REVISÃO Como proceder quando uma gestante HIV positivo omite seu status ao parceiro sexual? How to proceed when a HIV positive pregnant woman omits her status to the sexual partner? Kátia Maria Denijké Feldmann1 Ellen Lima Santana Moreira2 Clécio Ênio Murta de Lucena3 Victor Hugo Melo4 Palavras-chave HIV Ética Privacidade Keywords HIV Ethics Privacy Resumo A gravidez é um momento importante para o diagnóstico do HIV, devido ao rastreamento de rotina das gestantes que são atendidas durante o pré-natal nos serviços de saúde, ou mesmo na ocasião do parto. O rastreio deve ser estendido ao parceiro sexual da gestante, caso ela seja soropositiva. A grande questão para o médico que lida com gestantes HIV positivo é saber como agir diante daquela paciente que omite ao seu parceiro sexual ser portadora do vírus. A presente revisão buscou embasamento ético e jurídico para tentar responder aos questionamentos dos profissionais, e orientá-los sobre a melhor conduta a adotar. De acordo com o que preceituam os artigos e resoluções do Código de Ética Médica e de outras instâncias jurídicas, apesar da paciente ter direito ao sigilo, o médico deve convencê-la a revelar sua condição de ser soropositiva ao seu parceiro sexual. Se a paciente se mostrar resistente a desvelar o status, o médico tem o dever de intervir e informar ao parceiro, para a proteção deste. A quebra do sigilo, nesse caso, é feita por justa causa, o que isenta o médico de problemas ou implicações legais. Abstract The gestation period is an important time for detection of HIV due to the screening routinely performed in pregnant women who are attended at the health services during prenatal, or at delivery. The screening should be extended to her sexual partner, if the pregnant woman is seropositive. The big question for the physician who frequently attends pregnant HIV positive is to know how to deal with the HIV patient who omits her positive status to the sexual partner. The present review sought ethical and legal basement in order to answer the professionals’ inquiries and to guide them about the best management to adopt. According to rules established in articles and resolutions of the Medical Ethics Code, and other juridical instances, despite patient has the right to secrecy, the doctor should convince her to reveal to the sexual partner that she is seropositive. If the patient shows resistance to reveal her status, the doctor has the duty to intervene and tell the partner in order to protect him. The breach of confidentiality, in this case, is made for just cause, which exempts the doctor of problems or legal implications. Médica ginecologista e obstetra do Centro Viva Vida da Prefeitura Municipal de Santa Luzia – Santa Luzia (MG), Brasil. Acadêmica de Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – Belo Horizonte (MG), Brasil. Médico e Advogado; Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – Belo Horizonte (MG), Brasil. 4 Médico; Professor Associado da Faculdade de Medicina da UFMG – Belo Horizonte (MG), Brasil. Endereço para correspondência: Victor Hugo Melo – Departamento de Ginecologia e Obstetrícia – Faculdade de Medicina da UFMG – Avenida Alfredo Balena, 190, 2º andar – CEP: 30130-100 – Belo Horizonte (MG), Brasil – E-mail: [email protected] Conflito de interesse: não há. 1 2 3 Feldmann KMD, Moreira ELS, Lucena CÊM, Melo VH Introdução A epidemia do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), que atinge atualmente todo o mundo desenvolvido e em desenvolvimento, vem causando importante impacto devido ao seu caráter pandêmico e à complexidade de fatores que envolvem as pessoas acometidas. Dessa forma, tem sido considerado um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade¹ (D). Com a descoberta e desenvolvimento dos medicamentos antirretrovirais (ARV), as pessoas portadoras do HIV podem ter uma vida praticamente normal, fazer planos para o futuro e, inclusive, projetar sua família, pois o uso profilático dos ARV permite que gestações planejadas cheguem a termo, e que não ocorra a transmissão vertical do vírus. A gravidez é um momento único e de suma importância na vida da mulher, podendo, para muitas delas, ser a única oportunidade de