O pronome en quantitativo, sutil estrutura dos

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RAFAEL COSTA SANTOS
O PRONOME EN QUANTITATIVO, SUTIL ESTRUTURA DOS SISTEMAS
QUANTITATIVO E PRONOMINAL DA LÍNGUA FRANCESA
Monografia apresentada como requisito
parcial para conclusão do Curso de Letras
Francês – Bacharelado em Estudos
Lingüísticos da Universidade Federal do
Paraná - UFPR.
Orientador: Prof. Eduardo Nadalin
CURITIBA
2007
ii
Dedico esta monografia a minha família e à minha namorada Scheila.
AGRADECIMENTOS
À minha família,
pelo carinho e apoio de sempre.
Ao meu orientador Eduardo Nadalin,
pelo norte fundamental que me deu, pela amizade, pela ajuda e pela enorme
paciência.
Às minhas professoras Nathalie Mendonça, Lucia Cherem, Sandra Monteiro e
Sandra Novaes, pelos ensinamentos, pela paciência, pelo incentivo que me deram
em tantas ocasiões.
À minha querida Scheilinha.
iii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................Erro! Indicador não definido.
1 COMO ALGUMAS GRAMÁTICAS E FORUM (LIVRO DIDÁTICO DE FLE)
APRESENTAM O PRONOME EN ...........................................................................4
1.1 Le bon usage.........................................................................................................4
1.1.1 Valor adverbial ...................................................................................................5
1.1.2 Valor de pronome pessoal..................................................................................5
1.1.2.1 Complemento de um verbo .............................................................................5
1.1.2.2 Complemento de um nome .............................................................................5
1.1.2.3 Complemento de um adjetivo..........................................................................5
1.1.2.4 Complemento de um advérbio de quantidade.................................................5
1.1.3 Significado partitivo .................................................Erro! Indicador não definido.
1.1.4 Pronome neutro.......................................................Erro! Indicador não definido.
1.1.5 Expressões de quantidade .................................................................................8
1.2 Grammaire Structurale du Français: nom et pronom ..........................................10
1.3 Grammaire pour l’enseignement/apprentissage du FLE .....................................12
1.3.1 Os pronomes de terceira pessoa “complementos” do verbo ............................13
1.3.2 A quantificação: retomada do nome quantificado pelo pronome en.................13
1.3.3 A situação no espaço .......................................................................................15
1.4 Forum ..................................................................................................................15
2 DUAS ABORDAGENS LINGÜÍSTICAS SOBRE O EN QUANTITATIVO .............22
2.1 Determinantes complexos de quantidade ...........................................................22
2.2 En quantitativo e en adnominal ...........................................................................24
2.3 A proposta de Kalmbach .....................................................................................26
2.3.1 O pronome en pode substituir um COD introduzido por um
determinante indefinido ....................................................................................27
3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O EN QUANTITATIVO ...................................34
3.1 Ponderações sobre as dificuldades dos aprendizes brasileiros com
o pronome en ......................................................................................................34
3.2 Considerações sobre a nomenclatura relativa ao pronome en ...........................42
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................48
REFERÊNCIAS ........................................................................................................50
1
INTRODUÇÃO GERAL
Nos anos em que vimos trabalhando no ensino de francês como língua
estrangeira (FLE), dando aulas para estudantes universitários oriundos de diversas
áreas de conhecimento, entre outras pessoas envolvidas em outros tipos de
atividades, tivemos a oportunidade de observar as aptidões e dificuldades
apresentadas pelos falantes da língua portuguesa do Brasil no aprendizado da
língua francesa.
Dentre as dificuldades, uma ganha grande destaque e relevo: a
dificuldade para entender o funcionamento e para utilizar com propriedade uma
pequena partícula, sem equivalente na língua portuguesa: o pronome en.
Mesmo em níveis bastante avançados de estudo da língua, é bastante
raro encontrar aprendizes que utilizem regular e corretamente o pronome en, em
qualquer das suas várias acepções.
O autor de uma das principais fontes bibliográficas consultadas para este
trabalho, Kalmbach (2005), debruçou-se atentamente sobre as particulares
dificuldades apresentadas no entendimento e uso efetivo do pronome en por
aprendizes de FLE falantes do finlandês.
Acreditamos poder corroborar, a partir de nossa própria experiência de
ensino, as palavras de Kalmbach no que se refere à relação entre a utilização
automática de en e à proficiência na língua francesa:
Nous estimons personnellement d’après notre expérience
d’enseignement que l’utilisation automatique de en est une des
marques d’une bonne maîtrise du français et que tant qu’elle n’est
pas automatique, l’apprenant a encore du chemin à faire, quel que
soit son niveau par ailleurs. (KALMBACH, 2005, p. 131)
Um problema relacionado ao ensino do pronome en é o fato de que a
descrição de sua natureza e funções não é feita de maneira uniforme nas diversas
gramáticas da língua francesa e livros didáticos de FLE. Ao contrário, encontra-se
variedade de abordagens, de classificações, de nomenclatura, de tipologias. Cada
publicação trata em maior ou menor detalhe de um ou outro uso, um ou outro
aspecto, com mais ou menos acerto.
Estes fatos parecem ser também verdadeiros na Finlândia, se
considerarmos o que diz Kalmbach a esse respeito: “La présentation de en et y se
2
fait de manière très disparate selon les manuels et il est difficile de dégager des
lignes d’approche communes.” (KALMBACH, 2005, p. 141)
Diante dessa variedade no modo de apresentação de en nas diferentes
obras, os professores de FLE com freqüência se encontram em apuros no momento
em que devem escolher a melhor forma de explicar os usos do pronome, ou os
melhores materiais teóricos ou didáticos por meio dos quais apresentá-lo.
É comum a situação em que um professor, havendo, por exemplo,
selecionado um documento original para trabalhar junto a seus alunos, depare-se ali
com uma ocorrência de en sobre a qual não encontre explicação em nenhuma das
gramáticas e livros a que tenha acesso.
Por outro lado, em trabalhos acadêmicos de lingüística podem-se encontrar
respostas ou encaminhamentos de soluções para os problemas e dúvidas
concernentes ao assunto.
O objetivo geral deste trabalho, portanto, é o de propor uma reflexão sobre
alguns modos de apresentar gramatical, didática e lingüisticamente o pronome en.
Mais especificamente, pretendemos ponderar sobre as dificuldades dos aprendizes
brasileiros de FLE, como também o modo de exposição conferido por diferentes
autores para a acepção quantitativa do pronome.
Devido à complexidade apresentada pelo conjunto dos empregos desse
pronome, decidimos abordar em maior detalhe uma das suas acepções, o en dito
quantitativo (capítulo 2), e propor uma reflexão geral sobre o seu caráter pronominal,
as vicissitudes do seu uso no quadro mais amplo dos sistemas quantitativo e
pronominal do francês, em conexão com os motivos para as dificuldades
encontradas pelos aprendizes brasileiros de FLE em dominar o seu funcionamento.
Para dar início a essa empreitada, em nosso primeiro capítulo,
procedemos a uma análise de conjunto dos modos de apresentação propostos para
os vários empregos de en em algumas gramáticas, e no livro didático de FLE
utilizado atualmente (dezembro de 2007) pelo Centro de Línguas e Interculturalidade
(CELIN) da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A proposta principal desta análise é o de identificar pontos fracos e fortes,
aportes interessantes e lacunas, e ilustrar a disparidade das interpretações que se
pode encontrar para essa importante estrutura da língua francesa.
Ao longo de nossa exposição das explicações e sistematizações
encontradas nas diferentes publicações, vamos tecendo reflexões, levantando
3
problemas e contrastando as interpretações ali presentes com soluções propostas
por outros autores, gramáticos ou lingüistas.
Com a exposição que empreendemos no primeiro capítulo, pretendemos
apresentar uma visão geral dos usos do pronome en, pela ótica dos materiais que,
de costume, formam as percepções que professores e aprendizes de FLE dele têm,
de um modo geral.
Como o emprego de en de que nos ocupamos nos capítulos
subseqüentes é o quantitativo, neste primeiro capítulo, cotejamos interpretações
propostas nas gramáticas e em Forum com as de lingüistas no tocante, sobretudo,
às demais acepções do pronome, ao mesmo passo em que nos abstemos de
apresentar em maior detalhe as visões dos lingüistas sobre o en quantitativo, o que
reservamos para o segundo capítulo.
Neste segundo capítulo, então, conforme dissemos acima, enfocamos o
emprego quantitativo do pronome en, apresentando as contribuições de dois
lingüistas
que
trataram
do
pronome
com
perspectivas
diferentes,
mas
complementares: Kalmbach (2005) e Véronique Lagae (2001).
Confrontando
as
percepções
desses
dois
autores
com
os
questionamentos suscitados e problemas levantados no primeiro capítulo, pelas
exposições gramaticais e didáticas do en quantitativo, fazemos então algumas
considerações e indicamos aquelas que nos parecem ser boas soluções para o
tratamento do pronome en dito quantitativo.
No terceiro capítulo fazemos uma reflexão sobre o funcionamento dos
sistemas pronominal e quantitativo da língua francesa em geral, contrastando-os
com os do português, de modo a identificar alguns dos motivos que permitem
explicar dificuldades particulares dos aprendizes brasileiros de FLE no trato com
pronomes, quantificadores e determinantes indefinidos franceses, e em especial com
en.
A seguir, fazemos considerações gerais sobre alguns dos termos
presentes na nomenclatura utilizada na descrição de en quantitativo, entre eles o
próprio
termo
“quantitativo”,
e
sugerimos
determinadas
denominação adequada de en, com fins didáticos.
escolhas
para
a
4
1
COMO ALGUMAS GRAMÁTICAS E FORUM (LIVRO DIDÁTICO DE FLE)
APRESENTAM O PRONOME EN
O pronome en é abordado de maneira variada e freqüentemente um tanto
confusa e/ou incompleta em muitas gramáticas do francês e livros didáticos de
francês como língua estrangeira (FLE).
Como se trata de uma estrutura essencial da língua francesa que não tem
um equivalente exato na língua portuguesa para nenhuma de suas variadas
acepções, os professores e aprendizes brasileiros do FLE, ante a deficiência das
abordagens gramaticais e didáticas no tocante a esse pronome, com freqüência se
deparam com dificuldades no ensino/aprendizado de cada um dos seus empregos.
Neste primeiro capítulo, procederemos a uma exposição e faremos alguns
questionamentos críticos acerca do tratamento dado a en por três gramáticas
francesas, com perspectivas diferentes entre si, e por Forum, o livro didático de FLE
utilizado atualmente pelo Centro de Línguas e Interculturalidade da Universidade
Federal do Paraná.
O objetivo desta exposição é o de proporcionar uma visão do tipo de
material a partir do qual, de costume, professores e aprendizes formam a sua
percepção do pronome en.
Como essas publicações abordam o assunto de maneira diversa, cada qual
tratando em maior ou menor detalhe de uma ou outra de suas especificidades,
nossa exposição pretende, por um lado, mostrar as lacunas de cada publicação no
que se refere a en, mas, por outro lado, também pretende proporcionar uma visão
mais ampla sobre o pronome. A despeito de apresentarem lacunas, essas obras
trazem informações importantes e esclarecedoras, que não podem nem devem ser
negligenciadas e, em certa medida, se complementam.
