A KATHÁRSIS HERÓICA NAS TRAGÉDIAS GREGAS: OS

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A KATHÁRSIS HERÓICA NAS TRAGÉDIAS GREGAS: OS CAMINHOS DA APOTHÉOSIS
HERACLEANA NAS TRAQUÍNIAS DE SÓFOCLES.
Poliane da Paixão Gonçalves Pinto
Ana Teresa
RESUMO
Ao tratar um dos mitos mais populares da mitologia clássica, o tragediógrafo ateniense Sófocles
construiu uma observação singular a respeito deste mito em sua obra As Traquínias para a sua
audiência no contexto do séc. V a.C. Nesta comunicação abordaremos, a partir de um panorama geral
como a imagem heróica de Héracles foi representada por Sófocles, especificamente a questão do seu
processo kathártico, através do qual o herói alcança a apotheosis.
As obras humanas, são os meios pelos quais os indivíduos reproduzem as estruturas do
pensamento coletivo em imagens representativas. Assim segundo Roger Chartier, “as representações
do mundo social” (1990, p.19), seriam o meio pelo qual a sociedade expressa a forma como ela pensa,
ou o ideal do pensamento coletivo Partindo dessa idéia inicial acreditamos que na tragédia a imagem
de Héracles representa as estruturas de pensamento da sociedade ateniense no momento de
estruturação da polis no período clássico.
A imagem do herói na tragédia tentará tornar visível aquilo que está oculto, de uma realidade
mítica, tem como função atualizar a potência do além no mundo terreno. E através da expurgação de
sua hýbris (excesso, desmedida), promove uma purificação comunitária. Pois, segundo a autora Rachel
Gazolla:
“A identidade de cada um é a do todo, de modo que o erro cometido não é
responsabilidade de um homem, mas é previsível por todos, aceito e
expurgado conjuntamente, apesar de praticado por alguns.” (GAZOLLA:
2001)
Assim a obra trágica buscava, através de um ritual teatral - que era acompanhado por música,
narrativa mítica, danças e atuação cênica - levar o espectador a reflexão da hamartía comunitária e
individual, além de fazê-lo pensar sobre o destino, sempre superior à vontade humana, e outras
questões que eram levantadas sobre a relação da divindade e o humano no contexto coletivo.
O herói trágico é o ser que representado na tragédia, comete a hamartía, a falha ou o erro, por
causa de uma ação desmedida, que normalmente é uma ação de forças externas, precisa buscar a
purificação. Segundo Gazolla, “o erro tem um valor e uma vivência comunitária expressos na figura do
herói trágico” (2001; p.26). Desta forma a purificação do herói não é uma opção, é uma necessidade
comunitária que leva o espectador à visualização da ação káthartica e consequentemente, ao
reconhecimento e afinal ao aprendizado. Assim, alcança uma purificação ao mesmo tempo pessoal e
coletiva. Porém, nossa abordagem nesta comunicação se restringirá ao processo de kátharsis do herói
para alcançar a divinização e sua representação na tragédia por Sófocles.
Segundo Walter Burket, a palavra héros na etimologia grega é obscura, mas encontramos
duas utilizações: a primeira é presente na epopéia antiga, que designa os heróis que são recitados nos
poemas pelos aedos (cantor, poeta responsável por recitar as epopéias), as quais possuem uma ação
sobre-humana, a segunda utilização da palavra era destinada àqueles que já faleceram e cujo túmulo
era considerado um local que emanava um tipo de poder. Assim o culto aos heróis se deu a partir que
alguns herôon (túmulos), que passam a se destacar das outras sepulturas. Estes túmulos
extraordinários recebiam sacrifícios e dádivas votivas, práticas que se tornaram habituais na Grécia a
partir da época helenística.
