o primeiro homem de roma

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O PRIMEIRO HOMEM DE ROMA
COLLEEN McCULLOUGH
O PRIMEIRO HOMEM DE ROMA
Tradução de
MARTA TEIXEIRA PINTO
Para Frederick T. Mason,
querido amigo, excelente colega, homem honesto,
com amor e gratidão.
Nota para o leitor: Com o intuito de melhor dar a conhecer o mundo
da Roma Antiga, foram incluídos neste livro vários mapas e ilustrações.
A sua localização está indicada na página 11. Existe uma lista das personagens principais que começa na página 21. Há uma nota da autora na
página 881. Se quiser saber mais acerca do contexto histórico de O Primeiro Homem de Roma, consulte a página 883, onde encontrará um glossário
de palavras latinas e termos invulgares.
O PRIMEIRO ANO — 1 10 A.C.
D U RA N TE O CO N SUL AD O D E
M A RCO M INÚ CI O RUFO
E
E SP Ú RIO P O STÚ M I O ALBI N O
Não tendo compromissos pessoais com nenhum dos novos cônsules, Caio Júlio César e os seus filhos juntaram-se ao cortejo que começava
mais perto de sua casa, o do cônsul sénior, Marco Minúcio Rufo. Ambos
os cônsules viviam no Palatino, mas a casa do cônsul júnior, Espúrio
Postúmio Albino, localizava-se numa zona mais elegante. Dizia-se que as
dívidas de Albino aumentavam exponencialmente, o que não era de
admirar; era esse o preço de ser cônsul.
Não que Caio Júlio César estivesse preocupado com o pesado fardo
das dívidas a que ficaria sujeito durante a sua carreira política; e também
não era provável que os seus filhos viessem a ter preocupações dessa natureza. Tinham-se passado quatrocentos anos desde que um Júlio se sentara na cadeira curul de marfim dos cônsules, quatrocentos anos desde
que um Júlio conseguira juntar essa quantidade de dinheiro. A linhagem
ancestral juliana era tão excecional, tão augusta, que as sucessivas gerações tinham deixado passar ao lado as oportunidades de encher os cofres
familiares e, com o decorrer dos séculos, a família de Júlio ficara cada vez
mais delapidada. Cônsul? Impossível! Pretor, o cargo imediatamente inferior a cônsul? Impossível! Não, um nicho seguro e humilde nas últimas
bancadas do Senado era a herança de um Júlio naqueles dias, incluindo
o ramo da família que recebera o nome de César devido ao seu cabelo espesso e abundante.
Por isso, a toga que o servo pessoal de Caio Júlio César colocou sobre o seu ombro esquerdo, envolvendo-lhe o corpo e pendendo sobre
o braço esquerdo, era a toga branca e simples de um homem que nunca
aspirara à cadeira curul de marfim de um cargo superior. Apenas os seus
sapatos vermelho-escuros, o anel de ferro de senador e a faixa púrpura
com treze centímetros de largura sobre o ombro direito da túnica distinguiam a sua indumentária da dos seus filhos, Sexto e Caio, que usavam
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sapatos comuns, anéis de sinete e uma estreita faixa púrpura de cavaleiro
sobre as túnicas.
Apesar de a aurora ainda não ter rompido, realizavam-se pequenas
cerimónias para anunciar o dia. Uma curta oração e a oferenda aos deuses do lar de um bolo salgado, colocado no altar do atrium, e depois,
quando o servo responsável pela porta anunciasse que já via os archotes
a descerem o monte, uma reverência a Jano Patúlcio, o deus que permitia
abrir a porta em segurança.
Pai e filhos saíam para a estreita viela empedrada, separando-se. Enquanto os dois jovens se juntavam às fileiras que precediam o novo cônsul
sénior, Caio Júlio César esperava que Marco Minúcio Rufo passasse com
os seus lictores, juntando-se então às filas de senadores que o seguiam.