1.1
Le bon usage (Maurice Grevisse, 1953)
Nessa obra (p. 386), o autor diz que en é um advérbio pronominal, ou um
pronome adverbial, que possui:
1.1.1 Valor adverbial quando significa “de là, de l’endroit dont il s’agit”.
5
[1] De ce lieu-ci je sortirai, après quoi je t’EN tirerai. (La F., F., III, 5, citado
em GREVISSE, 1953, p. 386)
1.1.2 Valor de pronome pessoal quando representa um nome construído com a
preposição de, que pode ser:
1.1.2.1
Complemento de um verbo:
[2] On a voulu lui donner une mission officielle, il s’EN est dispensé. (Ac.,
citado em GREVISSE, 1953, p. 386)
Diferentemente do que, conforme veremos adiante, fazem outros autores,
Grevisse não usa o termo objeto indireto (doravante COI, do francês complément
d’objet indirect) para se referir ao complemento de verbo a que se refere.
1.1.2.2
Complemento de um nome:
[3] J’aime beaucoup Paris et j’EN admire les monuments (Ac., citado em
GREVISSE, 1953, p. 386)
1.1.2.3
Complemento de um adjetivo:
[4] C’est un fâcheux événement: j’EN suis tout triste. (GREVISSE, 1953, p.
386)
1.1.2.4
Complemento de um advérbio de quantidade:
Grevisse não dá um exemplo do que entende por esse uso de en como
substituto de um nome complemento de advérbio de quantidade. De todo modo, não
aprofundaremos aqui este ponto, pois o faremos no início do capítulo 2.
Como veremos, o uso a que o autor parece estar se referindo é um tanto
controverso e recebe interpretações diversas em diferentes autores, sendo descrito
por meio de uma nomenclatura distinta por cada um deles.
6
1.1.3 Significado partitivo:
[5] Avez-vous des fruits? J’EN ai beaucoup. Donnez-m’EN quelques-uns.
(GREVISSE, 1953, p. 386)
A definição de en como tendo um significado partitivo é controversa, como
também o é a noção de artigo partitivo, e está relacionada à complexidade do
próprio sistema de quantificação do francês.
Geneviève-Dominique de Salins (1996, p. 66), ao comentar sobre as
dificuldades dos estrangeiros em dominar esse sistema, diz que gramáticas e
professores nem sempre estão de acordo em suas explicações, e que o ponto de
vista de cada gramática ou de cada professor traz informações diversas e variadas
que tornam essa questão gramatical muito confusa. Alguns distinguem duas
categorias gramaticais: os partitivos e os indefinidos. Entre os partitivos, alguns
classificam du, de la, de l’ e des. Outros excluem des, que é justamente o artigo
implicado no exemplo [5] de Grevisse.
Kalmbach (2005) questiona a validade da própria idéia de partitividade, e,
sobretudo, a sua adequação para a descrição do funcionamento do pronome en,
como veremos no segundo capítulo.
Além do que foi dito acima sobre a controvérsia acerca da associação desse
emprego do pronome com a noção de partitividade, achamos importante ressaltar
aqui que, como no caso do uso de en descrito no item 1.1.2, neste outro uso ele
também pode ser entendido como tendo o valor de um pronome pessoal, com a
diferença de que no caso do item 1.1.2 se trata do valor de um pronome pessoal em
função de COI, ao passo que no item 1.1.3 trata-se de um pronome pessoal em
função de objeto direto (doravante COD, do francês complément d’objet direct).
1.1.4 Pronome neutro:
Grevisse diz ainda que en é um pronome neutro quando significa de cela,
caso em que representa uma idéia ou uma oração:
[6] Il a été clément jusqu’à être obligé de s’EN repentir. (Boss, Reine d’Angl.
citado em GREVISSE, 1953, p. 386)
7
Grevisse não relaciona o emprego de en como substituto de oração com
aqueles descritos nos itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e 1.1.2.3 acima, o que, a nosso ver, seria
o caso.
Na realidade, para que se pudesse fazer essa relação, seria preciso
modificar um detalhe: esses itens se referem somente à representação por en de um
nome, quando no item 1.1.4 se trata da representação de uma oração.
Vejamos, através de alguns exemplos, como o complemento construído com
a preposição de, seja de um verbo, seja de um nome, seja de um adjetivo, pode ser
representado por en, tanto se for um nome (cf. itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e 1.1.2.3),
quanto se for uma oração (cf. item 1.1.4).
[7] Corinne se souvient très bien d’avoir été jeune un jour. Elle s’en souvient
très bien.
[8] Corinne se souvient de sa jeunesse. Elle s’en souvient même très bien.
Em [7] e [8], respectivamente, d’avoir été jeune un jour, uma oração, e de sa
jeunesse, um nome, são ambos complementos, construídos com a preposição de,
do verbo se souvenir. Na segunda frase de cada exemplo esses complementos,
estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os usos evocados nos
itens 1.1.4 e 1.1.2.1).
[9] Corinne a honte de se montrer nue devant son mari. Elle en a très honte.
[10] Corinne a honte de sa nudité. Elle en a très honte.
Em [9] e [10], respectivamente, de se montrer nue devant son mari, uma
oração, e de sa nudité, um nome, são ambos complementos, construídos com a
preposição de, do nome honte. Na segunda frase de cada exemplo esses
complementos estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os usos
evocados nos itens 1.1.4 e 1.1.2.2.
[11] Corinne est contente de s’être mariée avec un homme si patient. Elle en
est si contente qu’elle s’en félicite tous les jours.
8
[12] Corinne est contente de son mariage. Elle en est si contente qu’elle s’en
félicite tous les jours.
Em [11] e [12], respectivamente, de s’être mariée avec un homme si patient,
uma oração, e de son mariage, um nome, são ambos complementos, construídos
com a preposição de, do adjetivo contente. Na segunda frase de cada exemplo,
esses complementos estão representados por en, ilustrando, respectivamente, os
usos evocados nos itens 1.1.4 e 1.1.2.3).
Como podemos ver, bastaria que se incluísse o termo oração ao lado do
termo nome na descrição dos empregos de en referidos nos itens 1.1.2.1, 1.1.2.2 e
1.1.2.3, para que o uso descrito no item 1.1.4 estivesse previsto.
O mesmo não se pode dizer do uso descrito no item 1.1.2.4. De fato, o
complemento de advérbio de quantidade não pode ser uma oração, o que pode
servir de argumento para incluí-lo numa outra categoria de emprego de en, como
veremos no segundo capítulo.
1.1.5 Expressões de quantidade
Grevisse diz que as expressões de quantidade un, deux, quelques-uns,
beaucoup, plusieurs, peu, plus d’un, un autre, d’autres, une foule, un grand nombre,
etc., quando utilizadas como sujeitos reais com as formas impessoais, como
atributos ou ainda como objetos diretos, apóiam-se no pronome en que as precede.
Nos exemplos seguintes, fornecidos por Grevisse, un (no primeiro exemplo),
un autre e quelques-uns, são, respectivamente, sujeito real, atributo e objeto direto:
[13] Et s’il n’EN reste qu’un, je serai celui-là! (Hugo, Châtim. VII, 16, citado
em GREVISSE, 1953, p. 386)
[14] Pierre est un savant; vous EN êtes un autre. (GREVISSE, 1953, p. 386)
[15] Oh, les beaux fruits que vous avez, donnez-m’EN quelques-uns. (Ac.
citado em GREVISSE, 1953, p. 386)
9
Kalmbach (2005) explica esse fato lingüístico de um modo mais simples e
completo, a nosso ver, ao mostrar:
-
que en pode substituir um grupo nominal (GN) precedido por um
determinante indefinido.
-
que en pode substituir um GN com a função sintática de complemento
de objeto direto (COD), de atributo do sujeito ou de sujeito real (e isso, mesmo na
ausência das expressões de quantidade mencionadas acima por Grevisse).
-
que, quando o determinante indefinido que precede o GN substituído
por en não é um artigo indefinido iniciado em d-, caso das expressões de quantidade
mencionadas por Grevisse, esse determinante deve ser retomado, na sua forma
pronominal, após o verbo.
Como veremos, outros autores associam o uso de en descrito no item 1.1.5
ao descrito no item 1.1.3. Trataremos disso em mais detalhe no segundo capítulo,
quando estivermos falando sobre o objeto central de nosso estudo, que é o uso de
en descrito no item 1.1.3 acima.
No item 1.1.2.4, onde Grevisse fala no uso de en para representar o
complemento de um advérbio de quantidade sem, no entanto, dar um exemplo
desse uso, parece-nos que também se trate de um uso em conexão com o descrito
no item 1.1.5 acima, como veremos no segundo capítulo.
Grevisse (1953 p. 386) diz que en, utilizado como pronome pessoal,
representa, principalmente, animais, coisas ou idéias abstratas, mas que, às vezes,
é usado também para designar pessoas (1953 p. 387):
[16] Trois fois par semaine elle EN recevait une lettre (de sa fille) (Flaub.,
Trois Contes, p. 35, citado em GREVISSE, 1953, p. 387)
Para representar pessoas, diz Grevisse, o mais das vezes, utiliza-se o
pronome pessoal propriamente dito:
[17] Les services que j’ai reçus DE LUI. (GREVISSE, 1953, p. 387)
Exceto, segundo o autor, quando en tem um valor partitivo:
10
[18] A-t-il des amis? Il n’EN a qu’un seul. (Ac. , citado em GREVISSE, 1953,
p. 387)
Do modo como Grevisse formula essas regras, pode-se ter a impressão de
que a representação de uma pessoa pelo pronome en é excepcional.
Como veremos no segundo capítulo, quando en substitui um COD, um
atributo do sujeito, ou um sujeito real, pode representar pessoas. É a este emprego
do pronome que Grevisse está aludindo quando fala em en com valor partitivo.
Além disso, a distinção entre “en utilizado como pronome pessoal” e um
“pronome pessoal propriamente dito” talvez não seja muito esclarecedora. O uso de
en como substituto de COD, atributo do sujeito, e sujeito real, pelo menos, também
pode ser entendido como o de um pronome pessoal.
Vejamos agora como um outro autor descreve as funções desempenhadas
pelo pronome en.
1.2
Grammaire Structurale du Français: nom et pronom (Jean Dubois, 1965)
Nesta obra (p. 137), Dubois afirma que en é um substituto como os demais
pronomes pessoais. Ora, como vimos, Grevisse fala em en como um advérbio
pronominal, ou um pronome adverbial, que pode ser “utilizado como um pronome
pessoal”, e parece distingui-lo de um “pronome pessoal propriamente dito”. Dubois,
por sua vez, fala em um en “como os demais pronomes pessoais”, sem mais.
Dubois (1965, p. 139) diz que o pronome en substitui um grupo nominal (GN)
precedido pela preposição de, qualquer que seja a exploração semântica desse GN.
Conforme a gramática que se consulte, diz o autor, as explorações semânticas de en
podem ser descritas como adjunto adverbial de lugar, COI, COD com artigo partitivo,
etc. Segundo Dubois, não é a função semântica que determina o emprego de en,
mas a correspondência com o GN precedido pela preposição de.
Ora, a regra formulada por Dubois parece sugerir que um GN precedido por
de que seja inclusive um sujeito pode ser substituído por en, o que não é verdade, a
não ser no caso de um sujeito real, como veremos no segundo capítulo.
Não nos aprofundaremos nesse ponto, por não ser o nosso objetivo neste
trabalho, mas desejamos mencionar, para mostrar como o ponto não é unânime, que
11
Kalmbach (2005) discorre longamente sobre a adequação de se considerar de como
uma preposição quando entra na composição de artigos indefinidos (neste caso,
segundo o autor, de poderia ser considerado como um artigo).
Como os GN em qualquer função semântica desde que precedidos pela
preposição de, a que se refere Dubois, incluem aqueles que são determinados por
artigos indefinidos iniciados em d-, talvez o termo preposição não seja adequado
para a formulação de uma regra geral de substituição por en, como a que Dubois
parece estar propondo.
