O Cálcio em Pronto Socorro e UTI Dr. José de Felippe Junior O cálcio sérico total é a soma de três componentes : o cálcio ionizado, o ligado a proteínas plasmáticas e o complexado com ânions como citrato , fosfato e sulfato . Somente o cálcio ionizado é biologicamente importante . O valor normal do cálcio total é de 9 a 11 mg% ( 4,5 a 5,5 mEq/l ) , e do cálcio ionizado , 4,5 a 5,5mg% ( 2,2 a 2,7 mEq/l) . A distribuição do cálcio no plasma pode ser modificada de acordo com a concentração de albumina, anomalias protéicas e distúrbios do equilíbrio ácido-básico. Nas hiperproteinemias, o cálcio total está alto, porém, o ionizado está normal, por exemplo, mieloma múltiplo, insuficiência adrenal (hemoconcentração). Nas hipoproteinemias, o cálcio total está baixo, porém o ionizado está normal, alto ou baixo. Para cada desvio da albumina de 1g% a partir de 4g%, o valor total do cálcio deve ser corrigido em 0,8mg%. A acidose desloca o cálcio da albumina, aumentando a concentração do cálcio ionizado no plasma; o contrário acontece na alcalose. Desta forma, a acidose é acompanhada de hipercalcemia e a alcalose de hipocalcemia. Hipercalcemia ( cálcio ionizado superior a 5,5mg% ou 2,7mEq/l ) A hipercalcemia é uma complicação séria e potencialmente letal que acompanha muitas afecções. A normalização do íon no plasma corrige significativamente as consequências da moléstia de base e diminui bastante a morbilidade e a mortalidade. Considera-se preocupante uma taxa de 12mg% com o paciente sintomático, sendo os níveis superiores a 15mg% considerados muito graves, dependendo da velocidade de incremento do íon. As principais causas de hipercalcemia são as moléstias malignas e o hiperparatireoidismo. O Quadro 1 mostra as causas de hipercalcemia e a sua patogênese. As neoplasias provocam hipercalcemia induzindo a reabsorção óssea por pressão direta das metástases sobre o osso ou através da liberação de substâncias químicas ou hormonais com capacidade osteolítica. Ao redor de 10% das neoplasias diagnosticadas apresentam pelo menos um episódio de hipercalcemia no curso de sua moléstia. No hiperparatireoidismo primário, a hipercalcemia resulta do aumento da mobilização de cálcio do osso, aumento da absorção intestinal do cálcio pelo aumento circulante da 1 alfa, 25 hidroxivitamina D e do aumento da reabsorção tubular de cálcio, causados pelo aumento da produção do paratormônio (PTH). Juntamente podemos ter hipofosfatemia e acidose hiperclorêmica por aumento da excreção de bicarbonato. A doença pode apresentar-se insidiosamente com insuficiência renal progressiva, perda de peso, alterações mentais, debilidade, dor óssea e fraturas. É frequente a associação entre adenoma de paratireóide e moléstia maligna em outro lugar do organismo; assim, uma vez detectado uma delas, devemos prioritariamente procurar pela outra. O PTH pode ser produzido por vários tumores na forma de pró-PTH levando ao aparecimento do hiperparatireoidismo ectópico. A milk alkali síndrome foi descrita em pacientes que estavam ingerindo leite e alcalinos por muitos anos, porém ela pode aparecer agudamente, isto é, em poucos dias. Os sintomas clínicos às vezes são dramáticos e incluem: anorexia, náuseas, vômitos, cefalalgia, fraqueza, letargia e tontura. A síndrome aguda difere da crônica pela ausência de calcificação de partes moles e pela rápida e completa melhoria dos sintomas e reversão das alterações bioquímicas e renais, com a retirada do agente causal. A imobilização ou falta de uso pode levar à hipercalcemia em crianças normais ou adultos portadores de neoplasia, hiperparatireoidismo incipiente, ou moléstia óssea preexistente (moléstia de Paget, histiocitose etc.). Diante de uma hipercalcemia, o médico deve decidir se ela é