6º COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX E ENGELS Imperialismo e Forças Produtivas no Egito da XVIIIª Dinastia (1550-1307 a. C.)* Prof. Mestrando Fábio Frizzo (PPGH-UFF/NIEP-Marx) O território egípcio, conhecido pelos próprios como kemet ou “terra negra” em alusão às terras fertilizadas pela cheia do Nilo, estendeu-se historicamente do Delta do rio, na margem do Mar Mediterrâneo, à sua primeira catarata. Todavia, desde o Reino Médio, em princípios do II Milênio a.C., a região ao sul dessa catarata – posteriormente conhecida como Núbia – foi ocupada pelos egípcios, que ali construíram fortificações utilizadas como bases de troca com os povos nativos. O Reino Médio, contudo, terminou com a invasão estrangeira das terras do norte e do sul do Egito, respectivamente por asiáticos hicsos e núbios kushitas. Após cerca de um século de ocupação estrangeira em terras egípcias, iniciou-se uma guerra de expulsão, que deu origem à XVIIIª dinastia, que, por sua vez, inaugura o período conhecido como Reino Novo. O Reino Novo é marcado pela expansão imperial egípcia através da Núbia e do Levante (Costa Oriental do Mediterrâneo até o Rio Eufrates aproximadamente), bem como por modificações importantes na sua estrutura econômico-social. Partindo da análise deste período, buscaremos identificar as ligações entre o movimento imperialista e o desenvolvimento das forças produtivas do Antigo Egito. Para alcançar tais objetivos, basear-nos-emos em indicações teórico- metodológicas estabelecidas por Ciro Cardoso em estudo do sistema escravista colonial. Para o autor, os elementos constitutivos das forças produtivas poderiam ser esquematizados da seguinte maneira. 1. O ser humano como força produtiva 1.1 Aspecto “objetivo”: população (densidade, composição por sexo e idade, estratificação sócio-profissional, tendências dinâmicas); cooperação; divisão do trabalho (social e técnica). * Esta comunicação integra a mesa coordenada proposta sob o título “A Anatomia do Macaco: Marxismo e Pré-Capitalismo”. 1 1.2 Aspecto “subjetivo”: processos de formação e socialização dos trabalhadores envolvendo ensino/aprendizagem e representações sobre o mundo e o trabalho. 2. Os objetos de trabalho como força produtiva 2.1 Aspecto “objetivo”: energias naturais (eólia, hidráulica, animal...). terras, recursos naturais modificados (matérias-primas) ou não por um trabalho prévio. 2.2 Aspecto “subjetivo”: conhecimentos (seja empíricos, seja científicos) e representações acerca da natureza, pertinentes para a apropriação e a utilização social dos objetos de trabalho. 3. As técnicas como força produtiva 3.1 Aspecto “objetivo”: instrumentos de produção (ferramentas, máquinas, certos edifícios...), de transporte, instalações auxiliares... 3.2 Aspecto “subjetivo” ou “modo de fazer”, isto é, de interpor os instrumentos de trabalho entre o trabalhador e o objeto de trabalho, bem como de fabricar os próprios instrumentos (o que implica um plano e uma representação mentais completos das diversas operações a cumprir em tal fabricação).1 Trataremos de apontar resumidamente a forma pela qual podemos encontrar alguns destes elementos relacionados ao processo de expansão imperial do Antigo Egito, uma vez que a rápida exposição que uma comunicação supõe não nos permite uma maior digressão acerca do assunto. Todavia, cabe antes fazer um pequeno resumo do desenvolvimento histórico de tal processo. O conceito de imperialismo surge na virada do século XIX para o XX, para explicar a expansão neocolonial do capital monopolista a partir do conceito de Império, criado na Antiguidade Romana. Ainda que Marx e Engels tenham produzidos textos relativos ao neocolonialismo, a principal obra marxista relacionada ao tema é a conhecida brochura de Lênin “Imperialismo. Fase Superior do Capitalismo”, de 1916. Partimos de um conceito lato de imperialismo, conforme utilizado pelos historiadores da Antiguidade, dentre os quais podemos citar Norberto Guarinelo: O imperialismo antigo manifesta-se através do estabelecimento de um diferencial de poder, obtido ou não por meio da ação militar direta – cuja possibilidade consubstancia e assegura esse poder – e que proporciona um fluxo centrípeto de bens para a cidade-Estado em expansão. Trata-se assim da relação entre um centro acumulador – o centro de poder – e uma periferia submetida e explorada. As categorias de vantagens materiais e imateriais que compõe tal fluxo, bem como as modalidades de 1 CARDOSO, Ciro. Agricultura, escravidão e capitalismo. Petrópolis, Vozes, 1982. p. 17-31. 