Artigos JESUS, O JUDEU DO SEU POVO Antonio Carlos Coelho * RESUMO: Constata-se na história a dificuldade em aceitar a condição judaica de Jesus, filho do povo de Israel e do próprio judaísmo. Com as descobertas arqueológicas do último século, obteve-se maior conhecimento sobre o modo de vida, costumes e leis dos tempos bíblicos. Temse, então, uma melhor compreensão de quem é Jesus. Propõe-se uma análise mais judaica do que cristã – assente sobre o título. Jesus é descrito como judeu e integrado em sua cultura. Destaca-se a prática da cura, tida como um atributo do homem que se relacionava diretamente com Deus. Também as pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura como na forma de ensinar. Não se pode afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica, que o mestre dos cristãos era um‘prushim’, todavia podemos reconhecer a semelhança em sua prática e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu ou não, Jesus era um ‘darsham’ – interprete da Torá – possuía discípulos e ensinava por onde passava. PALAVRAS CHAVE: Jesus judeu; Jesus messias; Pregação farisaica; Cultura judaica. ABSTRACT: We looked at the story difficult to accept the Jewishness of Jesus, son of Israel and of Judaism itself. With the archaeological discoveries of the last century, we got more knowledge about the way of life, customs and laws of biblical times. So we can have a better understanding of who Jesus is. We propose here further analysis Jewish than Christian - based on the title. Jesus is described as Jewish and integrated into their culture. Also we highlight the practice of healing, regarded as an attribute of man which related directly to God. Also the preaching of Jesus followed the Pharisaic style, both in its structure and in the way of teaching. We may not say categorically, because there is no historical reference that the master was a Christian ‘prushim’, but we can recognize the similarity in their practice and its proximity to the thought of Hillel. A Pharisee or not, Jesus was a ‘darshan’, an interpreter of the Torah, and he had disciples, and also taught wherever he went. KEY WORDS: Jewish Jesus, Jesus Messiah; Preaching Pharisaic; Jewish Culture. * Especialista em arqueologia bíblica e tradição judaíca, em Israel; Professor de Ecumenismo e diálogo interreligioso, no Studium Theologicum, e Diretor do Instituto Ciência e Fé (Curitiba). 9 INTRODUÇÃO Antes de começar a falar sobre o tema desta manhã - “Jesus, o judeu” - recordo que estou assumindo um dos temas que tinham sidos reservados ao Doutor Pablo Berman1, primeiro convidado para tratar deste assunto nesta 32ª Semana Teologia. Sinto-me, portanto, no dever de cuidar para que minha apresentação observe a neutralidade que teria Dr. Berman ao tratar sobre Jesus. Enfatizarei aspectos que o caracterizam como um fi de Israel, sem a preocupação com questões do âmbito doutrinário e teológico. Há alguns anos percebia que entre religiosos e leigos católicos era comum a difi em aceitar a condição judaica de Jesus. Ora, como poderiam ter essa difi se a Bíblia apresenta a genealogia de Jesus e o coloca como fi do povo de Israel? Na realidade nunca houve essa dúvida entre os cristãos, mas não podemos esquecer que por séculos o cristianismo..... 10 Foi só após a Segunda Guerra Mundial, com a tomada de consciência da Europa cristã sobre os horrores da Shoá perceberam o quanto a religião contribuiu ou falhou em seus princípios humanitários. Vinte anos após o término do confl o mundial o Concílio Vaticano II apelou para a necessidade urgente para uma mudança de postura diante do judaísmo. Promoveu, assim, a aproximação fraterna e o conhecimento da religião berço do cristianismo. Desta forma, a condição judaica de Jesus deixou de ser um tabu dentro do ambiente católico. Apesar da nova e sincera postura da Igreja diante do judaísmo e das outras religiões não cristãs, os meios acadêmicos não se sentiram sufi temente motivados para pesquisar sobre a condição judaica de Jesus. De certa forma isso é compreensível, pois não existem informações sobre Jesus. Sabemos o que sabemos pelo Evangelho. Seus