diagnóstico da infecção pelo HIV, uma vez que durante o acompanhamento pré-natal e no momento do parto são feitos testes para rastreamento do vírus. Quando se descobre uma gestante soropositiva, é imperativo que seja realizado o exame sorológico do seu parceiro sexual, o que faz da gestação uma janela de oportunidade para o diagnóstico da infecção viral do casal. O Ministério da Saúde recomenda que a profilaxia da transmissão vertical aconteça em todas as grávidas sabidamente soropositivas. Estima-se que as altas taxas de transmissão do vírus da mãe para o filho, que se situam entre 25 a 30% quando não há nenhuma intervenção, são reduzidas para cerca de 1% desde que a grávida siga todas as recomendações médicas² (C). O uso dos ARV na gestação está indicado para as gestantes que já fazem tratamento prévio, assim como para aquelas assintomáticas, que ainda não necessitam desses medicamentos, de forma a prevenir a transmissão do vírus para a criança. O esquema utilizado é composto por três ARV de duas classes diferentes. Além disso, no momento do parto, administra-se zidovudina (AZT) por via intravenosa à gestante, e também ao ­recém-nascido, por via oral, durante seis semanas. A amamentação está associada à probabilidade de 7 a 22% maior de transmissão do vírus para a criança, podendo chegar a 29% nos casos de infecção materna aguda³ (C). Dessa maneira, o aleitamento materno está formalmente contraindicado, podendo ser inibido por meio de medicação específica, enfaixamento das mamas ou por outros métodos preconizados4,5 (D, C). Apesar de a infecção pelo HIV ser de transmissão sexual, podendo também haver a transmissão vertical do vírus, a mulher infectada possui os mesmos direitos reprodutivos de todas as outras, reconhecidos por legislação estrangeira e nacional. Essas 312 FEMINA | Novembro/Dezembro 2012 | vol 40 | nº 6 recomendações estabelecem o direito de todo casal decidir livre e responsavelmente sobre sua reprodução, e de ter acesso à informação sobre as formas de assim o fazer e como ter uma vida sexual saudável e segura, livre de discriminação ou violência. O Estado deve garantir tais direitos e proporcionar maneiras de, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), oferecer apoio às mulheres infectadas pelo HIV que desejam engravidar, uma vez que esse diagnóstico pode acarretar mudanças na vida sexual e nas relações afetivas da paciente, com consequentes dificuldades, tais como o medo de rejeição por parte do parceiro. O serviço de saúde também deve orientar sobre as formas seguras de concepção e de cuidados na gestação, parto e puerpério6-8 (D). Este artigo tem o objetivo de revisar o que existe de mais atual sobre o tema e, quem sabe, dar respostas aos vários questionamentos realizados pelos profissionais que lidam diariamente nos serviços de saúde com gestantes infectadas pelo HIV e que não querem comunicar ao seu parceiro sexual, sua condição de soropositividade. Metodologia Foi realizada revisão bibliográfica a respeito do tema no PubMed, LILACS e SciELO, em pareceres de Conselhos R ­ egionais de Medicina e do Conselho Federal de Medicina, em portarias e outros documentos ministeriais e de instituições e entidades da área de saúde, tais como a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), Organização Mundial de Saúde (OMS), Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) e outras, publicados no período de 2006 a 2012. Incluíram-se documentos oficiais brasileiros, produzidos pelos três poderes da República (Executivo, Legislativo ou Judiciário), independentemente do ano de publicação, considerando sua pertinência para fundamentar a discussão do tema. Foram utilizados os seguintes descritores em língua portuguesa: HIV, ética, privacidade. Os descritores em língua inglesa foram: HIV, ethics, privacy. Encontraram-se 99 publicações referentes ao tema e, entre elas, 27 foram selecionadas para a presente revisão. O critério de seleção baseou-se no conteúdo pertinente à pergunta: qual a atitude do médico diante de gestante HIV positivo que não quer contar ao seu parceiro sua condição de soropositivade? A pesquisa priorizou as publicações oficiais e os artigos em língua portuguesa (Brasil), para que