Duas obras portuguesas olham para a Índia: Auto da Índia

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Duas obras portuguesas olham para a Índia:
Auto da Índia, de Gil Vicente
e A viagem do elefante, de José Saramago
Susana Ramos Ventura*
Resumo
Duas obras portuguesas separadas por quase cinco séculos, Auto da Índia, de Gil Vicente e
A viagem do elefante, de José Saramago, trazem a Índia como país subjacente. Fazemos reflexões sobre as obras dos autores e destacamos a presença da Índia em ambas as obras.
Palavras-chave: Gil Vicente. José Saramago. Auto da Índia. A viagem do elefante.
1 Introdução
O primeiro desafio da proposta que gerou este ensaio foi a aproximação de dois autores portugueses separados no tempo por cinco séculos, Gil Vicente e José Saramago, em função especificamente do olhar
voltado para a Índia. A escolha da comparação entre um autor que viveu
o período das navegações de maneira intensa, Gil Vicente, quando a Índia não passava, para a maior parte dos portugueses (e por extensão dos
europeus), de uma miragem, e um autor que produziu sua obra entre o
final do século XX e a primeira década do século XXI, quando as questões
pós-coloniais estão na ordem do dia, necessitava de um aporte teórico
além de uma justificativa. Pois bem, Gil Vicente viveu e produziu sua
obra antes da efetiva tomada e exploração colonial, fosse na Índia, fosse
em qualquer outra parte. Saramago, nascido em 1922, assistiu à Independência da Índia do domínio inglês (1947) e a todo o processo de descolonização da Ásia e da África, até, no caso português, a devolução dos territórios de Goa à Índia e de Macau à China em 1998.
No arco temporal compreendido entre o nascimento de Gil Vicente e aquele de Saramago ocorreram as navegações, a tomada de territórios transformados em colônias, a exploração das mesmas e a organiza* Doutora em Letras. Pesquisadora junto à Universidade Federal de São Paulo, financiada
por bolsa de Jovem Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo – FAPESP. (E-mail: [email protected]).
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ção da resistência que levaria, por exemplo, à Independência da Índia no
final de década de 1940 e das colônias portuguesas na África na metade
da década de 1970. Além disso, a imagem do Oriente foi construída no
Ocidente. O que nos pareceu produtivo na aproximação proposta foi
olhar esta dupla miragem: a Índia que aparece em Auto da Índia e aquela
de A viagem do elefante – distante e intermediada diretamente por duas
personagens – a do marido, e a do tratador de elefantes Subhro.
O teórico norteador destas reflexões foi o palestino Edward Said,
que, em sua obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, coloca
o auge da produção teórica do Ocidente, tendo como tema o Oriente, no
final do século XVIII e nos ensina que:
O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o
lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias
europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival
cultural e uma de sua imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir
a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente
é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia (SAID,
2007, p. 27 e 28).
Said (2007, p. 27) chamará de Orientalismo “um modo de abordar o
Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experiência ocidental europeia”. Embora fora do período temporal focalizado
preferencialmente pelo teórico, muito de suas reflexões – que, para a
presente proposta podem ser sintetizadas no fragmento citado – foram
fundamentais.
2 Gil Vicente e José Saramago – rumo à Índia?
Passemos, então às obras de Gil Vicente e José Saramago, separadas temporalmente em cerca de quinhentos anos. Em 1509 a farsa
Auto da Índia,1 de Gil Vicente, foi apresentada à Corte Portuguesa. Na
primeira metade do século XVI, início e auge do período das navegações marítimas é, como dissemos anteriormente, o tempo em que o
dramaturgo português cria sua obra, e quando a Índia começa a compor
o imaginário de Portugal e do Ocidente como lugar de riquezas, especiarias e mistérios.
Gil Vicente foi o primeiro grande homem de teatro da Península
Ibérica e, entre 1502 e 1536, escreveu quarenta e quatro peças, entre obras
1
Embora nomeada como “Auto”, trata-se de uma farsa – nas próprias indicações intratexto
(como “morre esta farsa”) tal já é perceptível. Ademais, as características da obra em si
permitem classificá-la assim.
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de devoção – normalmente rotulados como “autos” e que têm assunto
religioso, farsas – em que predomina o elemento cômico, comédias e tragicomédias – que mesclam em si vários gêneros, do romance de cavalaria
às alegorias.
