Duas obras portuguesas olham para a Índia: Auto da Índia, de Gil Vicente e A viagem do elefante, de José Saramago Susana Ramos Ventura* Resumo Duas obras portuguesas separadas por quase cinco séculos, Auto da Índia, de Gil Vicente e A viagem do elefante, de José Saramago, trazem a Índia como país subjacente. Fazemos reflexões sobre as obras dos autores e destacamos a presença da Índia em ambas as obras. Palavras-chave: Gil Vicente. José Saramago. Auto da Índia. A viagem do elefante. 1 Introdução O primeiro desafio da proposta que gerou este ensaio foi a aproximação de dois autores portugueses separados no tempo por cinco séculos, Gil Vicente e José Saramago, em função especificamente do olhar voltado para a Índia. A escolha da comparação entre um autor que viveu o período das navegações de maneira intensa, Gil Vicente, quando a Índia não passava, para a maior parte dos portugueses (e por extensão dos europeus), de uma miragem, e um autor que produziu sua obra entre o final do século XX e a primeira década do século XXI, quando as questões pós-coloniais estão na ordem do dia, necessitava de um aporte teórico além de uma justificativa. Pois bem, Gil Vicente viveu e produziu sua obra antes da efetiva tomada e exploração colonial, fosse na Índia, fosse em qualquer outra parte. Saramago, nascido em 1922, assistiu à Independência da Índia do domínio inglês (1947) e a todo o processo de descolonização da Ásia e da África, até, no caso português, a devolução dos territórios de Goa à Índia e de Macau à China em 1998. No arco temporal compreendido entre o nascimento de Gil Vicente e aquele de Saramago ocorreram as navegações, a tomada de territórios transformados em colônias, a exploração das mesmas e a organiza* Doutora em Letras. Pesquisadora junto à Universidade Federal de São Paulo, financiada por bolsa de Jovem Pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 195 ção da resistência que levaria, por exemplo, à Independência da Índia no final de década de 1940 e das colônias portuguesas na África na metade da década de 1970. Além disso, a imagem do Oriente foi construída no Ocidente. O que nos pareceu produtivo na aproximação proposta foi olhar esta dupla miragem: a Índia que aparece em Auto da Índia e aquela de A viagem do elefante – distante e intermediada diretamente por duas personagens – a do marido, e a do tratador de elefantes Subhro. O teórico norteador destas reflexões foi o palestino Edward Said, que, em sua obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, coloca o auge da produção teórica do Ocidente, tendo como tema o Oriente, no final do século XVIII e nos ensina que: O Oriente não é apenas adjacente à Europa; é também o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas, seu rival cultural e uma de sua imagens mais profundas e mais recorrentes do Outro. Além disso, o Oriente ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes. Mas nada nesse Oriente é meramente imaginativo. O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia (SAID, 2007, p. 27 e 28). Said (2007, p. 27) chamará de Orientalismo “um modo de abordar o Oriente que tem como fundamento o lugar especial do Oriente na experiência ocidental europeia”. Embora fora do período temporal focalizado preferencialmente pelo teórico, muito de suas reflexões – que, para a presente proposta podem ser sintetizadas no fragmento citado – foram fundamentais. 2 Gil Vicente e José Saramago – rumo à Índia? Passemos, então às obras de Gil Vicente e José Saramago, separadas temporalmente em cerca de quinhentos anos. Em 1509 a farsa Auto da Índia,1 de Gil Vicente, foi apresentada à Corte Portuguesa. Na primeira metade do século XVI, início e auge do período das navegações marítimas é, como dissemos anteriormente, o tempo em que o dramaturgo português cria sua obra, e quando a Índia começa a compor o imaginário de Portugal e do Ocidente como lugar de riquezas, especiarias e mistérios. Gil Vicente foi o primeiro grande homem de teatro da Península Ibérica e, entre 1502 e 1536, escreveu quarenta e quatro peças, entre obras 1 Embora nomeada como “Auto”, trata-se de uma farsa – nas próprias indicações intratexto (como “morre esta farsa”) tal já é perceptível. Ademais, as características da obra em si permitem classificá-la assim. 