dessa forma, a autoeficácia terá uma influência na motivação e
no bem-estar pessoal no trabalho dos professores, servindo como um
recurso pessoal, uma proteção para o professor contra experiências de
trabalho tensas e estressantes. Isso significa que não basta o indivíduo
ser capaz de realizar algo, mas que também ele se julgue capaz de utilizar
as capacidades e habilidades pessoais diante das mais diversas situações.
Se as pessoas não acreditam que têm o poder para produzir resultados, elas não atuarão no sentido de que os mesmos aconteçam (AZZI;
POLYDORO, 2008).
No entanto, considerando o panorama atual, as pesquisas têm
mostrado a presença de baixas expectativas de eficácia por parte dos professores, especialmente no contexto da inclusão escolar. Em se tratando
da educação especial, esse sentido de autoeficácia pode ser abalado pelo
fato de o professor ter que lidar diariamente com obstáculos, fracassos e
frustrações e esses, por sua vez, acabam interferindo com a motivação e
com a atuação pedagógica (BZUNECK; GUIMARÃES, 2003).
Em geral, o professor acredita que para desenvolver um trabalho
eficaz com as crianças com deficiência há necessidade de total domínio
de todos os aspectos ligados ao quadro clínico da criança. Como resultado, estudos demonstram que o professor sente-se, indevidamente,
incapacitado para lidar com a criança, e essa postura acaba afetando
a crença de autoeficácia. Como consequência, o trabalho pedagógico
pode vir a ser prejudicado (CINTRA; RODRIGUES; CIASCA, 2009;
SANINI, 2011). Mesmo o professor possuindo o conhecimento necessário para a realização do seu trabalho, a tendência demonstrada nos
estudos era a de não confiar em si e, assim, não reconhecer as práticas
128
8 • QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO
efetivas realizadas, tendendo a atribuí-las ao acaso ou ao próprio desenvolvimento da criança. Tal percepção dificultava o fortalecimento
de sua autoimagem como um bom profissional, capaz de dar conta das
demandas relacionadas à inclusão.
Conforme observado, algumas teorias da Psicologia colaboram na
compreensão de alguns aspectos relacionados à inclusão. Assim, foram
destacados benefícios diretos para o desenvolvimento da criança com
deficiência em vivenciar de forma integrada a escolarização, bem como,
sucintamente, alguns nuances da atuação do professor nesse contexto.
Faz-se necessário que também sejam examinados alguns aspectos psicossociais do processo de inclusão, como nos tópicos de mérito e direito.
3. O caso de Callie e o tema da meritocracia
Retomando ao caso de Callie Smart, que ensejou a presente discussão, outra questão que se desvela é a da meritocracia. Sandel (2013),
para analisar o acontecimento, aborda o pensamento de Aristóteles sobre justiça. Para este, justiça significa dar às pessoas o que elas merecem,
dando a cada uma o que lhe é devido. Então, surge o questionamento:
quais são as justificativas relevantes para o mérito? Isso dependeria, segundo Sandel, do que está sendo distribuído. O modelo meritocrático
pode ser defendido para abonar a expulsão de Callie.
Jessé Souza apresenta um interessante ponto de vista para analisar o tema da meritocracia. Para ele, no mundo moderno, os privilégios continuam a ser transmitidos por herança familiar e de classe. Sua
aceitação, contudo, depende de que os mesmos “apareçam” não como
atributo de sangue, de herança, de algo fortuito, mas como produto “natural” do “talento” especial, como “mérito” do indivíduo privilegiado.
Nessa percepção do mundo moderno, crê-se em uma “igualdade de
oportunidades”, que encerra as demandas atuais de igualdade e liberdade. Seguindo esse raciocínio, os privilégios decorrentes dessa realidade
não seriam meras “desigualdades fortuitas”, mas “desigualdades justas”
porque resultantes do esforço e desempenho diferencial do indivíduo.
A justiça reside no fato de que “é do interesse de todos” que existam
“recompensas” para indivíduos de alto desempenho em funções importantes para a reprodução da sociedade (SOUZA, 2009). A ênfase no
modelo meritocrático se baseia na premissa de condições iguais, o que
acarreta, de fato, na ampliação das desigualdades.
129
Maúcha Sifuentes
Justamente por se considerar que as oportunidades não são iguais
a todos indivíduos de uma sociedade é que a escola se reveste dessa importância e tem como função social equiparar, ou, ao menos, amenizar
as diferenças de oportunidades. No entanto, observa-se que a situação
atual do atendimento às necessidades escolares da criança brasileira é
responsável por índices impressionantes de repetência e evasão no Ensino Fundamental. Equivocadamente, no imaginário social, como na
cultura escolar, a incompetência de certos alunos – os pobres e os deficientes – para enfrentar as exigências da escolaridade regular é uma
crença que aparece na simplicidade das afirmações do senso comum e
até mesmo em certos argumentos e interpretações teóricas sobre o tema
(MANTOAN, 1993). Isso significa responsabilizar unicamente o aluno
pelo fracasso escolar em vez de se debruçar em um debate mais profundo sobre a educação e o sistema educacional do país.
O debate acentuado hoje sobre a temática da deficiência já esteve
em voga sobre outros grupos sociais, excluídos da escola no passado. A
ampliação/universalização do acesso ao ensino obrigatório no país é um
fato, com início a partir da década de 1960. A universalização do acesso
à escola fundamental permitiu que crianças que, por mecanismos de seletividade, antes eram percebidas como não atendendo completamente
condições pessoais, familiares, culturais e econômicas, passassem a frequentar a escola (BUENO, 2001). Por outro lado, há de se registrar que a
melhora no acesso à rede escolar não foi proporcional à melhoria da qualidade do ensino, tema que merece ser pautado pelas políticas públicas.
Apesar de tal realidade, de a escola talvez não estar “preparada”
para os seus alunos, é uníssona a afirmação de que as crianças devem estar
em ambiente escolar, uma vez que esse é um direito constitucional (BRASIL, 1988). Entretanto, esse direito é de todas as crianças. Dados recentes
apontam que o índice de pessoas com deficiência representa 23,9% da
população do país (IBGE, 2010), demonstrando a parcela representativa
que, muitas vezes, não é percebida como portadora de tal direito.
A escola, como uma instituição social, não é imutável, sendo configurada dentro de um contexto sócio-histórico. Diante disso, a instituição escola também deve atualizar-se, sendo que as mudanças devem ser
pautadas no sentido do tipo de sociedade que se quer viver. E o sentido
seria uma sociedade segregadora, que amplia as desigualdades existentes, sem promover as potencialidades de cada indivíduo?
130
8 • QUEM MERECE O QUÊ? DISCUSSÕES EM TEMPOS DE INCLUSÃO
A mudança de paradigmas que esse movimento impõe leva à reflexão e à revisão de valores, principalmente pessoais. Além disso, caracteriza-se por um desafio, porque confronta e questiona o suposto sistema escolar homogêneo, com uma diversidade incomum, no momento
em que propõe que alunos com diferentes condições de aprendizagem
compartilhem o mesmo espaço educacional (BEYER, 2005).
Se a sociedade em que essas crianças com deficiência vivem é
a mesma de todas as outras pessoas, por que, no momento da aprendizagem escolar, elas precisam estar isoladas desse convívio? (BEYER,
2005). Furtá-las do contato com os demais impede que aprendam e desenvolvam habilidades sociais e cognitivas que são exigidas no próprio
convívio em sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente discussão, alicerçada sobre o caso da aluna Callie, expulsa da torcida organizada, prestou-se como pano de fundo para reflexões acerca da inclusão escolar. Tal discussão traz consigo o debate sobre a função da escola, que é de formação das novas gerações em termos
de acesso à cultura socialmente valorizada, assim como de formação do
cidadão e de constituição do sujeito social (BUENO, 2001).
Para a efetivação dessa função, é necessária uma mudança de paradigma, no qual a educação especial deixa de ser um espaço segregado
para ser uma área de conhecimento transversal a todas as modalidades de ensino (BRASIL, 2008). Conforme abordado, a questão não é a
de que o aluno com deficiência seja igual ao outros – quem é? –, mas
que suas potencialidades sejam plenamente estimuladas. O parâmetro
de desenvolvimento do aluno é ele mesmo. Essa ideia é bem ilustrada
por Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 462), ao expor que “temos o
direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o
direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza”.