Foi Márcia quem murmurou uma saudação a Jano Clúsio, o deus que
presidia ao fecho das portas, e foi também ela quem encaminhou os servos sonolentos para outros afazeres. Com os homens fora de casa, podia
cuidar da sua própria expedição. Onde estariam as raparigas? O som de
uma gargalhada, vindo da pequena sala de estar abarrotada que as raparigas consideravam sua, deu-lhe a resposta; e lá estavam elas sentadas, as
suas filhas, as duas Júlias, a comer um pequeno-almoço de pão barrado
com uma fina camada de mel. Como eram encantadoras!
Sempre se dissera que todas as Júlias eram um tesouro, pois tinham
o dom raro e afortunado de tornarem felizes os seus homens. E estas
duas Júlias prometiam perpetuar a tradição familiar.
Júlia Maior — chamada Júlia — tinha quase dezoito anos. Alta e senhora de uma dignidade séria, tinha cabelo louro-acobreado, apanhado
num rolo na nuca, e os seus rasgados olhos cinzentos observavam o seu
mundo com um ar sério e plácido. Era uma Júlia tranquila e intelectual.
Júlia Menor — chamada Julila — tinha dezasseis anos e meio. Era
o último fruto daquele casamento e não fora realmente bem-vinda até ter
idade suficiente para encantar os pais bondosos e os três irmãos mais velhos. Era cor de mel. A pele, o cabelo, os olhos, todos eles com suaves
gradações de âmbar. Era evidente que fora Julila quem se rira. Julila ria-se
por tudo e por nada. Era uma Júlia inquieta e pouco intelectual.
— Estão preparadas, meninas? — perguntou a mãe.
Enfiaram o resto do pão pegajoso dentro da boca, passaram delicadamente os dedos por uma taça com água e um pano, e saíram da sala atrás
de Márcia.
— Está frio — anunciou a mãe, retirando capas de lã quentes dos
braços de um servo. Eram capas pesadas e pouco vistosas.
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As duas raparigas pareciam desiludidas, mas, sabendo que de nada
valia protestar, aceitaram ser envolvidas como lagartas em casulos, apenas
com o rosto à mostra entre as pregas fulvas de tecido de fabrico caseiro.
Envolvida de modo semelhante, Márcia formou a sua pequena escolta
com as filhas e os servos e conduziu-a para a rua.
Moravam naquela casa modesta do baixo Gérmalo do Palatino desde
que o pai Sexto a concedera ao filho mais novo, Caio, juntamente com
quinhentos iugera de boa terra, entre Bovilas e Arícia: uma dotação que
garantia a Caio e à sua família os recursos necessários para manter um lugar no Senado. Mas não, lamentavelmente, o suficiente para alcançar
o cursus honorum, o percurso de honra que dava acesso ao pretorado e ao
consulado.
O pai Sexto teve dois filhos e não foi capaz de se separar de um; uma
decisão um tanto egoísta, uma vez que isto significava que os seus bens
(já diminuídos porque também ele teve um pai sentimental e um irmão
mais novo com quem teve de dividir o património) foram, necessariamente, divididos entre Sexto, o filho mais velho, e Caio, o filho mais novo. Isto significava que nenhum dos filhos podia alcançar o cursus honorum, ser pretor e cônsul.
O irmão Sexto não foi tão sentimental como o pai Sexto; e ainda
bem! Ele e a sua mulher, Popília, tiveram três filhos, um fardo incomportável para uma família senatorial. Por isso, encontrou a coragem necessária para se separar do filho mais velho, entregando-o para adoção a Quinto
Lutácio Catulo, que não tinha filhos, ganhando assim uma fortuna e garantindo que o seu filho mais velho seria herdeiro de uma fortuna. O velho
Catulo, o adotante, era extremamente rico e ficou satisfeito por poder pagar uma soma avultada pela oportunidade de adotar um menino de ascendência patrícia, com excelente aparência e um cérebro razoável. O dinheiro que o irmão Sexto, o pai biológico, ganhou com a adoção do
menino foi cuidadosamente investido em terras e em propriedades urbanas, e esperava-se que produzisse um rendimento que permitisse a ambos
os filhos mais novos do irmão Sexto uma oportunidade de alcançar as
magistraturas superiores.
