Cultura, meio ambiente e consumismo: caminhos para o consumo consciente. Culture, environment and consumerism: ways for conscious consumption. Luciene Costa1; Mariana Baldoíno da Costa2 RESUMO: Os estudos de Sustentabilidade precisam superar as pesquisas puramente mercadológicas sobre consumo e entendê-lo dentro do contexto das produções culturais e sociais de um determinado grupo. Os bens, mais que objetos, refletem as preferências, condições e desejos dos seres humanos e por isso devem ser analisados dentro de seu contexto cultural. Os estudos sobre o consumo consciente devem considerar a Cultura como um requisito fundamental e ao qual as escolhas estão diretamente ligadas. ABSTRACT The Sustainability studies must overcome the purely market research about consumption and understand it within the context of cultural and social productions of a particular group. The objects reflect the preferences, conditions and desires of human beings and should therefore be analyzed within their cultural context. Studies on conscious consumption should consider culture as a fundamental requirement and which choices are directly linked. Palavras-chave: Consumismo, Meio Ambiente, Cultura. Key words: Consumerism, Environment, Culture. 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas- UFAM. Professora da Secretaria Municipal de Educação de Manaus. [email protected] 2. Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Meio Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia do Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas- UFAM. Professora da Uninorte. [email protected] 1 Introdução A teoria do consumo tem de ser uma teoria da cultura e uma teoria social Douglas e Isherwood As ciências sociais ainda têm dificuldades em enxergar o consumo como uma categoria de análise, pois sua discussão é relativamente recente no campo científico, e por muito tempo este fenômeno ficou limitado a uma investigação da esfera econômica, ligado à produção e negligenciando a esfera cultural. Todavia, estudos recentes apontam que o consumo é necessário para entendimento da cultura e esta influencia as escolhas que fazemos. “Estudar consumo significa, em certo sentido, privilegiar a cultura, o simbólico, experimentando a relatividade dos valores e a instabilidade nela implícita.” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2013, p 13). Ou seja, a aquisição dos bens é imbricada de uma carga cultural indissociável do ser social. Desde sua gênese, o consumo enquanto agente da diferenciação esteve alicerçado nas bases morais da religião, através da lógica protestante, que não via o ter como pecado, mas como benção de Deus; da família, pelo aconchego material dos lares e da busca pelo seu lugar no mundo, através da distinção entre burguesia e nobreza (PORTILHO, 2010). Essa ideia confronta a possibilidade de negligenciar o estudo do consumo e lhe concede um caráter histórico: O consumo tem de ser reconhecido como parte integrante do mesmo sistema social que explica a disposição para o trabalho, ele próprio parte integrante da necessidade social de relacionar-se com outras pessoas e de ter materiais mediadores para estas relações. Esses materiais mediadores são: comida, bebida e hospitalidade da casa para oferecer, flores e roupas para sinalizar o júbilo, ou vestes de luto para compartilhar a tristeza. (DOUGLAS E ISHERWOOD, 2013 p. 20) Para além da questão cultural, o estudo do consumo pode levar a um questionamento salutar sobre a sustentabilidade, revelar sentidos, suscitar novas investigações e formas de atuação da ciência já que na produção, na frequência de compras e no descarte dos produtos ocorrem alterações fundamentais na natureza. 2 Assim, o impacto ambiental não está mais ligado apenas ao aumento da população e sim ao aumento do próprio consumo, perpassando a cultura e se reinventando para ser cada vez mais parte da vida da sociedade. “A discussão sobre o consumo e meio ambiente, portanto, obriga a pensar os conflitos e opções políticas da humanidade no contexto do mundo material” (PORTILHO, 2010, p. 55). Acreditou-se que as inovações trazidas desde a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX, de acordo com Robert Solow, prêmio Nobel de Economia, proporcionariam o bem estar da população. Para o economista americano, a escassez de recursos impulsionaria inovações técnico-científicas que por sua vez trariam à população condições dignas de vida, resolvendo o dilema entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico. (NASCIMENTO, 2012). A teoria do crescimento de Solow foi recusada por Ignacy Sachs, que propõe o Ecodesenvolvimento, teoria desafiadora que pretendia dar as diferentes esferas da sociedade o mesmo grau de importância. A partir das ideias de Sachs, mas ao mesmo tempo buscando um tom mais conciliatório com a via econômica e desenvolvimentista, o Relatório Brundtland (1987) trouxe a noção de Desenvolvimento Sustentável apoiada no tripé crescimento econômico, preservação ambiental e equidade social. O conceito de Desenvolvimento Sustentável, comum nas décadas seguintes, sofre hoje duras críticas por priorizar a economia sem valorizar o meio ambiente na mesma medida. No trabalho aqui proposto, parte-se da ideia do consumo enquanto elemento cultural, potencialmente impactante para o ambiente e passível de análise por uma via interdisciplinar. Esta leitura vai além da noção de desenvolvimento sustentável e propõe pensar o consumo de maneira mais consciente e responsável. A cultura como elemento balizador das relações sociais O homem é o único animal que possui cultura, privilegiado na relação com o meio. Os demais animais são totalmente submetidos às prerrogativas ambientais, apenas o homem, a princípio, consegue modificar o meio e encontrar formas de se impor à realidade. (LARAIA, 2012) A cultura diferencia o homem dos demais animais, garantindo-lhe a sobrevivência nos mais diversos ambientes; apresenta-se a cada indivíduo de forma peculiar ao passo que o indivíduo lhe assimila de maneira individual também. Ela está presente em todas as 3 sociedades, embora sua manifestação seja bem diversificada. Cada grupo social cria o seu código de valores e de leitura dos fenômenos que lhes são apresentados e a observância deste lhe garante a participação nos grupos sociais. (Laraia, 2012) A base cultural de cada indivíduo se reflete em seu julgamento do mundo e seus constituintes. A cultura influencia as ações individuais e suas escolhas de consumo e garantiulhe o papel de protagonista na História. Para Engels, o esforço humano foi o grande responsável pela diferenciação do gênero humano dos demais animais, colocando-o como um ser dominante, o que o levou mais tarde, aliado à sua alimentação diferenciada, a alçar grandes conquistas e se desenvolver. (ENGELS,1876). Portanto, seria o trabalho, na visão dos dois autores o grande responsável pela diferenciação do homem e pela sua consolidação enquanto ser dominante. A cultura é dinâmica, sendo a lente pela qual vemos o mundo. (BENNEDICT, 1972). Cada grupo social, cada cultura, tem uma lente específica e esta “filtra” o mundo, fornecendolhe uma explicação específica sobre o que é visto. Indivíduos que tem uma determinada forma de ver o mundo não conseguem, a princípio, compreender outras explicações dadas por pessoas com lentes diferentes das suas, surgindo os conflitos de visões de mundo. A cultura pertence ao homem, é a maior realização humana e define todas as suas conquistas. A forma como desenhou a sociedade não pode ser subestimada pela pesquisa científica, pois esta pode ser a ferramenta pela qual a lógica capitalista desenfreada pode ser controlada e ressignificada. As diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo aparato biológico ou pelo seu meio ambiente. A grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações: um animal frágil, provido de insignificante força física, dominou toda a natureza e se transformou no mais temível dos predadores. Sem asas, dominou os ares; sem guelras ou membranas próprias, conquistou os mares. Tudo isso porque difere dos outros animais por ser o único que possui cultura (Laraia,2012. p.24) 4 Poderia ser a cultura uma das importantes formas de resistência à imposição desenfreada da degradação ambiental que objetiva satisfazer as necessidades de consumo da sociedade moderna. Relações sociais, consumo e consumismo Naturalmente precisamos comer, o que escolhemos comer e como o fazemos, é delimitado pela nossa cultura (Laraia,1986). A regra de uma sociedade de consumidores é simples: a venda incessante de mercadorias desejadas por consumidores dispostos a pagarem o preço. Essas mercadorias prometem satisfazer sonhos, desejos e merecimentos dentro de uma lógica social ligada a sanar incessantes insatisfações. “Se reduzido à forma arquétipa do ciclo metabólico de ingestão, digestão e excreção, o consumo é uma condição, e um aspecto, permanente e