As diferenças devem ser aceitas e respeitadas, mas não utilizadas como
subterfúgio para a manutenção e ampliação de desigualdades.
Aludindo ao título do texto, afinal, quem merece o quê? No que
tange ao direito da educação, a resposta deveria ser todos. A deficiência não é critério para o descumprimento desse direito constitucional
(BRASIL, 1988), reiterado por diversos documentos legais e acordos in131
Maúcha Sifuentes
ternacionais (BRASIL, 2008; ONU, 2006). De outro modo, considerando o princípio da equidade, sob o prisma do Direito, e pela relevância
para o desenvolvimento sociocognitivo, sob o prisma da Psicologia, a
pessoa com deficiência precisa ainda mais que seja oportunizada a experiência escolar.
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134
9
O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
Renato Selayaram1
Sumário: Introdução - 1. O bem comum: direito fundamental
do homem - 2. Justiça social? - Conclusão - Referências
Bibliográficas
INTRODUÇÃO
O presente artigo versa sobre o capítulo 10 do livro Justiça – O
que é fazer a coisa certa, da autoria de Michael Sandel, intitulado “A
justiça e o bem comum”, e busca a integração entre os cursos de Direito
e Psicologia através da realização de obra comum.
O candidato à presidência dos Estados Unidos, John Kennedy,
durante a campanha presidencial de 1960, perguntado sobre a influência que teria sua religião nas diretrizes públicas, era católico em um país
predominantemente protestante, caso fosse eleito, respondeu que
quaisquer que sejam as questões que se apresentem a mim como
presidente – controle de natalidade, divórcio, censura, jogo ou qualquer
outro, minha decisão será tomada [...] de acordo com o que minha
1 Professor do curso de Direito do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca).
Pós-graduado pela Academia de Direito Internacional de Haia, Holanda. Especialista em Ciência
Política e Mestre em Direito.
135
Renato Selayaram
consciência disser que é do interesse da nação, desconsiderando
pressões ou determinações religiosas externas.2
Ora, essa é uma preocupação que acompanha o homem há séculos, o exercente do poder governa para si, para os seus ou para todos.
Marco Túlio Cícero, orador, escritor e político romano, já ensinava que
o interesse particular de cada um deve estar subordinado ao interesse superior do conjunto. Sendo um dos maiores filósofos romanos de
todos os tempos, dizia que a causa da agregação entre os homens era
menos a sua debilidade do que o instinto de sociabilidade em todos inato, que a espécie humana não nasceu para o isolamento, mas com uma
disposição que a leva a procurar o apoio comum.3
A questão do poder é, por si só, atraente. De fato, estuda-se sua
definição desde que o homem começa a se socializar, porque se manifesta em relações de força (do latim fortis, sólido, enérgico), em que uma
das partes é capaz de controlar, vencer, subjugar, subordinar e se impor
às demais. Mas entre todos os poderes, é o político que requer mais
atenção, por ter o monopólio da força dentro da sociedade.
Desde os tempos antigos a ideia de poder político esteve vinculada ao bem comum. Platão projetou o Estado ideal em sua República. Na
obra platônica, a estrutura sociopolítica encontrou justificação na mais
alta aspiração de realizar a ideia do bem. Mal-entendidos possíveis ou
desacordos foram criticados com a proposta apresentada por um mito,
o da caverna, com o qual tentou mostrar que nem todos são capazes de
compreender as causas inteligíveis mostradas em sua teoria. Em essência, pensava que o Estado surge em resposta à necessidade de superar
as limitações individuais do homem, que não é capaz de satisfazer todas
as suas necessidades, e tem como objetivo alcançar o bem verdadeiro de
modo geral, abstrato e transcendente. Para isso, cada parte deve ajustarse ao todo, desenhado pelo filósofo para garantir o bem-estar coletivo.
Em semelhante tarefa a educação deve ser um baluarte, uma vez que é
necessário educar os cidadãos para que possam contemplar a ideia do
bem e entender a conveniência de viver em condições idealmente cria2 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria
Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 305.
3 CÍCERO, Marco Túlio. Da república. Tradução de Amador Cisneiros. 2. ed. São Paulo: Edipro,
2011. p. 30.
136
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
das. O ideal humano se materializa na pessoa do indivíduo, cidadão,
liberto de tarefas necessárias para sua sobrevivência e dedicando-se plenamente à práxis política.
Aristóteles continuou na direção apontada, muito embora sem
a pretensão utópica de seu mestre. Concebeu o Estado como o resultado de uma necessidade natural, a de viver em sociedade, e viu sua
finalidade como sendo o bem comum, que ele definiu como felicidade
e identificou com a vida virtuosa que é alcançada com a atividade contemplativa, modelo seguido de Platão.
Como o indivíduo é parte em relação ao todo, acreditou que, sendo possível o bem comum, seria possível atingir a felicidade e bem-estar
individuais. Isso explica a subordinação axiológica do bem individual
em relação ao bem comum que é visto em sua obra, em que este último se torna a característica definidora do bom governo. Os principais
meios para alcançar o objetivo são a educação, para os menores, e a
aplicação da lei (ou Constituição) para indivíduos adultos, uma vez que
estes constituem o princípio unificador da cidade. A justiça propicia o
bem comum, e é determinada pela Constituição, que é o que define os
padrões para diferenciar o certo do errado. A moralidade do indivíduo
está focada na justiça legal. Esses fatores levaram a considerar a filosofia
política de Aristóteles como a continuação e complementar a sua ética.4
Maquiavel continuou desenvolvendo a doutrina do bem comum,
mas, ao contrário de seus predecessores, com uma tendência à sua desmoralização. Em sua doutrina, a política adquire um status próprio e em
desacordo com a natureza humana, na qual predomina o vício, pois não
pode renunciar a essa imperfeição moral para poder alcançar seus objetivos. Por essa razão, justifica os meios imorais se com eles é possível
defender o bem comum, do que a independência política e a soberania
são elementos essenciais. A moral se expressa através do Direito Natural, o qual é imutável e eterno, enquanto aqueles que se ocupam da coisa
pública muitas vezes são obrigados a dela abrir mão para poder alcançar
os fins do Estado e preservar o bem comum.5
Ainda segundo Maquiavel, em todos esses casos, o “bem comum”,
o “interesse comum” ou a “utilidade pública” são qualitativamente dife4 PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e dialética em Aristóteles. São Paulo: Unesp, 2001. p. 234.
5 MACHIAVELLI, Nicoló. O príncipe: com comentários de Napoleão Bonaparte. Tradução de
Mônica Baña Alvares. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 84.
137
Renato Selayaram
rentes e superiores à soma dos bens particulares dos indivíduos que os
compõem, razão pela qual estes últimos devam subordinar-se, sendo
o Estado o garantidor dessa subordinação. Nesses sistemas teóricos, a
funcionalidade se vale do princípio da subordinação da parte ao todo,
do particular ao público, do interesse individual ao comum. Assim, um
Estado é considerado justo se faz corresponder sua política com uma
ordem considerada natural, seguindo certos princípios de inclusão e exclusão. Por natureza, dizia o florentino, existem homens livres e escravos, nacionais e estrangeiros, senhores e servos, sendo o bem-estar geral
dos primeiros o que é chamado para garantir o Estado. Os últimos são
excluídos e seu bem-estar fica sujeito à sorte, misericórdia ou caridade
daqueles que detém o poder.
A Idade contemporânea se move em outra direção. Agora, a referência não é mais só a comunidade, mas também a individualidade. As
teorias jusnaturalistas buscam erigir o Estado como fiador dos interesses individuais. Esse é o significado essencial e finalidade fundamental
da enunciação da chamada primeira geração de direitos humanos, os
direitos civis e políticos: o direito à liberdade, à vida, à saúde, à propriedade. Busca-se garantir esses direitos organizando racionalmente a
sociedade através de um contrato social, porque se lhes reconhece ao
homem por sua natureza, respaldando-os com uma estrutura política
democrática, baseada na divisão dos poderes. Em resumo, esses direitos
existem desde antes do contrato, daí a necessidade de regulamentar a
aplicação da lei positiva e garanti-la com as facilidades oferecidas pelo
Estado de Direito. Herbert Spencer afirma que a vida da sociedade “depende da manutenção dos direitos individuais”.6
Desde seus primeiros trabalhos, Marx e Engels buscaram revelar
a razão para o fracasso de todas as tentativas de resolver a contradição
entre os interesses individuais e gerais ou sociais. Segundo os autores,
as teorias que os precederam abordaram o estudo da sociedade e do
Estado em abstrato, sem perceber a natureza da luta de classes existente.