autores não tiveram a preocupação em retratar a vida de um pregador judeu, e sim, daquele que a comunidade cristã reconheceu como o fi de Deus e Messias anunciado pelos Profetas. Embora se reconheça a importância do conhecimento do Jesus da História, muitos acadêmicos, fundamentalistas, insistem em afi mar que qualquer investigação sobre o Homem da Galiléia está fadada ao fracasso, desestimulando, assim, qualquer pesquisa histórica, restringindo o estudo sobre Jesus ao âmbito da teologia e do dogma. Próximo aos fundamentalistas está o teólogo luterano Rudolf Bultman (1884-1976) que, apesar de desacreditar da possibilidade de se conhecer o homem Jesus, oferece uma possibilidade — em algum momento isso será possível: “Estou efetivamente convencido de que, no momento, não podemos saber quase nada que se refi a à vida e à personalidade de Jesus, visto que as fontes cristãs primitivas não revelam nenhum interesse por esses temas”. 2 Se considerarmos a impossibilidade de se saber da vida do homem Jesus por ausência de informações nos textos evangélicos, teríamos que descartar pelo mesmo motivo, a chance de se conhecer outros personagens bíblicos. Se sobre Jesus temos poucas informações, o que dizer, então, sobre os Patriarcas e Moisés? No entanto, não conheço nenhuma objeção sobre as “descrições históricas” de Abraão ou Moisés, embora, sobre eles, muito mais do que Jesus há ausência de fontes históricas. Não há dúvida que a paixão de alguns estudiosos desestimulou as pesquisas sobre Jesus. Paixão vencida pelo tempo. É verdade que temos um alcance mínimo à biografi de personagens bíblicos. Todavia, as descoberta arqueológicas do último século, principalmente a partir dos estudos de Kathleen Kenyon3 e outros arqueólogos e historiadores, obtivemos maior conhecimento sobre o modo de vida, costumes, leis, dos tempos bíblicos. Isto possibilita situar os patriarcas e seus descendentes no cenário em que viveram e traçar um perfi aproximado das suas vidas, bem como superar os anacronismos do texto sagrado. Com maior precisão podemos fazer o mesmo em relação a Jesus. As fontes históricas do primeiro século são mais abundantes e retratam mais precisamente o ambiente da época. Portanto, encontrar Jesus, o judeu da Galiléia não é impossível, afi , ele não teve uma vida excêntrica a ponto de não se poder falar sobre o homem Jesus. O Rabino Berman, em sua palestra na manhã de ontem, ao se referir à condição judaica de Jesus disse:“Ela (a condição) é um problema para os cristãos e para os judeus”. — E é exatamente sobre esse problema, ou problemas, que tratarei neste texto. Veremos o que difi ou, por muitos séculos, situar e aceitar a condição judaica daquele que é centro da fé cristã. Difi Para os judeus, a difi em relação a Jesus não está na sua condição histórica, mas sim, no que ele representou ao longo da história. É o Jesus do cristianismo, o Jesus Messias e Filho de Deus que causa o afastamento e a perda de interesse por parte dos estudiosos judeus. Tanto que, são raros os autores judeus que situam Jesus na sua condição judaica. Por muitos séculos as igrejas se apresentaram como uma fé superior e completa, colocando-se em condição oposta o judaísmo (projeto de salvação 11 está completo – Cristo superou o judaísmo – e, o judeu perfeito é o cristão, como afi mam acintosamente alguns evangélicos excluindo da salvação todos aqueles que não são “verdadeiramente cristãos”). Duas estátuas colocadas numa das portas da Catedral de Strasburg traduzem o sentimento vitorioso da Igreja sobre a Sinagoga. Tal soberba dos cristãos, manifestada por séculos de preconceitos e perseguições às comunidades judaicas da Europa, contribuiu para uma imagem negativa do cristianismo. Os que patrocinavam as perseguições eram os mesmos que, em suas igrejas, pregavam a Boa Nova de Jesus. Também, devemos ter em conta, que foi o cristianismo que nasceu do judaísmo e, portanto, o interesse sobre sua gênese e contexto é cristão e não judaico. São os cristãos que, para conhecer suas origens e fundamentos da fé, interessam-se pela vida do homem de Nazaré. 