fosse seguida a legislação e recomendações vigentes em nosso país. Entretanto, estudos em língua inglesa também foram utilizados com o intuito de verificar a conduta em outros países diante da questão apresentada. Como proceder quando uma gestante HIV positivo omite seu status ao parceiro sexual? Discussão Duas décadas após o relato dos primeiros casos de infecção pelo HIV, os sentimentos de medo, negação, pânico e preconceito ainda existem e resistem, apesar de a maioria da população conviver melhor com a questão. A epidemia revela limites, ações e comportamentos, além de respostas e reações ainda a serem avaliadas. Os portadores do HIV conquistaram, desde a descoberta do vírus até hoje, significativos direitos civis e políticos. Uma demonstração disso é a existência da Declaração dos Direitos Fundamentais das Pessoas Vivendo com HIV/Aids, que trata do direito à informação e à assistência ao tratamento, como também do repúdio à discriminação, e do direito à participação em todos os aspectos da vida social, entre outros. Existem dois aspectos marcantes abordados nesta declaração: a privacidade do portador do vírus e o direito de comunicar apenas às pessoas que deseja o seu estado de saúde ou o resultado de seus exames9 (D). O diagnóstico da infecção pelo HIV atualmente está facilitado pelo maior esclarecimento da população em relação à Aids. A gravidez é um momento importante para a detecção do vírus devido ao rastreamento obrigatório das gestantes que realizam acompanhamento pré-natal nos serviços de saúde, ou mesmo na ocasião do parto. O diagnóstico deve ser estendido ao parceiro sexual da paciente soropositiva. A gestação é considerada, portanto, uma oportunidade de diagnóstico tanto da grávida quanto de seu parceiro. A mulher, comprometida com o acompanhamento pré-natal, não fica resistente diante da solicitação de exames e, assim, pode-se ter diagnósticos mais precoces, além de possibilitar a profilaxia da transmissão vertical do vírus, caso seja confirmada a soropositividade da gestante. A grande questão que aflige o médico que lida frequentemente com gestantes HIV soropositivas é como se portar diante daquela paciente que omite ser portadora do vírus ao seu parceiro sexual. Como a paciente encontra-se em estágio gestacional e supostamente a paternidade é de seu consorte, possivelmente ela o expôs e talvez continue expondo-o ao risco de ser contaminado. Existe também a possibilidade de o parceiro ter sido o transmissor do vírus à paciente e que tenha omitido a ela seu status de soropositivo, ou tê-lo feito por desconhecer tal condição. Ocorre, assim, uma polêmica que pode causar danos ao relacionamento do casal. Diante de uma situação como esta, em que os valores profissionais estão em conflito e há dúvidas a respeito de qual direção seguir, o médico deve guiar-se por princípios éticos, morais e legais. Apesar da importância da preservação da confidencialidade, por meio do segredo médico, é justo refletir sobre a possibilidade de quebra de sigilo profissional, auxiliando na revelação do diagnóstico da infecção pelo HIV ao parceiro sexual da paciente, com o intuito de protegê-lo e, também, para evitar a disseminação de tão grave infecção. A questão ética e moral A moral e a ética são dois temas relevantes presentes nas principais teorias filosóficas desde a antiguidade. São noções indispensáveis para fundamentar o pensamento humano sobre o modo de viver e conviver em sociedade. Os dois conceitos apresentam certa proximidade, já que abrangem uma mesma realidade, mas um não se reduz ao outro. Ambos os termos nos dão a noção do que é certo ou errado no contexto do entendimento de uma sociedade. Quando recorremos à etimologia dos termos, percebemos certa semelhança: moral vem do latim mos/moris, que significa “maneira de se comportar regulada pelo uso” e, portanto, moral passa a ser adjetivo referente ao que é “relativo aos costumes”. Ética vem do grego ethos, que significa “costume”10 (D). Contudo, o termo moral não é usado como sinônimo de ética, uma vez que aquele é utilizado para referir-se aos costumes de um povo, geralmente apontando para o caráter religioso e cultural de determinada tradição, não respeitando limites