À exceção do determinado irmão Sexto, o problema dos Júlios Césares era a sua tendência para terem mais de um filho, tornando-se depois
sentimentais e deixando-se enredar pela situação que mais de um filho
lhes criava. Nunca tinham sido capazes de dominar os seus corações,
dando alguma da sua demasiado abundante descendência masculina para
adoção, ou garantindo que os filhos com que ficavam faziam alianças matrimoniais com famílias com muito dinheiro. Era por este motivo que as
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suas vastas propriedades de outrora tinham vindo a encolher com a passagem dos séculos, sendo progressivamente divididas em parcelas cada
vez mais pequenas para dar resposta às necessidades de dois e três filhos,
sendo algumas vendidas para providenciar dotes para as filhas.
O marido de Márcia era um Júlio César destes: um pai sentimental
e amoroso, demasiado orgulhoso dos filhos e demasiado escravizado pelas filhas para ser romana e adequadamente sensato. O filho mais velho
devia ter sido adotado e há anos que as duas raparigas deviam ter sido
prometidas em casamento a homens ricos; o filho mais novo também devia ter um contrato de casamento com uma noiva rica. Apenas o dinheiro
tornava possível uma carreira política superior. Há muito que o sangue
patrício se tornara um risco.
Não era um Dia de Ano Novo muito auspicioso. Frio, ventoso, com
chuviscos que molhavam as ruas empedradas tornando-as perigosamente
escorregadias e que intensificavam o cheiro bafiento de fogos extintos
que pairava no ar. A aurora rompera, tardia e sem sol, e este era um feriado romano que as pessoas comuns preferiam passar no interior das suas
casas apinhadas, deitadas nas suas enxergas de palha, a disputar o jogo intemporal a que davam o nome de «Esconder a Salsicha».
Se o tempo estivesse bom, as ruas estariam cheias de pessoas de todos os estratos sociais a dirigirem-se para um local preferido onde pudessem ver bem a pompa do Fórum Romano e do Capitólio; assim, Márcia
e as filhas não tiveram qualquer dificuldade em caminhar e a sua escolta
de servos não teve de usar a força para abrir passagem para as senhoras.
A minúscula viela, na qual a casa de Caio Júlio César se situava, abria-se para Clivus Victoriae, um pouco acima da Porta de Rómulo, a antiga
passagem para as muralhas da velha cidade Palatina, com enormes blocos
de pedra assentados pelo próprio Rómulo, atualmente cobertos de vegetação, escondidos sob as construções, ou marcados pelas iniciais esculpidas de seiscentos anos de turistas. Virando à direita para subir o Clivus
Victoriae em direção ao canto onde o Gérmalo do Palatino encimava
o Fórum Romano, as senhoras chegaram ao seu destino passados cinco
minutos, um pedaço de terreno vago que tinha a melhor vista.
Doze anos antes, existira ali uma das melhores casas de Roma. Atualmente, o lugar tinha poucos indícios da sua existência, apenas uma pedra
aqui ou ali, meio enterrada na erva. A paisagem era esplêndida; do local
onde os servos colocaram os bancos portáteis para Márcia e as duas Júlias, as mulheres tinham uma vista desobstruída do Fórum Romano e do
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Capitólio, com o declive sinuoso do bairro da Subura acrescentando contornos ao horizonte de colinas a norte da cidade.
— Já sabes a novidade? — perguntou Cecília, que era mulher do banqueiro Tito Pompónio. Em avançado estado de gravidez, estava sentada
perto, com a sua tia Pília; moravam duas casas abaixo da dos Césares.
— Não. Qual é? — perguntou Márcia, inclinando-se para a frente.
— Os cônsules, os sacerdotes e os áugures começaram imediatamente a seguir à meia-noite, para terem a certeza de que terminavam as orações e os ritos a tempo...
— Fazem sempre isso! — exclamou Márcia, interrompendo-a. — Se
cometerem um erro, têm de começar de novo.