Assim, entenderam que o que foi proclamado como interesse geral não
era mais que o interesse comum da classe que dominava econômica e
politicamente a sociedade.7
6 SPENCER, Herbert. El hombre contra el estado. Tradução de por Tamara Clemente Cano.
Madrid: Unión Editorial, 2012. p. 160.
7 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 398.
138
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
Durante os primeiros anos de construção do socialismo, na antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, foi instaurada uma linha
reducionista no que diz respeito ao poder, o qual passou a ser concebido
em uma dimensão puramente repressiva e jurídica. Continuou vigendo a concepção do monopólio da violência, agora apoiado no Direito,
definido conforme expressão utilizada por Marx e Engels no Manifesto
Comunista, como sendo a vontade da classe dominante alçada em lei.8
Do ponto de vista marxista, o Estado é visto como um órgão de
dominação de classe, o meio de que se vale a classe economicamente
dominante para manter um estado de coisas que atenda seus interesses.
Mas, tenhamos presente que
em um mundo cada vez mais complexo e incerto, o Estado permanece
um quadro privilegiado de formação de identidades coletivas e um
dispositivo fundamental de integração social: cabe a ele recriar sem
cessar o liame social sempre em via de romper-se, encarnando os valores
comuns ao conjunto dos cidadãos, arbitrando os conflitos de interesses,
assumindo a tarefa da gestão dos riscos, gerindo os serviços coletivos.9
Conforme Sandel, se uma sociedade justa requer um forte sentimento de comunidade, ela precisa encontrar uma forma de incutir
nos cidadãos uma preocupação com o todo, uma dedicação ao bem comum.10
1. O bem comum: direito fundamental do homem
Concebido por autores como Tomás de Aquino, que continuava
a tradição aristotélica, como o objetivo da comunidade política, o conceito de bem comum sofre hoje um descaso sistemático, padecendo de
um ostracismo.
8 A citação diz, textualmente: “Vosso direito não é mais do que a vontade de vossa classe
transformada em lei, uma vontade cujo conteúdo é representado pelas condições materiais de
existência de vossa classe”. MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret,
2006, pág. 34.
9 CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte:
Fórum, 2009. p. 61.
10 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria
Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 325.
139
Renato Selayaram
A justiça e o bem comum são os dois critérios orientadores da
ação moral da pessoa, como Bento XVI disse-nos no número 6 da Encíclica Caritas in Veritate.11 Primeiro fala da justiça, ao lembrar que onde
há sociedade há o Direito -ubi societas, ibi ius, em que cada sociedade
elabora o seu próprio sistema de justiça, disse o Papa emérito.
É claro que estamos diante de uma visão religiosa, eis que o Pontífice afirma que a caridade está além da justiça, porque enquanto esta
se traduz por dar a cada um o que é seu, a caridade significa dar o que
é seu a outrem.
Assim, modernamente estão sendo utilizados conceitos equivocados como interesse geral ou bem-estar geral, os quais se referem a
condições materiais, ignorando questões da vida pessoal e espirituais,
aspectos relevantes estabelecidos por Platão e Aristóteles, quando se referem à justiça.
No discurso ético e político atual o bem comum é, constantemente, um conceito retórico, definido de diferentes maneiras. Na tradição
clássica, a noção de bem comum relaciona o bem das pessoas como
parte de uma comunidade, orientada esta para as pessoas que a conformam. Para Aristóteles, a formação de uma comunidade requer um
bem comum, pois a finalidade da cidade é o bem viver. Deve-se supor,
portanto, que a comunidade política tem por objeto as boas ações e não
apenas a vida em comum. Assim, o bem comum é constituído principalmente pela virtude, isto é, por aquilo que desenvolve de maneira
positiva ao ser humano ​​de acordo com sua natureza.
Tomás de Aquino deu um novo impulso à teoria aristotélica. O
bem comum adquire significado no governo, eis que no seu dizer “governar consiste em conduzir aquele que é governado ao seu devido fim.
Por esta razão, o fim da comunidade não pode ser diferente do bem
humano. Para a teoria tomista o fim do homem está em contemplar o
mais alto dos bens: Deus.”12
Com a modernidade, o conceito de bem comum individualizouse da tradição aristotélico-tomista, aparecendo uma gama de posições,
11 Carta Encíclica Caritas in Veritate, do Sumo Pontífice Bento XVI, sobre o desenvolvimento
humano integral. Disponível em: <http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/
documents/hf_benxvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>. Acesso em: 17/6/2014.
12 AQUINO, Santo Tomas de. La Monarquia. Trad. por Ángel Chueca. 4a. ed. Madrid: Tecnos,
2007, pág. 69.
140
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
entre o liberalismo de base individualista (o bem da sociedade cedendo
lugar ao bem pessoal) e os coletivismos (para quem a sociedade é uma
entidade própria, distinta e superior aos cidadãos).
Assim, a história das comunidades políticas – inclusive a que conhecemos como Estado – é mais ou menos a história do aumento do
número e executivos. A mudança notável foi a que levou do governo indireto dos senhores feudais ao governo direto exercido por funcionários
assalariados em nome do rei.13
Na segunda metade do século XX, a doutrina social da Igreja católica desenvolveu sua concepção de bem comum. O Concílio Vaticano
II afirmou que a pessoa é o sujeito, a raiz, o princípio e o fim de toda a
vida social e de todas as instituições sociais.
O bem comum determina para o indivíduo a existência de um
dever, que podemos definir como sendo o de participar com suas ações
e seus meios em prol da sociedade. Em função deste dever, os homens
se tornam responsáveis pela concretude de tais objetivos, e têm, como
contrapartida, o direito de participar das vantagens da empresa comum,
para a qual coopera não por exigência da justiça positiva, senão da justiça natural.
A consecução dessa finalidade exige a renúncia da liberdade individual de cada um e ao exercício da própria força ou poder particular,
que exista uma só pessoa ou grupo de pessoas que detenha o poder e o
exerça significa que os demais reduziram suas vontades a uma só vontade. Isso quer dizer que escolher, através de eleição, a um homem ou
assembleia de homens que represente aos demais, estes devem reconhecer a si mesmos como autores de qualquer coisa que seja feita ou decisão
que seja tomada. Isso é algo mais que consentimento ou concórdia, é
uma unidade real de todas as vontades, instituída por pacto de cada
homem com os demais.14
O bem comum, portanto, é o conjunto de condições sociais que
permitem e favorecem, nos seres humanos, o desenvolvimento integral
de todos e de cada um dos membros da comunidade. Dinamiza o desenvolvimento de uma ordem social justa que harmonize os aspectos
13 VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do estado. Tradução de Jussara Simões. São Paulo:
Martins Fontes, 2014. p. 180.
14 PANIAGUA, José Maria Rodriguez. História del pensamiento jurídico. 6. ed. ampl. Madrid:
Universidad Complutense, Facultad de Derecho, Ssección de Publicaciones, 1988. p. 114.
141
Renato Selayaram
individuais e sociais da vida humana, sendo, assim, responsabilidade
de todos.
2. Justiça social?
Uma das ideias mais difundidas, a partir do Renascimento, é a
conceituação do ser humano como um ser racional, ou seja, como um
ser que pensa em si mesmo, tem consciência de sua existência, que, ao
pensar no individual, também pensa no social. Essa concepção de ser
humano, histórica e cultural, reflete-se claramente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nela, a existência humana é definida pela razão e consciência e, a partir desses atributos, o indivíduo
é considerado livre e igual: “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos, dotados de razão e consciência e devem
agir fraternalmente em relação uns aos outros”.15
Em sentido geral, o termo justiça social se refere a situações de
desigualdade social, busca definir o equilíbrio entre partes desiguais por
meio da criação de proteções em favor dos mais débeis.
