RAFAEL COSTA SANTOS O PRONOME EN QUANTITATIVO, SUTIL ESTRUTURA DOS SISTEMAS QUANTITATIVO E PRONOMINAL DA LÍNGUA FRANCESA Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Letras Francês – Bacharelado em Estudos Lingüísticos da Universidade Federal do Paraná - UFPR. Orientador: Prof. Eduardo Nadalin CURITIBA 2007 ii Dedico esta monografia a minha família e à minha namorada Scheila. AGRADECIMENTOS À minha família, pelo carinho e apoio de sempre. Ao meu orientador Eduardo Nadalin, pelo norte fundamental que me deu, pela amizade, pela ajuda e pela enorme paciência. Às minhas professoras Nathalie Mendonça, Lucia Cherem, Sandra Monteiro e Sandra Novaes, pelos ensinamentos, pela paciência, pelo incentivo que me deram em tantas ocasiões. À minha querida Scheilinha. iii SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................Erro! Indicador não definido. 1 COMO ALGUMAS GRAMÁTICAS E FORUM (LIVRO DIDÁTICO DE FLE) APRESENTAM O PRONOME EN ...........................................................................4 1.1 Le bon usage.........................................................................................................4 1.1.1 Valor adverbial ...................................................................................................5 1.1.2 Valor de pronome pessoal..................................................................................5 1.1.2.1 Complemento de um verbo .............................................................................5 1.1.2.2 Complemento de um nome .............................................................................5 1.1.2.3 Complemento de um adjetivo..........................................................................5 1.1.2.4 Complemento de um advérbio de quantidade.................................................5 1.1.3 Significado partitivo .................................................Erro! Indicador não definido. 1.1.4 Pronome neutro.......................................................Erro! Indicador não definido. 1.1.5 Expressões de quantidade .................................................................................8 1.2 Grammaire Structurale du Français: nom et pronom ..........................................10 1.3 Grammaire pour l’enseignement/apprentissage du FLE .....................................12 1.3.1 Os pronomes de terceira pessoa “complementos” do verbo ............................13 1.3.2 A quantificação: retomada do nome quantificado pelo pronome en.................13 1.3.3 A situação no espaço .......................................................................................15 1.4 Forum ..................................................................................................................15 2 DUAS ABORDAGENS LINGÜÍSTICAS SOBRE O EN QUANTITATIVO .............22 2.1 Determinantes complexos de quantidade ...........................................................22 2.2 En quantitativo e en adnominal ...........................................................................24 2.3 A proposta de Kalmbach .....................................................................................26 2.3.1 O pronome en pode substituir um COD introduzido por um determinante indefinido ....................................................................................27 3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O EN QUANTITATIVO ...................................34 3.1 Ponderações sobre as dificuldades dos aprendizes brasileiros com o pronome en ......................................................................................................34 3.2 Considerações sobre a nomenclatura relativa ao pronome en ...........................42 CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................48 REFERÊNCIAS ........................................................................................................50 1 INTRODUÇÃO GERAL Nos anos em que vimos trabalhando no ensino de francês como língua estrangeira (FLE), dando aulas para estudantes universitários oriundos de diversas áreas de conhecimento, entre outras pessoas envolvidas em outros tipos de atividades, tivemos a oportunidade de observar as aptidões e dificuldades apresentadas pelos falantes da língua portuguesa do Brasil no aprendizado da língua francesa. Dentre as dificuldades, uma ganha grande destaque e relevo: a dificuldade para entender o funcionamento e para utilizar com propriedade uma pequena partícula, sem equivalente na língua portuguesa: o pronome en. Mesmo em níveis bastante avançados de estudo da língua, é bastante raro encontrar aprendizes que utilizem regular e corretamente o pronome en, em qualquer das suas várias acepções. O autor de uma das principais fontes bibliográficas consultadas para este trabalho, Kalmbach (2005), debruçou-se atentamente sobre as particulares dificuldades apresentadas no entendimento e uso efetivo do pronome en por aprendizes de FLE falantes do finlandês. Acreditamos poder corroborar, a partir de nossa própria experiência de ensino, as palavras de Kalmbach no que se refere à relação entre a utilização automática de en e à proficiência na língua francesa: Nous estimons personnellement d’après notre expérience d’enseignement que l’utilisation automatique de en est une des marques d’une bonne maîtrise du français et que tant qu’elle n’est pas automatique, l’apprenant a encore du chemin à faire, quel que soit son niveau par ailleurs. (KALMBACH, 2005, p. 131) Um problema relacionado ao ensino do pronome en é o fato de que a descrição de sua natureza e funções não é feita de maneira uniforme nas diversas gramáticas da língua francesa e livros didáticos de FLE. Ao contrário, encontra-se variedade de abordagens, de classificações, de nomenclatura, de tipologias. Cada publicação trata em maior ou menor detalhe de um ou outro uso, um ou outro aspecto, com mais ou menos acerto. Estes fatos parecem ser também verdadeiros na Finlândia, se considerarmos o que diz Kalmbach a esse respeito: “La présentation de en et y se 2 fait de manière très disparate selon les manuels et il est difficile de dégager des lignes d’approche communes.” (KALMBACH, 2005, p. 141) Diante dessa variedade no modo de apresentação de en nas diferentes obras, os professores de FLE com freqüência se encontram em apuros no momento em que devem escolher a melhor forma de explicar os usos do pronome, ou os melhores materiais teóricos ou didáticos por meio dos quais apresentá-lo. É comum a situação em que um professor, havendo, por exemplo, selecionado um documento original para trabalhar junto a seus alunos, depare-se ali com uma ocorrência de en sobre a qual não encontre explicação em nenhuma das gramáticas e livros a que tenha acesso. Por outro lado, em trabalhos acadêmicos de lingüística podem-se encontrar respostas ou encaminhamentos de soluções para os problemas e dúvidas concernentes ao assunto. O objetivo geral deste trabalho, portanto, é o de propor uma reflexão sobre alguns modos de apresentar gramatical, didática e lingüisticamente o pronome en. Mais especificamente, pretendemos ponderar sobre as dificuldades dos aprendizes brasileiros de FLE, como também o modo de exposição conferido por diferentes autores para a acepção quantitativa do pronome. Devido à complexidade apresentada pelo conjunto dos empregos desse pronome, decidimos abordar em maior detalhe uma das suas acepções, o en dito quantitativo (capítulo 2), e propor uma reflexão geral sobre o seu caráter pronominal, as vicissitudes do seu uso no quadro mais amplo dos sistemas quantitativo e pronominal do francês, em conexão com os motivos para as dificuldades encontradas pelos aprendizes brasileiros de FLE em dominar o seu funcionamento. Para dar início a essa empreitada, em nosso primeiro capítulo, procedemos a uma análise de conjunto dos modos de apresentação propostos para os vários empregos de en em algumas gramáticas, e no livro didático de FLE utilizado atualmente (dezembro de 2007) pelo Centro de Línguas e Interculturalidade (CELIN) da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A proposta principal desta análise é o de identificar pontos fracos e fortes, aportes interessantes e lacunas, e ilustrar a disparidade das interpretações que se pode encontrar para essa importante estrutura da língua francesa. Ao longo de nossa exposição das explicações e sistematizações encontradas nas diferentes publicações, vamos tecendo reflexões, levantando 3 problemas e contrastando as interpretações ali presentes com soluções propostas por outros autores, gramáticos ou lingüistas. Com a exposição que empreendemos no primeiro capítulo, pretendemos apresentar uma visão geral dos usos do pronome en, pela ótica dos materiais que, de costume, formam as percepções que professores e aprendizes de FLE dele têm, de um modo geral. Como o emprego de en de que nos ocupamos nos capítulos subseqüentes é o quantitativo, neste primeiro capítulo, cotejamos interpretações propostas nas gramáticas e em Forum com as de lingüistas no tocante, sobretudo, às demais acepções do pronome, ao mesmo passo em que nos abstemos de apresentar em maior detalhe as visões dos lingüistas sobre o en quantitativo, o que reservamos para o segundo capítulo. Neste segundo capítulo, então, conforme dissemos acima, enfocamos o emprego quantitativo do pronome en, apresentando as contribuições de dois lingüistas que trataram do pronome com perspectivas diferentes, mas complementares: Kalmbach (2005) e Véronique Lagae (2001). Confrontando as percepções desses dois autores com os questionamentos suscitados e problemas levantados no primeiro capítulo, pelas exposições gramaticais e didáticas do en quantitativo, fazemos então algumas considerações e indicamos aquelas que nos parecem ser boas soluções para o tratamento do pronome en dito quantitativo. No terceiro capítulo fazemos uma reflexão sobre o funcionamento dos sistemas pronominal e quantitativo da língua francesa em geral, contrastando-os com os do português, de modo a identificar alguns dos motivos que permitem explicar dificuldades particulares dos aprendizes brasileiros de FLE no trato com pronomes, quantificadores e determinantes indefinidos franceses, e em especial com en. A seguir, fazemos considerações gerais sobre alguns dos termos presentes na nomenclatura utilizada na descrição de en quantitativo, entre eles o próprio termo “quantitativo”, e sugerimos determinadas denominação adequada de en, com fins didáticos. escolhas para a 4 1 COMO ALGUMAS GRAMÁTICAS E FORUM (LIVRO DIDÁTICO DE FLE) APRESENTAM O PRONOME EN O pronome en é abordado de maneira variada e freqüentemente um tanto confusa e/ou incompleta em muitas gramáticas do francês e livros didáticos de francês como língua estrangeira (FLE). Como se trata de uma estrutura essencial da língua francesa que não tem um equivalente exato na língua portuguesa para nenhuma de suas variadas acepções, os professores e aprendizes brasileiros do FLE, ante a deficiência das abordagens gramaticais e didáticas no tocante a esse pronome, com freqüência se deparam com dificuldades no ensino/aprendizado de cada um dos seus empregos. Neste primeiro capítulo, procederemos a uma exposição e faremos alguns questionamentos críticos acerca do tratamento dado a en por três gramáticas francesas, com perspectivas diferentes entre si, e por Forum, o livro didático de FLE utilizado atualmente pelo Centro de Línguas e Interculturalidade da Universidade Federal do Paraná. O objetivo desta exposição é o de proporcionar uma visão do tipo de material a partir do qual, de costume, professores e aprendizes formam a sua percepção do pronome en. Como essas publicações abordam o assunto de maneira diversa, cada qual tratando em maior ou menor detalhe de uma ou outra de suas especificidades, nossa exposição pretende, por um lado, mostrar as lacunas de cada publicação no que se refere a en, mas, por outro lado, também pretende proporcionar uma visão mais ampla sobre o pronome. A despeito de apresentarem lacunas, essas obras trazem informações importantes e esclarecedoras, que não podem nem devem ser negligenciadas e, em certa medida, se complementam. 