territoriais. Além disso, a moral consiste em se ter uma conduta fundamentada em uma razão forte e pertinente. Para agir dessa forma, é preciso que haja imparcialidade em relação aos indivíduos envolvidos em um determinado impasse, uma vez que os interesses de cada pessoa são igualmente importantes e, assim, nenhuma delas deve ser privilegiada. O que define qual comportamento deve ser adotado, de acordo com princípios morais, são os argumentos sobre qual cada lado envolvido se fundamenta. Segundo Rachels11 (D) “a coisa certa a se fazer moralmente, em qualquer circunstância, é aquela para a qual há as melhores razões”. O pensamento moral deve ser capaz de discernir argumentos bons de ruins e se fundamentar naquele com razões mais plausíveis. A ética, por sua vez, é um elemento filosófico que se ocupa em refletir sobre as noções e os princípios que fundamentam a moralidade, tendo como ponto de partida a concepção de homem. Assim, solidificada em uma racionalidade prática, se baseia em princípios filosóficos, costumes ou religião, tendo como finalidade dirigir ou orientar a conduta do homem, defendendo ou condenando certas atitudes da vida moral. Como a prática da medicina age diretamente sobre o organismo de terceiros, é necessário que exista uma regulamentação FEMINA | Novembro/Dezembro 2012 | vol 40 | nº 6 313 Feldmann KMD, Moreira ELS, Lucena CÊM, Melo VH ética que imponha limites, estabeleça posturas e assegure direitos tanto do médico quanto do paciente. No Brasil, existem instrumentos deontológicos como o Código de Ética Médica (CEM), que regula a conduta do médico e estabelece normas que apontam valores éticos e morais a serem observados no exercício da profissão¹² (D). O CEM brasileiro aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) é subordinado à Constituição Federal e a outras legislações do país. Um de seus principais objetivos é apresentar soluções para dilemas éticos presentes no cotidiano do médico e resguardar o respeito à dignidade do ser humano enfermo. O profissional deve estar ciente do dever de sigilo médico previsto no art. 73 do CEM, que estabelece: “É vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento”¹³ (D). De maneira semelhante, o CFM editou a resolução número 1605/2000, que também resguarda o direito do paciente ao sigilo médico, o que revela a sua incontestável importância. Porém, de acordo com o art. 2º da resolução número 1359/92 do CFM, é permitida a quebra de sigilo por justa causa, tais como a “proteção à vida de terceiros: comunicantes sexuais ou membros de grupos de uso de drogas endovenosas, quando o próprio paciente recusar-se a fornecer-lhes a informação quanto à sua condição de infectado”14 (D). Por sua vez, o art. 10 da resolução do CFM número 1665/2003 dispõe: “O sigilo profissional deve ser rigorosamente respeitado em relação aos pacientes portadores do vírus da SIDA (AIDS), salvo nos casos determinados por lei, por justa causa ou por autorização expressa do paciente”15 (D). A quebra do sigilo por “motivo justo” compreende as seguintes situações: cumprimento de dever legal, por ordem judicial ou imposição legal; pelo consentimento por escrito do próprio paciente; e também para defesa própria. O juramento de Hipócrates, proferido na cerimônia de conclusão dos cursos médicos ocidentais, também reforça a questão do segredo médico, mas não defende que seja incondicional, já que ressalta que o mesmo será guardado se não for preciso divulgar: “Aquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto”16 (D). 314 FEMINA | Novembro/Dezembro 2012 | vol 40 | nº 6 A questão legal Cabe ao médico ser coerente com o que preceitua a legislação brasileira e com os preceitos éticos que regem a sua profissão. Além das resoluções do CFM e das normas previstas no CEM, outras esferas jurídicas garantem o direito à intimidade do paciente. O art. 5º, inciso X, da Constituição Federal Brasileira (lei fundamental que regula os direitos e deveres dos cidadãos) defende que “[...]são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas[...]”17 (D). Já o art. 21 do Código Civil Brasileiro (normas que regulam as relações civis das pessoas singulares e jurídicas, sejam privadas ou públicas) relata