Desta forma, acredita-se que o culto aos heróis parte da idéia, desenvolvida a partir influência
da poesia épica, de que esse ritual surge no momento da constituição da polis grega. Destarte, no
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período clássico os heróis são entendidos como um grupo, constituído por semi-deuses, em sua
maioria, que ultrapassam o limite do mundo humano por terem a capacidade de encontrar-se em
hýbris, idéia que encontraremos nas tragédias. Mas havia uma barreira intransponível entre os heróis e
os deuses, salvo a exceção de Héracles. Este não possuiu nenhuma sepultura que lhe fosse
designada e que tenha sido descoberta, mas sua história foi difundida por todo limite do mundo grego,
ou o que entendemos como tal, e além dele. Héracles era considerado por Píndaro como héros theós,
pois ao mesmo tempo em que recebia culto como herói recebia cultos destinados aos deuses. É
interessante notar que no primeiro momento não existiam poesias que se destinavam exclusivamente
ao relato das proezas de Héracles. Mas no período Clássico entretanto passa a ser utilizado
amplamente nas construções das narrativas trágicas, que hoje persistem na obra de dois
tragediógrafos: Sófocles e Eurípides. Apesar de serem contemporâneos, esses dois autores
demonstram características diferentes. Iremos focar aqui a análise da tragédia As Traquínias, de
Sófocles, em que será tratada a morte do herói.
O tragediógrafo Sófocles tem a data provável de seu nascimento entre os anos 497 e 496 a.C.
(LESKY, A. 1957, p.119) Seu amadurecimento se deu no momento em que a conjuntura ateniense
passa por uma estruturação política no período clássico, após as guerras Greco-pérsicas, durante as
quais Atenas se alia a Esparta, e a outras cidades gregas, contra os Persas. Após vencer as últimas
batalhas (de Salamina e por último a batalha de Platéia), considerou-se a grande vitoriosa. Para os
atenienses que viviam nesta época, o período foi conhecido como a era gloriosa de Atenas. Neste
contexto de exaltação às vitórias passadas, nas quais a forma de governo democrático, sobre a
liderança de Péricles, parecia ter alcançado formas definidas, Sófocles produziu suas obras que
expressam alguns de seus sentimentos cívicos em relação a pólis.
Segundo a autora Rachel Gazolla, a tragédia possui finalidades “mítico-cívicas” e não somente
cívicas. Pois ela permite que se levante os questionamentos que levavam os indivíduos a reflexão das
instituições nascentes na polis. Não podemos esquecer que a Atenas desse período não é apenas
política, possui um pensamento ainda constituído pelas questões míticas. Assim a autora argumenta
que: “a encenação trágica seria, realmente, o próprio ritual transportado ao teatro, ausente dele o
sacerdote sacralizador”, ainda que se contraponha a Aristóteles, para o qual a mimeses (imitação,
representação) trágica levava os espectadores a vivenciar experiências que provocavam a purificação.
Desta maneira, Sófocles representa o processo de alcance da apotheosis pela purificação no
fogo, a partir do mito da morte de Héracles, e apresenta algumas inovações. Não se têm uma datação
específica da obra As Traquínias, acredita-se que foi produzida entre os anos de 420 e 410 a.C. A
partir da narrativa dos últimos momentos da vida do herói, a tragédia observa-se a tentativa da vontade
humana de modificar o destino, que se mostrará frustrada. Na obra, o coro é composto por donzelas de
Tráquis, a ação se centra em dois focos: em Héracles e em Dejanira, sua esposa.
A peça se inicia com a imagem de Dejanira preocupada com a ausência de seu esposo. É
Hilo, seu filho, quem traz notícias do pai, que teria servido a Ônfale, rainha da Lídia, e após essa
servidão teria partido para a invasão da cidade de Eubéia. Dejanira fala que este seria o fim dos
trabalhos de Héracles. Neste momento, vindo do oráculo de Delos e trazendo notícias do herói, chega
o mensageiro. Ele ouviu, por meio de Licas, que Héracles estava por vir vitorioso. Dejanira se sente
aliviada com a fala do mensageiro. Aqui nota-se uma característica das obras de Sófocles: depois de
um momento de tranqüilidade, vem a desgraça que envolve os personagens. Estes se verão sem ação
diante da situação trágica colocada, do qual não haverá escapatória.
Logo após chega Licas, e com ele algumas prisioneiras de Eubéia. Ele confirma a fala do
mensageiro sobre a trajetória de Héracles desde a sua partida: da sua servidão a Ônfale e da sua
invasão à Eubéia. Ao ver as prisioneiras, Dejanira sente compaixão por estas e especialmente por Iole.