A situação socioeconômica que se vivia em Portugal no início do
século XVI é brilhantemente analisada pelo professor da Universidade de
São Paulo, Benjamin Abdala Júnior (1996, p. 9-10), no prefácio que escreve à melhor edição de Auto da Índia disponível no mercado brasileiro:
Importava-se de tudo. Era mais fácil adquirir bens como
ouro e as especiarias provenientes das Navegações, ficando o trabalho mais pesado para os escravos capturados na
África e na Ásia. Nessa situação, a população rural deixava o campo e corria para Lisboa, os artífices afastavam-se
das manufaturas, os fidalgos acotovelavam-se em torno
do palácio real. Desorganizava-se assim a produção. Todos, inclusive o clero, procuravam usufruir desse vertiginoso afluxo de riquezas. Nessas condições era difícil viver
do próprio trabalho. Procurava-se o lucro fácil na empresa
comercial-militar das Índias, um monopólio do rei. Cresceu exageradamente o número de servidores da Corte e os
que conseguiam seguir viagem só tinham um objetivo, de
acordo com uma das personagens do Auto da Índia: pelejar
e roubar.
Gil Vicente foi um homem do seu tempo, o da transição não apenas entre dois séculos, mas entre duas maneiras de pensar o mundo. Assim sendo, sua obra reflete características medievais e também renascentistas. Os gêneros e metros medievais são mantidos, bem como o emprego de alegorias e símbolos e a temática religiosa. O grupo de personagens
se mantém em moldes medievais: os representantes do povo, com suas
vestimentas, hábitos e linguagem próprios, além da presença de personagens sobrenaturais e figuras alegóricas (como os anjos e, especialmente, os diabos). No entanto, características renascentistas se fazem presentes, como o emprego de personagens oriundos da mitologia grecoromana, a crítica diante das injustiças sociais e da degradação do clero e –
elemento especialmente particular do contexto ibérico – a condenação à
perseguição religiosa de cristãos-novos e judeus.
Mestre Gil centrou suas preocupações no ser humano de seu tempo, pertencente a todas as classes sociais. Uma grande parcela da obra de
vicentina ataca os vícios das classes dominantes: clero e nobreza, e das
instituições a que pertencem ou que são regidas por eles. Os nobres aparecem por vezes como tiranos orgulhosos, que desprezam os humildes,
inconscientes dos valores humanos que, por sua boa formação deveriam
prezar. Os representantes do clero são talvez os mais atacados: suas peças
estão plenas de padres e frades beberrões, mulherengos, abusadores e
mesquinhos. A Justiça é outra instituição atacada, normalmente pela falta
de honradez de seus representantes: juízes, meirinhos, e procuradores
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aparecem como exploradores e usurpadores do povo. Gil Vicente expressou uma cultura religiosa, reiterando valores teocêntricos. Foi homem de
fé, católico ortodoxo que professava a crença em Deus e a obediência à
Igreja, características que, no entanto, jamais o impediram de ver os erros
cometidos pelos homens que dirigiam essa instituição e emitir, em sua
obra, julgamentos de valor a esse respeito.
Um exemplo da pujança, severidade e poder corrosivo da pena de
Gil Vicente é Auto da barca do Inferno. Lembremos, com o professor Segismundo Spina2 da Universidade de São Paulo, que a denominação
“auto” estava ligada a “peça em um ato”, e com motivo quase sempre
ligado às questões religiosas, como já mencionado. Já as farsas são a parcela da obra vicentina em que o autor foge à retratação de tipos muito
marcados que apresentavam limitações dramatúrgicas, no sentido de
impedirem um aprofundamento psicológico e narrativo maior, além de
que, a denominação “farsa” abrangia a peça em que as falhas humanas
menores – notadamente as de caráter sexual – são evidenciadas sem tanto
peso. É o caso de Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira e O velho da horta. Em
Auto da Índia, por exemplo, Gil Vicente conta uma história longa com
poucas personagens, que passam por transformações de acordo ao rumo
dos acontecimentos que lhes sucedem – escolha essa que aprofunda e
focaliza a personagem, que é vista num percurso individual, o que a nosso ver encaminha e prefigura as possibilidades posteriormente exploradas pelo teatro moderno. Aqui somos apresentados à Constança, uma
jovem (identificada nas didascálias como “Ama”) que chora e se lamenta
perante uma criada (identificada como “Moça”), no início da peça:
Moça Jesu! Jesu! que é ora isso?