que “a vida privada da pessoa natural é inviolável”18 (D). De forma semelhante, o art. 154 do Código Penal Brasileiro (conjunto de normas para prevenir ou reprimir os fatos que atentem contra a segurança e a ordem social) dispõe que é crime “revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”19 (D). É interessante destacar que a conduta tipificada nesse artigo é revelar, que significa contar a alguém um segredo profissional, com uma abrangência mais restrita, diferentemente se o termo fosse divulgar. Por outro lado, na parte geral do Código Penal Brasileiro (art. 23, inciso III), é definido que “não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito”. O médico deve estar ciente também que os arts. 130, 131 e 132 do Código Penal Brasileiro definem como crime “expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado”, “praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir contágio”, assim como “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente”19 (D). O bem jurídico protegido nesses artigos é a vida e a saúde da pessoa humana, superiores ao direito à privacidade e à intimidade. A liberdade individual deve ser ponderada quando há ameaça à vida e saúde de outrem, da mesma maneira que se percebe haver um interesse coletivo em questão. Outro dispositivo legal relevante é o art. 269 do mesmo Código Penal, que pune o profissional que “deixar de denunciar à autoridade pública, doença cuja notificação seja compulsória”. Entretanto, deve o médico apenas informar à autoridade competente (Ministério da Saúde ou Secretaria de Saúde) a doença diagnosticada, sem identificação do doente — a doença é de notificação compulsória e não a identidade do paciente20 (D). Como proceder quando uma gestante HIV positivo omite seu status ao parceiro sexual? Conforme comenta a jurista Maria Helena Diniz, o médico deve manter sigilo quanto às informações confidenciais que tomar conhecimento, exceto nos casos em que seu silêncio prejudique ou ponha em risco a saúde de outrem. A preservação do segredo pelo profissional da saúde é um pilar essencial no bom relacionamento médico-paciente, sustentado na confiança e no respeito de ambos. As informações as quais o médico tem conhecimento, seja pela anamnese ou pelos resultados de exames com qualquer finalidade, são de propriedade do paciente. Dessa forma, profissionais da saúde e instituições detentoras dessas informações são seus depositários e só podem usá-las para atender a necessidades de ordem profissional e em benefício do paciente. A garantia do sigilo médico, com respeito à confidencialidade e à privacidade de seus pacientes, é um dever imposto pela ética (CEM, Art. 73), pelo Código Civil (Art. 229, I) e penalmente (Código Penal, Arts. 154, 268, 269; Lei de Contravenções Penais, Art. 66), salvo quando houver conflito com outro dever igual ou maior, justa causa, risco de morte, necessidade de obtenção de um benefício social ou autorização do próprio paciente. O sigilo médico, embora não tenha caráter absoluto, deve ser tratado com a maior delicadeza, só podendo ser quebrado em situações muito especiais21 (D). É importante ressaltar que a privacidade, a intimidade e a garantia de sigilo sobre o estado de saúde de um paciente soropositivo são de domínio do paciente, cabendo a ele decidir a quem prestar informações sobre a sua saúde. Entretanto, médicos e outros profissionais de saúde têm a obrigação de revelar a soropositividade sempre que ela possa colocar alguém em risco de contrair a moléstia, sob a possibilidade de sofrer sanção penal (Código Penal, Arts. 130 a 132, e 213) por transmissão irracional do vírus da Aids. A quebra do sigilo médico está plenamente justificada nessas circunstâncias, mesmo que o paciente se recuse a revelar a moléstia ao seu cônjuge ou companheiro, porque o dever de segredo só existe para preservar o soropositivo da discriminação social e não para lhe dar a retaguarda para a transmissão deliberada de uma doença grave e ainda mortal como essa. Segundo o professor Genival Veloso de França, mesmo que o segredo médico pertença ao paciente como uma conquista da própria sociedade, há de se entender que esse conceito é relativo, pois o que se protege não é a