mediada ou não por excesso do PTH. Podemos determinar os níveis séricos e urinários de fosfato, cloreto, bicarbonato e os níveis séricos de PTH (moléstia intacta ou fragmento carboxil terminal). Quadro 1: Causas e Patogênese das Hipercalcemias _________________________________________________________________________ Causas Patogênese 1. Neoplasia a) Mieloma múltiplo b) Câncer de mama c) Linfoma , leucemia d) Câncer de pulmão e) Outras: rins, fígado, pâncreas, Ca epidermóide de cabeça e pescoço 2. Hiperparatireoidismo a) Primário Adenoma ou carcinoma de paratireóide b) Secundário Insuficiência renal aguda Insuficiência renal crônica Após transplante renal Fator com atividade osteoclástica Falsa hipercalcemia Esterol semelhante à vitamina D PTH e prostaglandinas Metástase óssea Prostaglandina, fator com atividade osteoclástica PTH, prostaglandinas PTH, prostaglandinas Aumento da síntese de PTH Aumento transitório de PTH Hiperplasia paratireóide Resolução lenta e incompleta da hiperplasia paratireóide c) Ectópico Produção de pró-PTH por alguns tumores 3.Endocrinopatias não envolvendo a paratireóide a) Hipertireoidismo b) Hipotireoidismo c) Insuficiência adrenal d) Feocromocitoma e) Acromegalia 4. Agentes farmacológicos Aumento da reabsorção óssea, aumento da absorção intestinal de cálcio Diminuição da formação óssea Hemoconcentração (?) a) Vitamina D e seus metabólitos Aumento da absorção de cálcio b) Vitamina A Aumento da reabsorção óssea c) Diuréticos tiazídicos Potencia a ação óssea e renal do PTH, efeito direto no osso d) Estrôgeno e) Milke alkali síndrome f) Resina de troca Ca++/K+ g) Administração de cálcio h) Lítio 5. Moléstias granulomatosas Sarcoidose, tuberculose, coccidioidomicose, histoplasmose 6. Miscelânea Hipersensibilidade à vitamina D a) Osteoporese da Aumento da reabsorção óssea imobilização Hiperparatireoidismo reversível (?) b) Hipercalcemia idiopática da infância c) Hipofosfatasia Ausência congênita da fosfatase alcalina e ácida d) Insuficiência renal Rabdomiólise, imobilização, aumento transitório do PTH aguda e) Insuficiência renal Ingestão de grande quantidade de carbonato de cálcio, depleção de fósforo, crônica imobilização, aumento de cálcio no dialisado f) Mólestias ósseas : Paget, histiocitose, periostite generalizada _________________________________________________________________________ Para uma correta interpretação , devemos considerar o aumento do PTH em relação aos níveis de cálcio . Se a hipercalcemia for medida pelo PTH , precisamos saber se estamos frente ao hiperparatireoidismo primário ou secreção ectópica de PTH por moléstia maligna. Uma estória e exame físico cuidadoso com estudo radiológico apropriado orientarão o diagnóstico. Se a hipercalemia não for mediada pelo PTH, devemos distinguir entre neoplasia e as múltiplas causas mostradas no Quadro 1. O teste com corticosteróide, empregando-se 30mg de prednisona diariamente por 10 dias, não modifica os níveis de cálcio no hiperparatireoidismo primário, porém a normalização do íon no soro sugere fortemente a presença de processo não-mediado pelo PTH, em particular, sarcoidose, hipervitaminose D ou mieloma múltiplo. Manifestações da hipercalcemia. A hipercalcemia inibe o transporte renal de sódio, produzindo perda renal de sal e água, sendo seguro afirmar que, exceto no paciente com insuficiência renal grave, o estado hipercalcêmico é acompanhado por depleção de volume. Ocorre hipopotassemia por perda renal de potássio em 30% dos casos. Aqui é importante lembrar os efeitos sinérgicos da hipercalcemia e hipopotassemia, ambos aumentando o batmotropismo e o automatismo do miocárdio, tornando propício o aparecimento de arritmias. As alterações eletrocardiográficas incluem encurtamento do intervalo