Mudanças climáticas e agricultura. Por J. S. Pereira e P. A. Pinto Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa Os dados disponíveis sugerem que, desde o início do séc. XX houve um aquecimento global de 0.7 °C [1]. A explicação parece ser o aumento das concentrações de gases com efeito de estufa (GEE) na atmosfera [2]. Como o telhado de vidro de uma estufa, os GEE, em especial, o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O), não deixam escapar para o espaço a radiação infravermelha de longo comprimento de onda (calor) emitida pela Terra, e a superfície do Planeta aquece. Apesar do clima da Terra ser demasiadamente complexo para responder de modo linear ao “forçamento” do efeito de estufa, restam hoje poucas dúvidas que os dois fenómenos, aumento de GEE em consequência da actividade humana e aquecimento global, estão ligados. O CO2não sendo o mais potente dos GEE, é o mais abundante (76% do total). A sua concentração na atmosfera tem aumentado a uma taxa de aproximadamente 0.5 % ao ano. Desde o período pré-industrial (ca.1750), até ao presente, a concentração de CO2 na atmosfera aumentou cerca de 31% (isto é, de 280 para 360 ppmv), em resultado do consumo de combustíveis fósseis e de alterações no uso do solo, em particular da desflorestação [3]. Durante milhares de anos a concentração de CO2 manteve-se aproximadamente constante na atmosfera porque a biosfera – ecossistemas terrestres e oceanos – tem a capacidade de absorver, através da fotossíntese, o CO2 libertado pela respiração dos seres vivos e pela queima de biomassa. Nos últimos 150 anos, com o uso dos combustíveis fósseis – carvão, petróleo, gás natural, produtos da fotossíntese do passado remoto – excedemos a capacidade de auto-regulação da biosfera. Actualmente, só cerca de metade do CO2 com origem em actividades humanas é assimilado pelos sumidouros de carbono da biosfera. O resto vai contribuir para o aumento da concentração de CO2 na atmosfera. A. Que evidência para as alterações climáticas A hipótese de o aquecimento global resultar do efeito de estufa, tem sido testada através de simulações com modelos de circulação global ou general circulation models (GCM). De acordo com a generalidade dos modelos, o aquecimento global médio por volta de 2100 estará entre 1.4 e 5,8 °C acima das médias de 1990, considerando uma grande variedade de cenários de emissões de GEE [2]. No entanto os modelos não são prova – o modelo diz o que poderia ser, não o que será. Que evidência adicional para as alterações climáticas existe? Os dados estatísticos sugerem que, no séc. XX houve um aquecimento global com uma subida de 0.95 °C na temperatura média da Europa [1]. Estarão certos? Há uma grande controvérsia [4], mas como salientam Miranda et al. [5], a partir da última década do século XX, há uma clara tendência de aquecimento, moderado mas acima da variabilidade inter-anual. De facto, na bacia Mediterrânica, os anos mais recentes tiveram os Invernos mais quentes dos últimos 500 anos [6]. Por outro lado, os 5 anos mais quentes dos últimos 150 anos foram observados na última década (1998, 2003, 2002, 2001 e 1997) e o Verão de 2003 foi classificado como o mais quente da Europa nos últimos 500 anos. Em Portugal, desde a década de 1970, a temperatura média subiu em todas as regiões de Portugal, a uma taxa de cerca de 0.5ºC/década, mais do dobro da taxa de aquecimento observada para a temperatura média mundial [5]. Quanto à precipitação na Europa no último século (1900–2000) ocorreu um acréscimo da chuva na Europa do norte (10–40 % mais precipitação) e um decréscimo na Europa do sul (até 20 % menos precipitação) [7]. 