12 Após o Concílio Vaticano II e a sincera aproximação dos Papas João XXIII e João Paulo II aos judeus, houve um maior interesse sobre a pessoa de Jesus e o seu signifi . Isso contribui, em parte, para uma reabilitação da imagem de Jesus aos judeus, mostrando-o como homem religioso, fi à tradição judaica, bem como para superar anos de confl os entre Igreja Católica e Judaísmo. O que sabemos de Yeshua Ben Iosef? Os frutos das pesquisas modernas multiplicaram-se em publicações que, apesar de muitas não considerarem aspectos bíblicos, oferecem subsídios consistentes para o conhecimento do ambiente social e cultural do primeiro século da nossa era. Tais pesquisas superam em muito a difi de se encontrar o Galileu do século I. Pelo estudo comparado, como se faz com outros personagens bíblicos, é possível nos aproximarmos do homem Jesus. As pesquisas dos textos antigos referentes aos anos que envolvem a sua vida, as descobertas da Arqueologia, os pergaminhos do Mar Morto e outras fontes, nos permitem construir um cenário cultural do tempo em foco e situar Jesus em seu ambiente, saber como vivia e o que fazia. Os evangelhos não são biográfi os. As referências históricas sobre Jesus neles contidas são insufi tes para uma biografi mesmo porque, não foi essa a intenção dos seus autores. O personagem principal dos retratado nos textos dos quatro evangelistas é o “ressuscitado”, o Jesus da experiência comunitária – o que está bem explicito nos textos cristãos. Mesmo assim, contamos com algumas referências sobre a história e o cotidiano d e Jesus. Poucas, mas o sufi te para mostrá-lo como humano e a sua vida junto aos contemporâneos. Os relatos inserem Jesus no berço da família de Davi descrevendo seu nascimento na vila de Belém4. Sua infância se passa na Galiléia, mais precisamente na cidade de Nazaré. Quando adulto, após iniciar sua vida pública, Jesus aparece como um pregador itinerante. Percorria as regiões próximas ao Mar da Galiléia – cidades como Tiberíades, Cafarnaum, Corazin... e algumas um pouco mais distante na Decápole, ao norte - Cesárea de Felipe, ou a oeste Nazaré e Caná. Três vezes por ano5 (pelo menos) ia a Jerusalém, ocasiões em que passava por cidades do caminho, Siquém, Jericó, Betânia. A Galiléia era uma província ao norte de Israel, governada por Herodes, o Grande, até o ano 4 a.C. Posteriormente foi governada por Herodes Antípater. Foi crucifi por ordem de Pôncio Pilatos, prefeito da Judéia, provavelmente nos primeiros anos da década de 30. Durante os anos da vida pública de Jesus, Yosef Bar Kayafa (Caifás) exercia o sumo-sacerdócio, a presidência do Sanhedrim e a lideranças dos Saduceus. Tibério César, sucessor de Júlio César, era o imperador de Roma. Valério Graco e Pôncio Pilatos administravam a província romana da Síria e o território do atual Estado de Israel (Judéia, Samária, Galiléia) e a Peréia. Os evangelhos dão destaques aos grupos político-religioso dos fariseus e dos saduceus e, outros grupos de menor importância nos textos como, os zelotas e os “Issi’im” essênios (curadores) e os herodianos. A presença romana não era bem aceita em Israel, principalmente pelos grupos que herdaram, de certa forma, o espírito libertário dos Macabeus: os pacífi os fariseus, com forte caráter nacionalista e invejável aceitação popular, e os zelotas, grupo que fazia oposição direta aos romanos através de ataques às guarnições e autoridades romanas. As relações entre Jerusalém e as regiões da Samária e Galiléia nunca foram as melhores. Os que vinham dessas duas regiões situadas ao norte de Jerusalém carregavam a fama de revoltosos e separatistas. Grupos de zelotas tinham origem nessas regiões e levava os romanos a desconfi daqueles nortistas que falavam o aramaico. Acredita-se que entre os seguidores próximos a Jesus havia um zelota6. Duas escolas rabínicas (farisaicas) dominavam as discussões entre fariseus e seus discípulos. Eram as escolas de Shammai, mais rigorosa na interpretação da Halachá e, a de Hillel, um pouco menos ortodoxas nas questões legais. Hillel, 13 após sua morte no ano 10 d.C. foi sucedido por Gamliel, “o Velho”, mestre de Shaul (Paulo de Tarso). Na infância e juventude: Temos referências nos textos sobre eventos que confirmam que Jesus e seus pais guardavam os costumes e preceitos judaicos. Por exemplo: Noivado dos pais (Lc 1; 27). Foi circuncidado no oitavo dia. (Lc 2; 21) Passou pelo rito de Pidyon ha’ben – resgate dos primogênitos (Lc 2; 23). 