196 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> de devoção – normalmente rotulados como “autos” e que têm assunto religioso, farsas – em que predomina o elemento cômico, comédias e tragicomédias – que mesclam em si vários gêneros, do romance de cavalaria às alegorias. A situação socioeconômica que se vivia em Portugal no início do século XVI é brilhantemente analisada pelo professor da Universidade de São Paulo, Benjamin Abdala Júnior (1996, p. 9-10), no prefácio que escreve à melhor edição de Auto da Índia disponível no mercado brasileiro: Importava-se de tudo. Era mais fácil adquirir bens como ouro e as especiarias provenientes das Navegações, ficando o trabalho mais pesado para os escravos capturados na África e na Ásia. Nessa situação, a população rural deixava o campo e corria para Lisboa, os artífices afastavam-se das manufaturas, os fidalgos acotovelavam-se em torno do palácio real. Desorganizava-se assim a produção. Todos, inclusive o clero, procuravam usufruir desse vertiginoso afluxo de riquezas. Nessas condições era difícil viver do próprio trabalho. Procurava-se o lucro fácil na empresa comercial-militar das Índias, um monopólio do rei. Cresceu exageradamente o número de servidores da Corte e os que conseguiam seguir viagem só tinham um objetivo, de acordo com uma das personagens do Auto da Índia: pelejar e roubar. Gil Vicente foi um homem do seu tempo, o da transição não apenas entre dois séculos, mas entre duas maneiras de pensar o mundo. Assim sendo, sua obra reflete características medievais e também renascentistas. Os gêneros e metros medievais são mantidos, bem como o emprego de alegorias e símbolos e a temática religiosa. O grupo de personagens se mantém em moldes medievais: os representantes do povo, com suas vestimentas, hábitos e linguagem próprios, além da presença de personagens sobrenaturais e figuras alegóricas (como os anjos e, especialmente, os diabos). No entanto, características renascentistas se fazem presentes, como o emprego de personagens oriundos da mitologia grecoromana, a crítica diante das injustiças sociais e da degradação do clero e – elemento especialmente particular do contexto ibérico – a condenação à perseguição religiosa de cristãos-novos e judeus. Mestre Gil centrou suas preocupações no ser humano de seu tempo, pertencente a todas as classes sociais. Uma grande parcela da obra de vicentina ataca os vícios das classes dominantes: clero e nobreza, e das instituições a que pertencem ou que são regidas por eles. Os nobres aparecem por vezes como tiranos orgulhosos, que desprezam os humildes, inconscientes dos valores humanos que, por sua boa formação deveriam prezar. Os representantes do clero são talvez os mais atacados: suas peças estão plenas de padres e frades beberrões, mulherengos, abusadores e mesquinhos. A Justiça é outra instituição atacada, normalmente pela falta de honradez de seus representantes: juízes, meirinhos, e procuradores Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 197 aparecem como exploradores e usurpadores do povo. Gil Vicente expressou uma cultura religiosa, reiterando valores teocêntricos. Foi homem de fé, católico ortodoxo que professava a crença em Deus e a obediência à Igreja, características que, no entanto, jamais o impediram de ver os erros cometidos pelos homens que dirigiam essa instituição e emitir, em sua obra, julgamentos de valor a esse respeito. Um exemplo da pujança, severidade e poder corrosivo da pena de Gil Vicente é Auto da barca do Inferno. Lembremos, com o professor Segismundo Spina2 da Universidade de São Paulo, que a denominação “auto” estava ligada a “peça em um ato”, e com motivo quase sempre ligado às questões religiosas, como já mencionado. Já as farsas são a parcela da obra vicentina em que o autor foge à retratação de tipos muito marcados que apresentavam limitações dramatúrgicas, no sentido de impedirem um aprofundamento psicológico e narrativo maior, além de que, a denominação “farsa” abrangia a peça em que as falhas humanas menores – notadamente as de caráter sexual – são evidenciadas sem tanto peso. É o caso de Auto da Índia, Farsa de Inês Pereira e O velho da horta. Em Auto da Índia, por