QT, alterações inespecíficas da onda T e, às vezes, prolongamento do intervalo PR, todas de caráter reversível. As anomalias do comportamento, chegando às vezes a confundir-se com um verdadeiro quadro psicótico, fazem com que muitos pacientes sejam admitidos primeiramente em instituições psiquiátricas. A hipercalcemia impede a absorção de cloreto pela alça de Henle, reduz a resposta do duto coletor ao hormônio antidiurético (HAD) e aumenta a secreção de prostaglandinas na medula renal, a qual antagoniza a ação do HAD no duto coletor. Esses efeitos em conjunto produzem perda de sódio e água, clinicamente traduzido por poliúria com consequente polidipsia (diagnóstico diferencial com diabetes). A crise hipercalcêmica é caracterizada por cefalalgia, vômitos, hipertensão arterial (diagnóstico diferencial com encefalopatia hipertensiva), dor abdominal, íleo paralítico, distensão abdominal (diagnóstico diferencial com abdômen agudo) e desidratação com ou sem distúrbios da consciência ou do comportamento. A hipercalcemia sozinha pode levar ao aumento das proteínas do líquor. Desta forma, quando ela acompanha um caso de câncer, a combinação de distúrbio da consciência, cefalalgia e aumento das proteínas no líquor pode sugerir erroneamente uma metástase cerebral, quando de fato os sintomas são produzidos pela hipercalcemia e completamente reversíveis. O Quadro 2 mostra os sinais e sintomas da hipercalcemia. Tratamento. O grau de urgência do estado hipercalcêmico depende do valor da calcemia, da rapidez do incremento do íon no plasma e das manifestações clínicas. A terapia específica é eficiente e muitas vezes definitiva, porém devemos associá-la com as medidas gerais e as inespecíficas (Quadro 3). O tratamento de urgência, isto é, as medidas que abaixam rapidamente o cálcio plasmático estão incluidas no tratamento inespecífico. Na hipercalcemia leve (12 a 15mg%), com poucos sintomas ou quando foi lento o incremento da calcemia, pode ser suficiente apenas o tratamento de base (p.ex., terapia antiblástica), associado a medidas como hidratação adequada, furosemide por via oral, mobilização e corticosteróide ou fosfato por via oral. Nos casos sem resposta tentamos a indometacina ou a aspirina. Nas hipercalcemias agudas, ou quando o nível sérico de cálcio está muito elevado (acima de 15mg %), adotamos as medidas hipocalcemiantes inespecíficas. No paciente sem insuficiência renal grave e compensado do ponto de vista cardíaco, procedemos à sobrecarga com soro fisiológico e furosemide intravenoso (80 a 100mg/h), até conseguirmos uma diurese superior a 500ml/h. Concomitantemente devemos repor potássio e magnésio. Em geral administram-se soro fisiológico e soro glicosado a 5% na razão de 3:1 ou 4:1 com 20 mEq de cloreto de potássio e 10 a 20mg de magnésio por litro de infusão. O soro fisiológico aumenta o volume plasmático, aumenta o filtrado glomerular e inibe a reabsorção tubular proximal e distal de cálcio. Outras medidas incluem o emprego da calcitonina ou da mitramicina (pacientes com neoplasias). No paciente com função renal comprometida ou em precárias condições cardíacas, considera-se o uso da calcitonina ou de diálise com baixa concentração de cálcio no dialisado. A hemodiálise consegue retirar 270 a 680 mg de cálcio por hora, a diálise peritoneal, 60 a 125 mg por hora, e a diurese forçada com solução salina, 82 mg por hora. Calcitonina. Possui valor nas condições de urgência, particularmente em pacientes com insuficiência renal ou cardíaca. É um polipeptídeo secretado nos mamíferos pelas células C da tireóide, capaz de provocar hipocalcemia e hipofosfatemia. A calcitonina inibe a reabsorção óssea e aumenta a deposição óssea e a excreção urinária do cálcio. Pode ser administrada