— Eu sei, eu sei. Não sou assim tão ignorante! — retorquiu Cecília,
com aspereza, irritada por estar a ser posta no seu lugar pela filha de um
pretor. — Mas acontece que não se enganaram! Os auspícios foram
maus. Quatro relâmpagos à direita, e uma coruja no altar augural guinchando como se estivesse a ser assassinada. E agora o mau tempo. Não
vamos ter um bom ano, nem bons cônsules.
— Bem, podia ter-te dito isso sem a ajuda de relâmpagos ou de corujas — ripostou Márcia, cujo pai não vivera o suficiente para vir a ser cônsul, mas que, enquanto praetor urbanus, construíra o grande aqueduto que
trazia água fresca para Roma, e cuja memória se mantinha viva como tendo sido um dos maiores políticos que tinham passado pelo governo. —
Era, à partida, um conjunto miserável de candidatos, e mesmo assim os
eleitores não souberam escolher os melhores de um grupo tão fraco.
Creio que Marco Minúcio Rufo fará um esforço, mas Espúrio Postúmio
Albino! Sempre foram desadequados.
— Quem? — inquiriu Cecília, que não era muito inteligente.
— O clã Postúmio Albino — respondeu Márcia, e os seus olhos dispararam na direção das filhas para ver se estavam bem; tinham encontrado quatro raparigas pertencentes a dois dos Cláudios Pulcros: eram tantas
que não era possível ter mão nelas! E era habitual portarem-se mal. Mas
estas raparigas juntas no exterior da casa de Flaco tinham andado na
mesma escola em crianças e era impossível erguer barreiras sociais contra
uma casta quase tão aristocrata quanto os Júlios Césares. Especialmente
quando os Cláudios Pulcros se debatiam perpetuamente contra os inimigos da velha nobreza, ou seja, o excessivo número de filhos aliado à diminuição de terras e de dinheiro. Agora as suas duas Júlias tinham deslocado os bancos portáteis para o sítio onde as outras raparigas se sentavam,
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sem supervisão. Onde estariam as suas mães? Ah. A conversar com Sula.
Suspeito! Isso arrumava de vez o assunto.
— Meninas! — chamou Márcia, bruscamente.
Duas cabeças encapuzadas voltaram-se para olhar para si.
— Voltem para aqui — ordenou. Depois, acrescentou: — Imediatamente!
Elas regressaram.
— Mamã, podemos ficar com as nossas amigas, por favor? — perguntou a jovem Julila, com olhos suplicantes.
— Não — respondeu Márcia, num tom definitivo que indicava que
a Conversa Acabava Ali.
Lá em baixo no Fórum Romano formava-se o cortejo, à medida que
a longa fila que serpenteava desde a casa de Marco Minúcio Rufo se encontrava com a igualmente longa fila que se iniciara na casa de Espúrio
Postúmio Albino. Em primeiro lugar estavam os cavaleiros, não tantos
como se encontrariam num belo e soalheiro Dia de Ano Novo, mas ainda
assim um grupo respeitável com cerca de setecentos. À medida que o dia
se tornava mais claro e a chuva se tornava um pouco mais intensa, subiram a encosta do Clivus Capitolinus em direção ao lugar onde, na primeira curva daquele trajeto curto e acidentado, os sacerdotes e os magarefes
aguardavam com dois touros de um branco imaculado, presos por cabrestos brilhantes, com os chifres dourados e os pescoços enfeitados
com grinaldas. Na retaguarda dos cavaleiros caminhavam vinte e quatro
lictores dos novos cônsules. A seguir aos lictores estavam os próprios
cônsules e, depois deles, o Senado, os que detinham magistraturas superiores vestiam togas debruadas a púrpura, e o resto da assembleia vestia
simples togas brancas. Por fim, vinham os que não pertenciam ao cortejo, turistas e uma hoste de clientes dos cônsules.
Que bonito, pensou Márcia. Cerca de mil homens subiam lentamente
a rampa em direção ao templo de Jupiter Optimus Maximus, o Grande
Deus de Roma, ostentando a sua impressionante estatura no local mais
alto, na colina mais meridional das duas que constituíam o Capitólio. Os
gregos construíam os seus templos no solo, mas os romanos edificavam-nos sobre plataformas grandiosas com imensos degraus, e os degraus
que conduziam a Jupiter Optimus Maximus eram realmente numerosos.