2 expressão e exercício de tal poder, podem variar profundamente no tempo e no espaço.2 A partir de tal definição podemos perceber uma generalização dos processos imperialistas a partir do modelo centro-periférico, também conhecido como modelo do sistema mundial, desenvolvido pelo sociólogo Emmanuel Wallerstein na década de 1970. O imperialismo pré-capitalista, todavia, ao contrário daquele do atual, não estaria baseado, obviamente, na expansão do capital monopolista e na transformação do capitalismo industrial em capitalismo financeiro. Outrossim, estaria distante do fluxo centrífugo da exportação de capitais, situando-se, como visto, no sentido contrário da importação de matérias-primas. A característica geral, observável na diacronia, é a relação entre um centro acumulador e uma periferia explirada. O imperialismo egípcio inicia-se, como visto, com o movimento de expulsão dos invasores estrangeiros que estavam presentes no território da “terra negra”, fossem eles os hicsos, no norte, ou os kushitas, no sul. Neste sentido, o caráter inicial da expansão foi defensivo. Os hicsos foram perseguidos pela Síria-Palestina, onde os egípcios agiram para impedir o abastecimento dos povos locais aos invasores repelidos. No caso da Núbia, houve a reconquista da região que pertencera ao Egito no Reino Médio, com o apoio dos habitantes que haviam permanecido nos fortes, de onde partiram expedições para “expandir as fronteiras” do país. Cerca de 130 anos após o início da guerra contra os invasores, o Egito já tinha alcançado o esplendor de sua territorialidade imperial. As fronteiras originais da “terra negra” foram expandidas até a quarta catarata do Nilo e sua área de autoridade imperial alcançava a cidade de Kadesh, nas margens do rio Orontes – hoje Síria Ocidental. De lá partiam expedições militares que alcançavam o rio Eufrates e rotas de comércio que se estendiam até a ilha de Creta. A partir deste momento, situado no reinado de Hatshepsut, os faraós passaram a se preocupar mais com a organização e manutenção deste império do que com sua expansão. Neste sentido, intensificaram-se os esforços para a construção de relações diplomáticas tanto com as outras potências locais, quanto com os territórios dominados; estabeleceram-se guarnições armadas em pontos-chave do império para 2 GUARINELLO, Norberto. Imperialismo greco-romano. São Paulo, Editora Ática, 1994. p. 11-12. 3 sufocar possíveis revoltas; foram construídos templos egípcios nas regiões a serem aculturadas; etc. No geral, a guerra liga-se fundamentalmente à questão das forças produtivas através do binômio destruição/aquisição. Nas sociedades pré-capitalistas do Mundo Antigo, sua função era ainda mais premente, como afirma Marx a exemplo dos germanos: ...a própria guerra é [...] uma forma de intercâmbio regular, explorada tanto mais assiduamente quanto mais o crescimento da população, dentro do rude modo de produção tradicional (o único possível a esse povo), gera a necessidade de novos meios de produção.3 Num modo de produção que conta com a presença – mais ou menos importante – da escravidão, a guerra torna-se meio de aquisição do aspecto objetivo do fator humano das forças produtivas. A deportação de mão-de-obra foi uma importante consequência das conquistas egípcias. Em apenas dois anos de suas campanhas, o faraó Amenhotep II afirma ter trazido para o Egito um total de 91.824 cativos, parte deles descrito neste trecho de sua estela presente em Mênfis. Ainda que as fontes possam exagerar nos números para aumentar o prestígio do governante, as quantias permanecem impressionantes: Relação do butim que sua majestade trouxe: 127 chefes de Retenu e 179 irmãos destes, 3600 apiru, 15200 shasu vivos, de Kharu 36300, de Nagas 15070 vivos e seus vizinhos (?) 30652; no total de 89600 homens, junto com suas inumeráveis posses, todas as suas cabras e todo tipo de gado sem limite (…).4 A imensa maioria dos cativos deportados foi utilizada para a colonização da área do Delta do Nilo nas terras templárias e palaciais. Esta colonização não se dava apenas pela agricultura, mas também com a pecuária. A partir disto, encontramos a explicação para o envio dos asiáticos ao Egito junto de suas posses, incluindo cabras e gado de todo tipo. 3 MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Boitempo, 2007. p. 70. GALÁN, Jose Manuel. El Imperio Egipcio. Inscripciones, Ca. 1550-1300 a.C.. Barcelona, Edicions de la Universitat de Barcelona, 2002. p. 156. 