1.1 Le bon usage (Maurice Grevisse, 1953) Nessa obra (p. 386), o autor diz que en é um advérbio pronominal, ou um pronome adverbial, que possui: 1.1.1 Valor adverbial quando significa “de là, de l’endroit dont il s’agit”. 5 [1] De ce lieu-ci je sortirai, après quoi je t’EN tirerai. (La F., F., III, 5, citado em GREVISSE, 1953, p. 386) 1.1.2 Valor de pronome pessoal quando representa um nome construído com a preposição de, que pode ser: 1.1.2.1 Complemento de um verbo: [2] On a voulu lui donner une mission officielle, il s’EN est dispensé. (Ac., citado em GREVISSE, 1953, p. 386) Diferentemente do que, conforme veremos adiante, fazem outros autores, Grevisse não usa o termo objeto indireto (doravante COI, do francês complément d’objet indirect) para se referir ao complemento de verbo a que se refere. 1.1.2.2 Complemento de um nome: [3] J’aime beaucoup Paris et j’EN admire les monuments (Ac., citado em GREVISSE, 1953, p. 386) 1.1.2.3 Complemento de um adjetivo: [4] C’est un fâcheux événement: j’EN suis tout triste. (GREVISSE, 1953, p. 386) 1.1.2.4 Complemento de um advérbio de quantidade: Grevisse não dá um exemplo do que entende por esse uso de en como substituto de um nome complemento de advérbio de quantidade. De todo modo, não aprofundaremos aqui este ponto, pois o faremos no início do capítulo 2. Como veremos, o uso a que o autor parece estar se referindo é um tanto controverso e recebe interpretações diversas em diferentes autores, sendo descrito por meio de uma nomenclatura distinta por cada um deles. 6 1.1.3 Significado partitivo: [5] Avez-vous des fruits? J’EN ai beaucoup. Donnez-m’EN quelques-uns. (GREVISSE, 1953, p. 386) A definição de en como tendo um significado partitivo é controversa, como também o é a noção de artigo partitivo, e está relacionada à complexidade do próprio sistema de quantificação do francês. Geneviève-Dominique de Salins (1996, p. 66), ao comentar sobre as dificuldades dos estrangeiros em dominar esse sistema, diz que gramáticas e professores nem sempre estão de acordo em suas explicações, e que o ponto de vista de cada gramática ou de cada professor traz informações diversas e variadas que tornam essa questão gramatical muito confusa. Alguns distinguem duas categorias gramaticais: os partitivos e os indefinidos. Entre os partitivos, alguns classificam du, de la, de l’ e des. Outros excluem des, que é justamente o artigo implicado no exemplo [5] de Grevisse. Kalmbach (2005) questiona a validade da própria idéia de partitividade, e, sobretudo, a sua adequação para a descrição do funcionamento do pronome en, como veremos no segundo capítulo. Além do que foi dito acima sobre a controvérsia acerca da associação desse emprego do pronome com a noção de partitividade, achamos importante ressaltar aqui que, como no caso do uso de en descrito no item 1.1.2, neste outro uso ele também pode ser entendido como tendo o valor de um pronome pessoal, com a diferença de que no caso do item 1.1.2 se trata do valor de um pronome pessoal em função de COI, ao passo que no item 1.1.3 trata-se de um pronome pessoal em função de objeto direto (doravante COD, do francês complément d’objet direct). 1.1.4 Pronome neutro: Grevisse diz ainda que en é um pronome neutro quando significa de cela, caso em que representa uma idéia ou uma oração: [6] Il a été clément jusqu’à être obligé de s’EN repentir. (Boss, Reine d’Angl. citado em GREVISSE, 1953, p. 386) 7 Grevisse não relaciona o emprego de en como substituto de oração com aqueles descritos nos itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e 1.1.2.3 acima, o que, a nosso ver, seria o caso. Na realidade, para que se pudesse fazer essa relação, seria preciso modificar um detalhe: esses itens se referem somente à representação por en de um nome, quando no item 1.1.4 se trata da representação de uma oração. Vejamos, através de alguns exemplos, como o complemento construído com a preposição de, seja de um verbo, seja de um nome, seja de um adjetivo, pode ser representado por en, tanto se for um nome (cf. itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e 1.1.2.3), quanto se for uma oração (cf. item 1.1.4). [7] Corinne se souvient très bien d’avoir été jeune un jour. Elle s’en souvient très bien. [8] Corinne se souvient de sa jeunesse. Elle s’en souvient même très bien. Em [7] e [8], respectivamente, d’avoir été jeune un jour, uma oração, e de sa jeunesse, um nome, são ambos complementos, construídos com a preposição de, do verbo se souvenir. Na segunda frase de cada exemplo esses complementos, estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os usos evocados nos itens 1.1.4 e 1.1.2.1). [9] Corinne a honte de se montrer nue devant son mari. Elle en a très honte. [10] Corinne a honte de sa nudité. Elle en a très honte. Em [9] e [10], respectivamente, de se montrer nue devant son mari, uma oração, e de sa nudité, um nome, são ambos complementos, construídos com a preposição de, do nome honte. Na segunda frase de cada exemplo esses complementos estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os usos evocados nos itens 1.1.4 e 1.1.2.2. [11] Corinne est contente de s’être mariée avec un homme si patient. Elle en est si contente qu’elle s’en félicite tous les jours. 8 [12] Corinne est contente de son mariage. Elle en est si contente qu’elle s’en félicite tous les jours. Em [11] e [12], respectivamente, de s’être mariée avec un homme si patient, uma oração, e de son mariage, um nome, são ambos complementos, construídos com a preposição de, do adjetivo contente. Na segunda frase de cada exemplo, esses complementos estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os usos evocados nos itens 1.1.4 e 1.1.2.3). Como podemos ver, bastaria que se incluísse o termo oração ao lado do termo nome na descrição dos empregos de en referidos nos itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e 1.1.2.3, para que o uso descrito no item 1.1.4 estivesse previsto. O mesmo não se pode dizer do uso descrito no item 1.1.2.4. De fato, o complemento de advérbio de quantidade não pode ser uma oração, o que pode servir de argumento para incluí-lo numa outra categoria de emprego de en, como veremos no segundo capítulo. 1.1.5 Expressões de quantidade Grevisse diz que as expressões de quantidade un, deux, quelques-uns, beaucoup, plusieurs, peu, plus d’un, un autre, d’autres, une foule, un grand nombre, etc., quando utilizadas como sujeitos reais com as formas impessoais, como atributos ou ainda como objetos diretos, apóiam-se no pronome en que as precede. Nos exemplos seguintes, fornecidos por Grevisse, un (no primeiro exemplo), un autre e quelques-uns, são, respectivamente, sujeito real, atributo e objeto direto: [13] Et s’il n’EN reste qu’un, je serai celui-là! (Hugo, Châtim. VII, 16, citado em GREVISSE, 1953, p. 386) [14] Pierre est un savant; vous EN êtes un autre. (GREVISSE, 1953, p. 386) [15] Oh, les beaux fruits que vous avez, donnez-m’EN quelques-uns. (Ac. citado em GREVISSE, 1953, p. 386) 9 Kalmbach (2005) explica esse fato lingüístico de um modo mais simples e completo, a nosso ver, ao mostrar: - que en pode substituir um grupo nominal (GN) precedido por um determinante indefinido. - que en pode substituir um GN com a função sintática de complemento de objeto direto (COD), de atributo do sujeito ou de sujeito real (e isso, mesmo na ausência das expressões de quantidade mencionadas acima por Grevisse). - que, quando o determinante indefinido que precede o GN substituído por en não é um artigo indefinido iniciado em d-, caso das expressões de quantidade mencionadas por Grevisse, esse determinante deve ser retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. Como veremos, outros autores associam o uso de en descrito no item 1.1.5 ao descrito no item 1.1.3. Trataremos disso em mais detalhe no segundo capítulo, quando estivermos falando sobre o objeto central de nosso estudo, que é o uso de en descrito no item 1.1.3 acima. No item 1.1.2.4, onde Grevisse fala no uso de en para representar o complemento de um advérbio de quantidade sem, no entanto, dar um exemplo desse uso, parece-nos que também se trate de um uso em conexão com o descrito no item 1.1.5 acima, como veremos no segundo capítulo. Grevisse (1953 p. 386) diz que en, utilizado como pronome pessoal, representa, principalmente, animais, coisas ou idéias abstratas, mas que, às vezes, é usado também para designar pessoas (1953 p. 387): [16] Trois fois par semaine elle EN recevait une lettre (de sa fille) (Flaub., Trois Contes, p. 35, citado em GREVISSE, 1953, p. 387) Para representar pessoas, diz Grevisse, o mais das vezes, utiliza-se o pronome pessoal propriamente dito: [17] Les services que j’ai reçus DE LUI. (GREVISSE, 1953, p. 387) Exceto, segundo o autor, quando en tem um valor partitivo: 10 [18] A-t-il des amis? Il n’EN a qu’un seul. (Ac. , citado em GREVISSE, 1953, p. 387) Do modo como Grevisse formula essas regras, pode-se ter a impressão de que a representação de uma pessoa pelo pronome en é excepcional. Como veremos no segundo capítulo, quando en substitui um COD, um atributo do sujeito, ou um sujeito real, pode representar pessoas. É a este emprego do pronome que Grevisse está aludindo quando fala em en com valor partitivo. Além disso, a distinção entre “en utilizado como pronome pessoal” e um “pronome pessoal propriamente dito” talvez não seja muito esclarecedora. O uso de en como substituto de COD, atributo do sujeito, e sujeito real, pelo menos, também pode ser entendido como o de um pronome pessoal. Vejamos agora como um outro autor descreve as funções desempenhadas pelo pronome en. 1.2 Grammaire Structurale du Français: nom et pronom (Jean Dubois, 1965) Nesta obra (p. 137), Dubois afirma que en é um substituto como os demais pronomes pessoais. Ora, como vimos, Grevisse fala em en como um advérbio pronominal, ou um pronome adverbial, que pode ser “utilizado como um pronome pessoal”, e parece distingui-lo de um “pronome pessoal propriamente dito”. Dubois, por sua vez, fala em um en “como os demais pronomes pessoais”, sem mais. Dubois (1965, p. 139) diz que o pronome en substitui um grupo nominal (GN) precedido pela preposição de, qualquer que seja a exploração semântica desse GN. Conforme a gramática que se consulte, diz o autor, as explorações semânticas de en podem ser descritas como adjunto adverbial de lugar, COI, COD com artigo partitivo, etc. Segundo Dubois, não é a função semântica que determina o emprego de en, mas a correspondência com o GN precedido pela preposição de. Ora, a regra formulada por Dubois parece sugerir que um GN precedido por de que seja inclusive um sujeito pode ser substituído por en, o que não é verdade, a não ser no caso de um sujeito real, como veremos no segundo capítulo. Não nos aprofundaremos nesse ponto, por não ser o nosso objetivo neste trabalho, mas desejamos mencionar, para mostrar como o ponto não é unânime, que 11 Kalmbach (2005) discorre longamente sobre a adequação de se considerar de como uma preposição quando entra na composição de artigos indefinidos (neste caso, segundo o autor, de poderia ser considerado como um artigo). Como os GN em qualquer função semântica desde que precedidos pela preposição de, a que se refere Dubois, incluem aqueles que são determinados por artigos indefinidos iniciados em d-, talvez o termo preposição não seja adequado para a formulação de uma regra geral de substituição por en, como a que Dubois parece estar propondo. Quanto a outro ponto que implica em dificuldades para a formulação de uma regra tão geral, como a que propõe Dubois, devemos considerar o que se pode observar no exemplo seguinte, tirado de Kalmbach (2005, p. 28): [19] Je n’ai pas envie qu’on vienne me reprocher un jour de ne pas m’être occupée de mes enfants. Podemos imaginar a pronominalização abaixo: [20] Je n’en ai pas envie. Ora, neste caso, aparentemente, en não está substituindo um GN introduzido pela preposição de, ainda que, normalmente, a locução verbal avoir envie tenha o seu complemento introduzido por essa preposição (aqui, mesmo para Kalmbach, se trata, de fato, de uma preposição). A questão é que, no caso, outra regra está interferindo: a da supressão da preposição de diante de uma oração completiva. Na realidade, as explicações de Grevisse para as funções de en vistas na parte 1.1 acima também não dão conta desse caso. Podemos imaginar ainda outra pronominalização para aquela frase: [21] Je n’ai pas envie qu’on vienne me le reprocher un jour. Ora, nesse caso se poderia perguntar, em vista das regras expostas na maior parte dos livros didáticos e gramáticas, porque o complemento de ne pas 12 m’être occupée de mes enfants do verbo reprocher não é substituído por en, e sim por le. Kalmbach mostra que um complemento como esse não é um COI introduzido pela preposição de. O verbo reprocher, por sinal, é transitivo direto. De, aí, segundo Kalmbach, é um marcador de infinitivo, e não uma preposição, e a oração infinitiva, apesar de introduzida por de, é substituída pelo pronome neutro le, e não por en. Mas tornemos à exposição do que diz Dubois. Se não é a função semântica do GN que determina que ele possa ser substituído por en, segundo o autor, sintaticamente, ele pode ser: - a expansão de um verbo. - a expansão de um nome. Dubois (1965, p. 137) não explica o que seja a expansão de um verbo ou de um nome, mas exemplifica: respectivamente, Je mangerai des cerises e Je connais la fin de cette histoire. Não parece ser contemplada a acepção em que en substitui o complemento de um adjetivo, mencionada por Grevisse no item 1.1.2.3 acima. Também não se fala na expansão de um advérbio de quantidade, de que fala Grevisse no item 1.1.2.4 acima. Mas se interpretarmos esses advérbios construídos com de como determinantes indefinidos complexos, como o faz Kalmbach, podemos entender os GN determinados por eles como expansões do verbo (COD). Vamos à terceira e última gramática que abordamos: 1.3 Grammaire pour l’enseignement/apprentissage du FLE (Geneviéve- Dominique de Salins (1996) A autora trata das acepções do pronome en em três seções: os pronomes de terceira pessoa “complementos” do verbo, a quantificação e a situação no espaço – sendo a segunda e a terceira dessas acepções incluídas entre os pronomes pessoais de terceira pessoa (P3) na concepção de Kalmbach (2005). Vejamos o que Salins diz sobre en em cada seção: 13 1.3.1 Os pronomes de terceira pessoa “complementos” do verbo (SALINS, 1996, p. 37): O pronome en retoma um nome não humano (coisa ou idéia) que seja o COI de um verbo ou de um grupo verbal regido pela preposição de (como em “avoir besoin de cela”). Pode-se questionar se o verbo retomar é sempre adequado para descrever a operação de en. Salins fala também em pronome de retomada. Conforme desenvolveremos em maior detalhe no terceiro capítulo, a idéia de que o que o pronome faça (ou seja) uma retomada parece implicar que o referente do pronome precisa haver aparecido anteriormente no discurso, o que nem sempre é verdade. Salins (1996, p. 37) observa ainda que, embora, do ponto de vista normativo, haja uma efetiva diferença de emprego entre en e de lui/d’eux/d’elle(s), estes últimos usados para representar pessoas, os locutores franceses às vezes neutralizam essa diferença e empregam en para um nome humano (um substantivo que representa uma pessoa), sobretudo na oralidade. A nenhum dos dois tipos de pronome se atribui a função de representar, por exemplo, um animal. Kalmbach (2005), porém, observa a confusão freqüente, na formulação desta regra, entre o caráter [+ humano] e o caráter [+ animado], que inclui animais e objetos personificados ou determinados e individualizados. De acordo com este autor, o en COI pode representar o caráter [+ animado] quando o nome “animado” do GN tem um valor genérico: Les amis, on en a toujours besoin. 1.3.2 A quantificação: retomada do nome quantificado pelo pronome en (SALINS, 1996, p. 65) Segundo a autora, en retoma a noção de quantidade. Poderíamos nos perguntar o que significa exatamente retomar uma noção, e se grupos nominais como les trois kilos de raisins ou l’énorme quantité de morues seriam considerados como nomes quantificados, visto que não poderiam, normalmente, ser substituídos por en. A autora não especifica que, para poder ser substituído por en, um GN deve ser introduzido por um determinante indefinido. 14 Salins prossegue dizendo (1996, p. 65) que, no caso de um contável determinado por un/une, a retomada pelo pronome en pede, em eco, o emprego de un/une, ou de um número apropriado. “Em eco” ao que, exatamente? Acreditamos que a autora esteja evocando a regra que diz que, se o determinante indefinido do GN substituído por en não é um artigo indefinido introduzido por d-, esse determinante deve ser retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. Assim, em je veux un morceau, o complemento un morceau pode ser substituído por en, e o artigo indefinido un (não iniciado em d-) deve ser retomado após o verbo na sua forma pronominal: j’en veux un. E o que seria o “número apropriado” cujo emprego pode ser, segundo a autora, pedido “em eco” no caso da “retomada” por en de um contável determinado por un/une? Neste caso, acreditamos que a regra evocada esteja exposta de uma maneira um pouco confusa, mas podemos fazer uma idéia do que a autora queira dizer a partir do exemplo com que ela ilustra o ponto: [22] - (...) une banque? Il y en a une dans le coin? - Il y en a même deux ou trois. A nosso ver, há certa confusão na formulação da regra acima. Na “retomada” de une banque, os “números apropriados” que “ecoam” seriam deux ou trois? A regra que Salins parece estar procurando descrever é a mesma que mencionamos acima e repetimos aqui: se o determinante indefinido do GN substituído por en não é um artigo indefinido introduzido por d-, esse determinante deve ser retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. E esse determinante pode ser um numeral cardinal (un, deux, trois...). Essa regra também dá conta de esclarecer a afirmação de Salins (1996, p. 65), segundo a qual, as quantidades “retomadas” pelo pronome en podem ser especificadas por um quantificador. No exemplo acima, então, a quantidade “retomada” une banque estaria sendo especificadas pelos quantificadores deux ou trois? 15 É curioso notar ainda que, à página 60, Salins diz que os quantificadores são de dois tipos: - os que servem para contar ou adicionar os seres contáveis: o artigo indefinido un, une, des, e os números. - os que servem para quantificar massas e volumes de seres incontáveis: os artigos partitivos de l’, du, de la. E depois, falando da possibilidade de se precisar “as quantidades retomadas pelo pronome en”, fornece exemplos com “quantificadores” que não apareciam naquela definição: plusieurs, quelques-uns e très peu. Quais são, afinal, os quantificadores de Salins? 1.3.3 A situação no espaço (SALINS, 1996, p. 134): A autora lembra que o pronome adverbial en permite retomar um adjunto adverbial de lugar (lugar de onde se vem, de proveniência). [23] - Les Durand reviennent de la Réunion? - Non, ils n’en reviennent pas (...)(SALINS, 1996, p. 134) A autora diz que en é freqüentemente chamado de pronome adverbial, bem como faz Grevisse (1953, p. 386), na expressão da situação no espaço. Vimos brevemente como três gramáticas da língua francesa tratam de en. Passaremos agora a uma breve exposição de como um livro didático de FLE aborda esse pronome. 1.4 Forum (BAYLON et al.., 2000) Na unidade 7 do primeiro volume do livro de FLE, en é apresentado, primeiramente, como pronome substituto de uma expressão de lugar. O documento D, à página 138, consiste em um diálogo gravado em CD e destinado a servir à descoberta de en pelos aprendizes. O pronome aparece apenas uma única vez no diálogo. 16 [24] -(...) Pour être ici vers 8 heures, vous devez quitter le parc vers 6 heures et demie. Mais n’en partez pas trop tôt... (BAYLON et al., 2000, p. 138) O exercício 4, referente ao diálogo, pede que se levante as ocorrências do pronome (no caso, única) e pergunta quais são as expressões de lugar que ele substitui e se a preposição que introduz as expressões é à, de ou outra. Talvez uma única ocorrência do pronome seja pouco para que se faça essa descoberta. Nas unidades imediatamente anteriores, o aprendiz foi exposto aos pronomes COD e COI, mas esses são bastante fáceis de entender, pois têm correspondentes em português (embora, para um brasileiro, sejam difíceis de usar, visto que os usamos muito pouco na oralidade). É relativamente fácil para o aprendiz entender que elle substitui um nome feminino enquanto sujeito de um verbo. Um pouco menos fácil, talvez, ele entender que la substitui um nome feminino enquanto complemento de objeto de um verbo transitivo direto (COD). O aprendiz precisa, para entender como opera o pronome na sua função de evitar a repetição, perceber que o tipo de pronome a ser utilizado em determinado contexto frástico depende da função sintática que o referente do pronome exerce na frase. Um forte complicador, no caso de en, o pronome em foco, é o fato de o português não possuir nenhum pronome correspondente, e raramente utilizar alguma coisa nos casos em que o francês utiliza en: de fato o lugar de origem/proveniência não é objeto de pronominalização em português. No exercício 4, que mencionamos acima, para responder à pergunta sobre a preposição que introduz a expressão substituída por en, o aprendiz precisaria conseguir elaborar a frase intermediária ne partez pas trop tard du parc.. Na seção gramatical (BAYLON et al.., 2000, p.142), a regra diz que o pronome en substitui expressões de lugar introduzidas pela preposição de, indicação da origem, do lugar de onde se vem. [25] Je viens du Canada. J’en viens. (BAYLON, 2000, p. 138) Nenhuma observação é feita a respeito da elisão da preposição de com o artigo definido le, formando du, o que pode confundir o aprendiz (a regra só fala em expressões de lugar introduzidas pela preposição “de”). 