1 A necessidade de compreender as alterações climáticas estimulou muito o estudo do clima do passado. A análise de documentos históricos e arqueológicos tem fornecido elementos muito importantes [6]. Adicionalmente, a análise do ar e das poeiras capturadas no gelo dos glaciares e das calotes polares, o estudo dos anéis anuais de crescimento das árvores e dos corais ou a análise de sementes ou outros restos biológicos ou sedimentares, permitem fazer estimativas das condições do passado. Constata-se que durante os 400 000 anos do passado, o clima teve ciclos periódicos de épocas glaciares alternando com épocas mais quentes. Comparando com essas variações, a época pós-glaciar dos últimos 8 000 anos foi relativamente amena, com pequenas flutuações na temperatura (menos de 1 °C por século). Esta estabilidade facilitou o desenvolvimento da agricultura e das sociedades humanas. Por exemplo, o período da expansão agrícola medieval foi particularmente ameno na Europa. Em contrapartida, o período frio dos séc. XVI e XVII foram períodos de grande crise social. Uma fonte de evidência contemporânea, indicativa de aquecimento, é o recuo dos glaciares e do gelo polar. Todas as regiões glaciares da Europa, com excepção da Noruega, estão em recuo. De 1850 a 1980, os glaciares dos Alpes Europeus perderam aproximadamente um terço da área e metade da massa. Por outro lado, a extensão e a duração da neve na Europa diminuiu desde os anos 1960 e nas regiões Árcticas da Europa, o gelo marinho está em declínio [7]. As respostas dos seres vivos podem representar uma forte evidência de alteração no clima, pois a maior parte dos organismos integra a informação climática. Por exemplo, o número de espécies de plantas de climas mais quentes tem aumentado no Noroeste da Europa [7]. Também, o regime de temperaturas afecta o calendário do ciclo vital dos organismos ou fenologia. O momento em que ocorre um determinado fenómeno, na sequência de eventos do ciclo biológico anual é determinado pelos sinais ambientais – comprimento do dia, temperatura – e pela resposta dos indivíduos a esses sinais. Nos últimos 30 anos na Europa, o início do período de crescimento das plantas ocorreu vários dias mais cedo e a senescência outonal das folhas alguns dias mais tarde, em relação à média anterior [8]. Isto resulta de mais calor no Inverno. Todavia, nem todas as espécies de plantas reagem do mesmo modo. Algumas espécies precisam de temperaturas baixas no Inverno para quebrar a dormência e abrolharem na Primavera. Essas espécies podem ser afectadas negativamente por Invernos quentes [9]. B. Efeitos das alterações globais nos ecossistemas O CO2 é o substrato da fotossíntese, pelo que o aumento da sua concentração na atmosfera poderá conduzir a uma maior assimilação de carbono e assim estimular o crescimento das plantas. Durante os últimos 150 anos tem-se verificado um aumento na taxa de crescimento das florestas na Europa central [10] e é tentador atribui-lo ao CO2 elevado. Haverá um efeito fertilizante do dióxido de carbono, isto é, será a assimilação do carbono estimulada pelo aumento de CO2? O efeito fertilizante pelo dióxido de carbono poderá aumentar a produtividade de longo termo nas espécies lenhosas numa média de 30% mas este efeito só se fará sentir até que outro factor do meio se torne limitante [11]. De facto, há uma tendência para respostas menos intensas ou mesmo nulas em situações de baixa disponibilidade de nutrientes. Este tipo de resposta, foi encontrado por nós no sobreiro, após quatro anos de crescimento numa atmosfera com uma concentração de dióxido de carbono dupla da actual. Observou-se um aumento de crescimento de 27%, mas apenas no regime com fertilizantes minerais [12]. Isto é, por si só, o CO2 parece ter um efeito diminuto no longo prazo, especialmente em árvores adultas [13], sendo provável um efeito fertilizante apenas em combinação com a deposição de azoto ou em solos ricos em nutrientes. Já quando se trata de espécies herbáceas anuais, cultivadas com a intensificação da agricultura de regadio, em solos férteis e com fertilização mineral 2 adequada, o efeito do CO2 elevado pode ser significativo, particularmente nas espécies que, como o trigo, seguem o percurso fotossintético em C3. O aquecimento pode ter efeitos