14 Fez o bar mitzvá – Jesus passou pela prova dos doutores – isto é – mostrou estar preparado para assumir a maioridade judaica. Jesus observava o mandamento das festas de peregrinação – shalosh regalim - indo em peregrinação ao Templo três vezes ao ano. (Mt 20;17 – Mc 10;32 – Lc 18;31– Jo 12;12) Maria – Mirian – “guardava todos esses acontecimentos em seu coração” – como uma mãe piedosa e responsável pela formação judaica de seu filho7. “Jesus progredia em sabedoria e em estatura, e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2;32). Este é um ideal judaico (entre os religiosos). Buscar a sabedoria através do estudo, da oração e da justiça é o que todo judeu deve fazer, segundo o ensinamento da Torá e dos mestres do Talmud. Um rabi só teria autoridade junto aos seus discípulos se esse entregasse sua vida à busca da sabedoria e da santidade. O evangelista apresenta Jesus, desde a sua infância, como um mestre que, à medida que ganhava porte físico, preparava a sua missão com uma vida dedicada às coisas de Deus. Os evangelistas tiveram o cuidado de mencionar ritos próprios da vida de um garoto, filho de uma família religiosa. Tais menções confirmam o vínculo étnico religioso de Jesus ao povo judeu. Todavia, essas referências têm suas interpretações de cunho cristão, mas, não deixam de ser indicadoras de reais práticas e sentimentos próprios dos judeus religiosos. As curas: As curas milagrosas estão descritas na Bíblia. Não eram estranhas no meio judaico dos tempos antigos. Elas eram interpretadas como respostas divinas ao poder do mal, uma vez que, por falta de outro conhecimento, acreditavam que certos males eram frutos do pecado. Assim é o caso da cura de Naaman, o leproso (2Rs 5). As curas eram realizadas por toques e palavras ou, às vezes, a distância, como é o caso da cura que Jesus promoveu à filha do soldado romano. Elas, também, estavam vinculadas à fé do que procurava a intercessão divina. Os escritos judaicos também relatam curas. Por exemplo: Aconteceu de, quando o filho de Rabi Gamliel adoeceu, este enviou dois dos seus discípulos a Rabi Hanina ben Dosa para que este rezasse. Quando os viu, Rabi Hanina dirigiu-se ao quarto superior da casa e rezou. Quando desceu, disselhes: - Vão, pois a febre o deixou. Eles, então, disseram: - Tu és um profeta? Ele respondeu: - Não sou profeta nem filho de profeta, mas tenho a minha bênção: se a minha oração for fluente na minha boca, sei que o homem doente será favorecido; se não, sei que a doença é fatal. Os discípulos anotaram a hora em que estiveram com Rabi Hanina. Quando voltaram Rabi Gamliel contaram sobre o encontro e em que hora se deu. E Rabi Gamliel disse: - Céus! Vocês nada tiraram nem acrescentaram, mas foi assim que aconteceu. Foi nessa hora que a febre o deixou e ele pediu água para beber. (B.Ber 34b) Assim como eram aceitas as curas entre os judeus, aquelas promovidas pelo Judeu de Nazaré eram igualmente vistas como uma interferência divina sobre o mal. 15 Aqui é importante destacar que, a prática da cura, tida como um atributo do homem que se relacionava diretamente com Deus – assim como eram os profetas. A Galiléia – só esta região - era berço de uma corrente carismática do judaísmo, e entre seus membros, havia os que eram capazes de realizar curas independentes de qualquer mediação institucional. Portanto, isto parece ser um fenômeno localizado, vinculado a corrente carismática dentro do judaísmo dos primeiros séculos, confirmada por Flávio Josefo em Antiguidades Judaicas XVIII. Josefo refere-se a Jesus como “realizador de obras maravilhosas”, semelhante o que está nos evangelhos de Mateus e Lucas (Mt11;2 – Lc 24; 19) 8 As repreensões feitas pelos judeus a Jesus pelo fato dele curar no Sábado estavam relacionadas com as diferentes correntes de interpretações sobre o que era permitido ou não fazer no Sábado. Uma das correntes, mais rigorosa, defendia que nada poderia ser realizado no dia de Sábado. Outra, mais flexível, ensinada pela Casa de Hillel, julgava um dever a realização de trabalhos em favor da vida, fosse ela humana ou animal9. 