vontade caprichosa e exclusiva de cada um isoladamente, mas a tutela do bem comum, os interesses de ordem pública e o equilíbrio social22 (D). Diante dessas questões legais, o médico que não conseguir convencer a paciente a revelar sua condição de soropositiva ao parceiro sexual deve, ele mesmo, realizar a quebra de sigilo para informar ao parceiro tal condição, pois, caso contrário, poderá ser considerado cúmplice, correndo o risco de sofrer processo judicial pelo parceiro contaminado. Pareceres de Conselhos Regionais de Medicina Diante do exposto, foi encaminhada consulta ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRMMG) sobre o problema, obtendo-se um parecer conclusivo (Parecer consulta 4615/2012), onde se destaca23 (D): “O paciente tem direito ao sigilo, resguardado pelo Código de Ética Médica, em seu Art. 73, pelo Código Civil, Art. 144, e pelo Código Penal, Art. 154, que, no entanto, admitem exceções. É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Art. 144. Ninguém pode ser obrigado a depor de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar segredo. Art. 154. Revelar a alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem. O próprio juramento de Hipócrates admite implicitamente exceções à natureza absoluta do segredo médico, quando diz que o segredo deve ser guardado sempre que não seja necessário que se divulgue. Assim, a obrigação do sigilo não é absoluta”. De acordo com o parecer supracitado, por motivo justo entende-se o interesse relevante da coletividade, em que a informação daquele paciente em particular possa ser revelada para evitar danos a outrem. Neste sentido, o parecer também destaca a resolução do CFM 1665/2003, art. 10. Conforme esta resolução, “a revelação do segredo médico não pode constituir um crime quando feita pela necessidade de proteger-se um interesse contrário mais importante”. Por fim, respondendo às indagações, o parecer do CRMMG conclui que, nesta situação, diante do ponto de vista ético, o sigilo não é obrigatório. E, diante do risco do parceiro adquirir o vírus, deve-se inicialmente buscar o convencimento da paciente em contar-lhe. Não havendo concordância de sua parte, ­deve-se revelar a ele. Tal ação caracteriza motivo justo, isentando o médico de qualquer problema com a quebra do sigilo23 (D). O Conselho Regional de Medicina de Pernambuco ­(CREMEPE), também emitiu um parecer semelhante, publicado em 23 de julho de 2010, a respeito da conduta a ser tomada diante de paciente que omite ser portadora do vírus HIV ao parceiro24 (D). Considerando os arts. 131 e 132 do Código Penal Brasileiro, o direito à intimidade prevista no Art. 5°, inciso X da Constituição Federal e art. 21 do Código Civil Brasileiro, o FEMINA | Novembro/Dezembro 2012 | vol 40 | nº 6 315 Feldmann KMD, Moreira ELS, Lucena CÊM, Melo VH dever de sigilo previsto no art. 72 do CEM e em resoluções do CFM e a possibilidade de quebra do sigilo em determinadas situações, o parecer do CRMMG conclui que: “1 – Do ponto de vista ético, devemos manter o sigilo da paciente? R – Não. 2 – Diante do risco do parceiro adquirir o vírus e, se a paciente realmente não lhe contar, devemos intervir e lhe informar a respeito da situação? R – Sim. Buscar inicialmente, por todos os meios, o convencimento da paciente. Não havendo concordância de sua parte, revelar ao parceiro, após esclarecer a ela a obrigatoriedade dessa atitude. 3 – Que efeitos legais uma ou outra atitude podem desencadear? R – Tal ação caracteriza motivo justo, isentando o médico de qualquer problema com a quebra do sigilo. 4 – O direito da paciente à confidencialidade e privacidade suplanta o direito de proteger o outro a adquirir uma doença ainda considerada incurável? R – Não”23 (D). A conduta em outros países O respeito ao sigilo dos pacientes é um princípio fundamental na ética médica e também um dever legal de provedores de cuidados à saúde com seus pacientes. No entanto, o respeito ao sigilo absoluto tem sido um assunto de grande debate. Com o advento da epidemia de HIV/Aids, ele foi novamente suscitado, principalmente no que diz respeito à obrigatoriedade do sigilo médico, quando pacientes soropositivos recusam-se voluntariamente a comunicar aqueles