Percebe-se certa ironia de Sófocles, que faz com que Dejanira sinta piedade por aquela que divide o
amor de seu companheiro. Depois do relato de Licas, o mensageiro falará a verdade a Dejanira, pois
Héracles invadiu a Eubéia pela jovem Iole. Dejanira se entristece, mas surge uma esperança, já que
ela havia guardado um pouco do sangue do centauro Nesso, morto por Héracles por uma flecha com o
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veneno da Hidra. O centauro havia dito que seu sangue tinha o poder de reaproximar o esposo da
esposa, quando este perdesse o amor por ela. Nota-se aqui outra ironia do autor: o veneno realmente
fará com que Héracles não traia Dejanira, pois este morrerá e não será de outra mulher.
Dejanira não será colocada na obra como culpada de suas ações, pois ela será o instrumento
usado pelo destino para cumprir os desígnios dos deuses. Ela não é culpada, na peça, por provocar a
morte do herói, pois se vê envolvida pelas forças sobre-humanas, e não encontrará escapatória das
situações que lhe são apresentadas.
Então Dejanira faz uma túnica para Héracles, na qual coloca o sangue de Nesso, e manda
Licas levar para seu esposo. Após um tempo, ela percebe que algo está errado, pois a lã que estava
embebida com o sangue desapareceu. Depois chega Hilo, confirmando os receios da mãe. Mas ele
chega culpando-a de fazer mal ao seu pai. Ela se cala enquanto seu filho conta as desventuras de
Héracles, em seu sofrimento causado pelas dores de seu presente. Após o termino do relato ela se
retira para o palácio silenciosamente. Depois a ama conta ao coro os últimos momentos de Dejanira e
fala de seu suicídio. Esse é o escape mostrado por Sófocles, tanto no caso de Héracles quanto no de
Dejanira: ambos se libertam da situação trágica pela morte.
Sófocles novamente mostra a grandiosidade de Dejanira, que momentos antes de seu suicídio
se lamenta não pelo próprio destino, mas por ter que abandonar o seu lar. Ela morre solitária,
desamparada pelos seus parentes e com a culpa de ter levado seu amado ao sofrimento e
consequentemente à morte. Mostra-se aqui outra provável ironia, pois na tentativa de salvar seu lar,
Dejanira acaba levando-o à ruína aparente, já que só será um instrumento para os desígnios divinos,
desconhecidos aos humanos comuns. Assim o homem não pode escapar da situação que lhes é
imposta pelos deuses, cabe a ele aceitar sua posição.
Quando Hilo fica sabendo da morte de sua mãe já tinha consciência da injustiça que lhe havia
imputado. Héracles chega a Tráquis, pede para ver sua esposa, em busca de vingança. Hilo explica a
seu pai que Dejanira era inocente. Neste momento, o herói lembra-se do oráculo que havia relevado
que:
“não viria a morrer às mãos de um homem vivo, mas de alguém já morto que
habitasse o Hades. Esse alguém é sem dúvida, o Centauro que, de acordo
com o oráculo divino, estando já morto, pôs deste modo fim à minha vida.”
(Sófocles. Traquínias, v.1159-1164).
Após este momento de reconhecimento, Héracles pede a Hilo que construa uma pira no monte
Eta e coloque-o no fogo, e ainda que seu filho se casasse com a jovem Iole. Sófocles não relata o que
acontece depois da morte do herói, mas como os espectadores das tragédias já possuíam um
conhecimento da tradição mítica, acreditamos que não se fazia necessário entrar nos pormenores de
sua ascensão ao status de divindade do Olimpo. O tragediógrafo parece aqui ressaltar a apothéosis,
processo no qual o herói é purificado, pelo fogo, de sua natureza humana que retrata as impurezas
que precisam ser retiradas do semideus para que ele complete sua jornada predestinada e se
transforma em deus.