Que bonito, pensou Márcia novamente, enquanto os animais sacrificiais
e a sua escolta se juntavam ao cortejo e seguiam todos até que, por fim, se
aglomeravam o melhor possível diante do grande templo lá no alto. Algures entre eles estavam o seu marido e os seus dois filhos, que pertenciam
à classe governante da mais poderosa cidade do mundo.
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Algures entre eles também estava Caio Mário. Como antigo pretor,
vestia a toga praetexta debruada a púrpura, e nos seus sapatos senatoriais
vermelho-escuros usava a fivela em formato de crescente que o seu pretorado lhe permitia. Contudo, não lhe bastava. Fora pretor há cinco anos
e já devia ter sido cônsul há três. Mas agora sabia que nunca lhe seria permitido candidatar-se ao consulado. Nunca. Porquê? Porque não era suficientemente bom. Era esse o único motivo. Quem ouvira falar de uma
família chamada Mário? Ninguém.
Caio Mário era um arrivista oriundo do meio rural, um militar, com
fama de não saber falar grego, e cujo empolgamento ou ira podiam levá-lo a falar o latim, a sua língua nativa, com inflexões do Norte. Pouco importava que tivesse recursos para comprar e vender metade do Senado;
pouco importava que, no campo de batalha, conseguisse dominar taticamente ambas as metades do Senado. O que importava era o sangue. E o
seu não era suficientemente bom.
Caio Mário era oriundo de Arpino, que não ficava assim a tantos quilómetros de distância de Roma, mas perigosamente perto da fronteira entre Lácio e Sâmnio e, por isso, um tanto suspeito nas suas lealdades e ligações; entre os italianos, os samnitas continuavam a ser os inimigos mais
obstinados de Roma. A cidadania romana chegara tarde a Arpino, apenas
setenta e oito anos antes, e o distrito ainda não possuía um estatuto municipal próprio.
Ah, mas era tão belo! Aconchegado no sopé dos Altos Apeninos, um
vale fértil recebia os rios Liris e Melfa, onde as uvas cresciam com resultados maravilhosos, tanto para ir à mesa como para a produção de vinho,
onde as colheitas rendiam cento e cinquenta vezes mais e onde as ovelhas eram gordas e a lã de uma qualidade surpreendente. Tranquilo. Verde. Indolente. No verão, era mais fresco do que seria de esperar e, no
inverno, menos frio do que o previsto. A água dos dois rios estava repleta de peixes e as densas florestas das montanhas da orla da bacia de Arpino ainda forneciam madeira magnífica para a construção de navios e edifícios. E havia pinheiros resinosos e pinheiros usados no fabrico de
archotes, carvalhos que enchiam o solo com bolotas para os porcos no
outono, esplêndidos presuntos, enchidos e carne seca que fariam as delícias da mesa de qualquer nobre de Roma, o que acontecia com frequência.
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Há séculos que a família de Caio Mário residia em Arpino e orgulhava-se das suas origens latinas. Seria Mário um nome volsco ou samnita?
Soaria a osco, só porque existiam samnitas e volscos chamados Mário?
Não! Mário era latino. Ele, Caio Mário, era tão bom como qualquer um
daqueles nobres arrogantes e com o nariz empinado que tanto gosto tinham em humilhá-lo. Na verdade, e era isto que realmente o magoava,
era muito melhor do que qualquer um deles. Tinha essa sensação.
Como podia um homem explicar uma sensação? Uma sensação que
ele albergava como um hóspede que se recusava a partir, por pouco hospitaleiro que fosse? Passara-se muito tempo desde que essa sensação se
manifestara pela primeira vez na sua mente, tempo suficiente para que os
acontecimentos dos anos subsequentes lhe demonstrassem a sua futilidade, incitando-a a partir desesperada. Contudo, nunca partira. Vivia hoje
na sua mente, tão vívida e indomável como o fora no início, há metade
de uma vida.