O primeiro a usar o termo na sua atual acepção foi o filósofo jesuíta italiano Luigi Taparelli D’Azeglio. Em seu trabalho, o sacerdote
Taparelli diz que a justiça social deve tornar, efetivamente, todos os homens iguais em tudo quanto se refere aos direitos da humanidade, como
o Criador os fez perfeitamente iguais na sua natureza.16
A vida será considerada o maior bem, a condição necessária para
o exercício da liberdade, seguida da segurança (jurídica e pública), indispensável para a preservação da vida, tida como a razão de ser da comunidade política. Quando um Estado é incapaz de garantir a vida e
a propriedade de seus cidadãos, perde sua razão de ser.17 Inobstante, a
liberdade ocupa um lugar privilegiado, pois é ela que permite conceitualizar o ser humano como um ser racional e que, com maior claridade, remete aos processos históricos que gestam aos direitos humanos.
15 Artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela
resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948.
16 MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo: Ibrasa, 1995. p. 84.
17 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos. Tradução de Magda Lopes
e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes, 2001. p. 108.
142
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
Entretanto, ao reconhecer ao homem a liberdade de consciência,
dotado de razão, direitos e igualdade, tornou-o, também, capaz de reconhecer diferenças, aquelas existentes entre ele e seu semelhante, levando-o a exigir a igualdade de tratamento.
Por trás da diversidade de tipos de justiça (comutativa, distributiva, legal e social) está a unidade de conteúdo: o reconhecimento do
outro, precisamente no seu ser. A justiça é a ordem em que o homem
pode existir como pessoa, e este fato deve ser efetivamente possível, não
só para uma ou outra pessoa, não apenas para os poderosos, os que se
sintam felizes, mas para todos os homens pelo simples fato de serem homens. O conteúdo de justiça social pode ser observado na perspectiva
dos direitos humanos, do bem comum, do desenvolvimento.
A justiça social é a justiça na medida em que tende a garantir o
respeito e a promoção dos direitos humanos para todos, especialmente
aos mais desfavorecidos, registrando esses direitos nas estruturas e no
funcionamento da sociedade. A justiça social manifesta-se a partir da
dignidade da pessoa, dos direitos invioláveis ​​que devem ser respeitados
e promovidos de forma dinâmica e progressiva.
A justiça social transcende o interesse individual e se ocupa do
interesse geral, o bem comum. Não se encerra dentro das fronteiras
nacionais, senão que regula as mútuas relações entre os Estados, obrigando os países economicamente fortes a assistir aqueles que vivem na
pobreza ou miséria. Em tais ações também se engajam as Organizações
Internacionais, dentre elas a Organização das Nações Unidas (ONU) e a
Organização Internacional do Trabalho (OIT).18
Não devemos esquecer que o acesso à justiça deve ser facilitado pelo Estado ao cidadão, como forma de possibilitar a busca pelo direito ferido e do exercício da cidadania. A Constituição Federal prevê,
preambularmente, que foi instituída com a finalidade de assegurar “[...]
a igualdade e a justiça como valores supremos”,19 e, no art. 3, I, dentre
18 A OIT adotou, em 10 de junho de 2008, a Declaração sobre a Justiça Social para uma
Globalização Equitativa. Texto completo disponível em: <http://www.oit.org.br/sites/default/files/
topic/oit/doc/declaracao_oit_globalizacao_129.pdf>. Acesso em: 16/04/2014.
19 Textualmente: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional
Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, [...]”.
143
Renato Selayaram
os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, construir
uma sociedade livre, justa e solidária.
A Assembleia Geral das Nações Unidas reconheceu que o desenvolvimento social e a justiça social são indispensáveis para a realização e
manutenção da paz e segurança entre as nações e que, por outro lado, o
desenvolvimento social e a justiça social não podem ser alcançados sem
haver paz e segurança ou se não houver respeito aos direitos humanos e
liberdades fundamentais.
Em 26 de novembro de 2007, a ONU proclamou o dia 20 de fevereiro de cada ano como o Dia Mundial da Justiça Social. A finalidade dessa celebração é apoiar o trabalho da comunidade internacional na busca
pela erradicação da pobreza e promoção do pleno emprego e trabalho
digno, igualdade entre os sexos e acesso ao bem-estar social para todos.
CONCLUSÃO
Como modo de conclusão, posso dizer que o livro de Michael
Sandel cumpre, desde logo, com um de seus objetivos, inquietar a mente
do leitor. Escolhi refletir sobre o último capítulo, a justiça e o bem comum, por provocação, isto é, pela axiologia de tais conceitos.
Muito embora não tenha sido possível esgotar as possibilidades
de interpretação sobre seus significados, espero que o passeio pelos autores referidos não tenha fraudado os leitores, ao menos esta foi a minha
experiência.
O estilo de M. Sandel é excelente, o que o converte em um livro
ameno apesar de ser extenso. Dá a impressão de não ser uma obra para
todo tipo de público, já que se trata de um livro de Filosofia Política, que
requer inquietudes prévias, mas é recomendável, especialmente, para
os estudantes de Direito ou Ciência Política, ciências sociais em geral, e
pode ajudar-nos a revisar e entender os fundamentos de liberdade.
Claro está que devemos reconhecer que vivemos em um sistema
agravado pelas condições de vida dos mais desfavorecidos, em que existe desemprego, pobreza, em algumas situações quase indigência, desrespeito aos direitos humanos, falta de transparência na administração do
Estado e corrupção.
Não é possível falar em prosperidade onde há fome, violência e
desesperança por parte dos cidadãos. Tais situações agravam a desigual144
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
dade. Àqueles devem ser disponibilizados os instrumentos e mecanismos que possibilitem diminuir as diferenças, para que os direitos previstos na Constituição Cidadã não sejam considerados direitos de papel.
Não podemos permitir que a sociedade seja fragmentada, que a
unidade nacional se fragilize, que se formem grupos em torno de ideais
contrários à solidariedade, ao bem comum, à caridade.
O ser humano é o fundamento do bem comum, razão de ser da
comunidade política. De tal afirmação deriva a dimensão ética da política, eis que anima a busca pelo que é verdadeiro, impulsiona a participação solidária. O outro não é um adversário, senão semelhante, com o
qual temos mais em comum do que diferenças.
A participação cidadã deve ser real e não teórica, possibilitando a
inclusão social e permitindo uma verdadeira justiça social. Isso ocorrerá
se houver participação da cidadania nos poderes do Estado, votando
e fiscalizando; na cultura política, sendo repassados aos indivíduos os
valores da atividade política.
As reflexões anteriores nos direcionam a uma justiça verdadeira,
em função do que assinalamos que a finalidade de um bom governo, o
bem comum, é menos uma sociedade igualitária e mais uma sociedade
justa. A condição para que uma sociedade sobreviva é que a autoridade
que a governe não se ocupe apenas em indicar direitos, senão proporcionar a adequada distribuição de justiça, que atenda a todos e a cada
um dos membros da comunidade, constituindo, por essa razão, o fundamento da legitimidade do exercício do poder político.
Conforme Sandel, existe um importante motivo de preocupação
com a desigualdade: um fosso muito grande entre ricos e pobres enfraquece a solidariedade que a cidadania democrática requer. Eis como:
quando a desigualdade cresce, ricos e pobres levam vidas cada vez mais
distintas, surgindo então dois efeitos negativos, um fiscal e outro cívico.
Primeiramente, deterioram-se os serviços públicos, porque aqueles
que não mais precisam deles não tem tanto interesse em apoiá-los com
seus impostos. Em segundo lugar, instituições púbicas como escolas,
parques, pátios recreativos e centros comunitários deixam de ser locais
onde cidadãos de diferentes classes sociais se encontram. Portanto, a
desigualdade corrói a virtude cívica.20
20 SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de Heloisa Matias e Maria
145
Renato Selayaram
Nomocracia significa o governo das normas. Em um regime puramente nomocrático, a única função do Executivo consistiria em velar
pela observação, por parte dos particulares, das normas elaboradas pelo
Poder Legislativo.
Se um sistema como esse pudesse existir em seu estado puro, possibilidade que a experiência desmente, não comportaria um governo
propriamente dito, mas simplesmente um grupo encarregado da execução das leis, que velaria pela conformidade das condutas individuais
com as prescrições legais.21
Como dissemos, essa sociedade não existe. Se fosse materializada, a administração seria uma simples executora das instruções expedidas pelo legislador, e a sua tarefa seria tanto mais fácil quanto mais a
lei estivesse internalizada na consciência dos cidadãos. Tal raciocínio
permitiria reconhecer a desnecessidade de supervisão/controle por parte do Estado.