benéficos ou nefastos de acordo com as espécies e os locais. Como já referimos, a fenologia responde pelo ajustamento do período de crescimento devido aos Invernos mais quentes. Na Europa admite-se um aumento médio da produtividade da vegetação de 12 % [7] mas os efeitos positivos do aquecimento poderão ser contrariados por maior secura no centro e no sul da Europa. Por outro lado, o aquecimento pode ser benéfico (maiores taxas de fotossíntese) nas regiões frias e no Inverno. Tendencialmente, o risco de geadas tardias na Primavera diminuirá, permitindo ampliar a estação de crescimento e antecipar as sementeiras das culturas de Primavera-Verão. No Verão, podem ocorrer eventuais danos devido ao sobre-aquecimento das folhas especialmente se, em simultâneo com altas temperaturas ocorrerem défices hídricos, como aconteceu em 2003 na Europa central e do Norte [14]. A seca resulta quer da falta de precipitação, quer de uma discrepância entre a quantidade de chuva (P) e a “demanda” evaporativa, ou seja, a evapotranspiração potencial (ETP). Em climas com precipitação sazonal, como é o nosso, a vegetação e a produtividade primária (das plantas) estão melhor relacionadas com a extensão da estação seca do que com a pluviosidade anual. A conjugação de temperaturas elevadas com maior variabilidade na precipitação e um quase certo aumento na extensão da estação seca, faz antever um cenário de secas frequentes em Portugal, no futuro [5]. Há uma óbvia coincidência entre as condições físicas da seca e os incêndios florestais. Não será surpresa que os índices climáticos de seca tenham uma boa correlação com a ocorrência de fogos numa base regional [15]. Por exemplo, em Espanha a seca severa de 1994 resultou em incêndios florestais, que queimaram cerca de 1.6% da área nacional de floresta. Em Portugal, o ano de 2005 foi um exemplo muito claro desta associação. Mas a precipitação anual não é um bom indicador. Por exemplo, em 2003 ocorreu a pior época de incêndios em Portugal, com uma área ardida de cerca de 5% do território continental, mas não foi um ano seco. Na verdade, a precipitação anual excedeu a média dos 30 anos (1951-1980) A excepcional vaga de calor com as temperaturas máximas 5° C acima da média diária (período de referência 1961-1990) durante 6 dias consecutivos, facilitou enormemente as ignições e a progressão dos incêndios. Isto é, as condições favoráveis aos incêndios relacionam-se melhor com os padrões temporais da chuva e da seca: “um local tem que ser suficientemente húmido para criar combustível e suficientemente seco para estar preparado para arder” [16]. C. Alteração do clima em Portugal e agricultura. Todos os modelos, para os cenários plausíveis de aumento de GEE, prevêem para Portugal um aumento da temperatura média até ao fim do século XXI [5]. No que se refere à precipitação, a incerteza é substancialmente maior. No entanto, quase todos os modelos sugerem uma redução da precipitação em Portugal continental durante a Primavera, Verão e Outono. O modelo regional de clima utilizado por [5] prevê reduções da precipitação no continente que podem atingir valores correspondentes a 20% a 40% da precipitação anual, com as maiores perdas a ocorrem na região Sul. A mudança climática, para além de alteração nas médias, será acompanhada por um aumento na frequência e intensidade dos extremos [17], nomeadamente secas e ondas de calor [5]. Veja-se a Tabela 1 como síntese. Tabela 1. Sumário de um cenário possível para o clima futuro em Portugal e respectivas consequências. Aquecimento da atmosfera. Equivale a “deslocar” o país centenas de km para Sul; eventual “invasão” por espécies termófilas; 3 Chuva concentrada no Inverno. Grande diminuição na chuva na Primavera e no Verão. Interior e Sul do País mais afectados que o Litoral e o Norte. Aumento na frequência e intensidade de eventos extremos. maior risco de incêndios florestais. Maior erosão do solo e maior variabilidade na disponibilidade