Como é estranho o mundo!, pensou Caio Mário, olhando atentamente para os rostos inexpressivos dos homens que vestiam togas debruadas
a púrpura, que o rodeavam naquela triste hora depois da aurora em que
a chuva caía miudinha. Não, não havia um Tibério ou um Caio Semprónio Graco entre eles! À exceção de Marco Emílio Escauro e Públio Rutílio Rufo, era um bando de homens medíocres. Contudo, todos o olhavam, a ele, Caio Mário, com superioridade e o consideravam uma pessoa
insignificante e pretensiosa, com mais vícios do que virtudes. Simplesmente porque lhes corria o sangue certo nas veias. Qualquer um deles sabia que, se as circunstâncias se proporcionassem, ele poderia vir a ser
o Primeiro Homem de Roma. Tal como Cipião Africano, Emílio Paulo,
Cipião Emiliano e talvez uma dúzia de outros que, ao longo dos séculos
da República, assim se tinham intitulado.
O Primeiro Homem de Roma não era o melhor; era o primeiro entre
outros homens que eram seus iguais em estatuto social e oportunidades.
E ser o Primeiro Homem de Roma era algo muito melhor do que a monarquia, a autocracia, o despotismo ou o que quer que fosse. O Primeiro
Homem de Roma detinha esse título pela preeminência absoluta, permanentemente ciente de que o seu mundo estava repleto de outros desejosos de suplantá-lo, outros que podiam suplantá-lo, legalmente e sem derramamento de sangue, pela apresentação de uma qualidade superior de
preeminência. Ser o Primeiro Homem de Roma era mais importante do
que ser cônsul; os cônsules iam e vinham ao ritmo de dois por ano, no
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entanto, nos séculos de existência da República Romana apenas um pequeno punhado de homens viria a ser aclamado Primeiro Homem de
Roma.
De momento, Roma não tinha Primeiro Homem; na verdade, não
existia Primeiro Homem desde a morte de Cipião Emiliano, dezanove
anos antes. Marco Emílio Escauro era sem dúvida o que se aproximava
mais, mas não tinha poder suficiente — auctoritas como lhe chamavam,
uma mistura de poder, autoridade e fama característica de Roma — para
merecer o título ou para que lho atribuíssem. Exceto aos seus olhos!
De súbito, uma onda de inquetação percorreu a multidão de senadores; o cônsul sénior, Marco Minúcio Rufo, estava prestes a oferecer o seu
touro branco ao Grande Deus, mas este não estava a comportar-se como
devia, devendo ter tido a presciência de evitar a última ração de forragem
adulterada. Não seria um bom ano, todos o diziam. Maus presságios durante a vigília noturna dos cônsules, um dia com um tempo horrível,
e agora a primeira das duas vítimas resfolegava e investia, com meia dúzia
de acólitos sacerdotais agarrados aos seus chifres e às suas orelhas — tolos, deviam ter-lhe colocado uma argola no nariz como precaução. Despido até à cintura, como os outros assistentes, o acólito que transportava
o martelo atordoador não esperou que a cabeça fosse elevada até ao céu,
e depois mergulhada em direção ao solo; mais tarde, podia argumentar-se
com sucesso que o animal erguera e baixara a cabeça dezenas de vezes ao
lutar pela sua sobrevivência. Aproximou-se e movimentou a arma de ferro
para cima e para baixo com tanta velocidade que os seus contornos se esbateram. O ruído seco do golpe foi imediatamente seguido pelo som dos
joelhos do touro a baterem no pavimento de pedra ao cair, com os seus
setecentos e trinta quilos de peso. Depois, o homem seminu que empunhava o machado enterrou o instrumento com lâmina dupla no cachaço
do animal e o sangue escorreu por todo o lado; uma parte foi recolhida
nas taças sacrificiais, mas o restante formou um rio fumegante, pegajoso
e sem rumo, que se dissolveu e diluiu no solo encharcado pela chuva.