É porque se parte a armada?
Ama Olhade a mal estreada!
Eu hei-de chorar por isso?
Moça Por minh' alma que cuidei
e que sempre imaginei,
que choráveis por noss' amo.
Ama Por qual demo ou por qual gamo,
ali, má hora, chorarei?
Como me leixa saudosa!
Toda eu fico amargurada!
Moça Pois por que estais anojada?
Dizei-mo, por vida vossa.
Ama Leixa-m', ora, eramá,3
que dizem que não vai já.
Moça Quem diz esse desconcerto?
Ama Dixeram-mo por mui certo
que é certo que fica cá. (VICENTE,1996, p. 16).
2 SPINA, Segismundo. Prefácio. In: VICENTE, Gil. O velho da horta, Auto da barca do inferno,
Farsa de Inês Pereira. Prefácio e adaptação de Segismundo Spina. Cotia: Ateliê, 2007.
3
“Eramá” significa “em má hora”.
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Desta maneira, sabemos de pronto que o marido da Ama Constança (o nome da personagem, revelado por ela no meio da obra é em si
mesmo uma ironia – Constança – pois ela é em realidade tanto inconstante quanto, ademais, infiel) está no Restelo a embarcar para a Índia na
caravela Garça (saída em 1506, sob comando de Tristão da Cunha), e a
esposa chora ao ouvir rumores de que a armada não partirá mais – suspeita desfeita pelas informações que a seguir irá saber a criada. Percebemos, então, o quão calcada na realidade é a situação que Gil Vicente descreve neste auto. O marido parte, deixando a esposa amparada, diferentemente do que ocorria tantas vezes. Diz a criada:
Ali eramá!
Todas ficassem assi.
Leixou-lhe pera três anos
trigo, azeite, mel e panos. (VICENTE, 1996, p. 18).
As imagens que temos da Índia neste auto são mesmo como miragens – vemos a partida do marido sendo pensada pela esposa e pela criada, que ademais comparece ao cais e vê o movimento das embarcações, e
depois sabemos da Índia pelas palavras do marido, que regressa com a
pele mais queimada do que era esperado e menos rico do que sonhava.
A peça, denominada Auto da Índia, não se passa na Índia e nem mostra o
cotidiano dos que para lá foram, mas sim se centra nas infidelidades de
Constança antes e depois da partida do marido e na volta dele. O pequeno grupo de personagens de Auto da Índia estará composto pela Ama
Constança; sua criada, a Moça; os dois amantes que a Ama tem na ausência do marido; e, por fim, pelo próprio marido, que retorna após três anos
no mar.
Quase cinco séculos depois, em 2008 é publicado A viagem do elefante,4 de José Saramago, talvez hoje o autor português mais conhecido
e lido no mundo. A notabilidade de que desfrutou após a atribuição do
Prêmio Nobel de Literatura em 1998 quase faz com que uma apresentação dele se torne dispensável. No entanto, apontar para algumas características da obra parece-nos produtivo. Embora com incursões por
dramaturgia, conto, poesia e crônica, foi no romance que José Saramago
construiu a parte mais representativa de sua obra. De Manual de pintura
e caligrafia, de 1977, a Caim, de 2009, mais de uma dúzia de títulos aponta para a preponderância do romance sobre outros gêneros e de alguns
questionamentos que se constituíram a tônica da obra do autor: em
torno da História de Portugal, de “ser português”, das relações do país
com seu passado e com seu presente (Manual de pintura e caligrafia,
4
Classificado como “conto” – que aparece como subtítulo –, após a leitura concluímos que,
devido a aspectos técnicos, se trata de um romance, não cabendo aqui, no entanto, a discussão do gênero da obra.