17 Nada se diz sobre a relação de en com um verbo cujo complemento é introduzido pela preposição de, e um aprendiz, seguindo a regra à risca, poderia formular uma substituição errônea como a que vemos no exemplo seguinte: [26] De Toulouse à Paris, la distance n’est pas bien grande. [27] *En à Paris, la distance n’est pas bien grande. Na unidade 8 apresenta-se o pronome en na expressão da quantidade. A seção gramatical (BAYLON et al.., 2000, p. 159) diz que o pronome en substitui um nome precedido por um artigo partitivo ou por uma outra expressão de quantidade que contenha de. Exemplifica-se: [28] - Tu veux du lait? - Oui, j’en veux. (BAYLON et al.., 2000, p. 159) Acrescenta-se que é possível especificar a quantidade. [29] -Tu as pris du gâteau? - Oui, j’en ai pris deux parts. (BAYLON, 2000, p. 159) A que corresponderia essa outra expressão de quantidade que contenha de? Se considerarmos que a seguir fala-se na possibilidade da especificação da quantidade, podemos nos perguntar em qual das duas regras se encaixariam determinantes indefinidos que contêm de, como beaucoup de, peu de, trop de, assez de, plus de, moins de, autant de, tellement de, une dizaine de, un tas de, etc. Se entendermos que essas expressões de quantidade se classificam na regra da possibilidade de especificação da quantidade, então aquela «outra expressão de quantidade que contenha de” consistiria somente no artigo indefinido plural des e na forma de que o artigo indefinido tem diante do COD de um verbo na negativa ou de um adjetivo anteposto a um nome plural? 18 É interessante ressaltar que, na unidade 3 de Forum, onde se examina a expressão da quantidade, primeiramente, num quadro gramatical, des é enquadrado entre os artigos partitivos, ao lado de du, de la, de l’. Mas a seguir, na continuidade da mesma exposição gramatical, ele aparece novamente, agora entre os artigos indefinidos que substituem “uma quantidade que se pode contar”. Além disso, na regra, novamente, nada se diz sobre a relação de en com o verbo (sua função de COD), e um aprendiz poderia formular, segundo a regra exposta, a seguinte substituição: [30] Du vin rouge qui vient de Bordeaux. [31] *En qui vient de Bordeaux. O exercício 9 (p. 159) pede que se complete um diálogo onde Marie pede ao marido que compre itens no supermercado. Deve-se completar com en (por vezes especificando quantidades), de, des, artigos partitivos e numerais. Nesse exercício os aprendizes são convidados a fazer várias substituições um tanto difíceis em vista da regra exposta, por implicarem o uso de en em relação com combien, e, em uma réplica, com combien de bouteilles: [32] - Il ......... faut combien? - J’......... achète combien de bouteilles? Nada foi explicado sobre o uso de combien, nem sobre a substituição por en de um complemento nominal. Deve-se pensar então «de bouteilles» como «uma outra expressão de quantidade» que contém de”? Nada é dito tampouco sobre a possibilidade de substituição de um nome de pessoa por esse tipo de en. Em resumo, toda a exposição desses dois pontos (a expressão da quantidade em geral e o uso de en para essa expressão) é um tanto confusa e incompleta. Vejamos agora como Forum trata outro uso de en. O pronome en como substituto de um COI, é abordado na unidade 9 de Forum 1. Na seção de gramática (BAYLON et al.., 2000, p. 178) diz-se que en substitui uma expressão complemento de um verbo seguido pela preposição de. 19 Ressalta-se que não se pode utilizar en para substituir um nome referente a uma pessoa, e que, neste caso, emprega-se o pronome tônico precedido pela preposição. Exemplifica-se: [33] - J’ai rencontré mon professeur de français hier. Je pense souvent à lui et je parle souvent de lui. Nada é dito sobre os casos em que en pode retomar nomes de pessoas. Na mesma unidade, estuda-se o pronome relativo dont, mas não se faz qualquer referência às semelhanças e diferenças entre os dois pronomes. Na parte gramatical sobre os pronomes relativos (BAYLON et al.., 2000, p. 177) é dito que eles permitem que se acrescentem informações sobre os nomes que eles substituem, e que têm o valor de um adjetivo. Sobre dont, especificamente, dizse que ele substitui um complemento introduzido pela preposição de. [34] C’est une région dont on m’a beaucoup parlé. (parler de) Somente no exemplo acima, fornecido pelo livro didático, pode-se ver a relação com o verbo, mas ainda assim, não fica claro que o complemento substituido por dont é sempre o complemento de um verbo transitivo indireto regido por de. Um aprendiz poderia pensar, por exemplo, num complemento nominal introduzido por de, e formular substituições absurdas: [35] Je connais la solution du problème. [36] *Je dont connais la solution. Afora os exemplos, nada é dito sobre a função do pronome relativo na formação da oração relativa, ou sobre a função desta na formação de períodos compostos. Na ficha G19 do «Carnet de Route» (livreto que contém fichas gramaticais a serem completadas pelos aprendizes), onde se fala nos pronomes pessoais, pedese para completar o seguinte enunciado: 20 «En remplace le complément d’un verbe dont les compléments sont toujours introduits par la préposition______________. Avoir besoin de + complément: Il faut apprendre plusieurs langues: on________ besoin pour voyager.» O exemplo dado utiliza a locução verbal avoir besoin de, e não um verbo simples, mas não se faz essa observação. O verbo penser pode ter o seu complemento introduzido pela preposição de, mas nem sempre é assim. Penser pode também ter o seu complemento introduzido pela preposição à, ou um complemento direto, sem preposição alguma, ou ainda, penser pode funcionar como um verbo intransitivo. Certo complemento introduzido por de do verbo penser pode ser substituído por en, mas não se pode dizer que se trate de um verbo «dont les compléments sont toujours introduits par la préposition de». No mais, nada é dito sobre en enquanto pronome de substituição do complemento de um substantivo ou de um adjetivo (complemento nominal). Na unidade 5 de Forum 2, onde se faz a revisão dos usos de en apresentados em Forum 1, o exercício 2 da seção gramatical (BAYLON et al.., 2000, p. 91) pede que se complete: «En remplace un nom précédé par un article partitif, un article indéfini ou par une autre expression de quantité contenant de: L’été, je ne regarde pas beaucoup de films, et vous? Si, _________________________. Nenhuma instrução é dada no sentido de facultar ao aprendiz a provável resposta si, j’en regarde beaucoup (je regarde beaucoup de films). Sem maiores explicações, o aprendiz provavelmente completará com si, j’en regarde, o que corresponderia à uma resposta um tanto incompleta em vista da pergunta: je regarde des films. É que, na verdade, sozinho, en substitui apenas um complemento introduzido por de, o que pode incluir apenas os artigos indefinidos du, de la, de l’ e des. 21 Como vimos, a variedade de formas de apresentação, nomenclatura, regras, perspectivas, não permitem que se tenha, considerando as obres citadas separadamente, uma imagem muito unificada do pronome en. No segundo capítulo, veremos que as interpretações de dois lingüistas conseguem proporcionar uma visão mais coesa sobre um dos usos do pronome en, o en quantitativo. 22 2 DUAS ABORDAGENS LINGÜÍSTICAS SOBRE O EN QUANTITATIVO Neste capítulo e no próximo, vamos enfocar o pronome en na acepção que vamos chamar de en quantitativo. No terceiro capítulo discutiremos a pertinência deste termo, em comparação com outros. Por ora, veremos como dois lingüistas, Véronique Lagae (2001) e Kalmbach (2005) resolvem alguns pontos confusos sobre o emprego desse pronome. Para começar, vamos nos remeter a um tópico mencionado, mas não aprofundado, no primeiro capítulo. Conforme vimos no item 1.1.2.4 do primeiro capítulo, Grevisse (1953, p. 386) diz que en pode representar um nome construído com a preposição de, que seja o complemento de um advérbio de quantidade. Grevisse fala nesse uso no mesmo item em que trata de en enquanto substituto de um complemento de verbo ou de nome construído com a preposição de. Como veremos, essa interpretação talvez não seja a mais adequada. 2.1 Determinantes complexos de quantidade Embora Grevisse não forneça um exemplo desse emprego, está se referindo, ao que parece, a um uso de en que outros autores interpretam de modos bastante diversos, e que exemplificamos abaixo: [37] Je n’ai pas l’argent qu’ils demandent pour la voiture, mais j’en ai assez pour m’acheter un vélo. (j’ai assez d’argent pour m’acheter un vélo) Em [37], assez seria, na perspectiva de Grevisse, o advérbio cujo complemento d’argent é substituído por en. Entretanto, esse uso de en é descrito diferentemente por Kalmbach (2005, p. 97), em sua tese de doutoramento “De de à ça: enseigner la grammaire française aux finnophones”. Nesse trabalho, o autor fala em advérbios que podem se combinar com a preposição de para formar determinantes complexos de quantidade, cujo complemento pode ser pronominalizado por en, e lista alguns desses advérbios: beaucoup de, peu de, trop de, plus de, moins de, tant de, autant de, guère de, énormément de, pas mal de, etc. 23 A diferença fundamental é que Kalmbach chama esses advérbios de determinantes indefinidos complexos, e diz que eles podem determinar três tipos de GN: complemento de objeto direto (COD), atributo do sujeito, ou sujeito real. Ou seja, Grevisse vê esse uso de en como substituição de um complemento de advérbio, e o classifica junto aos usos de en enquanto complemento de objeto indireto do verbo (COI), complemento nominal, e complemento de adjetivo ao passo que Kalmbach o considera como a substituição de um COD, um atributo do sujeito, ou um sujeito real. Para poder ser pronominalizado por en, de acordo com Kalmbach, um GN precisa ser introduzido por um determinante indefinido. Quando esse determinante não é iniciado em d-, quando se substitui o nome no GN por en, o seu determinante deve ser retomado, em sua forma pronominal, após o verbo. Desta perspectiva, na oração j’en ai assez do exemplo acima, assez é encarado como sendo a forma pronominal do determinante complexo assez de, o qual introduziria o GN, caso este não fosse pronominalizado. O nome argent é substituído por en e o seu determinante assez de é mantido, na sua forma pronominal assez, em sua posição após o verbo. Grevisse, por sua vez, parece ver a presença de assez após o verbo como sendo determinada pela mesma lógica que implica a preservação do nome após o verbo quando se substitui o seu complemento nominal por en. Vejamos um exemplo com en substituto de complemento nominal: [38] Ce village, nous en visiterons les jardins. Na frase acima, les jardins é o nome cujo complemento nominal ce village é substituído por en. O nome é mantido após o verbo, na mesma posição, portanto, que ocuparia caso o seu complemento nominal não fosse pronominalizado: nous visiterons les jardins de ce village. Outra indicação de que o en que substitui um complemento de advérbio de quantidade seja mais próximo dos quantificadores é o fato, já observado anteriormente, de esse complemento não poder ser uma oração, como o podem os complementos de verbo, nome e adjetivo descritos por Grevisse (1953) 24 2.2 En quantitativo e en adnominal Passemos agora a uma terceira interpretação dos fatos. Véronique Lagae (2001), da Université de Valenciennes et du Hainaut-Cambrésis, em seu texto “Des compléments adnominaux aux syntagmes quantificateurs”, procede a um estudo comparativo de dois usos do pronome en, os quais chama de en quantitativo e en adnominal. O primeiro, diz a autora, remete a uma quantidade indefinida de algo. O segundo, a um complemento nominal, que Lagae define como sendo o elemento N2 de um sintagma binominal N1 de N2 (dois nomes: o segundo sendo o complemento nominal do primeiro). O exemplo [39] abaixo ilustra o en quantitativo (acompanhado, no dizer da autora, por um quantificador de tipo nominal: deux cents): [39] Pour Noël, je vais en faire environ deux cents [des biscuits] (ex. oral, GARS, citado por LAGAE) O exemplo [40] ilustra o en adnominal (substituto do complemento nominal do N1 détails): [40] Il y a une disposition (...), vous en connaissez mieux les détails que moi. (ex. oral, AUV, citado por LAGAE) Lembremos novamente que Grevisse considera a substituição por en do que ele descreve como sendo um complemento de advérbio enquanto um caso particular daquilo que Lagae chama de en adnominal1, ao passo que Kalmbach percebe a mesma substituição como um caso do que a autora denomina en quantitativo. Ora, há casos em que, segundo Lagae, as fronteiras entre en quantitativo e en adnominal não são absolutas, mas graduais. Nesses casos, en pode, teoricamente, receber ambas as interpretações, como no exemplo [41]: [41] On va en retrouver en quatrième année peut-être un peu moins de la moitié des étudiants. (ex. oral, AUV, citado por LAGAE) 1 Não estamos afirmando que Lagae a encare como Grevisse. 