por via muscular, intravenosa ou subcutânea na dose de 20 a 640 u MRC ( unidades Medical Research Council ) cada 6 a 12 h durante três a quatro dias ( geralmente: 4 a 8 u MRC/Kg/dia). O efeito é rápido, sendo palpável logo após o início do tratamento. Se a calcemia não diminuir em 24 h, devemos mudar a terapêutica e pensar em possível neoplasia subjacente. Os efeitos colaterais da droga incluem: náusea, vômito, hipocalcemia sintomática, reações alérgicas e cólicas abdominais. Ocorre resistência com tratamento prolongado. Mitramicina. É um quimioterápico antiblástico, usado no tratamento das hipocalcemias de várias origens, particularmente as de etiologia neoplásica. A droga reduz a mobilização do cálcio por inibição da síntese de RNA do osso, observando-se abaixamento dos níveis de cálcio em 24 a 48h. Consegue-se o efeito hipocalcemiante com 1/10 da dose antiblástica, sendo tal efeito evidente mesmo sem a ação da substância ao nível tumoral. Sua dose é de 24ug/Kg/dia, intravenoso in bolus ou em infusão lenta (3 h). Quando não se observa resposta apreciável em 24 a 48h repete-se a mesma dose, podendo-se administrar no máximo cinco doses consecutivas, uma por dia. A duração do efeito hipocalcemiante é variável, podendo durar até 15 dias, ocasião em que se torna necessária uma nova dose do medicamento. Nos pacientes idosos ou com insuficiência renal, devemos reduzir a dose para 15 ug/Kg. Os efeitos colaterais são dosedependentes e incluem: náuseas, vômitos, hemorragias (trombocitopenia, alongamento do tempo de protombina), febre, lesão renal, necrose hepática, oclusão arterial aguda e síndrome de Lyell. Corticosteróide. O corticosteróide antagoniza a absorção de cálcio induzida pela vitamina D, inibe a atividade osteolítica da célula óssea e, quando administrado por longo tempo, aumenta a excreção urinária de cálcio. A dose habitual é de 80 mg de prednisona por dia em doses divididas. O início do efeito hipocalcemiante se faz em 7 a 15 dias, não sendo usado, portanto, como terapêutica de urgência. Ele é particularmente útil na hipervitaminose D, sarcoidose, mieloma múltiplo, linfoma e na milk alkali síndrome. Fosfato inorgânico. Seu efeito hipocalcemiante é devido à deposição de cálcio e fosfato no osso. Ele pode ser administrado por via oral, intravenosa ou por enema de retenção, sendo a via intravenosa reservada para os casos agudos e com risco de vida. O fosfato deve ser administrado em infusão contínua (6 a 8 h ) com muito cuidado, na dose de 1,5g dissolvidos em soro glicosado ou fisiológico. Somente administramos uma única dose nas 24 horas, geralmente não sendo necessárias mais do que duas. A concentração do cálcio cai em minutos após o início da infusão, porém o declínio máximo pode surgir até cinco dias após. A dose por via oral é de 1 a 1,5g por dia em doses divididas. Se o cálcio não diminuir significativamente em três dias, aumenta-se 0,5 g na dose diária, e assim por diante até o máximo de 2 a 3 g por dia. Consegue-se normalizar a calcemia ao redor do 10º dia. A dose deve ser reduzida nos pacientes com insuficiência renal (0.5-1 g/dia). As complicações deste tratamento incluem: calcificação extra-esquelética, hipocalcemia, hipotensão arterial e insuficiência renal. Se o fosfato sérico ultrapassar 6mg%, reduzimos a dose de fosfato ou interrompemos o tratamento. Quando usado com critério, o fosfato inorgânico controla a hipercalcemia aguda e crônica. Medicamentos que contêm fosfato: a) Fosfato de potássio (Braun): 1 ampola = 10ml = 20 mEq de fosfato = 620 mg de fósforo elementar b) Fosfato de sódio 27,6%: 4 mEq/ml de fosfato Quadro 2: Sinais e Sintomas da Hipercalcemia _________________________________________________________________________ A. Psíquicos