Quanto a outro ponto que implica em dificuldades para a formulação de uma
regra tão geral, como a que propõe Dubois, devemos considerar o que se pode
observar no exemplo seguinte, tirado de Kalmbach (2005, p. 28):
[19] Je n’ai pas envie qu’on vienne me reprocher un jour de ne pas m’être
occupée de mes enfants.
Podemos imaginar a pronominalização abaixo:
[20] Je n’en ai pas envie.
Ora, neste caso, aparentemente, en não está substituindo um GN
introduzido pela preposição de, ainda que, normalmente, a locução verbal avoir
envie tenha o seu complemento introduzido por essa preposição (aqui, mesmo para
Kalmbach, se trata, de fato, de uma preposição).
A questão é que, no caso, outra regra está interferindo: a da supressão da
preposição de diante de uma oração completiva.
Na realidade, as explicações de Grevisse para as funções de en vistas na
parte 1.1 acima também não dão conta desse caso.
Podemos imaginar ainda outra pronominalização para aquela frase:
[21] Je n’ai pas envie qu’on vienne me le reprocher un jour.
Ora, nesse caso se poderia perguntar, em vista das regras expostas na
maior parte dos livros didáticos e gramáticas, porque o complemento de ne pas
12
m’être occupée de mes enfants do verbo reprocher não é substituído por en, e sim
por le.
Kalmbach mostra que um complemento como esse não é um COI
introduzido pela preposição de. O verbo reprocher, por sinal, é transitivo direto. De,
aí, segundo Kalmbach, é um marcador de infinitivo, e não uma preposição, e a
oração infinitiva, apesar de introduzida por de, é substituída pelo pronome neutro le,
e não por en.
Mas tornemos à exposição do que diz Dubois.
Se não é a função semântica do GN que determina que ele possa ser
substituído por en, segundo o autor, sintaticamente, ele pode ser:
- a expansão de um verbo.
- a expansão de um nome.
Dubois (1965, p. 137) não explica o que seja a expansão de um verbo ou de
um nome, mas exemplifica: respectivamente, Je mangerai des cerises e Je connais
la fin de cette histoire.
Não parece ser contemplada a acepção em que en substitui o complemento
de um adjetivo, mencionada por Grevisse no item 1.1.2.3 acima.
Também não se fala na expansão de um advérbio de quantidade, de que
fala Grevisse no item 1.1.2.4 acima. Mas se interpretarmos esses advérbios
construídos com de como determinantes indefinidos complexos, como o faz
Kalmbach, podemos entender os GN determinados por eles como expansões do
verbo (COD).
Vamos à terceira e última gramática que abordamos:
1.3
Grammaire pour l’enseignement/apprentissage du FLE (Geneviéve-
Dominique de Salins (1996)
A autora trata das acepções do pronome en em três seções: os pronomes de
terceira pessoa “complementos” do verbo, a quantificação e a situação no espaço –
sendo a segunda e a terceira dessas acepções incluídas entre os pronomes
pessoais de terceira pessoa (P3) na concepção de Kalmbach (2005). Vejamos o que
Salins diz sobre en em cada seção:
13
1.3.1 Os pronomes de terceira pessoa “complementos” do verbo (SALINS,
1996, p. 37):
O pronome en retoma um nome não humano (coisa ou idéia) que seja o COI
de um verbo ou de um grupo verbal regido pela preposição de (como em “avoir
besoin de cela”). Pode-se questionar se o verbo retomar é sempre adequado para
descrever a operação de en. Salins fala também em pronome de retomada.
Conforme desenvolveremos em maior detalhe no terceiro capítulo, a idéia de
que o que o pronome faça (ou seja) uma retomada parece implicar que o referente
do pronome precisa haver aparecido anteriormente no discurso, o que nem sempre
é verdade.
Salins (1996, p. 37) observa ainda que, embora, do ponto de vista normativo,
haja uma efetiva diferença de emprego entre en e de lui/d’eux/d’elle(s), estes últimos
usados para representar pessoas, os locutores franceses às vezes neutralizam essa
diferença e empregam en para um nome humano (um substantivo que representa
uma pessoa), sobretudo na oralidade.
A nenhum dos dois tipos de pronome se atribui a função de representar, por
exemplo, um animal. Kalmbach (2005), porém, observa a confusão freqüente, na
formulação desta regra, entre o caráter [+ humano] e o caráter [+ animado], que
inclui animais e objetos personificados ou determinados e individualizados. De
acordo com este autor, o en COI pode representar o caráter [+ animado] quando o
nome “animado” do GN tem um valor genérico: Les amis, on en a toujours besoin.
1.3.2 A quantificação: retomada do nome quantificado pelo pronome en
(SALINS, 1996, p. 65)
Segundo a autora, en retoma a noção de quantidade. Poderíamos nos
perguntar o que significa exatamente retomar uma noção, e se grupos nominais
como les trois kilos de raisins ou l’énorme quantité de morues seriam considerados
como nomes quantificados, visto que não poderiam, normalmente, ser substituídos
por en.
A autora não especifica que, para poder ser substituído por en, um GN deve
ser introduzido por um determinante indefinido.
14
Salins prossegue dizendo (1996, p. 65) que, no caso de um contável
determinado por un/une, a retomada pelo pronome en pede, em eco, o emprego de
un/une, ou de um número apropriado.
“Em eco” ao que, exatamente?
Acreditamos que a autora esteja evocando a regra que diz que, se o
determinante indefinido do GN substituído por en não é um artigo indefinido
introduzido por d-, esse determinante deve ser retomado, na sua forma pronominal,
após o verbo.
Assim, em je veux un morceau, o complemento un morceau pode ser
substituído por en, e o artigo indefinido un (não iniciado em d-) deve ser retomado
após o verbo na sua forma pronominal: j’en veux un.
E o que seria o “número apropriado” cujo emprego pode ser, segundo a
autora, pedido “em eco” no caso da “retomada” por en de um contável determinado
por un/une?
Neste caso, acreditamos que a regra evocada esteja exposta de uma
maneira um pouco confusa, mas podemos fazer uma idéia do que a autora queira
dizer a partir do exemplo com que ela ilustra o ponto:
[22]
- (...) une banque? Il y en a une dans le coin?
- Il y en a même deux ou trois.
A nosso ver, há certa confusão na formulação da regra acima.
Na “retomada” de une banque, os “números apropriados” que “ecoam”
seriam deux ou trois?
A regra que Salins parece estar procurando descrever é a mesma que
mencionamos acima e repetimos aqui: se o determinante indefinido do GN
substituído por en não é um artigo indefinido introduzido por d-, esse determinante
deve ser retomado, na sua forma pronominal, após o verbo. E esse determinante
pode ser um numeral cardinal (un, deux, trois...).
Essa regra também dá conta de esclarecer a afirmação de Salins (1996, p.
65), segundo a qual, as quantidades “retomadas” pelo pronome en podem ser
especificadas por um quantificador.
No exemplo acima, então, a quantidade “retomada” une banque estaria
sendo especificadas pelos quantificadores deux ou trois?
15
É curioso notar ainda que, à página 60, Salins diz que os quantificadores são
de dois tipos:
- os que servem para contar ou adicionar os seres contáveis: o artigo
indefinido un, une, des, e os números.
- os que servem para quantificar massas e volumes de seres incontáveis: os
artigos partitivos de l’, du, de la.
E depois, falando da possibilidade de se precisar “as quantidades retomadas
pelo pronome en”, fornece exemplos com “quantificadores” que não apareciam
naquela definição: plusieurs, quelques-uns e très peu.
Quais são, afinal, os quantificadores de Salins?
1.3.3 A situação no espaço (SALINS, 1996, p. 134):
A autora lembra que o pronome adverbial en permite retomar um adjunto
adverbial de lugar (lugar de onde se vem, de proveniência).
[23] - Les Durand reviennent de la Réunion?
- Non, ils n’en reviennent pas (...)(SALINS, 1996, p. 134)
A autora diz que en é freqüentemente chamado de pronome adverbial, bem
como faz Grevisse (1953, p. 386), na expressão da situação no espaço.
Vimos brevemente como três gramáticas da língua francesa tratam de en.
Passaremos agora a uma breve exposição de como um livro didático de FLE aborda
esse pronome.
1.4
Forum (BAYLON et al.., 2000)
Na unidade 7 do primeiro volume do livro de FLE, en é apresentado,
primeiramente, como pronome substituto de uma expressão de lugar.
O documento D, à página 138, consiste em um diálogo gravado em CD e
destinado a servir à descoberta de en pelos aprendizes. O pronome aparece apenas
uma única vez no diálogo.
16
[24] -(...) Pour être ici vers 8 heures, vous devez quitter le parc vers 6
heures et demie. Mais n’en partez pas trop tôt... (BAYLON et al., 2000, p. 138)
O exercício 4, referente ao diálogo, pede que se levante as ocorrências do
pronome (no caso, única) e pergunta quais são as expressões de lugar que ele
substitui e se a preposição que introduz as expressões é à, de ou outra.
Talvez uma única ocorrência do pronome seja pouco para que se faça essa
descoberta. Nas unidades imediatamente anteriores, o aprendiz foi exposto aos
pronomes COD e COI, mas esses são bastante fáceis de entender, pois têm
correspondentes em português (embora, para um brasileiro, sejam difíceis de usar,
visto que os usamos muito pouco na oralidade). É relativamente fácil para o aprendiz
entender que elle substitui um nome feminino enquanto sujeito de um verbo. Um
pouco menos fácil, talvez, ele entender que la substitui um nome feminino enquanto
complemento de objeto de um verbo transitivo direto (COD). O aprendiz precisa,
para entender como opera o pronome na sua função de evitar a repetição, perceber
que o tipo de pronome a ser utilizado em determinado contexto frástico depende da
função sintática que o referente do pronome exerce na frase.
Um forte complicador, no caso de en, o pronome em foco, é o fato de o
português não possuir nenhum pronome correspondente, e raramente utilizar
alguma coisa nos casos em que o francês utiliza en: de fato o lugar de
origem/proveniência não é objeto de pronominalização em português.
No exercício 4, que mencionamos acima, para responder à pergunta sobre a
preposição que introduz a expressão substituída por en, o aprendiz precisaria
conseguir elaborar a frase intermediária ne partez pas trop tard du parc..
Na seção gramatical (BAYLON et al.., 2000, p.142), a regra diz que o
pronome en substitui expressões de lugar introduzidas pela preposição de, indicação
da origem, do lugar de onde se vem.
[25] Je viens du Canada. J’en viens. (BAYLON, 2000, p. 138)
Nenhuma observação é feita a respeito da elisão da preposição de com o
artigo definido le, formando du, o que pode confundir o aprendiz (a regra só fala em
expressões de lugar introduzidas pela preposição “de”).
17
Nada se diz sobre a relação de en com um verbo cujo complemento é
introduzido pela preposição de, e um aprendiz, seguindo a regra à risca, poderia
formular uma substituição errônea como a que vemos no exemplo seguinte:
[26] De Toulouse à Paris, la distance n’est pas bien grande.
[27] *En à Paris, la distance n’est pas bien grande.
Na unidade 8 apresenta-se o pronome en na expressão da quantidade.
A seção gramatical (BAYLON et al.., 2000, p. 159) diz que o pronome en
substitui um nome precedido por um artigo partitivo ou por uma outra expressão de
quantidade que contenha de.
Exemplifica-se:
[28] - Tu veux du lait?
-
Oui, j’en veux. (BAYLON et al.., 2000, p. 159)
Acrescenta-se que é possível especificar a quantidade.
[29] -Tu as pris du gâteau?
- Oui, j’en ai pris deux parts. (BAYLON, 2000, p. 159)
A que corresponderia essa outra expressão de quantidade que contenha
de?