Descobre-se muito acerca de um homem através da forma como reage ao derramamento de sangue, pensou Caio Mário, friamente distante,
com um meio sorriso a curvar-lhe os cantos dos lábios grossos, ao observar um a desviar-se apressadamente para o lado, outro, indiferente ao facto de o seu sapato estar a ficar sujo de sangue e outro a fingir que não estava prestes a vomitar.
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COLLEEN McCULLOUGH
Ahhhhhh! Ali estava o homem que devia observar! O indivíduo jovem, mas já homem feito, que se encontrava junto dos cavaleiros, com
toga, mas sem a faixa de cavaleiro sobre o ombro direito da túnica; não
estava ali há muito tempo e agora voltava a afastar-se, descendo o Clivus
Capitolinus em direção ao Fórum. Mas não antes de Caio Mário ver os
seus extraordinários olhos cinzento-claros a brilharem, chamejarem e
absorverem avidamente a imagem do sangue. Certo de que nunca o vira
antes, Caio Mário interrogou-se sobre quem seria; não era uma pessoa
sem importância, certamente. Tinha uma aparência hermafrodita, uma
beleza tão feminina quanto masculina e uma coloração surpreendente!
Pele branca como o leite, cabelos da cor do sol nascente. Era a encarnação de Apolo. Teria sido ele? Não. O deus não teria os olhos como os do
homem mortal que acabara de partir; eram olhos de alguém que sofria,
e de nada valia ser um deus para sofrer, pois não?
Embora o segundo touro estivesse mais drogado do que o primeiro,
também se debateu, ainda com mais afinco. Desta vez, o homem que
manejava o martelo não conseguiu atingi-lo em cheio à primeira, e a pobre criatura enlouquecida voltou-se numa raiva cega para investir. Foi então que um indivíduo inteligente lhe agarrou o saco oscilante do escroto
e, nesse instante, o homem com o martelo e o homem com o machado
movimentaram as armas em simultâneo. O touro tombou, borrifando
com sangue todos os que estavam até duas dúzias de passos de distância,
incluindo os dois cônsules: Espúrio Postúmio Albino estava encharcado,
bem como o seu irmão mais novo, Aulo, que se encontrava mesmo atrás
dele, um pouco para o lado. Caio Mário olhou-os de soslaio, interrogando-se se o presságio significava o que ele pensava. Más notícias para Roma, de qualquer forma.
Ainda assim, a sua hóspede indesejada, a sensação, recusava-se a partir; na verdade, ultimamente a sua força aumentara bastante. Como se
o momento se aproximasse. O momento em que ele, Caio Mário, se tornaria o Primeiro Homem de Roma. Todas as partículas de senso comum
que existiam dentro de si, e eram muitas, gritavam-lhe que a sua sensação
era uma traidora, uma armadilha que o trairia e que o levaria à ignomínia
e à morte. No entanto, continuava a senti-la, a inextirpável sensação de
que iria tornar-se o Primeiro Homem de Roma. Ridículo!, argumentou
o homem de eminente bom senso. Tinha quarenta e sete anos de idade,
alcançara com dificuldade o sexto e último lugar entre os seis homens
eleitos como pretores cinco anos antes, e agora era demasiado velho para
tentar alcançar o consulado sem o benefício de um nome e uma grande
hoste de clientes. O seu tempo passara. Fora-se para sempre.
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Os cônsules estavam finalmente a tomar posse; aquele asno pomposo do Lúcio Cecílio Metelo Dalmático, que rejubilava com o seu título de
Pontifex Maximus, debitava as últimas orações e, em breve, o cônsul
sénior, Minúcio Rufo, mandaria o arauto chamar o Senado para reunir-se
no interior do templo de Jupiter Optimus Maximus. Aí marcariam a data
do Festival Latino nos montes Albanos; discutiriam quais as províncias
que deviam receber novos governadores e quais os governadores que veriam o seu mandato prorrogado; fariam a repartição dos lotes das províncias pelos pretores e pelos cônsules; um qualquer tribuno egoísta da plebe
faria um discurso delirante sobre o povo; Escauro esmagaria o tolo presunçoso com o pé como se fosse um escaravelho; e um dos muitos Cecílios Metelos faria uma longa e interminável palestra sobre o declínio dos
valores morais e éticos da mais jovem geração de Roma, até que dúzias
de vozes à sua volta o mandassem calar e acalmar-se. Era o mesmo velho
Senado — o mesmo velho Povo — a mesma velha Roma — o mesmo
velho Caio Mário. Agora com quarenta e sete anos. No ano seguinte teria
cinquenta e sete, no seguinte sessenta e sete, e depois atirá-lo-iam para
o meio de uma pira de troncos e gravetos e desapareceria numa nuvem
de fumo. Adeus, Caio Mário, seu arrivista oriundo das pocilgas de Arpino, seu não romano.