16 Rabi Meir, um dos sábios da Mishná, ensinava que o valor da vida é superior ao valor do Sábado. E, não foi só ele a ensinar. Muitos outros orientavam para que a observância do Sábado e das datas festivas não comprometessem o trato com a vida. Aliás, a mensagem bíblica e a legislação hebraica são muito claras ao defender o valor da vida, sobrepondo a toda Halachá(Lei). Portanto, o que lemos nos evangelhos sobre Sábado e sua observância não destoa do judaísmo farisaico (ensinado por Hillel) e, muito menos, do judaísmo rabínico posterior à destruição do Templo. A Pregação: As pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura como na forma de ensinar. Havia o pregador/mestre itinerante e havia aqueles que ensinavam nas sinagogas e nas escolas criadas pelos fariseus cento e cinquenta anos antes da era cristã10. Esses mestres usavam métodos e construções diferenciadas para cada situação: o colar, a abertura, a parábola. Métodos todos usados por Jesus em suas pregações feitas em torno do Mar da Galiléia e Jerusalém e nas sinagogas em que frequentava costumeiramente. Suas referências eram próprias dos rabinos do seu tempo: referências às Escrituras, situadas no cotidiano, nas coisas da natureza - água – vento, nos fatos da vida. Assim era transmitida a Lei Oral. Por esta forma de ensinar conquistou a aceitação popular. Suas palavras estavam de acordo com a Tradição Oral aceita e difundida pelos fariseus aos seus discípulos. Sua orientação assemelhava-se com a flexibilidade de Hillel – e, também, com a interpretação da Torá e da Halachá (Lei). O exemplo mais clássico está no texto sobre “o maior mandamento”. Já havia, desde os tempos dos profetas, o interesse por encontrar mandamentos que sintetizassem os 613 mandamentos da Torá. No tempo de Jesus era corrente a discussão sobre qual seria “o mandamento de ouro”, aquele suficiente para traduzir a essência das Escrituras. Uns afirmavam ser – “Lembra-te que foste criado a imagem e semelhança de Deus” e, outros defendiam –“Amarás o Senhor com todo seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu poder; e ao próximo como a ti mesmo”. A adoção de um ou outro mandamento identificava a escola farisaica, a Casa de Shammai ou a Casa de Hillel. Relação de Jesus com os fariseus: Na conferência do Doutor Pablo ficou bastante claro a importância dos fariseus para o judaísmo do primeiro século e, também, para a continuidade da religião após a destruição do Templo. No entanto, foi com os fariseus – prushim – com quem, segundo os evangelhos, Jesus teve as discussões mais valorizadas. Temos que considerar o papel e a aceitação dos fariseus no meio popular da época. Eles eram, antes e depois da destruição do Templo, os que mais exerciam influência no meio popular. Eram, também, aqueles que mais se aproximavam, tanto na prática como na doutrina, do modo dos primeiros pregadores cristão. Lembre-mos que Jesus se avizinhava do pensamento de Hillel, inclusive, nos evangelhos há interpretações iguais ao do mestre fariseu. Sem dúvida, os textos cristãos traduzem “uma competição” entre o grupo judaico e a primeira comunidade cristã, isto é, a suposta inimizade entre Jesus e os fariseus refletem a relação posterior à morte de Jesus – refletem os embates entre a primeira comunidade cristã e os fariseus ou os cristãos nascentes e os judeus durante o período da guerra com Roma. Quanto ao judeu Jesus, é explicita a sua forma farisaica de ensinar. Não podemos afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica, que o mestre dos cristãos era um prushim, todavia podemos reconhecer a semelhança em sua prática e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu ou não, Jesus era um darsham – interprete da Torá – possuía discípulos e ensinava por onde passava. 