Se considerarmos que a seguir fala-se na possibilidade da especificação da
quantidade, podemos nos perguntar em qual das duas regras se encaixariam
determinantes indefinidos que contêm de, como beaucoup de, peu de, trop de,
assez de, plus de, moins de, autant de, tellement de, une dizaine de, un tas de, etc.
Se entendermos que essas expressões de quantidade se classificam na
regra da possibilidade de especificação da quantidade, então aquela «outra
expressão de quantidade que contenha de” consistiria somente no artigo indefinido
plural des e na forma de que o artigo indefinido tem diante do COD de um verbo na
negativa ou de um adjetivo anteposto a um nome plural?
18
É interessante ressaltar que, na unidade 3 de Forum, onde se examina a
expressão da quantidade, primeiramente, num quadro gramatical, des é enquadrado
entre os artigos partitivos, ao lado de du, de la, de l’. Mas a seguir, na continuidade
da mesma exposição gramatical, ele aparece novamente, agora entre os artigos
indefinidos que substituem “uma quantidade que se pode contar”.
Além disso, na regra, novamente, nada se diz sobre a relação de en com o
verbo (sua função de COD), e um aprendiz poderia formular, segundo a regra
exposta, a seguinte substituição:
[30] Du vin rouge qui vient de Bordeaux.
[31] *En qui vient de Bordeaux.
O exercício 9 (p. 159) pede que se complete um diálogo onde Marie pede ao
marido que compre itens no supermercado. Deve-se completar com en (por vezes
especificando quantidades), de, des, artigos partitivos e numerais.
Nesse exercício os aprendizes são convidados a fazer várias substituições
um tanto difíceis em vista da regra exposta, por implicarem o uso de en em relação
com combien, e, em uma réplica, com combien de bouteilles:
[32] - Il ......... faut combien?
- J’......... achète combien de bouteilles?
Nada foi explicado sobre o uso de combien, nem sobre a substituição por en
de um complemento nominal. Deve-se pensar então «de bouteilles» como «uma
outra expressão de quantidade» que contém de”? Nada é dito tampouco sobre a
possibilidade de substituição de um nome de pessoa por esse tipo de en.
Em resumo, toda a exposição desses dois pontos (a expressão da
quantidade em geral e o uso de en para essa expressão) é um tanto confusa e
incompleta.
Vejamos agora como Forum trata outro uso de en.
O pronome en como substituto de um COI, é abordado na unidade 9 de
Forum 1. Na seção de gramática (BAYLON et al.., 2000, p. 178) diz-se que en
substitui uma expressão complemento de um verbo seguido pela preposição de.
19
Ressalta-se que não se pode utilizar en para substituir um nome referente a
uma pessoa, e que, neste caso, emprega-se o pronome tônico precedido pela
preposição. Exemplifica-se:
[33] - J’ai rencontré mon professeur de français hier. Je pense souvent à lui
et je parle souvent de lui.
Nada é dito sobre os casos em que en pode retomar nomes de pessoas. Na
mesma unidade, estuda-se o pronome relativo dont, mas não se faz qualquer
referência às semelhanças e diferenças entre os dois pronomes.
Na parte gramatical sobre os pronomes relativos (BAYLON et al.., 2000, p.
177) é dito que eles permitem que se acrescentem informações sobre os nomes que
eles substituem, e que têm o valor de um adjetivo. Sobre dont, especificamente, dizse que ele substitui um complemento introduzido pela preposição de.
[34] C’est une région dont on m’a beaucoup parlé. (parler de)
Somente no exemplo acima, fornecido pelo livro didático, pode-se ver a
relação com o verbo, mas ainda assim, não fica claro que o complemento substituido
por dont é sempre o complemento de um verbo transitivo indireto regido por de. Um
aprendiz poderia pensar, por exemplo, num complemento nominal introduzido por
de, e formular substituições absurdas:
[35] Je connais la solution du problème.
[36] *Je dont connais la solution.
Afora os exemplos, nada é dito sobre a função do pronome relativo na
formação da oração relativa, ou sobre a função desta na formação de períodos
compostos.
Na ficha G19 do «Carnet de Route» (livreto que contém fichas gramaticais a
serem completadas pelos aprendizes), onde se fala nos pronomes pessoais, pedese para completar o seguinte enunciado:
20
«En remplace le complément d’un verbe dont les compléments sont toujours
introduits par la préposition______________.
Avoir besoin de + complément:
Il faut apprendre plusieurs langues: on________ besoin pour voyager.»
O exemplo dado utiliza a locução verbal avoir besoin de, e não um verbo
simples, mas não se faz essa observação.
O verbo penser pode ter o seu complemento introduzido pela preposição de,
mas nem sempre é assim. Penser pode também ter o seu complemento introduzido
pela preposição à, ou um complemento direto, sem preposição alguma, ou ainda,
penser pode funcionar como um verbo intransitivo.
Certo complemento introduzido por de do verbo penser pode ser substituído
por en, mas não se pode dizer que se trate de um verbo «dont les compléments sont
toujours introduits par la préposition de». No mais, nada é dito sobre en enquanto
pronome de substituição do complemento de um substantivo ou de um adjetivo
(complemento nominal).
Na unidade 5 de Forum 2, onde se faz a revisão dos usos de en
apresentados em Forum 1, o exercício 2 da seção gramatical (BAYLON et al.., 2000,
p. 91) pede que se complete:
«En remplace un nom précédé par un article partitif, un article indéfini ou par
une autre expression de quantité contenant de:
L’été, je ne regarde pas beaucoup de films, et vous?
Si, _________________________.
Nenhuma instrução é dada no sentido de facultar ao aprendiz a provável
resposta si, j’en regarde beaucoup (je regarde beaucoup de films). Sem maiores
explicações, o aprendiz provavelmente completará com si, j’en regarde, o que
corresponderia à uma resposta um tanto incompleta em vista da pergunta: je regarde
des films. É que, na verdade, sozinho, en substitui apenas um complemento
introduzido por de, o que pode incluir apenas os artigos indefinidos du, de la, de l’ e
des.
21
Como vimos, a variedade de formas de apresentação, nomenclatura, regras,
perspectivas, não permitem que se tenha, considerando as obres citadas
separadamente, uma imagem muito unificada do pronome en.
No segundo capítulo, veremos que as interpretações de dois lingüistas
conseguem proporcionar uma visão mais coesa sobre um dos usos do pronome en,
o en quantitativo.
22
2
DUAS ABORDAGENS LINGÜÍSTICAS SOBRE O EN QUANTITATIVO
Neste capítulo e no próximo, vamos enfocar o pronome en na acepção que
vamos chamar de en quantitativo. No terceiro capítulo discutiremos a pertinência
deste termo, em comparação com outros. Por ora, veremos como dois lingüistas,
Véronique Lagae (2001) e Kalmbach (2005) resolvem alguns pontos confusos sobre
o emprego desse pronome. Para começar, vamos nos remeter a um tópico
mencionado, mas não aprofundado, no primeiro capítulo.
Conforme vimos no item 1.1.2.4 do primeiro capítulo, Grevisse (1953, p. 386)
diz que en pode representar um nome construído com a preposição de, que seja o
complemento de um advérbio de quantidade. Grevisse fala nesse uso no mesmo
item em que trata de en enquanto substituto de um complemento de verbo ou de
nome construído com a preposição de. Como veremos, essa interpretação talvez
não seja a mais adequada.
2.1
Determinantes complexos de quantidade
Embora Grevisse não forneça um exemplo desse emprego, está se
referindo, ao que parece, a um uso de en que outros autores interpretam de modos
bastante diversos, e que exemplificamos abaixo:
[37] Je n’ai pas l’argent qu’ils demandent pour la voiture, mais j’en ai assez
pour m’acheter un vélo. (j’ai assez d’argent pour m’acheter un vélo)
Em [37], assez seria, na perspectiva de Grevisse, o advérbio cujo
complemento d’argent é substituído por en. Entretanto, esse uso de en é descrito
diferentemente por Kalmbach (2005, p. 97), em sua tese de doutoramento “De de à
ça: enseigner la grammaire française aux finnophones”. Nesse trabalho, o autor fala
em advérbios que podem se combinar com a preposição de para formar
determinantes
complexos
de
quantidade,
cujo
complemento
pode
ser
pronominalizado por en, e lista alguns desses advérbios: beaucoup de, peu de, trop
de, plus de, moins de, tant de, autant de, guère de, énormément de, pas mal de, etc.
23
A diferença fundamental é que Kalmbach chama esses advérbios de
determinantes indefinidos complexos, e diz que eles podem determinar três tipos de
GN: complemento de objeto direto (COD), atributo do sujeito, ou sujeito real.
Ou seja, Grevisse vê esse uso de en como substituição de um complemento
de advérbio, e o classifica junto aos usos de en enquanto complemento de objeto
indireto do verbo (COI), complemento nominal, e complemento de adjetivo ao passo
que Kalmbach o considera como a substituição de um COD, um atributo do sujeito,
ou um sujeito real.
Para poder ser pronominalizado por en, de acordo com Kalmbach, um GN
precisa ser introduzido por um determinante indefinido. Quando esse determinante
não é iniciado em d-, quando se substitui o nome no GN por en, o seu determinante
deve ser retomado, em sua forma pronominal, após o verbo.
Desta perspectiva, na oração j’en ai assez do exemplo acima, assez é
encarado como sendo a forma pronominal do determinante complexo assez de, o
qual introduziria o GN, caso este não fosse pronominalizado. O nome argent é
substituído por en e o seu determinante assez de é mantido, na sua forma
pronominal assez, em sua posição após o verbo.
Grevisse, por sua vez, parece ver a presença de assez após o verbo como
sendo determinada pela mesma lógica que implica a preservação do nome após o
verbo quando se substitui o seu complemento nominal por en.
Vejamos um exemplo com en substituto de complemento nominal:
[38] Ce village, nous en visiterons les jardins.
Na frase acima, les jardins é o nome cujo complemento nominal ce village é
substituído por en. O nome é mantido após o verbo, na mesma posição, portanto,
que ocuparia caso o seu complemento nominal não fosse pronominalizado: nous
visiterons les jardins de ce village.
Outra indicação de que o en que substitui um complemento de advérbio de
quantidade seja mais próximo dos quantificadores é o fato, já observado
anteriormente, de esse complemento não poder ser uma oração, como o podem os
complementos de verbo, nome e adjetivo descritos por Grevisse (1953)
24
2.2
En quantitativo e en adnominal
Passemos agora a uma terceira interpretação dos fatos. Véronique Lagae
(2001), da Université de Valenciennes et du Hainaut-Cambrésis, em seu texto “Des
compléments adnominaux aux syntagmes quantificateurs”, procede a um estudo
comparativo de dois usos do pronome en, os quais chama de en quantitativo e en
adnominal. O primeiro, diz a autora, remete a uma quantidade indefinida de algo. O
segundo, a um complemento nominal, que Lagae define como sendo o elemento N2
de um sintagma binominal N1 de N2 (dois nomes: o segundo sendo o complemento
nominal do primeiro).
O exemplo [39] abaixo ilustra o en quantitativo (acompanhado, no dizer da
autora, por um quantificador de tipo nominal: deux cents):
[39] Pour Noël, je vais en faire environ deux cents [des biscuits] (ex. oral,
GARS, citado por LAGAE)
O exemplo [40] ilustra o en adnominal (substituto do complemento nominal
do N1 détails):
[40] Il y a une disposition (...), vous en connaissez mieux les détails que moi.
(ex. oral, AUV, citado por LAGAE)
Lembremos novamente que Grevisse considera a substituição por en do que
ele descreve como sendo um complemento de advérbio enquanto um caso particular
daquilo que Lagae chama de en adnominal1, ao passo que Kalmbach percebe a
mesma substituição como um caso do que a autora denomina en quantitativo.