O que queremos dizer é que o Estado não deve ser neutro, inativo, mas, ao contrário, se a ele foi atribuído o exercício do poder, que
distribua a justiça, que busque a justiça social, que procure, ao menos,
realizar o bem comum.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sobre o desenvolvimento humano integral. Disponível em: <http://
www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/
hf_benxvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html>. Acesso em:
17/6/2014.
CÍCERO, Marco Túlio. Da república. Tradução de Amador Cisneiros. 2.
ed. São Paulo: Edipro, 2011.
CHEVALLIER, Jacques. O estado pós-moderno. Tradução de Marçal
Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2009.
Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 328.
21 JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história das ideias políticas no
século XIX. Tradução de Mamede de Souza Freitas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 321.
146
9 • O PODER, O BEM COMUM E A JUSTIÇA
JOUVENEL, Bertrand de. As origens do estado moderno: uma história
das ideias políticas no século XIX. Tradução de Mamede de Souza
Freitas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos.
Tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis: Vozes,
2001.
MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e justiça social. São Paulo:
Ibrasa, 1995.
MACHIAVELLI, Nicoló. O príncipe: com comentários de Napoleão
Bonaparte. Tradução de Mônica Baña Alvares. Rio de Janeiro: Elsevier,
2003.
MARX, Karl. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Martin Claret,
2006.
__________; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2007.
PANIAGUA, José Maria Rodriguez. História del pensamiento jurídico.
6. edición ampliada. Madrid: Universidad Complutense, Facultad de
Derecho, Sección de Publicaciones, 1988.
PEREIRA, Oswaldo Porchat. Ciência e dialética em Aristóteles. São
Paulo: Unesp, 2001.
SANDEL, Michael. Justiça – O que é fazer a coisa certa. Tradução de
Heloisa Matias e Maria Alice Máximo. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2013.
SPENCER, Herbert. El hombre contra el estado. Tradução de Tamara
Clemente Cano. Madrid: Unión Editorial, 2012.
VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do estado. Tradução de
Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
147
10
DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA
PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM
FAMILIAR SISTÊMICA
Aline da Silva Piason1
- Débora Silva de Oliveira2
- Márcia Elisabete Wilk Franco3
Sumário Introdução - 1. Individualismo moral e identidade
coletiva: como pensar esse dilema? - 2. Família: os laços afetivos
interferem em nossas escolhas? - 3. Discussão de casos à luz da
abordagem sistêmica e da Psicologia Social - Considerações
Finais - Referências Bibliográficas
1 Psicóloga, Especialista Clínica em Psicoterapia Centrada na Pessoa (Delphos). Mestre e Doutora
em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).
2 Psicóloga. Especialista em Terapia de Família e de Casal no Instituto da Família de Porto
Alegre (Infapa) e em Psicologia Jurídica da Fundação Escola Superior do Ministério Público
(FMP). Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do
rio Grande do Sul (UFRGS). Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS
(Cesuca – Faculdade Inedi).
3 Psicóloga, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),
Docente do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca – Faculdade Inedi).
149
Aline da Silva Piason - Débora Silva de Oliveira - Márcia Elisabete Wilk Franco
INTRODUÇÃO
A complexidade na relação entre indivíduo e sociedade, na relação intersubjetiva, no encontro, no olhar, no descobrir o outro como
sujeito é, sem dúvida, um momento marcado pela incerteza. Esse encontro entre o eu e o outro transpõe um viver pessoal e social. Quando
nos deparamos com a pergunta “O que devemos uns aos outros?”, vemos que não é nada simples de responder. Para Elias (1994), essa relação que fazemos de nós e das outras pessoas é o que nos possibilita nos
comunicarmos se não de forma eficaz, mas pelo menos dentro de nossa
sociedade. Berger e Luckmann (2005, p. 75) salientam que “O Homo
sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius”.
A sociedade em constante mutação exige a reflexão da prática
profissional e uma adequada visão humanística e crítica, técnico-jurídica e prática, capaz de compreender o fenômeno jurídico de forma interdisciplinar. Ao longo da história, o Direito tem incorporado
a colaboração de outras ciências no exercício da prática profissional e
na busca da compreensão dos fenômenos sociais. Dentre as diferentes
ciências, as práticas psicológicas no campo da justiça têm se constituído
uma área de interlocução produtiva, contribuindo para a produção de
subjetividades e um aprimoramento da prática profissional. Assim, surge da necessidade de ampliar e dar continuidade às discussões relativas
à interface entre as ciências humanas, na medida em que se propõe a
debater temas atuais da Psicologia relacionados ao âmbito do Direito.
Nesse sentido, impulsionados pelo diálogo entre o Direito e a Psicologia, o objetivo deste artigo é de discutir, a partir da Psicologia Social e
da abordagem familiar sistêmica, os dilemas de lealdade: o que devemos
uns aos outros?
No livro Justiça – O que é fazer a coisa certa, o autor Michael J.
Sandel apresenta reflexões a respeito de questões polêmicas e contemporâneas que envolvem uma série de desculpas públicas proclamadas
por grandes chefes de Estado a respeito de importantes injustiças históricas. Em realidade, nossas vidas são permeadas por dilemas sobre
questões morais. A vida privada, a vida familiar, que, cotidianamente,
aparece em consultórios de Psicologia, também é atravessada por dilemas como esses.
Os grandes dilemas, muitas vezes, ficam sem uma possível solução,
pois o ser humano tem uma necessidade de objetividade, ou seja, busca a
150
10 • DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA
explicação determinada pela razão. Nesse momento, em que precisamos
resolver grandes conflitos, podemos correr o risco de buscar explicações
ou respostas a partir de uma visão dicotômica de indivíduo e de sociedade. Elias (1994, p. 80), a partir da perspectiva sociológica, destaca que
O que se pode ver, realmente, são pessoas singulares. As sociedades
não são visíveis. Não podem ser percebidas pelos sentidos. [...] No fim,
tudo o que se pode afirmar sobre as formações sociais baseia-se em
observações de pessoas isoladas e de seus enunciados ou produções.
Dentro dessa mesma perspectiva teórica, Berger e Luckmann
(2005) enfatizam que o conhecimento possui uma relação dialética com
o social. É produzido por ele e, ao mesmo tempo, contribui na transformação social. Assim, também os papéis e as instituições mantêm
uma relação em que um não se estrutura sem o outro. As instituições
incorporam-se à experiência do indivíduo por meio dos papéis, como
dizem os autores: “Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um
mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mundo torna-se
subjetivamente real para ele” (BERGER; LUCKMANN, 2005, p. 103).
É na sedimentação dessa relação intersubjetiva que podemos ver que as
objetivações das experiências foram e estão sendo transmitidas de uma
geração para a outra.
Para esses pensadores, viver, estar em sociedade, significa participar dialeticamente dessa. Vejamos como eles apresentam essa ideia:
Conforme tivemos a ocasião de dizer, estes aspectos recebem correto
reconhecimento se a sociedade for entendida em termos de um processo
dialético em curso, composto de três momentos, exteriorização,
objetivação e interiorização. No que diz respeito ao fenômeno social,
estes momentos não devem ser pensados como ocorrendo em uma
sequência temporal. Ao contrário, a sociedade e cada uma de suas
partes são simultaneamente caracterizadas por estes três momentos, de
tal modo que qualquer análise que considere apenas um ou dois deles é
insuficiente. O mesmo é verdade com relação a um membro individual
da sociedade, o qual simultaneamente exterioriza seu próprio ser
no mundo social e interioriza este último como realidade objetiva
(BERGER; LUCKMANN, 2005, p. 173).
Para Elias, falar dessa relação indivíduo, pessoa no singular e em
sociedade, pluralidade de pessoas, não é nada claro em nossos dias. Para
151
Aline da Silva Piason - Débora Silva de Oliveira - Márcia Elisabete Wilk Franco
esse autor, a maneira como concebemos e conceituamos indivíduo e sociedade nos faz acreditar que “o ser humano singular, rotulado de indivíduo, e a pluralidade das pessoas, concebida como sociedade, pareçam
ser duas entidades ontologicamente diferentes” (ELIAS, 1994, p. 7). Ele
discute essa ideia compreendendo que indivíduo e sociedade não devem ser vistos como opostos, libertando o pensamento dessas amarras
tradicionais. Para ele, o problema da relação entre indivíduo e sociedade
é bastante complexo, visto que essa relação não está paralisada, mas em
constante mutação. Essas mudanças refletem “até na maneira como as
diferentes pessoas que formam essas sociedades entendem a si mesmas:
em suma, a autoimagem e a composição social – aquilo a que chamo o
habitus – dos indivíduos” (ELIAS, 1994, p. 9).