sob risco de infecção, em especial seus parceiros sexuais25 (C). Assim, os médicos enfrentam o dilema entre manter o sigilo profissional, não divulgando o status de HIV de seus pacientes aos respectivos parceiros sexuais, ou ter uma postura proativa e discutir essa situação com o portador do vírus, mostrando o direito do parceiro ter conhecimento da sua condição de soropositividade para a sua proteção25,26 (C, D). A notificação de parceiros de pacientes com HIV geralmente é considerada um assunto ético e legal, com destaque para a importância de respeitar o sigilo dos pacientes e de sua autonomia. É consensual que o profissional de medicina é obrigado a manter informações pessoais sobre o paciente em sigilo, e tem permissão de compartilhar informações em apenas duas situações: com o consentimento do paciente ou se a quebra do sigilo for de interesse público25,26 (C, D). 316 FEMINA | Novembro/Dezembro 2012 | vol 40 | nº 6 Quebrar o sigilo por interesse público pode ser necessário para “proteger indivíduos ou a sociedade de riscos de danos graves, tal como doenças transmissíveis graves ou crime grave; ou capacitar pesquisa médica, educação ou outros usos secundários de informações que beneficiarão a sociedade com o tempo”26 (D). O interesse público tem várias implicações para as pessoas vivendo com o HIV. Uma delas é que a infecção pelo vírus é definida como doença transmissível grave e, por esse motivo, pode ser considerado de interesse público quebrar o sigilo sobre as informações do paciente e seu status de soropositividade para o HIV em algumas circunstâncias26 (D). Logo depois do diagnóstico, o profissional de saúde deve fazer um “rastreamento de contatos”, ou seja, pode tentar identificar as pessoas “que possam ter tido contato com um paciente com uma doença específica”. No caso do HIV, isso geralmente significa identificar parceiros sexuais atuais e anteriores. Caso haja pessoas identificadas como parte deste processo, é esperado que o paciente os comunique sobre a situação e os encoraje a fazer um teste de HIV, ou que o permita que o médico entre em contato com esses parceiros, pedindo-lhes para que façam o teste sorológico para o vírus25,26 (C, D). A revelação do status de soropositividade para o HIV de um paciente por parte de um profissional de saúde tem sido eficiente para identificar parceiros sexuais em risco em países desenvolvidos e, geralmente, é permitida na América do Norte e na Europa. No entanto, sua viabilidade e eficácia em países em desenvolvimento com contextos socioculturais e políticos diferentes é limitada e exige mais avaliação25 (C). Espera-se que os profissionais de saúde conversem com o paciente sobre como minimizar riscos para outras pessoas logo após o diagnóstico, o que provavelmente incluirá o aconselhamento sobre o uso de camisinha e a quebra do sigilo26 (D). A postura médica de aconselhamento dos pacientes sobre a importância da revelação voluntária do seu status de HIV a seus parceiros parece ser a posição dominante, e é a política recomendada pela UNAIDS e OMS. Essa política incorpora os princípios de direitos humanos à saúde pública em resposta à epidemia de HIV/Aids e visa assegurar que os direitos humanos e a dignidade de pessoas soropositivas não sejam transgredidos25 (C). Nos países em desenvolvimento, nos quais existe o impacto da epidemia do HIV, a revelação voluntária por parte do paciente tem sido o método eleito nas estratégias de notificação aos seus parceiros sexuais19 (D). Entretanto, apesar dos esforços de incentivo à revelação voluntária, há também a situação em que pacientes deliberadamente ocultam seu status de HIV de seus parceiros, expondo-os ao risco de contágio25,26 (C, D). Como proceder quando uma gestante HIV positivo omite seu status ao parceiro sexual? Se o paciente se recusar a mudar o seu comportamento sexual (não usar ou não solicitar o uso da camisinha, por exemplo) e, dessa forma, colocar outras pessoas em risco de infecção por HIV, é permitido ao médico quebrar a confidencialidade e contar à pessoa (ou pessoas) que ele acredite que tenham sido expostas ou que venham ser expostas ao risco no futuro26 (D). Essa decisão pode ser defendida como de interesse