Ora, há casos em que, segundo Lagae, as fronteiras entre en quantitativo e
en adnominal não são absolutas, mas graduais. Nesses casos, en pode,
teoricamente, receber ambas as interpretações, como no exemplo [41]:
[41] On va en retrouver en quatrième année peut-être un peu moins de la
moitié des étudiants. (ex. oral, AUV, citado por LAGAE)
1
Não estamos afirmando que Lagae a encare como Grevisse.
25
Como critérios para a sua comparação, Lagae apresenta seis propriedades
que diferenciam en quantitativo de en adnominal, a saber:
1) possibilidade de comutação do elemento pós-verbal com combien:
-
possível com en quantitativo.
-
impossível com en adnominal.
2) possibilidade de pronominalização em um nível superior do conjunto
constituído por en e o elemento pós-verbal:
-
possível com en adnominal.
-
impossível com en quantitativo.
3) possibilidade de substituir um sujeito.
-
possível com en adnominal.
-
improvável com en quantitativo2.
4) caráter + humano do referente.
-
possível com en quantitativo.
-
raro com en adnominal3.
5) possibilidade de substituição de en pelo pronome relativo dont.
-
possível com en adnominal.
-
no caso do en quantitativo a aceitabilidade da substituição varia
conforme o quantificador4:
i. inaceitável com numerais e com quantificadores como beaucoup, (un) peu,
plusieurs ou un paquet.
ii. mais aceitável com certains, quelques-uns e un certain nombre.
iii. perfeitamente aceitável com une quarantaine.
2
Lagae ressalva que, em certas circunstâncias, o en quantitativo pode ser sujeito: “(...) à cette
tristesse s’en ajoute une autre” (G. Brée). Segundo Kalmbach, como veremos adiante, esse pronome
pode substituir um sujeito real: Il vient des trains. Il en vient.
3
Lagae afirma que Pinchon (1972: 122-128) demonstrou não se tratar de uma impossibilidade estrita,
e que, conforme assinalaram Blanche-Benveniste e al. (1984 : 47-50) e Lamiroy (1991), a substituição
por en adnominal de um referente humano tem geralmente um efeito desindividualizante. Kalmbach
fala em “valor genérico”.
4
Segundo Lagae, Milner (1978: 76), Godard (1988: 175) e Kupferman (1999 : 35) demonstraram esse
fato.
26
6) comportamento da concordância do verbo de uma oração relativa com
pronome sujeito qui acrescentada à direita do N1 cujo complemento nominal é
pronominalizado por en.
en adnominal: a concordância do verbo da relativa se faz sempre
com N1.
en quantitativo: a concordância do verbo da relativa se faz
-
normalmente com N25.
A partir dos resultados da aplicação dos seus critérios aos exemplos de seu
corpus, Lagae procura definir se a substituição por en dos complemento nominal de
diversos tipos de N1 se aproxima mais do emprego de en quantitativo ou do de en
adnominal, segundo partilhem de tais e tais propriedades com um e/ou o outro.
A autora conclui que certas formas, que têm a aparência de um sintagma
nominal, como deux cents, un paquet, un tas, une foule, une infinité, une masse, e
as formas que contêm a palavra nombre (un certain nombre, un nombre important,
etc), na realidade, partilham de todas as seis características dos quantificadores do
tipo de beaucoup, e se comportam como estes. Também as formas da série de une
dizaine6
(une
vingtaine,
une
trentaine,
une
quarantaine,
etc)
se
portam
fundamentalmente da mesma maneira. Lagae conclui também que o en que
substitui o complemento dessas formas é do tipo quantitativo.
2.3
A proposta de Kalmbach (2005)
Quanto à análise sintática do en substituto de complemento de advérbio,
consideramos a perspectiva de Kalmbach (en quantitativo) como mais acertada que
a de Grevisse (en adnominal), em vista de um ponto esclarecido pelo trabalho de
Lagae, a saber: que o en que pode substituir o complemento de um advérbio do tipo
de beaucoup está mais próximo do en quantitativo.
Esquematizamos abaixo as regras que Kalmbach formula para esse
emprego dito “quantitativo” do pronome en. Os exemplos apresentados são nossos:
5
Como vemos já nos parágrafos seguintes, segundo Lagae, o en quantitativo pode pronominalizar o
N2 de certo tipo de sintagma binominal.
6
Somente em relação à quinta daquelas seis propriedades essas formas se comportam
diferentemente dos quantificadores do tipo de beaucoup.
27
2.3.1
O pronome en pode substituir um COD introduzido por um determinante
indefinido.
(a)
COD introduzido por um artigo indefinido iniciado em d- (todos os artigos
indefinidos exceto un/une): pode ser substituído pelo pronome en sozinho.
Kalmbach não nos deixa esquecer de incluir, entre os artigos indefinidos
iniciados por d-, duas formas freqüentemente esquecidas nos livros didáticos e
gramáticas, quando enumeram as formas desses artigos:
- a forma de que o artigo definido plural des assume diante de um adjetivo
anteposto;
- a idêntica forma de que assumem todos os artigos indefinidos diante do COD de
um verbo na negativa.
A estas, devemos acrescentar ainda, a bem da completude da norma, a
também coincidente forma de que os artigos indefinidos assumem depois de
combien. Não devemos esquecer, além disso, que de elide-se, resultando na forma
d’ diante de vogal e “h” não aspirado.
No exemplo abaixo, du pain é o COD com artigo em d- do verbo “prendre”7:
[42] - Tu as acheté du pain au supermarché?
- Oui, j’en ai pris pour le petit déjeuner. (j’ai pris du pain pour le petit
déjeuner)
Kalmbach menciona que essa maneira de apresentar a regra não consta de
nenhum manual de gramática francês. No entanto, segundo o autor, ela permite que
se simplifique também uma outra regra de substituição. Observemos as duas regras
abaixo:
- um COD determinado por um artigo indefinido iniciado em d- pode ser substituído
por en sozinho.
7
Vale salientar aqui, para fins de acuidade descritiva, que o COD de “prendre” é o GN du pain que só
se vê “por extenso” em nossa reconstituição “didática”, entre parênteses, da frase sem a
pronominalização, pois, na frase-resposta, esse COD está representado por en. A despeito da
identidade de forma e função, não se deve confundi-lo, descritivamente, com o COD de “acheter” na
frase-pergunta.
28
- com um verbo na forma negativa os artigos indefinidos assumem, diante do COD, a
forma única de. (uma forma de artigo indefinido iniciada em d-)
Em decorrência dessas duas regras temos que, se numa oração na negativa
o COD tem por determinante um artigo indefinido8, este pode ser substituído por en
sozinho.
[43] - Tu as acheté de la bière?
- Non, je n’en ai pas acheté, ils n’en avaient plus. (je n’ai pas acheté de
bière)
Kalmbach fala na simplificação que decorreria da supressão do artigo
partitivo na nomenclatura gramatical. Segundo o autor, é inútil considerar dois casos,
um com o artigo indefinido e outro com o partitivo, bastando a noção de artigo
indefinido (que deve, no caso, incluir os “de massa”).
(b)
COD introduzido por determinante indefinido não iniciado em d-, en
pronominaliza o nome no COD, e o determinante é retomado, na sua forma
pronominal, após o verbo. Entre esses determinantes indefinidos não iniciados em dpodemos encontrar:
- os artigos indefinidos singulares un, une.
- advérbios de quantidade, adjetivos: plusieurs, certains, quelques,
beaucoup de, (un) peu de, assez de, trop de, plus de, moins de, (au)tant de,
tellement de, un(e) autre, d’autres, etc.
- numerais cardinais (sem artigo definido).
- quantificadores nominais: un kilo de, une quinzaine de, un tas de, un
paquet de, un grand nombre de, etc.
No exemplo abaixo, quelques pamplemousses é o COD com determinante
não iniciado em d- do verbo “prendre”, quelques é o determinante indefinido que é
retomado, na sua forma pronominal (quelques-uns), após o verbo.
[44] - Tu as acheté des pamplemousses?
- J’en ai pris quelques-uns. (j’ai pris quelques pamplemousses)
8
Inclusive, neste caso, un/une, se artigo, - mas não se numeral.
29
Na oração negativa, quando o determinante indefinido do COD não é um
artigo indefinido, o determinante deve ser retomado após o verbo na sua forma
pronominal.
Quando un/une são numerais, e não artigos indefinidos, devem ser
retomados enquanto pronomes indefinidos un/une, após o verbo.
[45] - Tu as acheté une poire pour le petit Michel?
- Je n’en ai pas pris une, seulement, mais toute une dizaine. (je n’ai pas
pris une poire seulement)
Na resposta, pelo menos, pelo fato de sua presença pronominal após o
verbo, podemos perceber que une é assumido como um numeral.
(c)
COD introduzido por um determinante indefinido, e cujo nome vem
acompanhado por um adjetivo, quando se pronominaliza somente o nome9, mas
não o adjetivo, este adjetivo é retomado após o verbo e precedido por aquele
determinante, o qual apresenta a mesma forma que teria antes do conjunto do GN
[substantivo+adjetivo] no COD não pronominalizado.
(c’)
Em conformidade com a regra exposta no item (c), no caso de um COD
introduzido por um artigo indefinido iniciado em d- e cujo nome vem
acompanhado por um adjetivo posposto, o artigo mantém a sua forma: du, de la,
de l’, des, conforme o gênero, o número e o caráter de incontável ou contável do
nome determinado por ele. É como se somente o nome houvesse sido extraído do
COD na forma do pronome en, os demais elementos permanecendo em seus
lugares e formas. No exemplo abaixo podemos ver a operação:
[46] - Tu as acheté des fraises?
- Oui, j’en ai trouvé des énormes. (j’ai trouvé des fraises énormes)
(c’’)
Também em conformidade com a regra em (c), no caso de um COD
introduzido por um artigo iniciado em d- e cujo nome vem acompanhado por um
9
Quando o adjetivo é pronominalizado juntamente com o nome, aplica-se, ao conjunto do GN
formado por eles, a regra “geral” apresentada nos itens (a) e (b) acima.
30
adjetivo anteposto, o artigo indefinido des assume a forma de10. Isso explica o que
ocorre em j’en connais d’autres, por exemplo, onde autres é o adjetivo/pronome.
Como no caso anterior, é como se o nome houvesse sido extraído do COD na forma
do pronome en, sem qualquer outra alteração. Os demais artigos, du, de la, de l’,
mantém suas formas antes do adjetivo.
[47] - Tu as acheté des fraises?
- Oui, j’en ai pris de belles. (j’ai pris de belles fraises)
(c’’’) No caso de um COD introduzido por um determinante indefinido não
iniciado em d-, e cujo nome vem acompanhado de um adjetivo, caso se
pronominalize o nome, mas não o adjetivo, aquele determinante indefinido deve ser
retomado na sua forma pronominal diante do adjetivo, e entre os dois deve ser
inserido um de. É o que vemos no exemplo abaixo:
[48] - Tu as regardé des films intéressants à New York?
- Oui, j’en ai regardé plusieurs de bons. (j’ai regardé plusieurs bons
films)
(d)
O pronome en pode também substituir um atributo do sujeito.
Neste caso, se aplicam as mesmas regras relativas a en COD enunciadas
nos itens (a) a (c’’’):
- Se o determinante é um artigo iniciado em d-, en pode substituir sozinho o
atributo.
[49] - Ce qu’il y a dans la casserole, c’est du riz?
- Oui, c’en est. (c’est du riz)
- Quando, por sua vez, o atributo é precedido por um determinante
indefinido não iniciado em d-, o nome é pronominalizado por en, e o determinante é
retomado, na sua forma pronominal, após o verbo.