Para Berger e Luckmann (2005), o ser humano interpreta a realidade da vida cotidiana através da subjetividade, dando um sentido na
medida em que vai formando um mundo coerente. Como ser coerente?
Como fazer a coisa certa? Quem merece o quê? O que devemos uns aos
outros? Como viver com os dilemas de lealdade hoje? Esses são alguns
dos temas que Michael J. Sandel tem desenvolvido no seu livro Justiça.
Os autores do pensamento sociológico destacam a importância
da linguagem para que possamos compreender os simbolismos e os significados dessa comunicação no processo de socialização. Para Berger
e Luckmann (2005, p. 39), “[...] a linguagem marca as coordenadas de
minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação”. Esses também enfatizam que não podemos de fato existir na vida
cotidiana se não estivermos constantemente em interação e comunicação com os outros.
Cambi (1999) coloca que, com o alvorecer da modernidade, “todo
o universo da educação veio a mudar, nos fins e nos meios, muda o ensino, e muda a atitude da família em relação à criança, muda a imagem
do homem que é formado por esse processo educativo” (p. 241). Temos
bem claro que as mudanças continuam sendo muito mais rápidas e as
formas de se comunicar foi o que mais mudou. Estamos conectados o
tempo todo, e em quase tudo. As redes sociais que se implantaram como
uma das mais novas formas de se relacionar possibilitam vários tipos de
trocas e nos insere neste contexto. Que contexto é este? O que determina nossos interesses? Estamos vivendo em um mundo dominado pelo
152
10 • DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA
poder econômico. Este suplantou o poder político e a cultura. Como
conciliar tudo isso?
Será que o ser humano não pode intervir de forma livre e criativa
em sua ação?
Essas posições teóricas do pensamento sociológico consideram o
homem mero ser social, entendendo que a personalidade é um produto
social. O ambiente é visto como o centro, o condicionante e modelador
do ser humano. Para Bleger (1984), o conjunto das relações sociais é o
que define o ser humano em sua personalidade. Para ele, o meio ambiente é um ambiente social, do qual provêm os estímulos fundamentais
para a organização de suas qualidades psicológicas.
Já na perspectiva de Bronfenbrenner (1994), por exemplo, a
concepção de indivíduo é pensada a partir do modelo ecológico. Esse
modelo estuda o desenvolvimento humano associado às estabilidades
e às mudanças que ocorrem nas características biopsicológicas do indivíduo durante o seu curso de vida e ao longo de gerações (POLÔNIA;
DESSEN; PEREIRA-SILVA, 2005). É através desse interjogo entre os aspectos biológicos, psicológicos e ambientais que se conhece a maneira
como o indivíduo pensa e age. Assim, ainda que o indivíduo faça parte
de uma mesma família, tende a ser mais diferente do que parecido, visto
que as influências e os acontecimentos em que estão inseridos não são
compartilhados e vivenciados da mesma maneira.
Dessa forma, para compreender a complexidade da personalidade
de um indivíduo, é preciso não só conhecer a sua interação em diferentes
contextos, histórico, social e cultural, mas também requer uma discussão
a partir de sua vivencia familiar. Para aprofundarmos o tema escolhido:
O que devemos uns aos outros? Dilemas de lealdade, vamos refletir
inicialmente sobre alguns conceitos como individualismo moral de John
Locke e Immanuel Kant, o que é moral, o que se entende por liberdade.
Em seguida, vamos apresentar conceitos que nos permitem entender a
estrutura familiar e os sistemas nos quais ela está inserida.
1. Individualismo moral e identidade coletiva: como
pensar esse dilema?
A doutrina do individualismo moral, segundo Sandel (2013), caracteriza-se por uma declaração sobre o que significa ser livre. Nessa
153
Aline da Silva Piason - Débora Silva de Oliveira - Márcia Elisabete Wilk Franco
concepção, ser livre é submeter-se apenas às obrigações assumidas voluntariamente. O que devemos a alguém implica algum ato de consentimento, ou seja, uma escolha, uma promessa ou um acordo tácito ou
explícito que se tenha feito. Assim, a nossa responsabilidade se limitaria
àquela que deliberadamente assumimos. Trata-se, à primeira vista, de
uma concepção libertadora. Nesse sentido, as únicas obrigações morais
a que devemos obedecer são aquelas originadas da livre escolha de cada
indivíduo, e não às que se referem a um hábito, a uma tradição ou a uma
condição que herdamos.
O conceito de liberdade, no princípio do individualismo moral,
deixa pouca margem para a responsabilidade coletiva ou para a reparação dos efeitos, que se referem às consequências morais das injustiças históricas perpetradas por nossos predecessores. Tais reflexões dão
margem aos pensamentos de que não teríamos obrigações originadas de
uma identidade coletiva que foram perpetuadas através de gerações. O
individualista moral, portanto, não concebe a responsabilidade de reparar os pecados de seus predecessores, pois considera que os pecados não
foram consentidos por ele e, assim, não possui tais responsabilidades.
Segundo reflexões de Sandel (2013), o tema sobre justiça e as nossas responsabilidades é polêmico, e em seu debate refere que a questão
envolve mais do que a pergunta abstrata sobre como devemos raciocinar a respeito da justiça? O que é prioridade quando nos questionamos o que é certo? O que é bom? Em última análise, isto se trata de um
debate sobre o significado da liberdade humana.
Sobre a liberdade, o autor refere que as principais expressões do
individualismo moral são John Locke e Immanuel Kant. Para Locke,
“todos somos, por natureza, livres, iguais e independentes, ninguém
pode ser excluído dessa situação e submetido ao poder político de outros sem que tenha dado o seu consentimento” (citado por SANDEL,
2013, p. 265). Um século mais tarde, Kant apresentava sua versão: “Ser
livre é ser autônomo, e ser autônomo é ser governado por uma lei que
outorgamos a nós mesmos” (citado por SANDEL, 2013 p. 265).
No entanto, a concepção de liberdade não é neutra. Tem questões
atraentes em suas explicações, mas também possui seus pontos fracos.
Podemos refletir, como apresenta Sandel (2013 p. 272), que:
Se nos considerarmos seres livres e independentes, sem as amarras
morais e valores que não escolhemos, não terão para nós as muitas
154
10 • DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA
obrigações morais e políticas que moralmente aceitamos e até mesmo
valorizamos. Incluem-se aí as obrigações de solidariedade e lealdade, de
memória histórica e crenças religiosas – reivindicações morais oriundas
das comunidades e tradições que constroem nossa identidade. A não
ser que nos vejamos como pessoas com um legado, sujeitas a ditames
morais que não escolhemos, por nós, será difícil entender os aspectos
de nossa experiência moral e política.
Assim, nos deparamos com os dilemas: Será que realmente somos livres para escolher? Será viável nos valermos do princípio de ideal
de “eu” desimpedido e livre para realizar as nossas escolhas?
Segundo MacIntyre (1981, citado por SANDEL, 2013), os seres
humanos são seres que contam histórias, portanto, vivemos nossas vidas como uma jornada narrativa. Nossas histórias, contudo, fazem parte
de uma história maior da humanidade. Para responder a pergunta “O
que devo fazer?”, devo ter em mente a resposta “De que história ou histórias faço parte?”. Isso reflete que a deliberação moral, que interfere
em minhas escolhas, resulta da interpretação da história da minha vida,
e não do exercício de minha vontade. MacIntyre admite, assim, que a
narrativa de nossas decisões morais estaria em conflito com o individualismo moderno. Na visão narrativa, o “eu” não pode ser dissociado
dos papéis e status sociais e históricos, como observamos na seguinte
reflexão (MACINTYRE, citado por SANDEL, 2013, p. 274):
Todos abordamos nossas circunstâncias como portadores de uma
determinada identidade social. Sou filho ou filha de alguém, primo ou
tio de alguém; sou cidadão dessa ou daquela cidade, membro de uma
agremiação ou parte de uma categoria profissional; pertenço a esse clã,
aquela tribo, a determinada nação. Portanto, o que foi bom para mim
deve ser bom para alguém que pertence a essa classe. Como tal, herdei da
minha família, da minha cidade, minha tribo, minha nação uma série de
deveres, tradições, expectativas e obrigações legítimas. Essas condições
constituem o que me foi dado na vida, meu ponto de partida moral. Isto
é em parte, o que confere à minha vida sua especificidade moral.