4 4 Bois e cavalos são encontrados facilmente dentro das fontes imperiais que retratam os butins. Isto nos leva ao aspecto objetivo dos objetos de trabalho como força produtiva. A energia animal era a força extra-humana motriz da economia rural egípcia. A despeito das poucas representações pictográficas, o uso de cavalos nas plantações é fato comprovado, ainda que sua principal função fosse militar – puxando os carros de guerra que ganharam importância fundamental nas batalhas de expansão das fronteiras. Já a utilização de bovinos de várias raças no cultivo é mais do que comprovada pelas iconografias. A importação de gado foi importante, outrossim, para a variação do pool genético e o aperfeiçoamento das raças utilizadas no Egito. A colonização agrícola do Delta só foi possível com a inserção de outro aspecto relativo à ligação entre imperialismo e forças produtivas. Os cerca de 90 anos de convivência dos egípcios com os hicsos em seu território levaram os habitantes da “terra negra” ao conhecimento de novas técnicas e tecnologias agrícolas comuns em todo o Oriente Próximo e inéditas no Egito, como o exemplo da utilização do shaduf (instrumento de produção simples baseado no contrapeso) para a irrigação. Com a expansão, esta tecnologia foi incorporada de vez à formação econômico-social egípcia. Se o shaduf modifica a forma de trabalhar o principal meio de produção, que era a terra, novos tipos de navios são introduzidos para transformar a principal forma de transporte e comunicação de um país cortado pelo Nilo de cima a baixo. A nova tecnologia naval é fruto de dois aspectos ligados ao imperialismo. Primeiro, o contato e incorporação de artesãos especializados hicsos que, com a retomada do território e a invasão de seu povo, permanecem trabalhando nas oficinas do Delta egípcio – principal área para construção naval. O segundo aspecto é a importação de madeira de qualidade, inexistente no Egito, que flui para os estaleiros através do butim ou do tributo cobrado às terras dominadas indiretamente nas áreas do Levante, em particular do reino de Biblos, no atual Líbano. A construção de grandes navios era de vital importância para a manutenção do império egípcio, uma vez que o Nilo e a costa do Mediterrâneo eram as principais vias de integração do território. Através das embarcações é que fluíam, da periferia para o centro, os bens extraídos com o domínio imperial. 5 Para esgotar a relação entre imperialismo e os aspectos “objetivos” dos objetos de trabalho como força produtiva, restam-nos dois exemplos: as terras e as minas. As extensões de terra dominadas poderiam ser deixadas a seus cultivadores em troca da tributação periódica ou ser dividida em lotes e distribuída entre os funcionários reais, conforme a relação do butim da Batalha de Megiddo, importante confronto de Thutmés III na Ásia: Os campos de cultivo foram convertidos em parcelas, as quais foram dadas aos agentes do Palácio – vida, prosperidade, saúde – para recolher sua colheita. Relação da colheita que sua majestade trouxe das parcelas de Megiddo: 207.300 sacos de trigo, além do que foi consumido pela tropa de sua majestade [...].5 Inserida em movimentos muito maiores da estrutura econômico-social egípcia está a doação de terras. Durante o Reino Novo há um aparecimento cada vez maior de propriedades privadas6, principalmente em virtude das terras doadas em pagamento a oficiais do exército, que recebiam também cativos e outras partes dos butins. Todavia, essa modificação não é nosso objetivo neste trabalho. As minas têm importância fundamental para a manutenção da expansão e do domínio imperial egípcio. O aumento da produção agrícola – a partir da implementação de instrumentos como o shaduf – permitiu não só o dispêndio imperial, como também o fortalecimento da mineração. O cobre era extraído do deserto oriental e o estanho do deserto arábico, mas o Egito só alcançou o auge da Idade do Bronze também no Reino Novo, devido à incorporação de técnicas e tecnologias utilizadas na Ásia, como um tipo melhor de fole para metalurgia, que permitiu a fusão mais eficiente do bronze, anteriormente utilizado apenas quando a liga estanho-cobre era encontrada naturalmente. O bronze foi utilizado principalmente na indústria bélica. Contudo, na XVIIIª Dinastia começam a aparecer ferramentas agrícolas feitas com o metal, como enxadas, por exemplo. Todavia, a imensa maioria dos utensílios usados no cultivo continuou a ser muito primitiva, constituindo-se basicamente de madeira, corda e pedra. Isto decorria 5 Idem, Ibidem. p. 85. É necessário entender esta propriedade privada com as limitações que são características de uma formação econômico-social pré-capitalista. Isto significa dizer, com Marx, que ela difere da propriedade privada pura, que suprime a influência do Estado sobre toda a propriedade, como visto em MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Op. Cit. p.75. 