irremovível, sem limites temporais ou históricos” (BAUMAN, 2008 p 37) Para o sociólogo polonês, consumidores e consumo são amalgamados, um não vive e não se destaca sem o outro. Para continuar sendo moderno, visível, interessante, o consumidor continua a consumir em um processo de obsolescência planejada. Embora o consumo faça parte da vida e da natureza humana, o consumismo se apresenta como a maior expressão dos desejos e anseios das pessoas. Enquanto na sociedade de produtores o eixo central da vida estava ligado ao trabalho, na modernidade este eixo se deslocou para o consumo. Sendo assim, o consumismo apresenta-se como elemento diferenciador, através da possibilidade do ter e do ser em constante reafirmação. ...a principal força propulsora e operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a interação e estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos, desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de autoidentificação individual e de grupo, assim como na seleção e execução de políticas de vida individuais” (BAUMAN, 2008, p 41) Tal fenômeno apresenta-se como a expressão máxima da individualidade e distinção, propondo a aquisição para além das necessidades, seja para o acúmulo ou para a exibição. 5 A ideia de consumismo está alicerçada também nas bases burguesas da valorização familiar, da liberdade e da formação de um lar, o que lhe confere um aspecto politicamente engajado, um processo econômico e cultural. Uma espécie de contraponto ao pensamento religioso do desapego material, predominante até a formação das cidades. (PORTILHO, 2010) No entanto, Assadourian (2010) afirma que o consumismo pode ser considerado como a manifestação cultural do consumo e não apenas a satisfação de suas necessidades. Dessa forma, a discussão entre cultura e consumo requer a relevância de mais um elemento: o ambiental. Consumismo e ambiente: A construção do consumo consciente “...a crítica ao consumismo, embora justificada, está fadada a permanecer inconsistente, caso não seja relacionada com a análise do papel do consumo e do empenho do consumidor na realização das potencialidades da sua vida” (PORTILHO, 2012) Os bens se tornam indispensáveis com a mesma velocidade que nos acostumamos a eles e desta maneira mantêm-se um ciclo vigoroso de produção-compra-descarte. Ao passo que uma novidade é lançada, antigos aparelhos são descartados, antigos objetos não servem e a necessidade de comprar se torna maior. Segundo os estudos de Marx, perde-se a relação de dependência com a terra e transfere-a para os bens. A terra converte-se em fornecedora de matéria-prima e o homem se reafirma como o ser dominante. Na análise marxista, a quebra do metabolismo entre homem e terra levou à alienação entre homem e trabalho. (FOSTER, 2005). Assadouriam (2010) reafirma o descolamento na relação homem e terra através do maior reconhecimento dos símbolos do consumo. Exemplo disso é que crianças britânicas reconhecem mais elementos virtuais de propagandas de brinquedos que animais reais. Comprar passou a ser uma prioridade e não uma necessidade de nações inteiras, a base fundamental das sociedades modernas. Com o aumento do consumo a partir da Revolução Industrial, o agravamento da crise ambiental e a deterioração das condições objetivas de vida da população mundial, é 6 necessário pensar em uma nova forma de conceber a tríplice relação economia- sociedadeambiente e daí derivam as discussões sobre sustentabilidade. A questão ambiental tem enormes desafios a vencer. De um lado o desafio teórico, que dificulta encontrar um conceito para a ideia de sustentabilidade dado ao fato da popularização do termo desenvolvimento sustentável, proposto no relatório Brundtland (1987) que é, segundo Leff (2001), uma manobra político-normativa e diplomática empenhada em eliminar as contradições existentes na relação economia-ambiente-sociedade. Lima (2003) afirma que o relatório esvaziou politicamente o conceito inicial de Sachs, que pressupõe que o desenvolvimento não pode ser alcançado apenas pela via econômica, mas está aliado às cinco esferas: social, econômica, ecológica, espacial e cultural. O conceito de Ecodesenvolvimento propõe o respeito aos princípios do crescimento sustentado; da minimização dos processos irreversíveis ao planeta e o de proteção ao meio ambiente. Dessa maneira, Sachs recusa o autoritarismo sob todas as suas formas, privilegiando o empoderamento2 dos produtores e dos