A partir das reflexões advindas da concepção narrativa do indivíduo de MacIntyre, viver a vida significa representar um papel em uma
jornada narrativa que aspira a certa unidade ou coerência (SANDEL,
2013). Quando me vejo diante de vários caminhos a seguir e tenho que
155
Aline da Silva Piason - Débora Silva de Oliveira - Márcia Elisabete Wilk Franco
escolher um deles, devo descobrir qual dará mais sentido à minha vida
como um todo e a tudo que é importante para mim.
Realmente, na vida não é fácil ter claro o que é meu de fato, pois
os outros influenciaram nos meus desejos, vontades e escolhas. Não podemos analisar essa relação de direitos das pessoas, ou o que é do indivíduo e o que é da sociedade, sem olharmos para as relações e práticas
de uma época. Somos e estamos inseridos em um contexto histórico e,
por isso, dependemos de múltiplas relações e práticas estabelecidas em
cada cultura.
Olhar para o conhecimento produzido ao longo da história, buscando compreender o mundo, é olhar sempre de novo e como novo,
dessa forma aceitando nossos limites epistemológicos. Como nos diz
Santos (2001, p. 55): “A ciência moderna produz conhecimento e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado, faz do
cidadão comum um ignorante generalizado”.
As ideias desenvolvidas até agora nos ajudam a fundamentar teorizações que nos auxiliam a escapar de algumas das armadilhas dessa dicotomização entre indivíduo e sociedade. Sem dúvida, o olhar dialético
é determinante para que possamos entender essa relação de forma inteira, ampla e dinâmica. Para alguns, o homem é biologicamente levado
a viver e a construir um mundo com os outros. Quando pensamos em
outros podemos pensar na família, ou seja, que a família é um sistema
que opera dentro de contextos sociais, que serão determinantes nas convicções de regras e valores, que passarão a influenciar significativamente
os membros pertencentes dessa estrutura.
Tal visão nos remete às questões, já mencionadas, referentes às
obrigações de solidariedade ou de vida em sociedade. Nos aspectos familiares, tais referências, geralmente, possuem um peso importante nas
decisões da vida cotidiana. É sobre a complexidade desse sistema familiar que falaremos agora.
2. Família: os laços afetivos interferem em nossas
escolhas?
Do ponto de vista da concepção narrativa do indivíduo de MacIntyre (citado por SANDEL, 2013), os deveres de lealdade e de responsabilidade são contingências que devemos levar em consideração quan156
10 • DILEMAS DE LEALDADE: UM OLHAR DA PSICOLOGIA SOCIAL E DA ABORDAGEM FAMILIAR SISTÊMICA
do deliberamos sobre moral e justiça, pois fazem parte do que somos e,
portanto, são parte de nossas responsabilidades morais. Esses aspectos
identificatórios possuem como alicerce a força moral, a qual consiste,
em certa medida, no fato de concebermos os indivíduos, únicos – como
membros de uma família, ou nação, ou povo, como parte de sua história, como cidadãos de uma república.
Nesse mesmo sentido, a perspectiva boweniana da Terapia Familiar Sistêmica vem ao encontro dessa concepção narrativa de indivíduo.
Para essa perspectiva teórica, só podemos entender a narrativa da vida
de um indivíduo se pudermos ver de que história esse fez parte. A sua
história de vida e a sua história de vida familiar revelarão suas concepções, reflexões, pensamentos e ações.
Nas sociedades ocidentais, a família oferece a base, a matriz de
nossa identidade (MINUCHIN, 1990). É na família que as regras sociais são moldadas e adequadas às experiências individuais que cada
membro vivencia. Ao mesmo tempo em que a família é considerada o
“ninho”, o centro e o refúgio de seus membros, pode também ser concebida como sendo a origem de muitos “nós” e “amarras”, desafiando o
indivíduo para a superação (PERROT, 1993).
Nesse sentido, para Minuchin (1990), a família proporciona a experiência, a matriz de identidade do indivíduo, visto que possui dois
elementos essenciais: o sentido de pertencimento e o sentido de se sentir
separado dos valores e crenças do sistema familiar. O sentido de pertencimento aparece como uma acomodação do indivíduo ao grupo familiar. A experiência de se sentir pertencente a um grupo com regras, papéis e com um padrão de funcionamento o auxilia ao longo da vida em
diferentes acontecimentos. Já o sentido de ser separado o permite participar de diferentes subsistemas familiares em diferentes contextos, bem
como através da participação em grupos extrafamiliares. A experiência
de separação e de individuação possibilita ao indivíduo a autonomia
e a escolha, independentemente das regras de funcionamento familiar.
Esses dois elementos essenciais estão entrelaçados, e cada sentido de
identidade individual é influenciado por seu sentido de pertencimento
e de ser separado a diferentes grupos (MINUCHIN, 1990; MINUCHIN;
FISHMAN, 1990).
A família é um sistema aberto em constante transformação, isto é,
a todo momento recebe e envia informações para o meio extrafamiliar
157
Aline da Silva Piason - Débora Silva de Oliveira - Márcia Elisabete Wilk Franco
e se adapta às diferentes exigências dos diversos estágios de desenvolvimento evolutivo, bem como do meio e da cultura da qual faz parte
(MINUCHIN, 1990). Assim, a família opera dentro de contextos sociais
específicos que, na visão de Minuchin (1990), possuem três componentes: o primeiro, o sistema sociocultural aberto em transformação. O segundo, o desenvolvimento em diversos estágios, e que requer reestruturação. E, por fim, o terceiro, a adaptação às circunstâncias modificadas,
de maneira a manter a continuidade e a intensificar o crescimento psicossocial de cada membro.
Nesse sentido, a família funciona a partir de um conjunto visível e
invisível de exigências que organiza a forma como seus membros interagem. Assim, é um sistema que opera através de padrões transacionais, os
quais revelam a estrutura de funcionamento da família (MINUCHIN,
1990, p. 57). A família é compreendida como um sistema que tende a
manter a si mesmo e oferece resistência às mudanças no padrão habitual
de funcionamento. Qualquer desvio que ultrapasse o limiar de tolerância do sistema faz surgirem mecanismos que reestabelecem o âmbito
costumeiro. Isso significa que, em situações de desequilíbrio do sistema,
é comum que os membros da família achem que os outros não estão
cumprindo com as suas obrigações, produzindo reivindicações de lealdade familiar e manobras que induzem à culpa (MINUNCHIN, 1990).
3. Discussão de casos à luz da abordagem sistêmica e
da Psicologia Social
Sandel (2013) apresenta casos exemplos em seu livro Justiça que podem ser relacionados aos temas discutidos até o momento. Como vemos:
Caso 1:
O exemplo mais simples é a obrigação especial que os membros
da família têm entre si. Suponhamos que duas crianças estejam se
afogando, e você só tenha tempo de salvar uma. Uma é seu filho e a
outra é filha de um estranho. Seria errado salvar seu filho? Ou seria
melhor decidir no cara ou coroa? A maioria das pessoas diria que não
seria errado salvar o próprio filho e acharia estranho considerar mais
justo decidir jogando a moeda. Por trás dessa reação está a noção de que
os pais têm responsabilidades especiais para com seus filhos. Algumas
pessoas dizem que essa responsabilidade é fruto do consentimento. Ao
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optar por ter filhos, os pais voluntariamente aceitam a responsabilidade
de cuidar deles com atenção especial (SANDEL, 2013, p.278).
Caso 2:
Deixando de lado a questão do consentimento, analisemos a
responsabilidade dos filhos em relação aos pais. Suponhamos que duas
pessoas idosas precisem de cuidados; uma é minha mãe e a outra é a
mãe de um estranho. A maior parte das pessoas concordariam que,
embora fosse admirável se eu pudesse cuidar de ambas, tenho uma
responsabilidade especial em relação à minha mãe. Nesse caso, o
argumento do consentimento não justifica meu dever. Eu não escolhi
meus pais; nem sequer escolhi ter pais (SANDEL, 2013, p. 278).