25 Como critérios para a sua comparação, Lagae apresenta seis propriedades que diferenciam en quantitativo de en adnominal, a saber: 1) possibilidade de comutação do elemento pós-verbal com combien: - possível com en quantitativo. - impossível com en adnominal. 2) possibilidade de pronominalização em um nível superior do conjunto constituído por en e o elemento pós-verbal: - possível com en adnominal. - impossível com en quantitativo. 3) possibilidade de substituir um sujeito. - possível com en adnominal. - improvável com en quantitativo2. 4) caráter + humano do referente. - possível com en quantitativo. - raro com en adnominal3. 5) possibilidade de substituição de en pelo pronome relativo dont. - possível com en adnominal. - no caso do en quantitativo a aceitabilidade da substituição varia conforme o quantificador4: i. inaceitável com numerais e com quantificadores como beaucoup, (un) peu, plusieurs ou un paquet. ii. mais aceitável com certains, quelques-uns e un certain nombre. iii. perfeitamente aceitável com une quarantaine. 2 Lagae ressalva que, em certas circunstâncias, o en quantitativo pode ser sujeito: “(...) à cette tristesse s’en ajoute une autre” (G. Brée). Segundo Kalmbach, como veremos adiante, esse pronome pode substituir um sujeito real: Il vient des trains. Il en vient. 3 Lagae afirma que Pinchon (1972: 122-128) demonstrou não se tratar de uma impossibilidade estrita, e que, conforme assinalaram Blanche-Benveniste e al. (1984 : 47-50) e Lamiroy (1991), a substituição por en adnominal de um referente humano tem geralmente um efeito desindividualizante. Kalmbach fala em “valor genérico”. 4 Segundo Lagae, Milner (1978: 76), Godard (1988: 175) e Kupferman (1999 : 35) demonstraram esse fato. 26 6) comportamento da concordância do verbo de uma oração relativa com pronome sujeito qui acrescentada à direita do N1 cujo complemento nominal é pronominalizado por en. en adnominal: a concordância do verbo da relativa se faz sempre com N1. en quantitativo: a concordância do verbo da relativa se faz - normalmente com N25. A partir dos resultados da aplicação dos seus critérios aos exemplos de seu corpus, Lagae procura definir se a substituição por en dos complemento nominal de diversos tipos de N1 se aproxima mais do emprego de en quantitativo ou do de en adnominal, segundo partilhem de tais e tais propriedades com um e/ou o outro. A autora conclui que certas formas, que têm a aparência de um sintagma nominal, como deux cents, un paquet, un tas, une foule, une infinité, une masse, e as formas que contêm a palavra nombre (un certain nombre, un nombre important, etc), na realidade, partilham de todas as seis características dos quantificadores do tipo de beaucoup, e se comportam como estes. Também as formas da série de une dizaine6 (une vingtaine, une trentaine, une quarantaine, etc) se portam fundamentalmente da mesma maneira. Lagae conclui também que o en que substitui o complemento dessas formas é do tipo quantitativo. 2.3 A proposta de Kalmbach (2005) Quanto à análise sintática do en substituto de complemento de advérbio, consideramos a perspectiva de Kalmbach (en quantitativo) como mais acertada que a de Grevisse (en adnominal), em vista de um ponto esclarecido pelo trabalho de Lagae, a saber: que o en que pode substituir o complemento de um advérbio do tipo de beaucoup está mais próximo do en quantitativo. Esquematizamos abaixo as regras que Kalmbach formula para esse emprego dito “quantitativo” do pronome en. Os exemplos apresentados são nossos: 5 Como vemos já nos parágrafos seguintes, segundo Lagae, o en quantitativo pode pronominalizar o N2 de certo tipo de sintagma binominal. 6 Somente em relação à quinta daquelas seis propriedades essas formas se comportam diferentemente dos quantificadores do tipo de beaucoup. 27 2.3.1 O pronome en pode substituir um COD introduzido por um determinante indefinido. (a) COD introduzido por um artigo indefinido iniciado em d- (todos os artigos indefinidos exceto un/une): pode ser substituído pelo pronome en sozinho. Kalmbach não nos deixa esquecer de incluir, entre os artigos indefinidos iniciados por d-, duas formas freqüentemente esquecidas nos livros didáticos e gramáticas, quando enumeram as formas desses artigos: - a forma de que o artigo definido plural des assume diante de um adjetivo anteposto; - a idêntica forma de que assumem todos os artigos indefinidos diante do COD de um verbo na negativa. A estas, devemos acrescentar ainda, a bem da completude da norma, a também coincidente forma de que os artigos indefinidos assumem depois de combien. Não devemos esquecer, além disso, que de elide-se, resultando na forma d’ diante de vogal e “h” não aspirado. No exemplo abaixo, du pain é o COD com artigo em d- do verbo “prendre”7: [42] - Tu as acheté du pain au supermarché? - Oui, j’en ai pris pour le petit déjeuner. (j’ai pris du pain pour le petit déjeuner) Kalmbach menciona que essa maneira de apresentar a regra não consta de nenhum manual de gramática francês. No entanto, segundo o autor, ela permite que se simplifique também uma outra regra de substituição. Observemos as duas regras abaixo: - um COD determinado por um artigo indefinido iniciado em d- pode ser substituído por en sozinho. 7 Vale salientar aqui, para fins de acuidade descritiva, que o COD de “prendre” é o GN du pain que só se vê “por extenso” em nossa reconstituição “didática”, entre parênteses, da frase sem a pronominalização, pois, na frase-resposta, esse COD está representado por en. A despeito da identidade de forma e função, não se deve confundi-lo, descritivamente, com o COD de “acheter” na frase-pergunta. 28 - com um verbo na forma negativa os artigos indefinidos assumem, diante do COD, a forma única de. (uma forma de artigo indefinido iniciada em d-) Em decorrência dessas duas regras temos que, se numa oração na negativa o COD tem por determinante um artigo indefinido8, este pode ser substituído por en sozinho. [43] - Tu as acheté de la bière? - Non, je n’en ai pas acheté, ils n’en avaient plus. (je n’ai pas acheté de bière) Kalmbach fala na simplificação que decorreria da supressão do artigo partitivo na nomenclatura gramatical. Segundo o autor, é inútil considerar dois casos, um com o artigo indefinido e outro com o partitivo, bastando a noção de artigo indefinido (que deve, no caso, incluir os “de massa”). (b) COD introduzido por determinante indefinido não iniciado em d-, en pronominaliza o nome no COD, e o determinante é retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. Entre esses determinantes indefinidos não iniciados em dpodemos encontrar: - os artigos indefinidos singulares un, une. - advérbios de quantidade, adjetivos: plusieurs, certains, quelques, beaucoup de, (un) peu de, assez de, trop de, plus de, moins de, (au)tant de, tellement de, un(e) autre, d’autres, etc. - numerais cardinais (sem artigo definido). - quantificadores nominais: un kilo de, une quinzaine de, un tas de, un paquet de, un grand nombre de, etc. No exemplo abaixo, quelques pamplemousses é o COD com determinante não iniciado em d- do verbo “prendre”, quelques é o determinante indefinido que é retomado, na sua forma pronominal (quelques-uns), após o verbo. [44] - Tu as acheté des pamplemousses? - J’en ai pris quelques-uns. (j’ai pris quelques pamplemousses) 8 Inclusive, neste caso, un/une, se artigo, - mas não se numeral. 29 Na oração negativa, quando o determinante indefinido do COD não é um artigo indefinido, o determinante deve ser retomado após o verbo na sua forma pronominal. Quando un/une são numerais, e não artigos indefinidos, devem ser retomados enquanto pronomes indefinidos un/une, após o verbo. [45] - Tu as acheté une poire pour le petit Michel? - Je n’en ai pas pris une, seulement, mais toute une dizaine. (je n’ai pas pris une poire seulement) Na resposta, pelo menos, pelo fato de sua presença pronominal após o verbo, podemos perceber que une é assumido como um numeral. (c) COD introduzido por um determinante indefinido, e cujo nome vem acompanhado por um adjetivo, quando se pronominaliza somente o nome9, mas não o adjetivo, este adjetivo é retomado após o verbo e precedido por aquele determinante, o qual apresenta a mesma forma que teria antes do conjunto do GN [substantivo+adjetivo] no COD não pronominalizado. (c’) Em conformidade com a regra exposta no item (c), no caso de um COD introduzido por um artigo indefinido iniciado em d- e cujo nome vem acompanhado por um adjetivo posposto, o artigo mantém a sua forma: du, de la, de l’, des, conforme o gênero, o número e o caráter de incontável ou contável do nome determinado por ele. É como se somente o nome houvesse sido extraído do COD na forma do pronome en, os demais elementos permanecendo em seus lugares e formas. No exemplo abaixo podemos ver a operação: [46] - Tu as acheté des fraises? - Oui, j’en ai trouvé des énormes. (j’ai trouvé des fraises énormes) (c’’) Também em conformidade com a regra em (c), no caso de um COD introduzido por um artigo iniciado em d- e cujo nome vem acompanhado por um 9 Quando o adjetivo é pronominalizado juntamente com o nome, aplica-se, ao conjunto do GN formado por eles, a regra “geral” apresentada nos itens (a) e (b) acima. 30 adjetivo anteposto, o artigo indefinido des assume a forma de10. Isso explica o que ocorre em j’en connais d’autres, por exemplo, onde autres é o adjetivo/pronome. Como no caso anterior, é como se o nome houvesse sido extraído do COD na forma do pronome en, sem qualquer outra alteração. Os demais artigos, du, de la, de l’, mantém suas formas antes do adjetivo. [47] - Tu as acheté des fraises? - Oui, j’en ai pris de belles. (j’ai pris de belles fraises) (c’’’) No caso de um COD introduzido por um determinante indefinido não iniciado em d-, e cujo nome vem acompanhado de um adjetivo, caso se pronominalize o nome, mas não o adjetivo, aquele determinante indefinido deve ser retomado na sua forma pronominal diante do adjetivo, e entre os dois deve ser inserido um de. É o que vemos no exemplo abaixo: [48] - Tu as regardé des films intéressants à New York? - Oui, j’en ai regardé plusieurs de bons. (j’ai regardé plusieurs bons films) (d) O pronome en pode também substituir um atributo do sujeito. Neste caso, se aplicam as mesmas regras relativas a en COD enunciadas nos itens (a) a (c’’’): - Se o determinante é um artigo iniciado em d-, en pode substituir sozinho o atributo. [49] - Ce qu’il y a dans la casserole, c’est du riz? - Oui, c’en est. (c’est du riz) - Quando, por sua vez, o atributo é precedido por um determinante indefinido não iniciado em d-, o nome é pronominalizado por en, e o determinante é retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. 