consumidores. (MONTIBELLER FILHO, 1993). O segundo desafio proposto à ideia da sustentabilidade é de natureza prática, já que, como dissemos, consumir está no topo da lista de desejos, planos e prioridades do ser humano. O ato de consumir nem sempre está alicerçado em bases sustentáveis e a preocupação com o destino dos bens usados não parece dominar os debates atuais. O consumo sustentável pode ser concebido como um projeto alternativo, englobando grupos e organizações sociais que não seguem os mesmos preceitos da racionalidade econômica e que buscam refletir sobre os valores presentes na relação sociedade-natureza. (Portilho, 2010). A partir disso, o consumo não-sustentável, que seria mais inconsequente ou insustentável, seriam os tipos de consumo que não levam em consideração os impactos ambientais que são gerados em seus processos, mas justamente as vontades e desejos rotineiros das pessoas, o que faz um contraponto direto com o consumismo. 2 O conceito de empoderamento, utilizado inicialmente em Empowerment: uma política de desenvolvimento alternativo, de John Friedmann (1996) , segundo Horochovski (2006) pressupõe ultrapassar os instrumentos clássicos da democracia representativa, tendo por base um aumento da cultura política e do capital social. Ou seja, os atores que se empoderam são atores sociais ativos nos processos propostos. 7 Assim, a dualidade consumo sustentável (consciente) – insustentável (consumismo) passa pelo crivo da avaliação social e individual, e estas são experimentadas pela própria cultura, bem como os aspectos políticos e econômicos. Conclusão Construir uma ideia de consumo consciente, em contraponto a um consumo inconsequente parece uma alternativa viável a construção da sustentabilidade, partindo da ideia da aquisição de processos produtivos e não apenas de objetos prontos. O consumo consciente pressupõe um protagonismo do consumidor enquanto agente da demanda por processos produtivos não predatórios e que busquem mais do que ter, mostrar ou acumular. Tal ato dialoga com o uso responsável da matéria prima e dos produtos, e a consciência de sua responsabilidade com o planeta, consigo mesmo e com os demais seres vivos. Na construção do consumo consciente é indispensável a consideração da Cultura enquanto um agente influenciador das escolhas e por isso mesmo, para considerar uma aquisição mais responsável é necessário compreender os valores que a norteiam além de reforçar os valores positivos. A discussão acerca do consumo vai além da opção por produtos menos poluentes, já que os mesmos apenas mitigam os danos ambientais e sociais; é preciso comprar os processos de produção ao invés dos produtos; considerar a vida útil dos produtos, além do modismo e refletir sobre o destino dos mesmos na hora do descarte. Todos estes requisitos refletem os desafios que a Sustentabilidade tem a enfrentar e para isso pesquisas sobre o Consumo se tornam cada vez mais necessárias e urgentes. 8 REFERÊNCIAS ASSADOURIAN,Erik (org) Estado do Mundo, 2010: estado do consumo e o consumo sustentável / Worldwatch Institute. Salvador: Uma ed., 2010. BRUNDTLAND, Relatório Nosso Futuro Comum. Disponível https://ambiente.wordpress.com/2011/03/22/relatrio-brundtland-a-verso-original/ em acesso em 30 de outubro de 2016 CERTEAU, Michel. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. BAUMAN, Zygmunt. Vida para o Consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar,2008 BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo, Perspectiva. 1972 ENGELS, F. Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem. Disponível em https://pcb.org.br/portal/docs/opapeldotrabalho.pdf DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: editora da UFRJ, 2013 FOSTER, John Bellamy. O metabolismo entre natureza e sociedade. In: FOSTER, John Bellamy. A Ecologia de Marx: Materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. MONTIBELLER FILHO, Gilberto. Ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável: Conceitos e princípios Textos de Economia. Florianópolis, v. 4, a. 1,p. 131-142,1993. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/economia/article/view/6645/6263> Acesso em 26 de Jan. de 2016. NASCIMENTO, Elimar Pinheiro. Sustentabilidade: O campo de disputa de nosso futuro civilizacional. In: LÈNA, Philippe e NASCIMENTO, Elimar Pinheiro (orgs). Enfrentando os limites do crescimento. Rio de Janeiro: Garamond, 2012. PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2010. 9