Irritabilidade, apatia, depressão, alteração da personalidade, confusão, psicose B. Neuromuscular Cefalalgia, sonolência, coma, ataxia cerebral, diminuição da audição, convulsão generalizada, disfagia, astenia, hipotonia, hiporreflexia, paralisia transitória. C. Cardiovascular Hipertensão arterial, arritmias, calcificação do sistema de condução miocárdico, aumento do risco de intoxicação digitálica ECG: encurtamento do intervalo QT, depressão de T, bloqueio A-V, prolongamento de PR. D. Gastrintestinal Anorexia, vômito, constipação, úlcera péptica, pancreatite, dor abdominal, quadro de abdômen agudo. E. Renal Poliúria, polidipsia, desidratação, hipopotassemia, hipomagnesemia, proteinúria tubular, hematúria e piúria sem infecção ou cálculo; glicosúria renal, redução da capacidade de concentração e acidificação da urina, nefrocalcinose, nefrolitíase, hidronefrose, insuficiência renal F. Ocular Ceratite, conjuntivite, depósito de cálcio na conjuntiva G. Calcificação extra-esquelética Derme, articulações, músculo, víscera, vasos, olhos H. Outras Dor óssea, fratura patológica _________________________________________________________________________ Quadro 3: Manejamento da Hipercalcemia _________________________________________________________________________ A. Medidas gerais 1. 2. 3. 4. 5. Correção da hipovolemia Correção da hipopotassemia e hipomagnesemia Aumento da mobilização: mudança de decúbito, sentar em poltrona, fisioterapia Redução da dose de digitálico Evitar o uso de agentes hipercalcemiantes B. Medidas hipocalcemiantes inespecíficas 1. Aumento da excreção urinária de cálcio • Sobrecarga com soro fisiológico e furosemide (diurese superior a 500 mI/h) • Administração de EDTA: não recomendado • Administração de sulfato ou citrato de sódio: não recomendado 2. Remoção do cálcio por hemodiálise ou diálise peritoneal 3. Diminuição da reabsorção óssea • Calcitonina: 20 a 40 uMRC cada 6-12 h por 3 a 4 dias IM ou IV • Mitramicina: 25ug/Kg, IV ou infusão. Repetir S/N em 24-48 h Idosos e insuficiência renal: 15 ug/Kg • Corticosteróide: 80 mg de prednisona por dia 4. Aumento da deposição de cálcio no osso Fosfato inorgânico: intravenoso: 1,5 g/24 h em 6 a 8 h via oral: 1-1,5 g/24 h em doses fracionadas C. Medidas específicas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. Paratireoidectomia Terapia antitumor Interromper a ingestão de leite e alcalinos Interromper a ingestão de vitamina D ou A Interromper os tiazídicos Tratamento antitireoidiano, beta-bloqueadores Costicosteróides (tumores produtores do fator ativador dos osteoclastos) Inibidores da síntese das prostaglandinas: Indometacina: 50-150mg/dia Ácido acetisalicílico: 2-5 g/dia _________________________________________________________________________ Hipocalcemia ( cálcio ionizado inferior a 4,5 mg% ou 2,2 mEq/I ) Quando interpretamos o cálcio total, devemos levar em consideração os níveis de albumina e o pH. Na hipoalbuminemia, o cálcio total está diminuído (redução da fração ligada à proteina), porém o cálcio ionizado pode estar normal. Na ausência da determinação direta do cálcio ionizado, é útil sabermos que o cálcio total sofrerá uma queda de 0,8 mg% para cada diminuição de 1g% na albumina sérica, a partir de 4g%. A alcalose aumenta a fixação do cálcio à albumina e, portanto, diminui a concentração de cálcio ionizado no soro, de modo que o paciente pode apresentar sinais e sintomas de hipocalcemia apesar de uma concentração de cálcio sérico total normal. A diminuição do cálcio ionizado no soro usualmente significa diminuição da produção de PTH (hipoparatireoidismo), distúrbio ao nível dos órgãos-alvo (pseudo-hipoparatireoidismo) ou alterações do sistema de vit. D. No paciente grave, revestem-se de importância a alcalose