exemplo, Gil Vicente conta uma história longa com poucas personagens, que passam por transformações de acordo ao rumo dos acontecimentos que lhes sucedem – escolha essa que aprofunda e focaliza a personagem, que é vista num percurso individual, o que a nosso ver encaminha e prefigura as possibilidades posteriormente exploradas pelo teatro moderno. Aqui somos apresentados à Constança, uma jovem (identificada nas didascálias como “Ama”) que chora e se lamenta perante uma criada (identificada como “Moça”), no início da peça: Moça Jesu! Jesu! que é ora isso? É porque se parte a armada? Ama Olhade a mal estreada! Eu hei-de chorar por isso? Moça Por minh' alma que cuidei e que sempre imaginei, que choráveis por noss' amo. Ama Por qual demo ou por qual gamo, ali, má hora, chorarei? Como me leixa saudosa! Toda eu fico amargurada! Moça Pois por que estais anojada? Dizei-mo, por vida vossa. Ama Leixa-m', ora, eramá,3 que dizem que não vai já. Moça Quem diz esse desconcerto? Ama Dixeram-mo por mui certo que é certo que fica cá. (VICENTE,1996, p. 16). 2 SPINA, Segismundo. Prefácio. In: VICENTE, Gil. O velho da horta, Auto da barca do inferno, Farsa de Inês Pereira. Prefácio e adaptação de Segismundo Spina. Cotia: Ateliê, 2007. 3 “Eramá” significa “em má hora”. 198 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Desta maneira, sabemos de pronto que o marido da Ama Constança (o nome da personagem, revelado por ela no meio da obra é em si mesmo uma ironia – Constança – pois ela é em realidade tanto inconstante quanto, ademais, infiel) está no Restelo a embarcar para a Índia na caravela Garça (saída em 1506, sob comando de Tristão da Cunha), e a esposa chora ao ouvir rumores de que a armada não partirá mais – suspeita desfeita pelas informações que a seguir irá saber a criada. Percebemos, então, o quão calcada na realidade é a situação que Gil Vicente descreve neste auto. O marido parte, deixando a esposa amparada, diferentemente do que ocorria tantas vezes. Diz a criada: Ali eramá! Todas ficassem assi. Leixou-lhe pera três anos trigo, azeite, mel e panos. (VICENTE, 1996, p. 18). As imagens que temos da Índia neste auto são mesmo como miragens – vemos a partida do marido sendo pensada pela esposa e pela criada, que ademais comparece ao cais e vê o movimento das embarcações, e depois sabemos da Índia pelas palavras do marido, que regressa com a pele mais queimada do que era esperado e menos rico do que sonhava. A peça, denominada Auto da Índia, não se passa na Índia e nem mostra o cotidiano dos que para lá foram, mas sim se centra nas infidelidades de Constança antes e depois da partida do marido e na volta dele. O pequeno grupo de personagens de Auto da Índia estará composto pela Ama Constança; sua criada, a Moça; os dois amantes que a Ama tem na ausência do marido; e, por fim, pelo próprio marido, que retorna após três anos no mar. Quase cinco séculos depois, em 2008 é publicado A viagem do elefante,4 de José Saramago, talvez hoje o autor português mais conhecido e lido no mundo. A notabilidade de que desfrutou após a atribuição do Prêmio Nobel de Literatura em 1998 quase faz com que uma apresentação dele se torne dispensável. No entanto, apontar para algumas características da obra parece-nos produtivo. Embora com incursões por dramaturgia, conto, poesia e crônica, foi no romance que José Saramago construiu a parte mais representativa de sua obra. De Manual de pintura e caligrafia, de 1977, a Caim, de 2009, mais de uma dúzia de títulos aponta para a preponderância do romance sobre outros gêneros e de alguns questionamentos que se constituíram a tônica da obra do autor: em torno da História de Portugal, de “ser português”, das relações do país com seu passado e com seu presente (Manual de pintura e caligrafia, 4 Classificado como “conto” – que aparece como subtítulo –, após a leitura concluímos que, devido a aspectos técnicos, se trata de um romance, não cabendo aqui, no entanto, a discussão do gênero da obra. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 199 Memorial do convento, História do cerco de Lisboa, O ano da morte de Ricardo Reis, entre outros); dos percursos humanos em tempos de mundialização da economia e globalização (A caverna, Ensaio sobre a cegueira); a feroz por vezes e sempre irônica revisão do cristianismo (O evangelho segundo Jesus Cristo, Caim); as possibilidades trazidas às pessoas comuns pelo amor e pela transgressão a regras (Manual de pintura e caligrafia, Todos os nomes, História do cerco de Lisboa). No caso de A viagem do elefante, o livro foi rotulado editorialmente como “conto”, embora possa ser considerado “romance”. O texto apresenta elementos que apontam para a retomada do interesse do autor por episódios da História de Portugal. Nele vemos como protagonistas o elefante que dá título ao livro e Subhro, um indiano, seu tratador, ou, mais precisamente, seu “cornaca”. Passemos a uma breve paráfrase. D. João III e D. Catarina de Áustria, que aparecem na primeira página do romance, “mais ou menos à hora de ir para a cama” (SARAMAGO, 2008, p. 11), dando, em 1851, o primeiro passo para a “extraordinária viagem de um elefante” (SARAMAGO, 2008, p. 11). A situação de alcova descrita nesta e nas páginas a seguir lembra aos leitores habituais de José Saramago os encontros entre os monarcas descritos em Memorial do convento e como, neste grande sucesso da década de 1980, os soberanos e poderosos, especialmente se portugueses, não contarão com a simpatia do narrador. Retomando, na referida conversa de alcova, o rei traz à baila a conveniência de presentear de maneira mais digna o primo Maximiliano de Áustria, que naquele momento se encontrava como regente de Espanha em Valladolid. Após alguma conversa, a rainha lembra: “Temos o salomão” (SARAMAGO, 2008, p. 13), e o narrador esclarece que não se trata do rei de Judá, mas sim de um elefante, vindo da Índia “há mais de dois anos”. O livro narra, então, a viagem do elefante, de Lisboa a Valladolid, e posteriormente a Viena, viagem esta em que o cornaca Subhro tem papel preponderante. Subhro viera da Índia com o elefante e com ele seguiu em viagem. O encontro com o titular do presente, Maximiliano de Áustria, ocasionará, curiosamente, a troca dos nomes tanto do cornaca – de Subhro para Fritz – quanto do elefante – de Salomão para Solimão. Após as aventuras vividas em viagem, incluindo a logística do transporte e um quase incidente diplomático entre Portugal e Áustria, o elefante chega a Viena, morrendo quase dois anos após a chegada, em dezembro de 1553. Num texto que antecede o livro – espécie de apresentação e nota de agradecimento que não recebeu título, o autor, José Saramago, conta a gênese da narrativa, ali apondo datas históricas: “Foi-me dito que se tratava da viagem de um elefante que, no século XVI, exactamente em 1551, sendo rei D. João III, foi levado de Lisboa a Viena” (SARAMAGO, 2008, p. 5). 200 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Nesta obra a presença do “estrangeiro” – o indiano de Goa que trata do elefante – tem papel preponderante. Os protagonistas da narrativa são, efetivamente, dois: o elefante e seu tratador, sendo que as demais personagens entram e saem de cena em função da viagem anunciada no título. Já na sua primeira aparição, cornaca e elefante são vistos juntos, num cercado em Belém e irmanados por uma circunstância pouco agradável – o abandono em que estão imersos: Aí está o elefante. Mais pequeno que os seus parentes africanos, adivinha-se, no entanto, por baixo da camada de sujidade que o cobre, a boa figura com que havia sido contemplado pela natureza. Por que é que este animal está tão sujo, perguntou o rei, onde está o tratador, suponho que haverá um tratador. Aproximava-se um homem de rasgos indianos, coberto por roupas que quase se haviam convertido em andrajos, uma mistura de peças de vestuário de origem e de fabrico nacional, mal cobertas ou mal cobrindo restos de panos exóticos vindos, com o elefante, naquele mesmo corpo, há dois anos. Era o cornaca (SARAMAGO, 2008, p. 19). Embora sendo uma personagem secundária da que podemos denominar como “História oficial”, em A viagem do elefante, no entanto, Subhro é protagonista, reafirmando a escolha habitual de José Saramago de privilegiar os pequenos e quase anônimos “atores” da História quando escolhe em suas obras tratar de questões diretamente relacionadas à História de Portugal. O cornaca desempenha papel central na narrativa, cabendo a ele, por