10
Forma que o artigo indefinido plural des normalmente assume diante de um adjetivo anteposto.
31
[50] - C’était trop de chocolat, pour toi toute seule?
- Oui, c’en était trop, en fait. (c’était trop de chocolat)
- Se o nome no atributo vem acompanhando de um adjetivo, esse adjetivo é
retomado após o verbo, precedido do determinante indefinido na forma que este
teria no atributo substituído.
[51] - Ce sont des yeux gris qui te regardent dans ces rêves?
- Oui, c’en sont des gris.
Neste ponto, convém observar que, na oralidade, algumas alterações podem
ocorrer:
i) en é freqüentemente omitido na oralidade.
ii) a concordância em número de c’est (ce sont) com o atributo com freqüência
não é realizada.
iii) a transformação do artigo indefinido plural des em de diante de um adjetivo
anteposto pode não ocorrer.
O resultado é que se tem dois sistemas concorrentes:
LÍNGUA ESCRITA
- Ce sont de beaux yeux, non?
- Oui, c’en sont de beaux
LÍNGUA FALADA
- C’est des beaux yeux, non?
- Oui, c’est des beaux.
Diante de um atributo, mesmo no caso de uma oração negativa, o artigo
indefinido não tem somente a forma de, e a substituição ocorre de acordo com as
regras enunciadas nos itens de (a) a (c’’’).
[52] - Ce sont des gâteaux?
- Non, ce n’en sont pas. (ce ne sont pas des gâteaux)
32
[53] - C’est un gâteau?
- Non, ce n’en est pas un. (ce n’est pas un gâteau)
(e) Finalmente, um uso problemático para os aprendizes brasileiros do FLE é o caso
da pronominalização por en de um sujeito real (caso em que en pode substituir um
sujeito).
O sujeito é dito real quando é posposto ao verbo, e no lugar que ocuparia na
ordem normal da frase vem um pronome il impessoal, que não tem referente. Esse
tipo de sujeito só ocorre com verbos intransitivos.
No exemplo abaixo, des nuages é o sujeito real do verbo “passer”.
[54] Il passe des nuages par la fenêtre de l’avion. Allons voir s’il en passe
aussi de l’autre côté. (s’il passe des nuages aussi de l’autre côté)
Em português, a mera inversão de posições entre o sujeito e o verbo produz
o efeito em questão, e o verbo concorda em número e pessoa com esse sujeito
posposto.
Na tradução a seguir, nuvens é o sujeito do verbo passar, com que este
concorda em número e pessoa.
Estão passando nuvens pela janela do avião. Vamos ver se estão passando
também do outro.
No caso de uma oração negativa, as mesmas regras que funcionam para a
substituição por en de um COD se aplicam para a de um sujeito real com
determinante indefinido, e pelas mesmas razões (os artigos todos tomam a forma
de, e somente en retoma o nome, a não ser com outros determinantes que não
artigo em d- e/ou adjetivo).
[55] - Il passe des nuages?
- Non, il n’en passe pas. (il ne passe pas de nuages)
[56] - Il passe beaucoup de nuages?
33
- Non, il n’en passe pas beaucoup. (il ne passe pas beaucoup de
nuages)
Neste capítulo, vimos, através das contribuições de dois lingüistas à
interpretação do uso quantitativo de en, que é possível sistematizar as regras do seu
uso, conquanto seja uma empreitada complexa.
Para empreendê-la, é preciso integrar aportes de vários sistemas da língua
francesa: o pronominal, o de quantificação, o dos artigos.
É preciso que se compreenda o que seja um objeto direto de verbo, um
atributo, um sujeito real (funções sintáticas do grupo nominal), um determinante
indefinido de vários tipos (artigos indefinidos, quantificadores complexos de tipo
nominal e de tipo adverbial). É importante também, para utilizar corretamente o
pronome, as contrapartes desses elementos: sujeitos, objetos indiretos, e sobretudo
pronomes sujeito, pronomes COI, determinantes definidos, entre eles os artigos,
sem o que é provável que se cometam muitos erros ainda.
No próximo capítulo faremos, primeiramente, uma série de reflexões sobre
algumas dessas categorias gramaticais referidas acima em conexão com en. A
seguir, faremos algumas considerações a respeito da nomenclatura conferida ao
pronome en neste seu emprego tão específico e característico da língua francesa,
que é o da quantificação.
34
3
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O EN QUANTITATIVO
Neste terceiro capítulo, propomos pensar sobre quais sejam os motivos que
estão por trás da dificuldade que os aprendizes brasileiros de FLE freqüentemente
manifestam no aprendizado do emprego quantitativo do pronome en, procedendo a
algumas reflexões sobre certas diferenças fundamentais entre os sistemas
pronominais e de quantificação do francês e do português. Também abordaremos a
questão das nomenclaturas que “concorrem” na descrição de en e, por fim,
apresentarmos, dentre as classificações e regras, algumas daquelas que nos
parecem adequadas para descrever os usos ditos “quantitativos” de en.
3.1
Ponderações sobre as dificuldades dos aprendizes brasileiros com o
pronome en.
Primeiramente, é preciso lembrar que en não tem um correspondente exato
no português, no sentido de que nenhum pronome cumpre o papel de fazer
referência a qualquer um dos tipos de segmentos discursivos substituídos por esse
pronome francês.
Certamente, não é inviável propor uma “tradução”, ou, antes, uma
“paráfrase”, para fins didáticos, do significado quantitativo de en: “disso (a respeito
do que se falou há pouco)”.
Mas, na maior parte dos contextos em que o francês utiliza en, o português
não usa nada em seu lugar. Pode-se dizer que o português, normalmente, substitui
en pela marca zero.
Examinemos a frase no exemplo [57] e sua tradução em português:
[57] (du beurre) J’en ai mis trop dans les sandwichs.
(manteiga) Eu pus demais nos sanduíches.
Como se pode observar, nem o artigo du, nem o pronome en têm qualquer
equivalente na tradução. Uma tradução que tentasse substituir en pelo termo disso
decerto soaria um tanto inusitada e “atrapalhada”:
35
[58] Manteiga, eu pus demais disso nos sanduíches.
Além do mais, essa tradução poderia ser a de uma outra frase em francês, a
saber (du beurre) J’ai mis trop de ça dans les sandwichs, frase que não é
perfeitamente equivalente àquela em que o COD du beurre é pronominalizado por
en, e que talvez soasse um pouco inusitada em francês.
O que é preciso entender é que os tipos de GN que podem ser substituídos
por en não são objeto de pronominalização na língua portuguesa. O sistema
pronominal da língua portuguesa possui, como o da francesa, pronomes de 3a
pessoa que são empregados para fazer referência a um COD, ou a um atributo do
sujeito. É o caso dos pronomes do caso oblíquo o, a, os, as, os quais, em francês,
encontram correspondência em le, la, l’ e les. É curioso, aliás, notar que, em ambas
as línguas, as formas básicas desses pronomes e as dos artigos definidos
correspondentes a eles são idênticas. Mas esses pronomes, tanto os franceses
quanto os portugueses, só podem substituir um COD introduzido por um
determinante definido.
Vejamos um exemplo da operação em questão:
[59] Eu comi o queijo.
Eu o comi.
Na frase acima, o nome queijo no COD é determinado pelo artigo definido o,
e pode, por conseguinte, ser substituído, conforme a regra, pelo pronome do caso
oblíquo o.
A tradução de [59] para o francês em [60] permite observar que, no que se
refere à possibilidade de pronominalização de um COD introduzido por um
determinante definido, as duas línguas operam de modo bastante semelhante.
[60] J’ai mangé le fromage.
Je l’ai mangé.
Do mesmo modo que, em português, o COD definido o queijo pode ser
representado pelo pronome o, em tradução para o francês, pode-se remeter a le
fromage por meio do pronome le.
36
É importante que atentemos, neste ponto, para o fato de que, a despeito da
semelhança dos sistemas das duas línguas no que se refere à possibilidade de
pronominalização de um COD introduzido por um artigo definido, os aprendizes
brasileiros de FLE freqüentemente demonstram ter dificuldade, sobretudo na
produção oral e escrita, para efetuar essa operação.
Isso se deve, pelo menos em parte, ao fato de que, no português
contemporâneo do Brasil, os pronomes do caso oblíquo o, a, os, as, raramente são
utilizados na oralidade e, quando o são, é sobretudo na formas não padrão ele, ela,
eles, elas11, calcadas na forma dos pronomes do caso reto correspondentes. Em
[61], vemos os dois casos: elipse e uso das formas ele, ela, eles, elas:
[61] - Você comeu o queijo?
- Comi. E a Scheila comeu ele também, junto comigo.
Em francês, nenhum desses dois expedientes é aceitável: o pronome le
evocaria o COD fromage a cada aparição de verbo transitivo direto que o tivesse por
objeto: je l’ai mangé, onde l’ é o pronome oblíquo que retoma le fromage.
O fato de não se costumar, na língua falada do Brasil, pronominalizar o COD
em casos como esse, certamente ajuda a compreender a dificuldade experimentada
pelos aprendizes.
O uso de ele para substituir um nome com função de COD é muito comum
na língua falada no Brasil hoje, e pode levar os aprendizes a utilizarem o pronome
francês il para pronominalizar um COD, o que não se costuma fazer em francês.
Se os aprendizes brasileiros de FLE apresentam semelhantes dificuldades
com pronomes que têm correspondência com pronomes portugueses, com o
pronome en essas dificuldades são ainda maiores, por razões bem compreensíveis.
Para entendermos como uma e outra língua operam na referência a um
COD, um atributo do sujeito, ou um sujeito real, com determinante indefinido,
observemos o exemplo a seguir:
11
Embora agramaticais, essas formas normalmente não são estigmatizadas na oralidade da
linguagem familiar.
37
[62] - Você comeu queijo hoje?
- Comi. (comi queijo)
Na pergunta em [62], o nome queijo, um COD, não vem precedido por
nenhum determinante. Normalmente, em português, não se faz referência a um
COD desse tipo por meio de nenhuma estrutura.
Na resposta, esse COD, queijo, também é um GN sem determinante, como
na pergunta, e portanto ele não precisa ser substituído por qualquer estrutura. Podese dizer que esse COD esteja em elipse.
Em francês, ao contrário do que ocorre em português, em um contexto
análogo, o nome vem normalmente introduzido por um artigo indefinido. Um nome
em função COD com determinante indefinido, em francês, normalmente, não pode
ficar em elipse, precisa ser anaforizado. O pronome en é a estrutura da língua
francesa que permite que essa anáfora se dê com o maior grau de economia da
palavra, e o menor grau de alteração semântica12. Nesse sentido, o uso desse
pronome equivale, justamente, à elipse do COD no português.
Apresentamos a seguir a tradução do exemplo [62] em francês, para ilustrar
essa diferença entre as línguas:
[63] - Tu as mangé du fromage aujourd’hui?
- Oui, j’en ai mangé.
Na pergunta em [63], o nome fromage vem determinado pelo artigo
indefinido de massa du, um determinante indefinido. Na resposta j’en ai mangé ele é
pronominalizado por en. Essa estrutura permite que a referência se dê com o menor
grau de alteração semântica possível, e o maior grau de economia da palavra13.
Diversamente do que ocorre na língua portuguesa contemporânea do Brasil,
a estrutura da língua francesa exige, normalmente, que os complementos diretos e
indiretos de um verbo sejam realizados na superfície textual.
12
Se a resposta a ‘Você comeu queijo hoje?’ fosse ‘Comi aquela “maravilha” ’, o segmento “aquela
maravilha” estaria fazendo referência a queijo, mas com óbvia alteração semântica.