e as transfusões maciças de sangue. O Quadro 4 mostra as causas e os mecanismos de produção da hipocalcemia. Manifestações clínicas. A hipocalcemia aumenta a irritabilidade do sistema nervoso central e periférico, podendo produzir tetania e convulsões. O Quadro 5 mostra os sinais e sintomas da hipocalcemia. A tetania é a manifestação principal da hipocalcemia, embora os sinais mais precoces sejam sensoriais, isto é: adormecimento dos dedos, formigamentos, latejamento e queimação nas extremidades, lábio e língua. A tetania pode se manifestar na musculatura esquelética ou na musculatura laringiana. No espasmo carpal típico, os dedos completamente estendidos estão flexionados na altura das articulações metacarpofalangianas e o metacarpo flexionado sobre o carpo (pulso). O polegar encontra-se em extensão. Nos casos graves, as extremidades inferiores também estão envolvidas: espasmo carpopodal. Na tetania latente, o espasmo pode ser desencadeado ocluindo-se o fluxo arterial do braço por meio de um aparelho de pressão(teste de Trousseau). Se o espasmo ocorrer dentro de 5 min, considera-se o teste de Trousseau positivo. A tetania latente da musculatura facial pode ser detectada percutindo-se sobre o nervo facial logo em frente da implantação da orelha (sinal de Chvostek). Se houver contração dos músculos dos olhos, lábio superior, asa nasal e canto da boca, considera-se o sinal de Chvostek positivo. Nos casos menos pronunciados podemos ter unicamente um movimento do canto da boca ou da asa do nariz. O espasmo da musculatura laringiana produz o chamado estridor laríngeo, constituindo-se na causa mais comum de morte na hipocalcemia severa. Quando o espasmo laringiano ocorre após cirurgia de pescoço, é facilmente confundido com a paralisia da corda vocal. As convulsões são generalizadas ou focais e, nos pacientes com epilepsia, podem ocorrer sem sinal prévio de tetania. A hipocalcemia diminui o limiar de excitabilidade neuronal, podendo, nestes pacientes, desencadear uma crise epiléptica, a qual pode assumir a forma de: focal, jacksoniana, pequeno mal ou grande mal. Outra forma de convulsão é aquela caracterizada por espasmos tônicos prolongados. Neste caso pode estar presente uma aura sensorial, porém a mordedura de língua, a perda da consciência, a incontinência urinária e a confusão após a crise geralmente estão ausentes. Ambos os tipos refratários à terapia anticonvulsiva habitual, e devemos estar atentos, pois as hidantoínas mascaram as manifestações periféricas da tetania. A hipocalcemia profunda e prolongada pode provocar uma cardiopatia manifestada clinicamente por insuficiência cardíaca refratária ao digital e diurético, porém reversível com a administração de cálcio. Tratamento. A hipocalcemia associada a tetania manifesta ou latente deve ser corrigida imediatamente para prevenirmos o espasmo laríngeo e as convulsões. Nos adultos usamos 10 a 20 ml de gluconato de cálcio a 10% ou 10ml de cloreto de cálcio a 10%, intravenoso e lentamente, nunca ultrapassando 10 ml por min. Nos pacientes digitalizados, a injeção deve ser feita sob monitorização eletrocardiográfica pela possibilidade de parada cardíaca. Se não houver resposta com a administração de cálcio, devemos colher sangue para dosar magnésio e administrar 10 a 20 ml de sulfato de magnésio a 10% IV. Nos pacientes gravemente enfermos podem ser necessárias doses mais altas. A necessidade de tratamento da hipocalcemia transitória nestes pacientes não está convincentemente estabelecida. A hipocalcemia crônica é geralmente tratada com cálcio e vitamina D, por via oral. No hipoparatireoidismo evitamos o excesso de fosfato na dieta e administramos 2 a 4 g de cálcio nas fases iniciais, com ou sem vitamina D (ergocalciferol: 50.000 