hídrica. Mais aridez; diminuição na produtividade e alteração das áreas geográficas que suportam as diversas espécies de plantas; maior risco de incêndios florestais. Acentua a diferença entre regiões Acentua os efeitos da maior aridez e pode afectar a distribuição geográfica de espécies. D. Impacte da mudança climática e medidas de adaptação. Do mesmo modo que é possível criar cenários de clima futuro, sujeito às condições que originam a mudança climática, é também possível, estimar, utilizando modelos de simulação, a produtividade de algumas culturas actuais, nas condições correspondentes a um cenário de mudança climática. Usando modelos de culturas da série DSSAT [18], foi possível fazer uma avaliação dos impactos da alteração climática [19], baseada na determinação da variação percentual da produtividade entre as condições actuais (controlo) e os cenários de mudança climática. No futuro (2070 a 2100) é de esperar que as produtividades das culturas de trigo, milho e arroz sofram um decréscimo, enquanto que para as pastagens e forragens se estima um aumento. Com o intuito de contrariar os impactos negativos surge a possibilidade de se definirem medidas de adaptação, consistindo em adaptar as culturas/técnicas culturais às condições do clima do futuro. No estudo de medidas de adaptação às alterações climáticas para o Vale do Sado [20], verificou-se que alterando a data de sementeira do milho e das pastagens e forragens se alcançaria uma diferença significativa nas produtividades futuras, quando comparando com o cenário sem adaptação. Contudo, esta melhoria não chegará para compensar as perdas de produtividade resultantes da mudança climática. Bibliografia citada 1. CRU, Global average temperature change 1856–2003. http//www.cru.uea.ac.uk/cru/data/temperature/. 2003, Climatic Research Unit, European Union. 2. IPCC, W., ed. Climate Change 2001: The Scientific Basis, contribution of working group I to the third assessment report of the Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). ed. J.T. Houghton, et al. 2001, Cambridge University Press: Cambridge, UK. 944. 3. Watson, R.T., et al., eds. Land Use, Land-Use Change, and Forestry. Special Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change. 2000, Cambridge University Press: Cambridge. 4. Keller, C.F., Global Warming: The Balance of Evidence and Its Policy Implications. A Review of the Current State-of-the-Controversy. The Scientific World Journal, 2003. 3: p. 357–411. 5. Miranda, P.M.A., et al., O clima de Portugal nos séculos XX e XXI, in Alterações Climáticas em Portugal. Cenários, Impactes e Medidas de Adaptação, F.D. Santos & P. Miranda, Editors. 2006, Gradiva: Lisboa. p. in press. 4 6. Luterbacher, J., et al., Mediterranean Climate Variability over the last centuries, a Review, in The Mediterranean Climate: an overview of the main characteristics and issues, P. Lionello, P. Malanotte-Rizzoli, & R. Boscolo, Editors. 2005, Elsevier: London. p. in press. 7. EEA, Impacts of Europe's changing climate. An indicator-based assessment. 2004, European Environment Agency. p. http://reports.eea.eu.int/climate_report_2_2004/en/impacts_of_europes_changing_climate.p df. 8. Menzel, A., Trends in phenological phases in Europe between 1951 and 1996. International Journal of Biometeorology, 2000. 44(2): p. 76-81. 9. Chuine, I. & E.G. Beaubien, Phenology is a major determinant of tree species range. Ecological Letters, 2001. 4: p. 500–510. 10. Bascietto, M., P. Cherubini, & G. Scarascia-Mugnozza, Tree rings from a European beech forest chronosequence are useful for detecting growth trends and carbon sequestration. Can. J. For. Res., 2004. 34(2): p. 481-492. 11. 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Braga, Estudo de Caso da Região do Sado - Agricultura, in Alterações Climáticas em Portugal. Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação, F.D. Santos & P. Miranda, Editors. 2006, Gradiva: Lisboa. p. 402-419. 5