17 Para que um mestre da Torá tivesse credibilidade era necessário que não vivesse do ensino, isto é, não cobrasse por seu trabalho de mestre, logo, era preciso que tivesse uma profissão. Hillel, por exemplo, era um vendedor de água. Buscava água na fonte e entregava nas casas. Disso tirava seu sustento. Os evangelhos não falam da atividade de Jesus. Talvez, ganhou a vida como carpinteiro, assim como fez seu pai. Todavia, na sua vida pública, os textos o situam próximo ao mar da Galiléia, junto aos pescadores. Embora nenhum escrito confirme que Jesus tirava seu sustento de alguma atividade, há escritos judaicos do período do I d.C. que alertam sobre a proibição de se cobrar pelo ensino da Torá. 18 Os fariseus implantaram escolas “públicas” em muitas cidades e vilas de Israel. Eram escolas para meninos. Ensinavam a ler e escrever – desde Ezra o ensino da Torá ganhou importância no ambiente judaico. Todo homem deveria saber ler para estudar a Torá, o que era uma forma de acolher a revelação divina. Conforme o Evangelho Jesus sabia ler – leu na sinagoga – sabia escrever – deve, portanto, ter freqüentado alguma escola “pública” na vila de Nazaré, onde aprendeu com mestres fariseus. O que disse nesta manhã da Semana Teológica, não esgota o tema, mas já é uma boa dose. Espero ter, juntamente com Rabino Pablo Berman, oferecido subsídios para uma melhor da história, das instituições judaicas do período em que Jesus e os primeiros autores cristãos viveram. Espero, também, que a melhor compreensão do judaísmo, principalmente do judaísmo do primeiro século da nossa era, contribua para recuperar séculos de mal entendidos entre judeus e cristãos e, ainda, que católicos possam encontrar as suas raízes espirituais, pois, lembrando Paulo na carta aos romanos, nossas qualidades vem de uma boa origem - raiz – que é o judaísmo. (Endnotes) 1 Dr. Pablo Berman é Rabino da Comunidade Israelita de Curitiba. 2 Vermes, Geza; Jesus e o mundo do judaísmo, p.12, Ed. Loyola, São Paulo, 1996. 3 Kathleen Mary Kenyon, arqueóloga inglesa (1906-1978) destacou-se por suas pesquisas na cultura do neolítico no Crescente Fértil e, também, por suas escavações em Jericó. Kathleen Kenyon deu à arquelogia bíblica o cunho e seriedade científica, afastando-se da ideologia religiosa que marcaram as pesquisas anteriores. A Arqueologia bíblica visava, antes de Kenyon comprovar que as histórias da Bíblica eram cientificamente comprováveis. 4 Não temos nada que garanta ser Belém o local do nascimento de Jesus. Não há registros históricos de um recenseamento exigido por ordem de Roma, nem mesmo uma lógica que explique o dominador promover o deslocamento de pessoas a troco de um censo. 5 Afirmamos três vezes baseados na obrigação judaica de peregrinar a Jerusalém nas festas de Pessach, Shavuot e Sukot. 6 O termo zelota ou zelote vem do hebraico kanai, que significa seguidor, zeloso – aquele que zela pelo nome de Deus. Portanto, não podemos afirmar com segurança se o qualificativo atribuído ao apóstolo Simão( Lc 6; 15 e At. 1; 13) referia-se a sua pertença ao grupo revoltoso (de zelo nacionalista) ou se era considerado alguém de zelo religioso. 7 É de responsabilidade da mãe judia transmitir aos filhos a educação, os valores da religião e da tradição aos filhos. Daí se reconhecer como judeu aquele que nasce de mãe judia. No livro do Êxodo encontra-se um fato que ilustra o cuidado com a educação da criança e o papel da mãe na transmissão da herança hebraica ao filho, uma herança que se transmite como alimento que dá a vida e crescimento aos pequenos: A irmã dele(Moisés) disse à filha do Faraó:“Queres que eu vá chamar uma ama de leite entre as mulheres dos hebreus? Ele poderia amamentar o menino para ti”. Ex 2; 7 8 Vermes, Geza: Jesus, o Judeu, p. 84, Ed. Loyola, São Paulo, 1990. 9 Ver referências sobre Hillel e Shammai em Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Hillel_and_ Shammai; e na Jewish Encyclopedia: http://www.jewishencyclopedia.com/search?utf8=%E2%9 C%93&keywords=Bet+Hillel+and+Bet+Shammai&commit=search 10 Já no tempo de Ezra existiam escolas para se ensinar a Torá. Mas foram os fariseus que se empenharam em espalhar tais escolas por todo o território de Israel. 19 20