público, já que protege indivíduos do risco de danos graves. Em todos os casos de rastreamento de contatos, a equipe de saúde que falar com o contato deve fazer tudo o que puder para não revelar a identidade do paciente. Entretanto, existe a chance de que o paciente seja identificado, por exemplo, se o contato tiver tido apenas um parceiro sexual26 (D). Novamente, essa revelação pode ser interpretada como de interesse público. Quando o médico pretende revelar informações do paciente sem seu consentimento, ele deve ser notificado a este respeito, e o médico precisa estar preparado para justificar a decisão de comunicar informações pessoais sem consentimento25,26 (C, D). Considerações finais Movidos pela responsabilidade pública com o controle da cadeia de transmissão do HIV, e também pela responsabilidade privada com o bem-estar psicossocial do paciente nas suas relações afetivo-sexuais, conjugais e familiares, os profissionais de saúde têm que adotar estratégias para que os parceiros sexuais de pessoas que vivem com HIV/Aids tomem ciência da situação. Durante o acompanhamento de paciente HIV infectado, o médico deve desenvolver uma relação de confiança com ele, fundamental para garantir sua adesão ao tratamento e, ao mesmo tempo, encontrar o momento adequado para exercer a difícil tarefa de convencê-lo a compartilhar o diagnóstico com o seu parceiro sexual. De acordo com Luz et al.27 (C), o processo de aconselhamento, especialmente no que diz respeito ao HIV, tem como principais componentes: o apoio emocional; o apoio educativo, que trata de informações sobre HIV/Aids e suas formas de transmissão, prevenção e tratamento; além de avaliação de riscos que leva à reflexão sobre valores, atitudes e condutas, incluindo o planejamento de estratégias de redução de risco. Daí, a grande importância de convocar o parceiro sexual. São considerados circunstâncias especiais os casos de pacientes HIV soropositivos, no que diz respeito à quebra da confidencialidade e do segredo profissional, quando se colocam terceiros em risco de contágio, devido à postura negligente, imprudente ou mesmo dolosa do paciente, considerando a possibilidade de contágio e de disseminação descontrolada de uma enfermidade tão grave como essa. As doutrinas mais modernas do Direito concluem que o médico tem o dever (e o poder) de comunicar o parceiro sexual do paciente soropositivo caso este não o deseje fazer e nem adote cuidados preventivos necessários. O segredo médico não é inviolável, respeitando-se uma razoabilidade e proporcionalidade para a eventual necessidade dessa comunicação20 (D). De acordo com o que preceituam os artigos do CEM, resoluções do CFM e de alguns Conselhos Regionais de Medicina, além dos aspectos jurídicos discutidos anteriormente, apesar do direito da paciente ao sigilo em relação à sua condição de soropositividade, o médico tem o dever de intervir e informar ao parceiro se, após tentar convencê-la de revelar tal condição, ela se mostrar resistente. A quebra do sigilo, neste caso, é feita por justa causa, o que isenta o médico de problemas ou futuras implicações legais23 (D). Leituras suplementares 1. Brasil.Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde, Secretaria de Ação Social. A disseminação da epidemia da Aids. Brasília: Ministério da Saúde; 2001. 2. Maturana AP, Rizzo CV, Vasquez DF, Cavalheiro N, Holzer S, Morais VS. Avaliação da assistência ao parto em gestantes infectadas pelo HIV. Arq Med ABC. 2007;32(1). 3. Lemos LMD, Gurgel RQ, Dal Fabbro AL. Prevalência da infecção por HIV em parturientes de maternidades vinculadas ao SUS. Rev Bras Ginecol Obstet. 2005;27(1):32-6. 4. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST, Aids e Hepatites Virais. Recomendações para profilaxia da transmissão vertical do HIV e terapia antirretroviral em gestantes: guia de tratamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2010. 5. Moura EL, Praça NS. Transmissão vertical do HIV: expectativas e ações da gestante soropositiva. Rev Latino-Am Enfermagem. 2006;14(3):405-13. 6. Ventura M. {Internet}. Direitos Reprodutivos no Brasil. 3ª ed. Brasília: UNFPA; 2009. [cited 2012 Set. 15]. 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