10 Forma que o artigo indefinido plural des normalmente assume diante de um adjetivo anteposto. 31 [50] - C’était trop de chocolat, pour toi toute seule? - Oui, c’en était trop, en fait. (c’était trop de chocolat) - Se o nome no atributo vem acompanhando de um adjetivo, esse adjetivo é retomado após o verbo, precedido do determinante indefinido na forma que este teria no atributo substituído. [51] - Ce sont des yeux gris qui te regardent dans ces rêves? - Oui, c’en sont des gris. Neste ponto, convém observar que, na oralidade, algumas alterações podem ocorrer: i) en é freqüentemente omitido na oralidade. ii) a concordância em número de c’est (ce sont) com o atributo com freqüência não é realizada. iii) a transformação do artigo indefinido plural des em de diante de um adjetivo anteposto pode não ocorrer. O resultado é que se tem dois sistemas concorrentes: LÍNGUA ESCRITA - Ce sont de beaux yeux, non? - Oui, c’en sont de beaux LÍNGUA FALADA - C’est des beaux yeux, non? - Oui, c’est des beaux. Diante de um atributo, mesmo no caso de uma oração negativa, o artigo indefinido não tem somente a forma de, e a substituição ocorre de acordo com as regras enunciadas nos itens de (a) a (c’’’). [52] - Ce sont des gâteaux? - Non, ce n’en sont pas. (ce ne sont pas des gâteaux) 32 [53] - C’est un gâteau? - Non, ce n’en est pas un. (ce n’est pas un gâteau) (e) Finalmente, um uso problemático para os aprendizes brasileiros do FLE é o caso da pronominalização por en de um sujeito real (caso em que en pode substituir um sujeito). O sujeito é dito real quando é posposto ao verbo, e no lugar que ocuparia na ordem normal da frase vem um pronome il impessoal, que não tem referente. Esse tipo de sujeito só ocorre com verbos intransitivos. No exemplo abaixo, des nuages é o sujeito real do verbo “passer”. [54] Il passe des nuages par la fenêtre de l’avion. Allons voir s’il en passe aussi de l’autre côté. (s’il passe des nuages aussi de l’autre côté) Em português, a mera inversão de posições entre o sujeito e o verbo produz o efeito em questão, e o verbo concorda em número e pessoa com esse sujeito posposto. Na tradução a seguir, nuvens é o sujeito do verbo passar, com que este concorda em número e pessoa. Estão passando nuvens pela janela do avião. Vamos ver se estão passando também do outro. No caso de uma oração negativa, as mesmas regras que funcionam para a substituição por en de um COD se aplicam para a de um sujeito real com determinante indefinido, e pelas mesmas razões (os artigos todos tomam a forma de, e somente en retoma o nome, a não ser com outros determinantes que não artigo em d- e/ou adjetivo). [55] - Il passe des nuages? - Non, il n’en passe pas. (il ne passe pas de nuages) [56] - Il passe beaucoup de nuages? 33 - Non, il n’en passe pas beaucoup. (il ne passe pas beaucoup de nuages) Neste capítulo, vimos, através das contribuições de dois lingüistas à interpretação do uso quantitativo de en, que é possível sistematizar as regras do seu uso, conquanto seja uma empreitada complexa. Para empreendê-la, é preciso integrar aportes de vários sistemas da língua francesa: o pronominal, o de quantificação, o dos artigos. É preciso que se compreenda o que seja um objeto direto de verbo, um atributo, um sujeito real (funções sintáticas do grupo nominal), um determinante indefinido de vários tipos (artigos indefinidos, quantificadores complexos de tipo nominal e de tipo adverbial). É importante também, para utilizar corretamente o pronome, as contrapartes desses elementos: sujeitos, objetos indiretos, e sobretudo pronomes sujeito, pronomes COI, determinantes definidos, entre eles os artigos, sem o que é provável que se cometam muitos erros ainda. No próximo capítulo faremos, primeiramente, uma série de reflexões sobre algumas dessas categorias gramaticais referidas acima em conexão com en. A seguir, faremos algumas considerações a respeito da nomenclatura conferida ao pronome en neste seu emprego tão específico e característico da língua francesa, que é o da quantificação. 34 3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O EN QUANTITATIVO Neste terceiro capítulo, propomos pensar sobre quais sejam os motivos que estão por trás da dificuldade que os aprendizes brasileiros de FLE freqüentemente manifestam no aprendizado do emprego quantitativo do pronome en, procedendo a algumas reflexões sobre certas diferenças fundamentais entre os sistemas pronominais e de quantificação do francês e do português. Também abordaremos a questão das nomenclaturas que “concorrem” na descrição de en e, por fim, apresentarmos, dentre as classificações e regras, algumas daquelas que nos parecem adequadas para descrever os usos ditos “quantitativos” de en. 3.1 Ponderações sobre as dificuldades dos aprendizes brasileiros com o pronome en. Primeiramente, é preciso lembrar que en não tem um correspondente exato no português, no sentido de que nenhum pronome cumpre o papel de fazer referência a qualquer um dos tipos de segmentos discursivos substituídos por esse pronome francês. Certamente, não é inviável propor uma “tradução”, ou, antes, uma “paráfrase”, para fins didáticos, do significado quantitativo de en: “disso (a respeito do que se falou há pouco)”. Mas, na maior parte dos contextos em que o francês utiliza en, o português não usa nada em seu lugar. Pode-se dizer que o português, normalmente, substitui en pela marca zero. Examinemos a frase no exemplo [57] e sua tradução em português: [57] (du beurre) J’en ai mis trop dans les sandwichs. (manteiga) Eu pus demais nos sanduíches. Como se pode observar, nem o artigo du, nem o pronome en têm qualquer equivalente na tradução. Uma tradução que tentasse substituir en pelo termo disso decerto soaria um tanto inusitada e “atrapalhada”: 35 [58] Manteiga, eu pus demais disso nos sanduíches. Além do mais, essa tradução poderia ser a de uma outra frase em francês, a saber (du beurre) J’ai mis trop de ça dans les sandwichs, frase que não é perfeitamente equivalente àquela em que o COD du beurre é pronominalizado por en, e que talvez soasse um pouco inusitada em francês. O que é preciso entender é que os tipos de GN que podem ser substituídos por en não são objeto de pronominalização na língua portuguesa. O sistema pronominal da língua portuguesa possui, como o da francesa, pronomes de 3a pessoa que são empregados para fazer referência a um COD, ou a um atributo do sujeito. É o caso dos pronomes do caso oblíquo o, a, os, as, os quais, em francês, encontram correspondência em le, la, l’ e les. É curioso, aliás, notar que, em ambas as línguas, as formas básicas desses pronomes e as dos artigos definidos correspondentes a eles são idênticas. Mas esses pronomes, tanto os franceses quanto os portugueses, só podem substituir um COD introduzido por um determinante definido. Vejamos um exemplo da operação em questão: [59] Eu comi o queijo. Eu o comi. Na frase acima, o nome queijo no COD é determinado pelo artigo definido o, e pode, por conseguinte, ser substituído, conforme a regra, pelo pronome do caso oblíquo o. A tradução de [59] para o francês em [60] permite observar que, no que se refere à possibilidade de pronominalização de um COD introduzido por um determinante definido, as duas línguas operam de modo bastante semelhante. [60] J’ai mangé le fromage. Je l’ai mangé. Do mesmo modo que, em português, o COD definido o queijo pode ser representado pelo pronome o, em tradução para o francês, pode-se remeter a le fromage por meio do pronome le. 36 É importante que atentemos, neste ponto, para o fato de que, a despeito da semelhança dos sistemas das duas línguas no que se refere à possibilidade de pronominalização de um COD introduzido por um artigo definido, os aprendizes brasileiros de FLE freqüentemente demonstram ter dificuldade, sobretudo na produção oral e escrita, para efetuar essa operação. Isso se deve, pelo menos em parte, ao fato de que, no português contemporâneo do Brasil, os pronomes do caso oblíquo o, a, os, as, raramente são utilizados na oralidade e, quando o são, é sobretudo na formas não padrão ele, ela, eles, elas11, calcadas na forma dos pronomes do caso reto correspondentes. Em [61], vemos os dois casos: elipse e uso das formas ele, ela, eles, elas: [61] - Você comeu o queijo? - Comi. E a Scheila comeu ele também, junto comigo. Em francês, nenhum desses dois expedientes é aceitável: o pronome le evocaria o COD fromage a cada aparição de verbo transitivo direto que o tivesse por objeto: je l’ai mangé, onde l’ é o pronome oblíquo que retoma le fromage. O fato de não se costumar, na língua falada do Brasil, pronominalizar o COD em casos como esse, certamente ajuda a compreender a dificuldade experimentada pelos aprendizes. O uso de ele para substituir um nome com função de COD é muito comum na língua falada no Brasil hoje, e pode levar os aprendizes a utilizarem o pronome francês il para pronominalizar um COD, o que não se costuma fazer em francês. Se os aprendizes brasileiros de FLE apresentam semelhantes dificuldades com pronomes que têm correspondência com pronomes portugueses, com o pronome en essas dificuldades são ainda maiores, por razões bem compreensíveis. Para entendermos como uma e outra língua operam na referência a um COD, um atributo do sujeito, ou um sujeito real, com determinante indefinido, observemos o exemplo a seguir: 11 Embora agramaticais, essas formas normalmente não são estigmatizadas na oralidade da linguagem familiar. 37 [62] - Você comeu queijo hoje? - Comi. (comi queijo) Na pergunta em [62], o nome queijo, um COD, não vem precedido por nenhum determinante. Normalmente, em português, não se faz referência a um COD desse tipo por meio de nenhuma estrutura. Na resposta, esse COD, queijo, também é um GN sem determinante, como na pergunta, e portanto ele não precisa ser substituído por qualquer estrutura. Podese dizer que esse COD esteja em elipse. Em francês, ao contrário do que ocorre em português, em um contexto análogo, o nome vem normalmente introduzido por um artigo indefinido. Um nome em função COD com determinante indefinido, em francês, normalmente, não pode ficar em elipse, precisa ser anaforizado. O pronome en é a estrutura da língua francesa que permite que essa anáfora se dê com o maior grau de economia da palavra, e o menor grau de alteração semântica12. Nesse sentido, o uso desse pronome equivale, justamente, à elipse do COD no português. Apresentamos a seguir a tradução do exemplo [62] em francês, para ilustrar essa diferença entre as línguas: [63] - Tu as mangé du fromage aujourd’hui? - Oui, j’en ai mangé. Na pergunta em [63], o nome fromage vem determinado pelo artigo indefinido de massa du, um determinante indefinido. Na resposta j’en ai mangé ele é pronominalizado por en. Essa estrutura permite que a referência se dê com o menor grau de alteração semântica possível, e o maior grau de economia da palavra13. Diversamente do que ocorre na língua portuguesa contemporânea do Brasil, a estrutura da língua francesa exige, normalmente, que os complementos diretos e indiretos de um verbo sejam realizados na superfície textual. 12 Se a resposta a ‘Você comeu queijo hoje?’ fosse ‘Comi aquela “maravilha” ’, o segmento “aquela maravilha” estaria fazendo referência a queijo, mas com óbvia alteração semântica. 13 Podemos supor que mesmo a referência por repetição do sintagma (Oui, j’ai mangé du fromage), além de pouco “econômica”, implicaria num grau maior de alteração de sentido, em razão do próprio fato de haver uma estrutura como en, tão freqüentemente utilizada para pronominalizar um sintagma do gênero. 