vezes, escolhas que podem afetar diretamente a política dos países mais poderosos da Europa de então. O momento mais adequado para ilustrar o poder deste pequeno funcionário é aquele em que, acampados em Pádua à espera de que o arquiduque Maximiliano cumpra sua agenda política na vizinha Veneza, o cornaca é assediado pelo bispo local, que tenta convencê-lo a forjar um “milagre” performatizado pelo elefante, que supostamente, se ajoelharia espontaneamente em frente da porta da basílica de Santo Antonio de Pádua. A resposta do cornaca após a “proposta” merece destaque, por colocar bem, a nosso ver, sua situação de “estrangeiro”: Não sei nada de milagres, na minha terra, lá onde eu nasci, não os há desde que o mundo ficou criado, imagino que toda a criação terá sido um milagre pegado, mas depois acabaram-se” [...] a mim deram-me uma besuntadela de cristianismo e baptizado sou, mas talvez ainda se perceba o que está por baixo [...]. Por exemplo, ganeixa, o deus elefante, aquele que está ali a sacudir-se as orelhas (SARAMAGO, 2008, p. 188). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 201 Nas páginas que seguem, o cornaca colaborará na fabricação do milagre pedido pelo sacerdote – que tem a ideia teoricamente motivado pela necessidade de combater o “estrago causado por Lutero”. Vemos então como o cornaca está próximo do centro do poder, sendo, neste caso, manipulado pelos poderosos. A manipulação passa por uma instância curiosamente explorada nesta narrativa em que, desde o início, nomes próprios e toponímicos são grafados em minúscula – numa tendência que parece seguir a do autor português contemporâneo Walter Hugo Mãe – que faz questão de grafar seu nome artístico em minúsculas – e que, na economia da narrativa saramaguiana, produz o efeito de causar a “diminuição” das personagens da dimensão habitualmente dada pelos hábitos de leitura que temos. A circunstância curiosa, e que reforça a particular situação da dupla Subhro e Salomão – cornaca e elefante, é a troca de seus nomes aventada pelo rei português e implementada pelo arquiduque austríaco. Vejamos um trecho do início da narrativa em que o monarca português, ao lembrar-se de mandar perguntar o nome do cornaca – dois anos após a chegada do último a Lisboa – e diante da resposta aventar a conveniência da mudança do nome próprio: “A resposta transmitida pelo secretário, deu mais ou menos o seguinte, Subhro. Subro, repetiu o rei, que diabo de nome é esse, Com agá meu senhor, pelo menos foi o que ele disse, aclarou o secretário, Devíamos ter-lhe chamado Joaquim quando chegou a Portugal, resmungou o rei.” (SARAMAGO, 2008, p. 24). No trecho destacado, curiosamente, todos os nomes aparecem com inicial maiúscula – seja pela circunstância da pontuação saramaguiana – que faz com que (grifos nossos) Subhro e Subro, apareçam em maiúscula para evidenciar o diálogo entre o secretário e o rei, seja por uma escolha autoral que desafia a regra imposta desde a primeira página e que vigorará em quase toda a narrativa: a mencionada escolha por grafar em minúsculas, de que, no trecho os nomes Joaquim e Portugal grafados com inicial maiúscula constituem exceção. A ideia do rei português será retomada pelo arquiduque Maximiliano, que, logo no primeiro encontro com o funcionário – e após haver decidido antes mesmo da chegada da dupla cornaca-elefante a Valladolid, que mudaria o nome do animal – impõe a Subhro um novo nome próprio, com a justificativa de facilitar a pronúncia, e operando, na prática uma espécie de nacionalização, que desconsidera Subhro como um ser independente, livre e dotado de vontade, colocando-o na mesma categoria do elefante: a de “bem do Estado”. À diferença do contato com o monarca português, que, em momento algum parece dialogar diretamente com o cornaca, servindo-se da intermediação do secretário Pêro de Alcáçova para tanto, o arquiduque Maximiliano se dirige diretamente a Subhro, perguntando, no entanto, num primeiro momento, o mesmo que D. João III já fizera: qual o nome e seu significado. E agrega 202 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> em sua indagação, em que língua Subhro significa “branco”. A resposta é que o nome e seu significado estão em Bengali, uma das línguas da