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Memorial do convento, História do cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo
Reis, entre outros); dos percursos humanos em tempos de mundialização da economia e globalização (A caverna, Ensaio sobre a cegueira); a
feroz por vezes e sempre irônica revisão do cristianismo (O evangelho
segundo Jesus Cristo, Caim); as possibilidades trazidas às pessoas comuns
pelo amor e pela transgressão a regras (Manual de pintura e caligrafia,
Todos os nomes, História do cerco de Lisboa). No caso de A viagem do elefante, o livro foi rotulado editorialmente como “conto”, embora possa ser
considerado “romance”. O texto apresenta elementos que apontam para
a retomada do interesse do autor por episódios da História de Portugal.
Nele vemos como protagonistas o elefante que dá título ao livro e Subhro, um indiano, seu tratador, ou, mais precisamente, seu “cornaca”.
Passemos a uma breve paráfrase. D. João III e D. Catarina de
Áustria, que aparecem na primeira página do romance, “mais ou menos
à hora de ir para a cama” (SARAMAGO, 2008, p. 11), dando, em 1851, o
primeiro passo para a “extraordinária viagem de um elefante” (SARAMAGO, 2008, p. 11). A situação de alcova descrita nesta e nas páginas a
seguir lembra aos leitores habituais de José Saramago os encontros entre os monarcas descritos em Memorial do convento e como, neste grande
sucesso da década de 1980, os soberanos e poderosos, especialmente se
portugueses, não contarão com a simpatia do narrador. Retomando, na
referida conversa de alcova, o rei traz à baila a conveniência de presentear de maneira mais digna o primo Maximiliano de Áustria, que naquele momento se encontrava como regente de Espanha em Valladolid.
Após alguma conversa, a rainha lembra: “Temos o salomão” (SARAMAGO, 2008, p. 13), e o narrador esclarece que não se trata do rei de
Judá, mas sim de um elefante, vindo da Índia “há mais de dois anos”.
O livro narra, então, a viagem do elefante, de Lisboa a Valladolid, e
posteriormente a Viena, viagem esta em que o cornaca Subhro tem papel preponderante. Subhro viera da Índia com o elefante e com ele seguiu em viagem. O encontro com o titular do presente, Maximiliano de
Áustria, ocasionará, curiosamente, a troca dos nomes tanto do cornaca –
de Subhro para Fritz – quanto do elefante – de Salomão para Solimão.
Após as aventuras vividas em viagem, incluindo a logística do transporte e um quase incidente diplomático entre Portugal e Áustria, o elefante chega a Viena, morrendo quase dois anos após a chegada, em
dezembro de 1553. Num texto que antecede o livro – espécie de apresentação e nota de agradecimento que não recebeu título, o autor, José
Saramago, conta a gênese da narrativa, ali apondo datas históricas:
“Foi-me dito que se tratava da viagem de um elefante que, no século
XVI, exactamente em 1551, sendo rei D. João III, foi levado de Lisboa a
Viena” (SARAMAGO, 2008, p. 5).
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Nesta obra a presença do “estrangeiro” – o indiano de Goa que
trata do elefante – tem papel preponderante. Os protagonistas da narrativa são, efetivamente, dois: o elefante e seu tratador, sendo que as demais
personagens entram e saem de cena em função da viagem anunciada no
título. Já na sua primeira aparição, cornaca e elefante são vistos juntos,
num cercado em Belém e irmanados por uma circunstância pouco agradável – o abandono em que estão imersos:
Aí está o elefante. Mais pequeno que os seus parentes africanos, adivinha-se, no entanto, por baixo da camada de
sujidade que o cobre, a boa figura com que havia sido contemplado pela natureza. Por que é que este animal está tão
sujo, perguntou o rei, onde está o tratador, suponho que
haverá um tratador. Aproximava-se um homem de rasgos
indianos, coberto por roupas que quase se haviam convertido em andrajos, uma mistura de peças de vestuário de
origem e de fabrico nacional, mal cobertas ou mal cobrindo restos de panos exóticos vindos, com o elefante, naquele mesmo corpo, há dois anos. Era o cornaca (SARAMAGO, 2008, p. 19).