13
Podemos supor que mesmo a referência por repetição do sintagma (Oui, j’ai mangé du fromage),
além de pouco “econômica”, implicaria num grau maior de alteração de sentido, em razão do próprio
fato de haver uma estrutura como en, tão freqüentemente utilizada para pronominalizar um sintagma
do gênero.
38
De modo a evitar a repetição dos grupos nominais que são complementos
de verbos ao longo de um enunciado, os mesmos podem, no caso do francês, ser
substituídos por pronomes complementos, e isso quer sejam eles introduzidos por
determinantes definidos ou indefinidos.
pronomes
pessoais
que
podem
Contudo, a língua portuguesa possui
substituir
complementos
introduzidos
por
determinantes definidos, mas não indefinidos.
Quando um COD é determinado por um artigo indefinido, a língua francesa
pode substituí-lo por en. Se esse artigo for o singular un/une, ele precisa ser
retomado, na sua forma pronominal, que é idêntica, após o verbo14.
[64]
- Tu as acheté une pomme?
- Oui, j’en ai acheté une. (COD=une pomme)
Em português, um nome contável no singular pode ser determinado pelo
artigo indefinido singular um/uma (por exemplo, uma maçã), equivalente a un/une,
em francês. Mas não há em português um pronome equivalente a en para substituir
um COD precedido por um/uma, e também não é preciso repetir um/uma após o
verbo para que se entenda que o objeto do verbo é um singular indefinido.
Traduzindo [64] para o francês, temos:
[65] - Comprou uma maçã?
- Comprei. (COD=uma maçã)
Vejamos como funciona o sistema dos artigos indefinidos no português, pois
das diferenças desse sistema em relação ao do francês decorre parte da dificuldade
dos aprendizes brasileiros em usar en.
No caso de um nome contável no plural, não é necessário usar nada, em
português, no lugar em que o francês usa o artigo indefinido plural des, plural
comum a un e une.
[66] - Vous avez cueilli des fraises?
[67] - Vocês colheram morangos?
14
Mas já não recebe a mesma análise sintática: nessa posição, ele é considerado como um pronome
indefinido.
39
No caso de um nome incontável, algo semelhante ocorre. O GN de l’eau, em
que o nome eau é determinado pelo artigo indefinido de massa de l’, corresponde,
em português, a água, pura e simplesmente, sem nenhum determinante, e a frase Je
bois de l’eau pode ser traduzida por Bebo água.
Assim, é plausível afirmar que a noção de parte, associada em francês aos
artigos partitivos, pelo menos segundo a nomenclatura tradicional, em português é
expressa pela ausência de marca.
Para mencionar mais um caso em que as duas línguas se comportam de
maneiras bastante diferentes, devemos considerar que, diante do COD ou do
atributo do sujeito de um verbo na forma negativa, todas as formas de artigo
indefinido francês assumem normalmente a forma de.
Exemplificamos este fenômeno passando para a negativa duas das frases
anteriormente utilizadas para ilustrar o emprego dos artigos indefinidos de massa e
do plural des:
[68] Nous ne mangeons pas de pommes.
[69] Je ne bois pas d’eau.
Se traduzirmos essas frases para o português, temos:
[70] Não comemos maçãs.
[71] Não bebo água.
Como se pode observar, em português, nenhuma estrutura ocupa o lugar,
nos termos de Kalmbach, do artigo indefinido negativo de do francês. A diferença
entre a forma afirmativa e a negativa, em português, consiste tão somente na
presença do advérbio de negação não antes do verbo.
Esse fenômeno da transformação dos artigos indefinidos em de diante do
COD de um verbo na negativa ocorre inclusive no caso dos artigos indefinidos
singulares un e une:
40
[72] Elle a regardé un film hier soir.
[73] Elle n’a pas regardé de film hier soir.
Ora, o que era mesmo que tudo isso sobre os artigos indefinidos tinham a
ver com o pronome en?
A questão é que esses artigos são justamente algumas das estruturas que,
quando determinam um GN COD, atributo do sujeito, ou sujeito real, facultam a sua
substituição por en, para evitar que se precise repetir o nome (ou substituí-lo por
uma paráfrase) sempre que ele seja mobilizado por um verbo em uma dessas três
funções sintáticas.
Outro aspecto importante de ser mencionado a respeito das vicissitudes da
pronominalização é o que se pode ilustrar através do exemplo [74], tirado de Brown
& Yule (1983, p. 201):
[74] Kill an active, plump chicken. Prepare it for the oven, cut it into four
pieces and roast it with thyme for one hour.
Mate um frango forte e gordo. Prepare-o para o forno, corte-o em quatro
pedaços e asse-o com tomilho por uma hora.
Como podemos perceber, o “objeto do discurso” desse exemplo num
primeiro momento é ‘an active, plump chicken’. Entretanto, não se pode negar que
esse objeto sofre sensíveis mudanças ao longo do texto. Na segunda frase ele é
“retomado” por ‘it’ como um frango a ser preparado para o forno. Em seguida, o
mesmo pronome ‘it’ faz referência ao frango, agora cortado em pedaços. Será que
podemos entender as sucessivas “retomadas” do “objeto do discurso” por ‘it’ como
representando o mesmo frango ativo e gordo do início?
No nosso entender, o frango do início, aqui o “objeto do discurso”, vai sendo
construído e reconstruído ao longo do texto, de tal forma que as sucessivas
ocorrências do pronome “it” foram “retomando” o dito frango ao mesmo tempo iam
reinvestindo-o de novas características, sempre provisórias, já que podem sofrer
alterações se assim desejarem os “construtores” desse objeto do discurso, os
interlocutores. Nesse sentido, se poderia talvez falar de progressão referencial, isto
41
é, o referente vai sendo retomado, mas vai sendo também reconstituído, reinvestido
de significado.
De fato, os autores citados observam: “The context of a text is not merely an
enumeration of referents; an important part of the content is the relations that the text
establishes between the referents.”
Esse fenômeno, embora ocorra também com pronomes do português, nem
sempre parece claro para os aprendizes. Estes, muito freqüentemente, buscam
antecedentes para os pronomes sem levar em conta as relações entre os referentes
nem as transformações que os referentes sofrem ao longo do texto. Eles consideram
simplesmente que o pronome “retoma” um antecedente, tal qual ele se apresentava
quando apareceu no texto na qualidade de nome, de substantivo.
Aliás, os termos “retomar” e “retomada” são utilizados com freqüência para
descrever a função pronominal. Preferimos, contudo, evitá-los a maior parte do
tempo neste trabalho, ainda que acreditemos que o pronome, por vezes, “retome”,
de um certo modo, um “antecedente” (reconstituindo-o, bem entendido, numa
determinada função sintática).
Assim, damos preferência para verbos como “substituir”, “pronominalizar”,
“remeter”,
“referir-se”,
“representar”,
“evocar”,
e
para
substantivos
como
“substituição”, “pronominalização”, “referência” e “anáfora”, para designar a ação do
pronome.
Já para o grupo nominal (GN) a que en se refere em cada caso, usamos o
termo “referente”.
O termo “antecedente” parece-nos sugerir que o GN necessariamente
anteceda o pronome no enunciado, o que não daria conta da pronominalização que
vemos no exemplo abaixo:
[75] J’en ai vu, moi, des malheurs!
Essa forma de referência, em que o pronome “antecipa” um grupo nominal
que só “aparece” mais “adiante” no enunciado, recebe geralmente o nome de
“catáfora”.
Além de anafórico e catafórico, o pronome en pode funcionar ainda como um
dêitico, isto é, indicar algo que está “fora” do enunciado, um referente que se
42
encontra “no mundo”, algo que alguém, por exemplo, aponta com o dedo enquanto
diz “isto”.
Vimos acima quais são alguns dos motivos que acreditamos estarem por
trás da dificuldade que os aprendizes brasileiros do FLE manifestam ao estudarem o
pronome en.
3.2
Considerações sobre a nomenclatura relativa ao pronome en
Passamos agora a fazer considerações sobre a nomenclatura que descreve
en, para sugerir que se evitem determinadas palavras, sugerindo o recurso a outras.
Para começar, acreditamos que a designação geral, aplicada a todos os
usos de en, por exemplo por Grevisse (1953) e Salins (1996) como um advérbio
pronominal, não é interessante como etiqueta sob a qual se possa apresentar en
quantitativo. Ambos os autores mencionam que o pronome recebe esse nome em
função de sua origem no vocábulo latino inde. Uma tal denominação poderia ser
adequada para um uso adverbial de en, mas não nos parece que acrescente nada
de positivo para o entendimento do en quantitativo.
A classificação de en entre os pronomes pessoais, por sua vez, nos parece
adequada, na medida em que permite que se faça a relação desse emprego de en
com o dos pronomes pessoais em função COD le, la, l’, les.
Mas concordamos com Kalmbach (2005), que classifica en como um
pronome de terceira pessoa (P3), e questiona se deveriam ou não ser considerados
como pronomes pessoais do mesmo modo que o são os de primeira e segunda
pessoa, na medida em que só estes últimos participam de fato “pessoalmente” da
interação conversacional enquanto interlocutores.
Os P3, segundo Kalmbach, partilham entre si de propriedades que os
distinguem dos pronomes pessoais de primeira e segunda pessoas, e o autor
propõe que para, fins didáticos, faça-se essa distinção.
Em sua exposição dos modos de apresentação dos pronomes nos manuais
de FLE finlandeses, Kalmbach diz o seguinte: “la plupart du temps, les auteurs
présentent ensemble y et en à antécédent GN et à antécédent non GN (neutre),
parfois d’ailleurs sous le titre de ‘Pronoms neutres’.” (2005, p. 141)
43
Como vemos na citação, Kalmbach parece concordar com o uso do termo
neutro para nomear somente o emprego em que en representa um referente que
não é um grupo nominal, ou seja, uma frase. Trata-se do mesmo uso que Grevisse
(1953, p. 386) chama de neutro.
No entanto, em conformidade com o relato de Kalmbach, também já nos
deparamos, em gramáticas e livros didáticos que consultamos, com a designação
pelo termo pronome neutro aplicada ao conjunto dos empregos de en.
No nosso ver, o termo pronome neutro, aplicado a outro emprego de en que
não aquele em que substitui uma frase, pode confundir o aprendiz. E isso por uma
série de razões, a saber:
- A acepção de en freqüentemente dita adverbial, em que o pronome
representa um lugar de origem ou proveniência, é pertinente somente para verbos
intransitivos e, assim sendo, sequer coloca a questão da concordância que, no caso
de um verbo intransitivo, nunca se faz com o objeto. Essa ausência de concordância
pode evocar a idéia de uma neutralidade.
- No emprego de en em função COI predominam restrições à representação
do caráter [+ animado]14, o que poderia dar a impressão de que, de algum modo,
seja uma espécie de neutro no sentido em que o é o pronome it do inglês.
- Em associação com a lembrança de que existem tais restrições, e em meio
à multiplicidade de regras que o conjunto dos empregos de en implica, o termo
neutro, aplicado ao conjunto dos usos, pode ter o efeito de dar a crer que a
neutralidade do pronome signifique que ele não possa substituir um GN com o
caráter [+ animado]. Sabemos que en quantitativo pode fazê-lo.
Essa idéia falsa que um aprendiz poderia formar, de que en fosse neutro, em
todas as suas acepções, porque não pudesse pronominalizar um GN com o caráter
[+ animado] (na realidade, só en quantitativo pode fazê-lo praticamente sem
restrições) pode ser reforçada pelo fato de não haver concordância verbal com en
14
Kalmbach (2005) observa que, nas gramáticas e livros, freqüentemente se fala em caráter [+
humano], quando se deveria falar em caráter [+ animado], o que permitiria incluir animais e objetos
personificados ou determinados e individualizados ao lado dos humanos, nas restrições à
pronominalização. Segundo o autor, o en COI só costuma representar o caráter [+ animado] quando
tem valor genérico: Les amis, on en a toujours besoin. (KALMBACH, 2005)
44
quantitativo em função COD, como haveria no caso de um pronome da série le15, la,
les.