6 6 principalmente da facilidade proporcionada pelas terras fofas e férteis deixadas com o escoamento da cheia do Nilo. A mineração fundamental decorrente do expansionismo imperial egípcio, parecenos ter sido, entretanto, a aurífera. As reservas do metal encontravam-se principalmente na região da Baixa Núbia (Wawat), que foi prontamente anexada ao território egípcio nos primeiros reinados da XVIIIª Dinastia. Lá ocorreu um tipo de dominação bastante específico, que incluiu um processo de difusão da cultura egípcia através da construção de templos, por exemplo. Por outro lado, a exploração aurífera do sul foi tão importante para a manutenção do império egípcio que levou à criação, pelo faraó Kamés, do cargo de “Filho Real de Kush” ou vice-rei da Núbia, que tinha o epíteto de “supervisor das terras do sul”. Para aumentar ainda mais a segurança em relação às minas de ouro do norte núbio, houve uma redefinição das fronteiras administrativas do Egito, deixando-se todas as minas do sul sob jurisdição do “Filho Real de Kush”, que era, em geral, um núbio aculturado. O papel fundamental do ouro no império egípcio fica claro a partir da análise das Cartas de Amarna, corpus documental que revela parte da correspondência diplomática entre o faraó e outros governantes do Antigo Oriente Próximo. Nas quase 400 missivas, trocadas com grandes reis (tratados pelo faraó como irmãos) ou pequenos reis (que tinham com o monarca egípcio uma relação de vassalagem), são constantes os pedidos de ouro. Um exemplo é a carta enviada ao faraó Amenhotep II pelo grande rei da Babilônia Kadašman-Enlil: E sobre o ouro acerca do qual te escrevi, envie-me o que houver em mãos, tanto quanto possível (...) para que eu possa terminar o trabalho em que estou engajado. (...) Uma vez que eu tenha terminado em que estou engajado, qual seria o motivo de tu ficares satisfeito de me enviar o ouro? Então tu podes enviar-me 3000 talentos de ouro, que eu não aceitarei. Enviaria de volta a ti e não daria minha filha em casamento.7 A carta serve ainda como bom exemplo da caracterização do ouro como valor de uso e não como valor de troca na relação de dom e contradom entre o faraó e um rei irmão. Não obstante, o afluxo aurífero dentro da área de influência imperial egípcia foi 7 EA 4 in MORAN, William (Edit. E Trad.) The Amarna Letters. London, The John Hopkins University Press, 1992. 7 tão grande que, segundo Stuart Smith, o ouro substituiu a prata como padrão de troca na Mesopotâmia8. Apoiado na sua produção aurífera, o Egito se definiu como potência hegemônica no Oriente Próximo. Segundo Gramsci, uma potência hegemônica é aquela que conta com um grande território, uma robusta força militar e uma economia pujante. A expressão desta hegemonia se daria a partir da capacidade desta potência de imprimir uma direção autônoma à sua atividade estatal, bem como de dispor de um grande peso nas pressões diplomáticas, o que a levaria a conseguir os ganhos de uma possível guerra sem ao menos se engajar na batalha9. O ouro era, então, tão fundamental no processo de negociação diplomática do centro egípcio, como na manutenção de uma força militar opressora e de uma economia que estava entre as maiores do Oriente Próximo. Outro aspecto do ser humano como forças produtivas observável nas cartas é a circulação de mão-de-obra altamente especializada, incluindo médicos e artesãos, por exemplos. É verdade que todos os dados observáveis são relativos ao envio de especialistas egípcios para outros reinos, mas isto é compreensível se considerarmos que apenas 3 das 379 cartas são remetidas pelo faraó – já que o arquivo palacial em que estas foram encontradas foi justamente das missivas recebidas. Torna-se possível, contudo, a inferência de que mão-de-obra muito qualificada também era requisita e enviada ao Egito. À guisa de conclusão, retorno à citação marxiana sobre a guerra como meio regular de intercâmbio. No Antigo Egito, ela só passou a ser utilizada desta maneira a partir do início do Reino Novo, com a expulsão dos invasores estrangeiros e as decorrentes batalhas de expansão e aquisição de butim, que incluiram, como vimos, diversos aspectos das forças produtivas. Neste momento da história faraônica, o rude modo de produção asiático, que mantinha – através principalmente da união entre agricultura e artesanato no seio das comunidades aldeãs autárquicas –, no Egito, técnicas e tecnologias há muito ultrapassadas no restante do Oriente Próximo, necessitou de novos meios de produção para sustentar a crescente população. O aumento da produtividade, 8 SMITH, Stuart Tyson. Askut in Nubia: the economics and ideology of Egiptian imperialism in the second millenium B.C.. London, Kegan Paul International, 1995. p.16. 9 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 3. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004. pp. 55. 8 por sua vez, possibilitou dialeticamente a expansão e o domínio imperial exercidos pelo Egito no período áureo de sua história. 9