Índia. O monarca, sob o argumento de ser o nome de difícil pronúncia, informa que ele passará a se chamar Fritz. O cornaca pede licença e se manifesta no sentido de preferir continuar a chamar-se Subhro, obtendo como resposta, secamente: “Já decidi, e ficas avisado de que me enfadarei contigo se voltares a pedir-mo, mete na tua cabeça que o teu nome é fritz e nenhum outro.” (SARAMAGO, 2008, p. 151). Desconsolado, é com o elefante que Subhro, agora Fritz, desabafa: “Éramos subhro e salomão, agora seremos fritz e solimão. Não se dirigia a ninguém em particular, dizia-o a si próprio, sabendo que estes nomes nada significam, mesmo tendo eles vindo ocupar o lugar de outros que, sim, significavam. Nasci para ser subhro e não fritz, pensou.” (SARAMAGO, 2008, p. 151). Os nomes são uma obsessão na obra saramaguiana, conforme já tivemos a oportunidade de refletir em vários trabalhos anteriores (SILVA; VENTURA, 2010), mas cremos que aqui se dá uma das mais frutíferas discussões sobre o significado do nome próprio – uma vez que, como “atrelado” a um “bem de Estado”, o protagonista Subhro perde parte de sua identidade, já bastante híbrida: cristão, mas também observador do (e crente no) hinduísmo; indiano,5 mas transplantado a Lisboa e posteriormente a Valladolid e Viena; falando mal o português,6 mas, num certo sentido, sendo parte do Império português. Na trajetória de Subhro, que se adapta ao novo nome e à nova monarquia – na tentativa de melhor se posicionar socialmente de maneira a garantir sua sobrevivência, alguns episódios merecem destaque. Na partida de Lisboa e na chegada a Gênova evidenciam-se não apenas o amálgama formado por elefante-cornaca, mas também as relações de Subhro com o poder – que precisa cortejar para garantir o emprego. Situado nas franjas do poder oficial, Subhro ou Fritz ou simplesmente “o cornaca” tem uma relação próxima e diretamente de interferência com o que escolhemos chamar de “história que se faz”. O cornaca Subhro ou Fritz desaparece ao final da narrativa sem deixar rastros. Morto o elefante, ele manifesta o desejo de voltar a Portugal, mas, segundo o narrador, não há registros de sua entrada no território português. Personagem que pode ter sido calcada em um ser humano com existência histórica comprovada, o cornaca entra na galeria de personagens de José Saramago como representante da Índia e como “estrangeiro” em trânsito por vários territórios da Europa do século XVI. 5 “Baptizaram-me na índia quando eu era pequeno, E depois, Depois, nada, respondeu o cornaca com um encolher de ombros, Nunca praticaste, Não fui chamado, senhor, devem ter-se esquecido de mim.” Diálogo do cornaca com o comandante português (SARAMAGO, 2008, p. 69-70). 6 SARAMAGO, 2008, p. 38. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 48, p. 195-205, jul./dez. 2010 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 203 3 Conclusão Tanto na obra de Gil Vicente como na de José Saramago, a Índia é um país distante e apenas referido. Uma miragem que tremula diante dos olhos do leitor, que fixa-se nas pequenas vidas do marido de Constança e do cornaca Subhro. Ambos se preocupam com seu sustento, com garantir sua sobrevivência. Ambos têm uma expectativa de lucros com sua atuação, que é frustrada. Os “negócios da Índia” só trazem grandes resultados para o capitão do navio e para o Reino em Auto da Índia e para os monarcas e representantes da Igreja em A viagem do elefante. As duas obras olham a Índia a distância, vendo de perto a vida dos pequenos diante dos empreendimentos das navegações (Gil Vicente) e das relações europeias entre famílias de monarcas (José Saramago). Recebido em setembro de 2010. Aprovado em outubro de 2010. Two Portuguese Works Look at India: Auto da India, by Gil Vicente and A viagem do elefante, by José Saramago. Abstract Two Portuguese works separated by almost five centuries, Auto da Índia, by Gil Vicente and A viagem do elefante, by José Saramago show India as a subjacent country. We examine the works of these authors and draw attention to the presence of India in both works. Keywords: Gil Vicente. José Saramago. Auto da Índia. A Viagem do Elefante. Referências ABDALA JÚNIOR, B. 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