Na obra, o homem é colocado no centro das discussões, onde se ressalta a questão do
comportamento humano e os núcleos dos personagens são apresentados em pares. Segundo
Jacqueline de ROMILLY (1997; p.79), a obra As Traquínias é composta por duas partes. Na primeira,
a imagem de Dejanira é dominante e esta é consumida pela espera de seu esposo. Mas ela acaba por
provocar a morte de seu esposo e se mata. Na segunda parte, tem-se o regresso de Héracles, que
sofre as dores ocasionadas pelo veneno. Nesse ponto percebe-se a diferença entre os dois
personagens: de um lado a esposa submissa, dedicada e preocupada, do outro lado tem-se o herói
sobre-humano, corajoso, que sofre as dores de um erro de sua esposa enganada por Nesso.
Os deuses não aparecem agindo diretamente na obra de Sófocles, mas isso não significa que
ele propõe um afastamento dos deuses em relação aos homens. Eles se revelam, mas fora das
impurezas do mundo terreno, escapando ao tempo e à sua imperfeição. A catástrofe em sua peça
surge através da desarmonia sofocliana entre a vontade do homem, mostrado por Dejanira, e o
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destino, imprevisível potência divina. Héracles será na obra aquele que sofre a ação do destino e as
ações dos outros personagens giram em torno dele, o afetam diretamente, e mesmo as cenas que ele
não está presente são remetidas a ele.
Os rituais de purificação tem por objetivo impor limites para o indivíduo, pois, para este
participar de um determinado grupo social, é necessário se manter limpo, segundo os padrões daquele.
A partir do momento que se é considerado impuro, ele é excluído do convívio no qual se encontrava
inserido. Por isso a limpeza segundo Walter Burket, “é um processo social” (p.166)
Segundo este autor os rituais de purificação são introduzidos nos mitos com a função de retirar
dos indivíduos as impurezas que são causadas por determinadas situações. No mito de Héracles
vemos que os rituais de purificação são aplicados em situações de crise, de loucura (quando ele mata
os filhos e a mulher), de sentimento de culpa (morte acidental de Éunomo, filho de Arquíteles, que
levou o herói ao exílio em Tráquis), de doença (após matar Íficles a doença toma conta do herói e este
tem que se purificar).
Assim depois de completar a sua jornada terrestre, Héracles precisa passar pelo último
momento de provação, que será a morte pelo fogo. Essa será a forma kathártica pela qual alcançará o
status de deus, através da apotheosis.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS:
A) Documentos Textuais:
SOFÓCLES, As Traquínias, Trad: Maria do Céu. Brasília: Universidade de Brasília, 1996.
EURÍPIDES, Héracles. Tradução: Cristina R. Franciscato. São Paulo: Palas Athena, 2003.
B) Obras Gerais:
BAUZÁ, Hugo F., El Mito Del Héroe: Morfologia y Semântica de La Figura heróica, Buenos Aires:
Fondo de Cultura Econômica de Argentina, S. A., 1998.
BURKERT, W. Religião Grega na Época Clássica e Arcaica. Lisboa: Edição da Fundação Calouste
Gulbenkian, 1993. p. 164- 417.
CHARTIER, R., A História Cultural – Entre Práticas e Representações. RJ: Bertrand Brasil. 1990. p.13
– 28.
GAZOLLA, R., Para não Ler Ingenuamente uma Tragédia Grega – Ensaios sobre aspectos do trágico.
São Paulo: Edições Loyola, 2001
GRIMAL, P., A Mitologia Grega. São Paulo: Brasiliense, 1982.
GRIMAL, P., O Teatro Antigo. Lisboa: Edições 70, 1978.
LESKY, A., A Tragédia Grega. São Paulo: Perspectiva, 1990.
MOSSÉ, C., Atenas: A História de uma Democracia. DF: Universidade de Brasília, 1982 – 2º Ed. p. 571.
PEREIRA, I., Dicionário Grego – Português. Largo das Teresinhas: Apostolado da Imprensa, 1998, 8º
Ed
ROMILLY, Jacqueline de. A Tragédia Grega. Lisboa: Edições 70, 1997.
VERNANT, J. P., Entre Mito e Política. SP. Edusp. 2002. p. 31 – 41.
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