Embora sendo uma personagem secundária da que podemos
denominar como “História oficial”, em A viagem do elefante, no entanto,
Subhro é protagonista, reafirmando a escolha habitual de José Saramago
de privilegiar os pequenos e quase anônimos “atores” da História quando escolhe em suas obras tratar de questões diretamente relacionadas à
História de Portugal. O cornaca desempenha papel central na narrativa,
cabendo a ele, por vezes, escolhas que podem afetar diretamente a política dos países mais poderosos da Europa de então. O momento mais adequado para ilustrar o poder deste pequeno funcionário é aquele em que,
acampados em Pádua à espera de que o arquiduque Maximiliano cumpra sua agenda política na vizinha Veneza, o cornaca é assediado pelo
bispo local, que tenta convencê-lo a forjar um “milagre” performatizado
pelo elefante, que supostamente, se ajoelharia espontaneamente em frente da porta da basílica de Santo Antonio de Pádua. A resposta do cornaca
após a “proposta” merece destaque, por colocar bem, a nosso ver, sua
situação de “estrangeiro”:
Não sei nada de milagres, na minha terra, lá onde eu nasci, não os há desde que o mundo ficou criado, imagino que
toda a criação terá sido um milagre pegado, mas depois
acabaram-se” [...] a mim deram-me uma besuntadela de
cristianismo e baptizado sou, mas talvez ainda se perceba
o que está por baixo [...]. Por exemplo, ganeixa, o deus elefante, aquele que está ali a sacudir-se as orelhas (SARAMAGO, 2008, p. 188).
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Nas páginas que seguem, o cornaca colaborará na fabricação do
milagre pedido pelo sacerdote – que tem a ideia teoricamente motivado
pela necessidade de combater o “estrago causado por Lutero”. Vemos
então como o cornaca está próximo do centro do poder, sendo, neste caso, manipulado pelos poderosos. A manipulação passa por uma instância
curiosamente explorada nesta narrativa em que, desde o início, nomes
próprios e toponímicos são grafados em minúscula – numa tendência que
parece seguir a do autor português contemporâneo Walter Hugo Mãe –
que faz questão de grafar seu nome artístico em minúsculas – e que, na
economia da narrativa saramaguiana, produz o efeito de causar a “diminuição” das personagens da dimensão habitualmente dada pelos hábitos
de leitura que temos. A circunstância curiosa, e que reforça a particular
situação da dupla Subhro e Salomão – cornaca e elefante, é a troca de
seus nomes aventada pelo rei português e implementada pelo arquiduque austríaco.
Vejamos um trecho do início da narrativa em que o monarca português, ao lembrar-se de mandar perguntar o nome do cornaca – dois
anos após a chegada do último a Lisboa – e diante da resposta aventar a
conveniência da mudança do nome próprio: “A resposta transmitida
pelo secretário, deu mais ou menos o seguinte, Subhro. Subro, repetiu
o rei, que diabo de nome é esse, Com agá meu senhor, pelo menos foi o
que ele disse, aclarou o secretário, Devíamos ter-lhe chamado Joaquim
quando chegou a Portugal, resmungou o rei.” (SARAMAGO, 2008, p. 24).
No trecho destacado, curiosamente, todos os nomes aparecem
com inicial maiúscula – seja pela circunstância da pontuação saramaguiana – que faz com que (grifos nossos) Subhro e Subro, apareçam em
maiúscula para evidenciar o diálogo entre o secretário e o rei, seja por
uma escolha autoral que desafia a regra imposta desde a primeira página e que vigorará em quase toda a narrativa: a mencionada escolha por
grafar em minúsculas, de que, no trecho os nomes Joaquim e Portugal
grafados com inicial maiúscula constituem exceção.
A ideia do rei português será retomada pelo arquiduque Maximiliano, que, logo no primeiro encontro com o funcionário – e após haver
decidido antes mesmo da chegada da dupla cornaca-elefante a Valladolid, que mudaria o nome do animal – impõe a Subhro um novo nome
próprio, com a justificativa de facilitar a pronúncia, e operando, na prática uma espécie de nacionalização, que desconsidera Subhro como um
ser independente, livre e dotado de vontade, colocando-o na mesma
categoria do elefante: a de “bem do Estado”. À diferença do contato
com o monarca português, que, em momento algum parece dialogar
diretamente com o cornaca, servindo-se da intermediação do secretário
Pêro de Alcáçova para tanto, o arquiduque Maximiliano se dirige diretamente a Subhro, perguntando, no entanto, num primeiro momento, o
mesmo que D. João III já fizera: qual o nome e seu significado. E agrega
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em sua indagação, em que língua Subhro significa “branco”. A resposta
é que o nome e seu significado estão em Bengali, uma das línguas da
Índia. O monarca, sob o argumento de ser o nome de difícil pronúncia,
informa que ele passará a se chamar Fritz. O cornaca pede licença e se
manifesta no sentido de preferir continuar a chamar-se Subhro, obtendo
como resposta, secamente: “Já decidi, e ficas avisado de que me enfadarei contigo se voltares a pedir-mo, mete na tua cabeça que o teu nome é
fritz e nenhum outro.” (SARAMAGO, 2008, p. 151). Desconsolado, é
com o elefante que Subhro, agora Fritz, desabafa: “Éramos subhro e
salomão, agora seremos fritz e solimão. Não se dirigia a ninguém em
particular, dizia-o a si próprio, sabendo que estes nomes nada significam, mesmo tendo eles vindo ocupar o lugar de outros que, sim, significavam. Nasci para ser subhro e não fritz, pensou.” (SARAMAGO,
2008, p. 151).
