Anais do SEFiM, Porto Alegre, V.02 - n.2, 2016. O som como drama: a legitimação estética do timbre pela música contemporânea The sound as drama: timbre’s aesthetic legitimation in contemporary music Palavras-chave: Música contemporânea; Affetto; Timbre; Textura; Composição musical. Keywords: Contemporary music; Affetto; Timbre; Texture; Musical composition. Leonardo Martinelli Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista [email protected] Ao longo de diversos períodos, estilos e práticas de diferentes tradições musicais no Ocidente, a relação entre a música e a expressividade ocupou lugar de destaque tanto na investigação teórica de cunho estético-filosófico como em questões de ordem prática, relacionadas ao cotidiano de intérpretes e compositores. Entretanto, as diversas “revoluções musicais” ocorridas no século passado colocaram em estado de suspensão muitos dos paradigmas que por séculos orientaram diferentes práticas musicais, e entres eles encontra-se justamente a questão da expressividade musical. Entre a invenção e o desenvolvimento do dodecafonismo por Arnold Schönberg, na década de 1920, e a crise do serialismo integral, cerca de três décadas depois, a natureza eminentemente estruturalista da poética serial privilegiou a criação musical embasada em preceitos formalistas, na qual ela não expressaria nada além dela mesma ou alhures a sua própria lógica e sistema. Em termos históricos, a questão do affetto como meio de expressividade musical nos remete às origens da tradição operística e ao desenvolvimento de uma nova relação entre texto e música que se estabeleceu a partir do início do século XVII. Isso posto, é curioso notar quetenha sido também uma ópera uma das principais responsáveis por promover sua contestação, culminada em um processo de desafetivação musical eclodido pela na ópera Mosesund Aron (1930-32), de Arnold Schönberg. Deste ponto de vista, a questão da desafetivação1 musical é apresentada como um processo de transfiguração da representação dos affetti de uma prática musical pregressa, na qual eles estão carregados de símbolos políticos e sociais que foram negados esteticamente e suprimidos em termos musicais. Entretanto, dentre as diversas consequências desencadeadas pela crise da música serial, podemos elencar a reinserção do debate em torno da expressividade da música como questão de relevância na poética musical dediferentes gerações de compositores de segunda metade do século XX. 1 COHEN-LEVINAS, 2002, p. 87. 309 A partir de então constata-se uma nova etapa do relacionamento entre os processos composicionais e a percepção da música (essa eventualmente colocada à parte pela índole estruturalista das poéticas seriais), quando então voltou-se para sua materialidade, ou seja, o fenômeno sonoro em si. O conceito de timbre passa então a desempenhar papel de maior destaque nos processos composicionais devido à ampliação e ao desenvolvimento de novas formulações conceituais no seio do círculo criativo por meio do pensamento de índole teórico-especulativa, dentre os quais, destacamos aqui as contribuições que os compositores Phillipe Manoury e Pierre Boulez ofereceram tanto do ponto de vista estético-teórico como pela perspectiva prático-composicional. Ambos compositores tomam como premissa uma dupla dimensão inerente ao conceito de timbre. Em Manoury (1991) ela se articula entre sua condição como material tradicional (no qual o timbre é entendido como um componente do som) e material novo,no qual ele é entendido comocomposto sonoro, elemento constituído, formado por alturas, durações e intensidades. A partir desta perspectivaseu hermetismo fenomenológico é rompido, ao mesmo tempo em que passa a ser considerado não mero parâmetro, mas simmaterial musical, pois passível de manipulação ao nível da escritura. Tal pensamento encontra ampla ressonância na conceitualização elaborada por Boulez (1987), que por sua vez articula o conceito entre as noções de timbre cru e de timbre organizado. O primeiro diz respeito a seu entendimento de forma essencialmente tradicional, paramétrica, quantitativa e hermético. Seu uso artisticamente pleno só é possível quando ele é submetido aos processos típicos da composição musical (timbre organizado, entendimento estreitamente ligado à noção de material novo de Manoury). Em ambas perspectivas (material novo ou timbre organizado) a manipulação musical do timbre ocorre necessariamente por meio de uma escritura musical de ênfase textural. Boulez aponta para o cerne da problemática em torno da composição musical contemporânea: como lidar esteticamente, durante a criação de um objeto estético (ou seja, a música), com um elemento (o timbre) que, em sua acepção básica, possui uma função técnica bem definida, porém extremamente ligada a uma prática tradicionale, logo, inadequada e indesejada para uma nova música? Como, enfim, estetizar o que nasceu como não-estético? A resposta para essa questão passa justamente pela admissão do timbre e do somin abstracto como elemento essencialmente estético, pois “as possibilidades funcionais do timbre só são válidas se elas estiverem relacionadas à linguagem. Sem um discurso musical ele é nada, porém pode por si próprio formar um discurso inteiro”.1 A inserção do material tímbrico-textural em um contexto discursivo acabam não apenas por legitimar a autonomia estética do timbre, mas de certa maneira, deixa entrever que essa autonomia só pode ser plena quanto mais o elemento tímbrico-textural for “impurificado” pelo discurso musical. É exatamente nesse sentido que Cohen-Levinas (2013) acusa o processo de afetivação do timbre, pois “o sublime experimentado pelo timbre é determinado, provisoriamente, por 1 BOULEZ, idem, p. 170. 310 sua dimensão de apelo. Por affetti do timbre entendemos a transfiguração do material puro em escritura”2. A assimilação do timbre como material musical de processos composicionais – que dentro de certas poéticas é tomado como elemento affettivo estrutural – tem necessariamente como pressuposto sua legitimação estética. Somente então pode ser conferido ao som de qualquer natureza acústica pleno potencial semântico, e desta forma, consolidar seu uso como elemento expressivo, tal como vem sido realizado de forma sistemática por diferentes poéticas musicais desde a segunda metade do século passado até os dias atuais. Referências BOULEZ, P. “Timbre and composition – timbre and language”. Contemporary Music Review, v. 2, p. 161-171, 1987. COHEN-LEVINAS, D. L’opéra et son double. Paris: Vrin, 2013. ______ (Org.). Récit et représentation musicale. Paris: L’Harmattan, 2002. MANOURY, P. Les limites de la notion de “timbre” (In: Le timbre, métaphore pour la composition). Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1991. p. 293-299. 2 COHEN-LEVINAS, idem, p. 182. 311