Podíamos argumentar que a responsabilidade moral de cuidar de minha
mãe advém do fato de ela ter cuidado de mim quando eu era jovem.
Como ela me criou e cuidou de mim, tenho a obrigação de retribuir-lhe?
Mas suponhamos um caso oposto. O que você diria sobre uma pessoa
cujos pais foram negligentes ou indiferentes? O grau de qualidade do
tratamento dispensado à criança determina o grau de responsabilidade
do filho ou da filha de ajudar os pais quando for preciso?
Na medida em que os filhos são obrigados a ajudar até mesmo os
maus pais, o argumento moral pode transcender a ética liberal de
reciprocidade e consentimento.
A partir desses casos, podemos nos perguntar: o que devemos
uns aos outros então?
Na perspectiva do individualismo moral, as nossas escolhas estão
relacionadas à certa unidade, as quais representam minha aspiração por
um caminho que faça sentido à minha vida como um todo e a tudo que
é importante para mim (SANDEL, 2013). Assim, a partir dessa perspectiva, a responsabilidade do indivíduo está unicamente relacionada ao
seu desejo e ao sentido que esse faz a sua vida, e não à ideia de que sua
ação deva estar ligada a sua história de vida ou a danos que precisam ser
reparados.
Já a partir da perspectiva sistêmica, o comportamento do indivíduo diante de tal dilema vai estar inteiramente relacionado à sua história de vida e aos padrões de funcionamento familiar do qual fez parte.
Na teoria boweniana, só entendemos a narrativa da vida do indivíduo
se ampliarmos o nosso foco e também compreendermos sua história familiar “para onde quer que vamos, a família permanece dentro de nós”.
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Ainda que a família deva ser capaz de se adaptar às circunstâncias
sócio- históricas e culturais, para Minuchin, a sua “existência continuada, como um sistema, depende de uma extensão suficiente de padrões, da
acessibilidade de padrões alternativos e da flexibilidade para mobilizá-lo
quando necessário” (1990, p. 58). Isso oferece subsídios para analisarmos
se uma família está em seu funcionamento saudável ou disfuncional.
Para esse autor, um sistema familiar pode se tornar sobrecarregado, sob circunstâncias estressantes, e carecer de recursos necessários
para se adaptar e mudar. Nesses casos, algumas famílias podem desenvolver fronteiras excessivamente rígidas. A comunicação pode se
mostrar difícil e as funções protetoras, ficar prejudicadas. Os modos
extremos de funcionamento de fronteiras podem se denominar de emaranhamento e de desligamento, respectivamente.
Os membros de uma família com o funcionamento emaranhado,
por exemplo, podem apresentar um sentimento incrementado de pertencimento, o que requer máxima renúncia de autonomia. Tal falta de
diferenciação entre os membros desencoraja a exploração autônoma e
o domínio do enfrentamento dos problemas, tornando sua história, por
vezes, aprisionada aos modelos e regras de funcionamento da estrutura
familiar. Nesse sentido, podemos compreender que o indivíduo que tende a apresentar um funcionamento emocional não diferenciado de sua
família de origem tende a achar difícil se separar dos mesmos, inclusive,
dizem o que sentem e o que acreditam, fazendo eco do que escutaram
em sua história familiar, adquirindo uma pseudoindependência (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). Nesses casos, fazer a coisa certa significa
fazer, provavelmente, o que minha família faria, significa ouvir a voz
internalizada dos membros familiares significativos.
Já, por outro lado, os membros de uma família com o funcionamento desligado podem apresentar-se autonomamente, são capazes
de tomar decisões, pensam e agem de acordo com suas crenças e seus
ideais de vida. Não são moldados pelos valores de sua família de origem. São capazes de separar o pensamento do sentimento e tendem a
serem mais tolerantes, flexíveis e seguros em seus relacionamentos (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). Entretanto, podem também desenvolver
um sentido distorcido de sua independência e carecer de sentimento de
lealdade e de pertencimento, assim como a capacidade de interdependência (MINUCHIN, 1990).
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Assim, é importante que o profissional que lide com os dilemas
de lealdade em sua profissão, especialmente, quando da área da Psicologia, esteja atento às diferenças étnicas das famílias. O importante não é
aprender o que caracteriza um grupo ou outro, mas estar aberto às suas
diferenças. É reduzir a ansiedade dos indivíduos e auxiliá-los na diferenciação de seu self independentemente das regras e valores familiares.
Um indivíduo, para melhor lidar com o dilema de lealdade, deve,
antes de tudo, estar pronto para vivenciá-lo, sabendo identificar exatamente seus valores e ideais. Embora faça parte de uma história de vida
e de uma história familiar, deve também ter a habilidade necessária de
se sentir pertencente àquela família e a sua estrutura de funcionamento,
mas, ao mesmo tempo, sentir-se autônomo na sua tomada de decisão a
respeito de um dilema.
A partir dos pressupostos de Groisman (2006), da abordagem sistêmica, um indivíduo, ao estar diante de um dilema de lealdade, deveria,
antes de tudo, estar pronto para responsabilizar-se por suas escolhas e
reconhecer o que está por trás de seu comportamento. Só assim o perdão sobre uma decisão de não ter feito a coisa certa seria possível. Para
o autor, não se perdoa o ato, pois este é imperdoável, está registrado,
marcado, e não pode ser apagado, mas se perdoa a pessoa que o praticou, caso se queira manter a convivência com ela. É um ato realizado
em relação ao outro, esteja esse interessado ou não na manutenção da
convivência.
Moisés Groisman (2006) defende ainda que o ato de pedir perdão
é um ato humano de humildade e de arrependimento e, nesse caso, o
indivíduo pode expressar o seu sentimento de dívida e “de dever”. Seria um investimento afetivo em uma relação que se quer manter. Dessa
forma, exige reflexão e compreensão sobre o que levou o indivíduo a
cometer tal injustiça. É um ato para poder viver melhor consigo e com
o outro. Se esse outro reconhece sua parcela de responsabilidade, é mais
fácil pedir perdão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como entender, analisar e descrever a relação fundamental entre
o que é fazer a coisa certa, especialmente quando refletimos sobre o que
devemos uns aos outros? Como trabalhar os dilemas de lealdade sem
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cair em uma abordagem individualista, psíquica ou biológica, sociocêntrica, ou em uma abordagem sistêmica? Que relações essas questões têm
com as convicções morais e religiosas das pessoas? Como compreender
a subjetividade do ser humano, que o torna único e irrepetível, ainda
que inserido em um processo social, cultural e familiar? Como aceitar
que os indivíduos em sociedades pluralistas, como a nossa, têm concepções diferentes sobre a melhor maneira de viver? Como podemos
perdoar atos com os quais não concordamos?
Como podemos observar, são muitas as incertezas que surgem
quando abordamos um tema tão complexo. Definir direitos e deveres
dos cidadãos sempre traz controvérsias, principalmente quando sabemos que não é possível acreditar na neutralidade das relações.
A convivência social supõe relações de confiança e, portanto, de
expectativa em relação aos comportamentos uns dos outros. Essa relação passa pelas contingências sociais, pelas escalas de valores, por mais
diversas que sejam. Vimos, no decorrer do texto, que, embora haja uma
crença no senso comum de que há uma moral universal, as diversas morais são construídas nos espaços de convivência, permeados por tradições e por pressões do aqui e agora. Portanto, não há como determinar
de modo universal essas relações de lealdade ou deslealdade, mas isso
não significa que elas não existam. Elas se formam ou se constroem na
medida em que as diversas formas de convivência (seja no mundo das
relações diretas, seja no das relações mediadas pelas tecnologias) vão
ocorrendo.
Precisamos olhar e respeitar as concepções filosóficas, religiosas
e culturais que marcam nossas histórias, que, por serem construídas socialmente em um processo inacabado, que muda a todo momento, não
temos como controlar. É possível conviver sim com as divergências, as
diferenças, as escolhas e as decisões de cada um, ou de cada grupo social,
desde que saibamos aceitar que, por estarmos inseridos em uma comunidade, temos que respeitar regras de convivências, para que tenhamos
uma consciência ética e moral e possamos exercer nossa cidadania.
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