Em vista dessas considerações, preferimos não aplicar e mesmo
desaconselhar o termo pronome neutro para descrever outro emprego de en que
não aquele em que substitui uma frase.
Com Kalmbach (2005), preferimos não aplicar o termo partitivo a en
quantitativo, pois a aceitação das implicações do termo não é tranqüila.
Como o autor, preferimos o termo artigo indefinido ao termo partitivo, para
nomear as formas du, de la, de l’, des, de.
Kalmbach propõe que a supressão do artigo partitivo da nomenclatura
gramatical, em prol da classificação das formas ditas partitivas entre os artigos
indefinidos, traria uma simplificação das regras concernentes ao emprego
quantitativo de en.
De acordo com este autor, como vimos no segundo capítulo, este emprego
consiste na pronominalização de um GN introduzido por um determinante indefinido,
o que inclui os artigos indefinidos.
Kalmbach acredita ser inútil considerar dois casos, um com o artigo
indefinido (un/une, e des, dependendo do autor que se consulte), outro com o
partitivo (du/de la/de l’, e des, dependendo do autor que se consulte), bastando que
se reúnam os dois sob a etiqueta “GN com artigo indefinido”.
Poderíamos falar em en COD, mas estaríamos em falta com a nomeação do
seu uso enquanto atributo e sujeito real.
Embora aconselhemos que, para fins didáticos, apresente-se aos aprendizes
inicialmente apenas en em função de COD, acreditamos que o aprendiz deva ser
apresentado, em tempo não muito posterior, a en em função de atributo, e, em um
nível já mais avançado do estudo da língua francesa, a en em função de sujeito real,
aproveitando-se a ocasião de cada nova apresentação para a revisão dos usos
anteriores, visto aplicarem-se praticamente as mesmas regras aos três tipos.
O termo quantitativo, que vimos utilizando desde o início do segundo
capítulo para nos referirmos ao objeto principal deste trabalho, também não foi uma
escolha simples.
15
Lembramos aqui que le também é chamado de neutro quando o seu referente é uma frase.
45
Em resumo, escolhemos esse termo por ele revelar inequivocamente a
conexão fundamental deste emprego de en com o complexo sistema de
quantificação do francês. Mas, como outros, o termo também não facilita totalmente
a compreensão de professores e aprendizes.
Pode-se entender, por exemplo, a partir do uso deste termo e da regra de
substituição de uma quantidade de algo, que um aprendiz cogite pronominalizar por
en um GN como les trois kilos de carottes, o qual de fato não é “pronominalizável”
por en.
De modo a explicar porque les trois kilos de carottes, mesmo se for o COD
de um verbo, não pode ser substituído por en, um professor poderia falar em
quantidade indefinida. Mas o aprendiz, diante de um exemplo em que um GN como
trois kilos de carottes (sem artigo) esteja pronominalizado por en, poderia objetar
que trois kilos não é uma quantidade indefinida. A questão é que a indefinição de
que se trata não é propriamente a da quantidade, mas sim a do GN enquanto
tematizado como algo de que já se falou antes (definido: le, ce, mon, etc.) ou como
algo de que ainda não se falou (indefinido: un, quelques, certains, etc). É preciso,
então, que se entenda esse emprego de en em conexão, não somente com os
sistemas quantitativo e pronominal do francês, mas também com os determinantes
indefinidos, que apresentam no discurso um GN enquanto não especificamente
mencionado em um momento anterior.
Ora, uma expressão de quantidade não é sempre apresentada no discurso
como uma coisa de que ainda não se falou antes: em les trois kilos de pommes, a
quantidade trois kilos é apresentada como conhecida pelo interlocutor, como algo de
que já se estava falando anteriormente. Já em trois kilos de pommes, sem o artigo
indefinido, a quantidade é apresentada como algo de que não se havia falado antes,
e é a um tal estado de coisas que se refere a noção de indefinição.
Mas vejamos outro aspecto que poderia contra-indicar o termo quantitativo.
Quando se usa essa palavra para descrever o uso de en para substituir, por
exemplo, um COD com determinante indefinido, pode-se ter a impressão de que,
quando se usa o pronome, coloque-se sempre de algum modo em questão a
quantidade de algo. Mas em um exemplo como o [76] abaixo, não é fácil crer que um
brasileiro, mesmo francófono, por exemplo, ou mesmo até um francês, convidado a
se expressar meta-lingüisticamente sobre os conteúdos inerentes à frase, fosse
seguramente evocar a noção de quantidade.
46
[76] - Tu as vu des maisons à vendre alors?
- Oui, J’en ai vu.
[77] - Você viu casas à venda, então?
- Vi, sim.
Quando se trata de um GN incontável, talvez especialmente de um alimento,
determinado por algum quantificador mais específico, é mais fácil perceber a
expressão da quantidade:
[78] Du lait? Oui, j’en ai bu beaucoup.
[79] Leite? Sim, tomei muito.
A escolha que fizemos de chamar esse emprego de en, sobretudo para fins
didáticos, de quantitativo, implica, a nosso ver, em que se exponham essas questões
para os alunos. Deve-se explicar que a denominação serve para lembrá-los de que o
pronome se relaciona com o sistema de quantificação do francês, mas que não
basta que se tenha em vista a noção de quantidade.
Nesse sentido, é importante levar os aprendizes de FLE a observar que,
embora esse en seja chamado de quantitativo, as regras de substituição que dão
conta de descrevê-lo podem até mesmo dispensar o uso desse termo, embora seja
interessante que se aplique o termo quantificadores para os determinantes
indefinidos.
O essencial na formulação dessas regras é que se tenha em mente, como
ensina Kalmbach (2005):
a) as funções que um GN pode ter no enunciado para que possa ser
substituído por en: COD, atributo do sujeito ou sujeito real.
b) que esse GN deve ser introduzido por um determinante indefinido.
Como vimos, a complexidade dos sistemas pronominal e quantitativo do
francês, as relações pragmáticas entre os usos dos pronomes, artigos e
quantificadores, brasileiros e franceses, não facilitam a vida dos aprendizes
brasileiros da língua francesa.
47
Também não facilitam a descrição gramatical, lingüística, e a exposição
didática do pronome en quantitativo, estrutura que se correlaciona de maneira
complexa com esses dois sistemas.
Na primeira parte deste capítulo, procuramos fazer reflexões a respeito das
vicissitudes pragmáticas do uso de en, as quais, esperamos, possam esclarecer
algum ponto obscuro para algum professor ou aprendiz disposto ao embate com a
complexidade do tema.
Esperamos igualmente que as considerações que fizemos acerca da
pertinência de uns e outros termos utilizados para qualificar o pronome possam ser
de alguma serventia didática.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso primeiro capítulo, mostramos como o pronome en do francês é
tratado em três gramáticas francesas e no livro didático Forum de francês como
língua estrangeira (FLE). Pode-se perceber ali que o modo de sua apresentação não
é nada unívoco, havendo bastante variação nos termos usados para descrevê-lo, na
classificação dos seus empregos, nas regras formuladas. Se as diferentes
gramáticas até certo ponto se complementam em termos de informação sobre o
pronome en, é certo que restam lacunas e problemas a serem resolvidos.
No segundo capítulo, apresentamos contribuições dos lingüistas Kalmbach
(2005) e Véronique Lagae (2001), para a descrição do uso quantitativo do pronome
en, e as soluções que elas representam para algumas das lacunas e problemas
identificados nas exposições gramaticais do primeiro capítulo.
No terceiro capítulo, fizemos reflexões gerais acerca dos sistemas
pronominal e quantitativo do francês e do português, e indicamos alguns dos
motivos para as dificuldades apresentadas pelos aprendizes brasileiros de FLE em
lidar com os pronomes franceses em geral, e com en em particular.
Encontramos grande dificuldade para localizar obras que explicassem o uso
quantitativo de en de uma maneira que desse conta de ocorrências que sabíamos
existir, inclusive graças à nossa atividade de ensino de FLE, mas que não se
revelavam compatíveis com as regras apresentadas pelas gramáticas tradicionais.
Após muita pesquisa na internet à procura de bibliografia que fosse
abrangente sobre o assunto, encontramos a tese de doutoramento de Kalmbach
(2005), “De de à ça: enseigner la grammaire française aux finnophones” que norteou
o nosso trabalho.
Mas foi ali também que encontramos o que, a nosso ver, coloca outra
questão muito interessante sobre o pronome en. Não abordamos essa questão em
nosso trabalho, pois não se tratava da acepção de en que constitui nosso objeto, e
abordá-la, devido à complexidade do tema, significaria um grande desvio de
percurso em nossos objetivos. Contudo, consideramos interessante observar isso
aqui, na medida em que essa questão certamente poderia constituir um ponto de
partida para futuras pesquisas sobre o assunto. A questão pode ser resumida como
segue:
49
Há um uso de en comumente associado à representação de um grupo
nominal com valor adverbial (GREVISSE, 1953/SALINS, 1996). Em [80], d’Avignon é
analisado por Grevisse entre outros como sendo um adjunto adverbial de lugar de
origem.
[80] Avignon? Oui, nous en venons, justement. (nous venons d’Avignon)
Kalmbach (2005) acena com uma hipótese que nega esta interpretação,
afirmando que en só retoma complementos diretos ou indiretos de verbo, mas não
adjuntos adverbiais, mesmo na acepção referida. Deste modo, Kalmbach tende a
alinhar esse emprego de en, tradicionalmente associado a um valor adverbial, com o
emprego de en para substituir um complemento de objeto indireto de verbo. No
entanto, os exemplos de que o autor lança mão para argumentar sobre o seu ponto
de vista deixam várias questões sem resposta. De qualquer forma, as questões
colocadas são instigantes e poderiam perfeitamente ser retomadas num outro
estudo sobre o pronome en.
50
REFERÊNCIAS
BAYLON, C. et al. Forum: Méthode de Français. Paris : Hachette : 2000.
BROWN, G.; YULE, G. Discourse analysis. Cambridge: Cambridge
University Press, 1983. p. 201-204
CAMPÀ, À. et al. Forum 2: Méthode de Français. Paris : Hachette : 2001.
DUBOIS, J. Grammaire structurale du français: nom et pronom. Paris :
Larousse : 1965.
GREVISSE, M. Le bon usage: grammaire française. Gembloux : Duculot :
1953.
SALINS, G.-D. Grammaire pour l’enseignement/appentissage du FLE. Paris :
Didier : 1996.
KALMBACH, J.-M. De de à ça: enseigner la grammaire française aux
finnophones. 214 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras,
Universidade
de
Jyväskylä.
Jyväskylä,
2005.
Disponível
em:<URLhttp://ebooks.jyu.fi/9513921166.pdf>. Acesso em: 29/11/2007.
LAGAE, V. Le pronom en: des compléments adnominaux aux syntagmes
quantificateurs. Travaux de linguistiques, Duculot, Louvain-La-Neuve, n°42-43, pp
111-120.
2001.
Disponível
em:<URLhttp://www.cairn.info/revue-travaux-delinguistique-2001-1-page-43.htm>. Acesso em: 29/11/2007.
Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Citações e notas
de rodapé. Curitiba: Ed. da UFPR, 2007.
Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Redação e
editoração. Curitiba: Ed. da UFPR, 2007.
Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Referências.
Curitiba: Ed. da UFPR, 2007.
Universidade Federal do Paraná. Sistema de Bibliotecas. Teses,
Dissertações, Monografias e Trabalhos acadêmicos. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.
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