Os nomes são uma obsessão na obra saramaguiana, conforme já
tivemos a oportunidade de refletir em vários trabalhos anteriores (SILVA; VENTURA, 2010), mas cremos que aqui se dá uma das mais frutíferas discussões sobre o significado do nome próprio – uma vez que, como
“atrelado” a um “bem de Estado”, o protagonista Subhro perde parte de
sua identidade, já bastante híbrida: cristão, mas também observador do
(e crente no) hinduísmo; indiano,5 mas transplantado a Lisboa e posteriormente a Valladolid e Viena; falando mal o português,6 mas, num certo
sentido, sendo parte do Império português. Na trajetória de Subhro, que
se adapta ao novo nome e à nova monarquia – na tentativa de melhor se
posicionar socialmente de maneira a garantir sua sobrevivência, alguns
episódios merecem destaque. Na partida de Lisboa e na chegada a Gênova evidenciam-se não apenas o amálgama formado por elefante-cornaca,
mas também as relações de Subhro com o poder – que precisa cortejar
para garantir o emprego.
Situado nas franjas do poder oficial, Subhro ou Fritz ou simplesmente “o cornaca” tem uma relação próxima e diretamente de interferência com o que escolhemos chamar de “história que se faz”. O cornaca
Subhro ou Fritz desaparece ao final da narrativa sem deixar rastros. Morto o elefante, ele manifesta o desejo de voltar a Portugal, mas, segundo o
narrador, não há registros de sua entrada no território português. Personagem que pode ter sido calcada em um ser humano com existência histórica comprovada, o cornaca entra na galeria de personagens de José
Saramago como representante da Índia e como “estrangeiro” em trânsito
por vários territórios da Europa do século XVI.
5
“Baptizaram-me na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada, respondeu o
cornaca com um encolher de ombros, Nunca praticaste, Não fui chamado, senhor, devem
ter-se esquecido de mim.” Diálogo do cornaca com o comandante português (SARAMAGO,
2008, p. 69-70).
6
SARAMAGO, 2008, p. 38.
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3 Conclusão
Tanto na obra de Gil Vicente como na de José Saramago, a Índia é
um país distante e apenas referido. Uma miragem que tremula diante dos
olhos do leitor, que fixa-se nas pequenas vidas do marido de Constança e
do cornaca Subhro. Ambos se preocupam com seu sustento, com garantir
sua sobrevivência. Ambos têm uma expectativa de lucros com sua atuação, que é frustrada. Os “negócios da Índia” só trazem grandes resultados para o capitão do navio e para o Reino em Auto da Índia e para os
monarcas e representantes da Igreja em A viagem do elefante. As duas
obras olham a Índia a distância, vendo de perto a vida dos pequenos
diante dos empreendimentos das navegações (Gil Vicente) e das relações
europeias entre famílias de monarcas (José Saramago).
Recebido em setembro de 2010.
Aprovado em outubro de 2010.
Two Portuguese Works Look at India: Auto da India, by Gil Vicente and A viagem do elefante, by
José Saramago.
Abstract
Two Portuguese works separated by almost five centuries, Auto da Índia, by Gil Vicente and
A viagem do elefante, by José Saramago show India as a subjacent country. We examine the
works of these authors and draw attention to the presence of India in both works.
Keywords: Gil Vicente. José Saramago. Auto da Índia. A Viagem do Elefante.
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