38 De modo a evitar a repetição dos grupos nominais que são complementos de verbos ao longo de um enunciado, os mesmos podem, no caso do francês, ser substituídos por pronomes complementos, e isso quer sejam eles introduzidos por determinantes definidos ou indefinidos. pronomes pessoais que podem Contudo, a língua portuguesa possui substituir complementos introduzidos por determinantes definidos, mas não indefinidos. Quando um COD é determinado por um artigo indefinido, a língua francesa pode substituí-lo por en. Se esse artigo for o singular un/une, ele precisa ser retomado, na sua forma pronominal, que é idêntica, após o verbo14. [64] - Tu as acheté une pomme? - Oui, j’en ai acheté une. (COD=une pomme) Em português, um nome contável no singular pode ser determinado pelo artigo indefinido singular um/uma (por exemplo, uma maçã), equivalente a un/une, em francês. Mas não há em português um pronome equivalente a en para substituir um COD precedido por um/uma, e também não é preciso repetir um/uma após o verbo para que se entenda que o objeto do verbo é um singular indefinido. Traduzindo [64] para o francês, temos: [65] - Comprou uma maçã? - Comprei. (COD=uma maçã) Vejamos como funciona o sistema dos artigos indefinidos no português, pois das diferenças desse sistema em relação ao do francês decorre parte da dificuldade dos aprendizes brasileiros em usar en. No caso de um nome contável no plural, não é necessário usar nada, em português, no lugar em que o francês usa o artigo indefinido plural des, plural comum a un e une. [66] - Vous avez cueilli des fraises? [67] - Vocês colheram morangos? 14 Mas já não recebe a mesma análise sintática: nessa posição, ele é considerado como um pronome indefinido. 39 No caso de um nome incontável, algo semelhante ocorre. O GN de l’eau, em que o nome eau é determinado pelo artigo indefinido de massa de l’, corresponde, em português, a água, pura e simplesmente, sem nenhum determinante, e a frase Je bois de l’eau pode ser traduzida por Bebo água. Assim, é plausível afirmar que a noção de parte, associada em francês aos artigos partitivos, pelo menos segundo a nomenclatura tradicional, em português é expressa pela ausência de marca. Para mencionar mais um caso em que as duas línguas se comportam de maneiras bastante diferentes, devemos considerar que, diante do COD ou do atributo do sujeito de um verbo na forma negativa, todas as formas de artigo indefinido francês assumem normalmente a forma de. Exemplificamos este fenômeno passando para a negativa duas das frases anteriormente utilizadas para ilustrar o emprego dos artigos indefinidos de massa e do plural des: [68] Nous ne mangeons pas de pommes. [69] Je ne bois pas d’eau. Se traduzirmos essas frases para o português, temos: [70] Não comemos maçãs. [71] Não bebo água. Como se pode observar, em português, nenhuma estrutura ocupa o lugar, nos termos de Kalmbach, do artigo indefinido negativo de do francês. A diferença entre a forma afirmativa e a negativa, em português, consiste tão somente na presença do advérbio de negação não antes do verbo. Esse fenômeno da transformação dos artigos indefinidos em de diante do COD de um verbo na negativa ocorre inclusive no caso dos artigos indefinidos singulares un e une: 40 [72] Elle a regardé un film hier soir. [73] Elle n’a pas regardé de film hier soir. Ora, o que era mesmo que tudo isso sobre os artigos indefinidos tinham a ver com o pronome en? A questão é que esses artigos são justamente algumas das estruturas que, quando determinam um GN COD, atributo do sujeito, ou sujeito real, facultam a sua substituição por en, para evitar que se precise repetir o nome (ou substituí-lo por uma paráfrase) sempre que ele seja mobilizado por um verbo em uma dessas três funções sintáticas. Outro aspecto importante de ser mencionado a respeito das vicissitudes da pronominalização é o que se pode ilustrar através do exemplo [74], tirado de Brown & Yule (1983, p. 201): [74] Kill an active, plump chicken. Prepare it for the oven, cut it into four pieces and roast it with thyme for one hour. Mate um frango forte e gordo. Prepare-o para o forno, corte-o em quatro pedaços e asse-o com tomilho por uma hora. Como podemos perceber, o “objeto do discurso” desse exemplo num primeiro momento é ‘an active, plump chicken’. Entretanto, não se pode negar que esse objeto sofre sensíveis mudanças ao longo do texto. Na segunda frase ele é “retomado” por ‘it’ como um frango a ser preparado para o forno. Em seguida, o mesmo pronome ‘it’ faz referência ao frango, agora cortado em pedaços. Será que podemos entender as sucessivas “retomadas” do “objeto do discurso” por ‘it’ como representando o mesmo frango ativo e gordo do início? No nosso entender, o frango do início, aqui o “objeto do discurso”, vai sendo construído e reconstruído ao longo do texto, de tal forma que as sucessivas ocorrências do pronome “it” foram “retomando” o dito frango ao mesmo tempo iam reinvestindo-o de novas características, sempre provisórias, já que podem sofrer alterações se assim desejarem os “construtores” desse objeto do discurso, os interlocutores. Nesse sentido, se poderia talvez falar de progressão referencial, isto 41 é, o referente vai sendo retomado, mas vai sendo também reconstituído, reinvestido de significado. De fato, os autores citados observam: “The context of a text is not merely an enumeration of referents; an important part of the content is the relations that the text establishes between the referents.” Esse fenômeno, embora ocorra também com pronomes do português, nem sempre parece claro para os aprendizes. Estes, muito freqüentemente, buscam antecedentes para os pronomes sem levar em conta as relações entre os referentes nem as transformações que os referentes sofrem ao longo do texto. Eles consideram simplesmente que o pronome “retoma” um antecedente, tal qual ele se apresentava quando apareceu no texto na qualidade de nome, de substantivo. Aliás, os termos “retomar” e “retomada” são utilizados com freqüência para descrever a função pronominal. Preferimos, contudo, evitá-los a maior parte do tempo neste trabalho, ainda que acreditemos que o pronome, por vezes, “retome”, de um certo modo, um “antecedente” (reconstituindo-o, bem entendido, numa determinada função sintática). Assim, damos preferência para verbos como “substituir”, “pronominalizar”, “remeter”, “referir-se”, “representar”, “evocar”, e para substantivos como “substituição”, “pronominalização”, “referência” e “anáfora”, para designar a ação do pronome. Já para o grupo nominal (GN) a que en se refere em cada caso, usamos o termo “referente”. O termo “antecedente” parece-nos sugerir que o GN necessariamente anteceda o pronome no enunciado, o que não daria conta da pronominalização que vemos no exemplo abaixo: [75] J’en ai vu, moi, des malheurs! Essa forma de referência, em que o pronome “antecipa” um grupo nominal que só “aparece” mais “adiante” no enunciado, recebe geralmente o nome de “catáfora”. Além de anafórico e catafórico, o pronome en pode funcionar ainda como um dêitico, isto é, indicar algo que está “fora” do enunciado, um referente que se 42 encontra “no mundo”, algo que alguém, por exemplo, aponta com o dedo enquanto diz “isto”. Vimos acima quais são alguns dos motivos que acreditamos estarem por trás da dificuldade que os aprendizes brasileiros do FLE manifestam ao estudarem o pronome en. 3.2 Considerações sobre a nomenclatura relativa ao pronome en Passamos agora a fazer considerações sobre a nomenclatura que descreve en, para sugerir que se evitem determinadas palavras, sugerindo o recurso a outras. Para começar, acreditamos que a designação geral, aplicada a todos os usos de en, por exemplo por Grevisse (1953) e Salins (1996) como um advérbio pronominal, não é interessante como etiqueta sob a qual se possa apresentar en quantitativo. Ambos os autores mencionam que o pronome recebe esse nome em função de sua origem no vocábulo latino inde. Uma tal denominação poderia ser adequada para um uso adverbial de en, mas não nos parece que acrescente nada de positivo para o entendimento do en quantitativo. A classificação de en entre os pronomes pessoais, por sua vez, nos parece adequada, na medida em que permite que se faça a relação desse emprego de en com o dos pronomes pessoais em função COD le, la, l’, les. Mas concordamos com Kalmbach (2005), que classifica en como um pronome de terceira pessoa (P3), e questiona se deveriam ou não ser considerados como pronomes pessoais do mesmo modo que o são os de primeira e segunda pessoa, na medida em que só estes últimos participam de fato “pessoalmente” da interação conversacional enquanto interlocutores. Os P3, segundo Kalmbach, partilham entre si de propriedades que os distinguem dos pronomes pessoais de primeira e segunda pessoas, e o autor propõe que para, fins didáticos, faça-se essa distinção. Em sua exposição dos modos de apresentação dos pronomes nos manuais de FLE finlandeses, Kalmbach diz o seguinte: “la plupart du temps, les auteurs présentent ensemble y et en à antécédent GN et à antécédent non GN (neutre), parfois d’ailleurs sous le titre de ‘Pronoms neutres’.” (2005, p. 141) 43 Como vemos na citação, Kalmbach parece concordar com o uso do termo neutro para nomear somente o emprego em que en representa um referente que não é um grupo nominal, ou seja, uma frase. Trata-se do mesmo uso que Grevisse (1953, p. 386) chama de neutro. No entanto, em conformidade com o relato de Kalmbach, também já nos deparamos, em gramáticas e livros didáticos que consultamos, com a designação pelo termo pronome neutro aplicada ao conjunto dos empregos de en. No nosso ver, o termo pronome neutro, aplicado a outro emprego de en que não aquele em que substitui uma frase, pode confundir o aprendiz. E isso por uma série de razões, a saber: - A acepção de en freqüentemente dita adverbial, em que o pronome representa um lugar de origem ou proveniência, é pertinente somente para verbos intransitivos e, assim sendo, sequer coloca a questão da concordância que, no caso de um verbo intransitivo, nunca se faz com o objeto. Essa ausência de concordância pode evocar a idéia de uma neutralidade. - No emprego de en em função COI predominam restrições à representação do caráter [+ animado]14, o que poderia dar a impressão de que, de algum modo, seja uma espécie de neutro no sentido em que o é o pronome it do inglês. - Em associação com a lembrança de que existem tais restrições, e em meio à multiplicidade de regras que o conjunto dos empregos de en implica, o termo neutro, aplicado ao conjunto dos usos, pode ter o efeito de dar a crer que a neutralidade do pronome signifique que ele não possa substituir um GN com o caráter [+ animado]. Sabemos que en quantitativo pode fazê-lo. Essa idéia falsa que um aprendiz poderia formar, de que en fosse neutro, em todas as suas acepções, porque não pudesse pronominalizar um GN com o caráter [+ animado] (na realidade, só en quantitativo pode fazê-lo praticamente sem restrições) pode ser reforçada pelo fato de não haver concordância verbal com en 14 Kalmbach (2005) observa que, nas gramáticas e livros, freqüentemente se fala em caráter [+ humano], quando se deveria falar em caráter [+ animado], o que permitiria incluir animais e objetos personificados ou determinados e individualizados ao lado dos humanos, nas restrições à pronominalização. Segundo o autor, o en COI só costuma representar o caráter [+ animado] quando tem valor genérico: Les amis, on en a toujours besoin. (KALMBACH, 2005) 44 quantitativo em função COD, como haveria no caso de um pronome da série le15, la, les. Em vista dessas considerações, preferimos não aplicar e mesmo desaconselhar o termo pronome neutro para descrever outro emprego de en que não aquele em que substitui uma frase. Com Kalmbach (2005), preferimos não aplicar o termo partitivo a en quantitativo, pois a aceitação das implicações do termo não é tranqüila. Como o autor, preferimos o termo artigo indefinido ao termo partitivo, para nomear as formas du, de la, de l’, des, de. Kalmbach propõe que a supressão do artigo partitivo da nomenclatura gramatical, em prol da classificação das formas ditas partitivas entre os artigos indefinidos, traria uma simplificação das regras concernentes ao emprego quantitativo de en. De acordo com este autor, como vimos no segundo capítulo, este emprego consiste na pronominalização de um GN introduzido por um determinante indefinido, o que inclui os artigos indefinidos. Kalmbach acredita ser inútil considerar dois casos, um com o artigo indefinido (un/une, e des, dependendo do autor que se consulte), outro com o partitivo (du/de la/de l’, e des, dependendo do autor que se consulte), bastando que se reúnam os dois sob a etiqueta “GN com artigo indefinido”. Poderíamos falar em en COD, mas estaríamos em falta com a nomeação do seu uso enquanto atributo e sujeito real. Embora aconselhemos que, para fins didáticos, apresente-se aos aprendizes inicialmente apenas en em função de COD, acreditamos que o aprendiz deva ser apresentado, em tempo não muito posterior, a en em função de atributo, e, em um nível já mais avançado do estudo da língua francesa, a en em função de sujeito real, aproveitando-se a ocasião de cada nova apresentação para a revisão dos usos anteriores, visto aplicarem-se praticamente as mesmas regras aos três tipos. O termo quantitativo, que vimos utilizando desde o início do segundo capítulo para nos referirmos ao objeto principal deste trabalho, também não foi uma escolha simples. 15 Lembramos aqui que le também é chamado de neutro quando o seu referente é uma frase. 45 Em resumo, escolhemos esse termo por ele revelar inequivocamente a conexão fundamental deste emprego de en com o complexo sistema de quantificação do francês. Mas, como outros, o termo também não facilita totalmente a compreensão de professores e aprendizes. Pode-se entender, por exemplo, a partir do uso deste termo e da regra de substituição de uma quantidade de algo, que um aprendiz cogite pronominalizar por en um GN como les trois kilos de carottes, o qual de fato não é “pronominalizável” por en. De modo a explicar porque les trois kilos de carottes, mesmo se for o COD de um verbo, não pode ser substituído por en, um professor poderia falar em quantidade indefinida. Mas o aprendiz, diante de um exemplo em que um GN como trois kilos de carottes (sem artigo) esteja pronominalizado por en, poderia objetar que trois kilos não é uma quantidade indefinida. A questão é que a indefinição de que se trata não é propriamente a da quantidade, mas sim a do GN enquanto tematizado como algo de que já se falou antes (definido: le, ce, mon, etc.) ou como algo de que ainda não se falou (indefinido: un, quelques, certains, etc). É preciso, então, que se entenda esse emprego de en em conexão, não somente com os sistemas quantitativo e pronominal do francês, mas também com os determinantes indefinidos, que apresentam no discurso um GN enquanto não especificamente mencionado em um momento anterior. Ora, uma expressão de quantidade não é sempre apresentada no discurso como uma coisa de que ainda não se falou antes: em les trois kilos de pommes, a quantidade trois kilos é apresentada como conhecida pelo interlocutor, como algo de que já se estava falando anteriormente. Já em trois kilos de pommes, sem o artigo indefinido, a quantidade é apresentada como algo de que não se havia falado antes, e é a um tal estado de coisas que se refere a noção de indefinição. Mas vejamos outro aspecto que poderia contra-indicar o termo quantitativo. Quando se usa essa palavra para descrever o uso de en para substituir, por exemplo, um COD com determinante indefinido, pode-se ter a impressão de que, quando se usa o pronome, coloque-se sempre de algum modo em questão a quantidade de algo. Mas em um exemplo como o [76] abaixo, não é fácil crer que um brasileiro, mesmo francófono, por exemplo, ou mesmo até um francês, convidado a se expressar meta-lingüisticamente sobre os conteúdos inerentes à frase, fosse seguramente evocar a noção de quantidade. 46 [76] - Tu as vu des maisons à vendre alors? - Oui, J’en ai vu. [77] - Você viu casas à venda, então? - Vi, sim. Quando se trata de um GN incontável, talvez especialmente de um alimento, determinado por algum quantificador mais específico, é mais fácil perceber a expressão da quantidade: [78] Du lait? Oui, j’en ai bu beaucoup. [79] Leite? Sim, tomei muito. A escolha que fizemos de chamar esse emprego de en, sobretudo para fins didáticos, de quantitativo, implica, a nosso ver, em que se exponham essas questões para os alunos. Deve-se explicar que a denominação serve para lembrá-los de que o pronome se relaciona com o sistema de quantificação do francês, mas que não basta que se tenha em vista a noção de quantidade. Nesse sentido, é importante levar os aprendizes de FLE a observar que, embora esse en seja chamado de quantitativo, as regras de substituição que dão conta de descrevê-lo podem até mesmo dispensar o uso desse termo, embora seja interessante que se aplique o termo quantificadores para os determinantes indefinidos. O essencial na formulação dessas regras é que se tenha em mente, como ensina Kalmbach (2005): a) as funções que um GN pode ter no enunciado para que possa ser substituído por en: COD, atributo do sujeito ou sujeito real. b) que esse GN deve ser introduzido por um determinante indefinido. Como vimos, a complexidade dos sistemas pronominal e quantitativo do francês, as relações pragmáticas entre os usos dos pronomes, artigos e quantificadores, brasileiros e franceses, não facilitam a vida dos aprendizes brasileiros da língua francesa. 47 Também não facilitam a descrição gramatical, lingüística, e a exposição didática do pronome en quantitativo, estrutura que se correlaciona de maneira complexa com esses dois sistemas. Na primeira parte deste capítulo, procuramos fazer reflexões a respeito das vicissitudes pragmáticas do uso de en, as quais, esperamos, possam esclarecer algum ponto obscuro para algum professor ou aprendiz disposto ao embate com a complexidade do tema. Esperamos igualmente que as considerações que fizemos acerca da pertinência de uns e outros termos utilizados para qualificar o pronome possam ser de alguma serventia didática. 48 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em nosso primeiro capítulo, mostramos como o pronome en do francês é tratado em três gramáticas francesas e no livro didático Forum de francês como língua estrangeira (FLE). Pode-se perceber ali que o modo de sua apresentação não é nada unívoco, havendo bastante variação nos termos usados para descrevê-lo, na classificação dos seus empregos, nas regras formuladas. Se as diferentes gramáticas até certo ponto se complementam em termos de informação sobre o pronome en, é certo que restam lacunas e problemas a serem resolvidos. No segundo capítulo, apresentamos contribuições dos lingüistas Kalmbach (2005) e Véronique Lagae (2001), para a descrição do uso quantitativo do pronome en, e as soluções que elas representam para algumas das lacunas e problemas identificados nas exposições gramaticais do primeiro capítulo. No terceiro capítulo, fizemos reflexões gerais acerca dos sistemas pronominal e quantitativo do francês e do português, e indicamos alguns dos motivos para as dificuldades apresentadas pelos aprendizes brasileiros de FLE em lidar com os pronomes franceses em geral, e com en em particular. Encontramos grande dificuldade para localizar obras que explicassem o uso quantitativo de en de uma maneira que desse conta de ocorrências que sabíamos existir, inclusive graças à nossa atividade de ensino de FLE, mas que não se revelavam compatíveis com as regras apresentadas pelas gramáticas tradicionais. Após muita pesquisa na internet à procura de bibliografia que fosse abrangente sobre o assunto, encontramos a tese de doutoramento de Kalmbach (2005), “De de à ça: enseigner la grammaire française aux finnophones” que norteou o nosso trabalho. Mas foi ali também que encontramos o que, a nosso ver, coloca outra questão muito interessante sobre o pronome en. Não abordamos essa questão em nosso trabalho, pois não se tratava da acepção de en que constitui nosso objeto, e abordá-la, devido à complexidade do tema, significaria um grande desvio de percurso em nossos objetivos. Contudo, consideramos interessante observar isso aqui, na medida em que essa questão certamente poderia constituir um ponto de partida para futuras pesquisas sobre o assunto. A questão pode ser resumida como segue: 49 Há um uso de en comumente associado à representação de um grupo nominal com valor adverbial (GREVISSE, 1953/SALINS, 1996). Em [80], d’Avignon é analisado por Grevisse entre outros como sendo um adjunto adverbial de lugar de origem. [80] Avignon? Oui, nous en venons, justement. (nous venons d’Avignon) Kalmbach (2005) acena com uma hipótese que nega esta interpretação, afirmando que en só retoma complementos diretos ou indiretos de verbo, mas não adjuntos adverbiais, mesmo na acepção referida. Deste modo, Kalmbach tende a alinhar esse emprego de en, tradicionalmente associado a um valor adverbial, com o emprego de en para substituir um complemento de objeto indireto de verbo. No entanto, os exemplos de que o autor lança mão para argumentar sobre o seu ponto de vista deixam várias questões sem resposta. De qualquer forma, as questões colocadas são instigantes e poderiam perfeitamente ser retomadas num outro estudo sobre o pronome en. 50 REFERÊNCIAS BAYLON, C. et al. Forum: Méthode de Français. Paris : Hachette : 2000. BROWN, G.; YULE, G. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1983. p. 201-204 CAMPÀ, À. et al. Forum 2: Méthode de Français. Paris : Hachette : 2001. DUBOIS, J. Grammaire structurale du français: nom et pronom. Paris : Larousse : 1965. GREVISSE, M. Le bon usage: grammaire française. Gembloux : Duculot : 1953. SALINS, G.-D. Grammaire pour l’enseignement/appentissage du FLE. Paris : Didier : 1996. KALMBACH, J.-M. De de à ça: enseigner la grammaire française aux finnophones. 214 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade de Jyväskylä. Jyväskylä, 2005. Disponível em:<URLhttp://ebooks.jyu.fi/9513921166.pdf>. Acesso em: 29/11/2007. LAGAE, V. Le pronom en: des compléments adnominaux aux syntagmes quantificateurs. Travaux de linguistiques, Duculot, Louvain-La-Neuve, n°42-43, pp 111-120. 2001. Disponível em:<URLhttp://www.cairn.info/revue-travaux-delinguistique-2001-1-page-43.htm>. Acesso em: 29/11/2007. Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Citações e notas de rodapé. Curitiba: Ed. da UFPR, 2007. Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Redação e editoração. Curitiba: Ed. da UFPR, 2007. Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Referências. Curitiba: Ed. da UFPR, 2007. Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Teses, Dissertações, Monografias e Trabalhos acadêmicos. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.