a 100.000 u/dia, diidrotaquisterol (DHT) 1 a 4 mg/dia). A hipocalcemia e/ou a osteomalacia produzida pelos anti-convulsivantes geralmente respondem à suplementação de 5.000 a 10.000 u de vit. D por dia. A hipocalcemia da insuficiência renal é acompanhada de hiperfosfatemia e dificiência de 1,25 (OH) 2 D. Iniciamos a terapêutica com antiácidos queladores de fosfato e dieta pobre em fosfato e, a seguir, cálcio por via oral e, finalmente, vit. D. O DHT ou o 1,25 (OH) 2 D são preferíveis, nesta situação, por não necessitarem de hidroxilação renal. Quadro 4: Causas e Mecanismos da Hipocalcemia _________________________________________________________________________ A. Redistribuição intravascular 1. Alcalose 2. Transfusões maciças com sangue ACD 3. Aumento dos complexos de cálcio no soro . Administração de : fosfato, citrato, lactato, ácidos graxos , bicarbonato, sulfato e EDTA 4. Plasmaférese 5. Infusão rápida de soro fisiológico ou albumina hiperoncótica B. Remoção de cálcio do soro 1. Hiperfosfatemia aguda : ingestão de fosfato , rabdomiólise , tratamento da leucemia aguda ou linfoma 2. Pancreatite aguda 3. Drogas : calcitonina, glucagon, mitramicina, actinomicina , colchicina 4. Metástases osteoblásticas C. Alteração no sistema do PTH 1. Hipoparatireoidismo • Cirúrgico • Infiltração neoplásica • Sobrecarga de ferro • Ausência congênita 2. Pseudo-hipoparatireoidismo 3. Hipomagnesemia D. Alteração no sistema da vit. D 1. Ingestão diminuída 2. Absorção diminuída : gastrectomia parcial , insuficiência pancreática severa , ressecção intestinal , falta de sais biliares 3. Produção diminuída de 25(OH)D: moléstia hepática 4. Metabolismo aumentado de 25(OH)D: fenobarbital, fenantoína, álcool, glutetemida 5. Perda de 25(OH)D: síndrome nefrótica , circulação êntero-hepática prejudicada 6. Produção diminuída de 1,25(OH) 2 D: doença renal 7. Resistência dos órgãos-alvo aos metabólitos da vit. D E. Mecanismos múltiplos • • • • Infusão de magnésio Antibióticos aminoglicosídicos Paralisia periódica hiperpotassêmica Administração prolongada de corticosteróide _________________________________________________________________________ Quadro 5: Sinais e Sintomas da Hipocalcemia _________________________________________________________________________ A. Psiquiátricos Psicose confusional tóxica aguda com delírios , alucinações, labilidade emocional , apreensão , depressão e tendência suicida ou paranóide B. Sistema nervoso central e periférico Tetania manifesta ou latente , estridor laríngeo , convulsões generalizadas ou focais, adormecimento dos dedos , formigamento , latejamento e queimação de extremidades , lábios e língua . Coma, aumento de pressão intracraniana , papiledema C. Cardiovascular Efeito inotrópico negativo , hipotensão ortostática , insuficiência cardíaca refratária ao digital ECG: alongamento do intervalo QT à custa do segmento ST , bloqueio 2:1, arritmias ventriculares , fibrilação atrial refratária ao digital D. Gastrintestinal Vômito , diarréia, esteatorréia E. Oculares e tegumento (hipocalcemia crônica) Catarata lenticular , ceratite , conjuntivite com fotofobia e blefarospasmo , perda de cabelos e pêlos , pele seca e ceratósica com dermatite semelhante ao eczema _________________________________________________________________________ Referências Bibliográficas I- Livros Têxto 1. Felippe, J Jr. : Pronto Socorro: Fisiopatologia – Diagnóstico – Tratamento. In Capítulo 10, José de Felippe Junior : Distúrbios Hidroeletrolíticos : Na+ , K+ , Ca++ , PO4 e Mg++ ; pag.82-97, 1990 ; Editora Guanabara Koogan, 2 a Ed. – Rio de Janeiro. 2. Goodman and Gilman : The Pharmacological Basis of Therapeutics. In Capítulo 38, Michael J. 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