Com efeito, o arauto fez soar a convocatória. Suspirando, Caio Mário
começou a movimentar-se, erguendo a cabeça para ver se havia alguém
nas proximidades que pudesse pisar com força e sentir-se bem com isso.
Ninguém. Claro. Nesse momento, os seus olhos encontraram-se com os
de Caio Júlio César, que sorria como se soubesse exatamente o que Caio
Mário estava a pensar.
Detendo-se, Caio Mário devolveu-lhe o olhar. Este elemento mais
antigo dos Júlios Césares no Senado, agora que o seu irmão mais velho,
Sexto, morrera, era apenas um membro das últimas bancadas do Senado,
mas era mais do que um mero número do grupo de pressão. Alto, aprumado como um militar e com ombros largos, os seus belos cabelos dourados e prateados constituíam uma coroa a moldar-lhe o seu rosto vincado e bem-parecido. Já não era jovem, tinha de ter mais de cinquenta
e cinco anos, mas ao que tudo indicava viria a tornar-se num daqueles anciãos secos que a nobreza patrícia produzia com uma regularidade monótona, que cambaleavam até às reuniões do Senado ou do Povo com noventa e mais anos, continuando a manter um bom senso digno de louvor.
Do tipo que não se podia matar com um machado sacrificial. Do tipo
que, no fundo, fazia de Roma o que ela era, apesar da pletora de Cecílios
Metelos. Era melhor do que todos os outros juntos.
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COLLEEN McCULLOUGH
— Qual dos Metelos irá discursar hoje? — perguntou César quando
ficaram lado a lado e começaram a subir os imensos degraus do templo.
— Um que ainda não tenha cognome — respondeu Caio Mário,
com as suas gigantescas sobrancelhas a saltarem para cima e para baixo
como milípedes. — Quinto Cecílio Metelo, o irmão mais novo do reverenciado Pontifex Maximus.
— Porquê ele?
— Porque irá candidatar-se a cônsul no próximo ano, creio. Por isso
terá de começar já a fazer campanha — retorquiu Caio Mário, desviando-se para o lado a fim de deixar o homem mais velho entrar primeiro na
morada terrena do grande deus, Jupiter Optimus Maximus.
— Creio que tens razão — confirmou César.
O vasto salão central do templo estava reduzido a uma semiescuridão, tão fraca era a luz que brilhava no exterior, mas o rosto de tijolo vermelho do Grande Deus reluzia como se fosse iluminado do interior. Era
muito antigo e fora esculpido, há séculos, em terracota, pelo famoso escultor etrusco Vulca, embora gradualmente tenha recebido um manto de
marfim, cabelo, sandálias, um relâmpago de ouro e até pele de prata nos
braços e nas pernas, e unhas de marfim nos dedos das mãos e dos pés.
Apenas o seu rosto conservava aquela cor de argila, rica e avermelhada,
barbeado à moda etrusca que Roma herdara; o seu sorriso acéfalo curvava os seus lábios cerrados quase até às orelhas e dava-lhe um ar de pai
imbecil, decidido a ignorar as tolices do filho por mais intoleráveis que
fossem.
De cada lado da sala do Grande Deus, abria-se uma outra sala, a da
esquerda para albergar a sua filha, Minerva, e a da direita para albergar
a sua esposa, Juno. Cada uma destas senhoras tinha uma maravilhosa estátua de ouro e marfim dentro da sua cella, e cada senhora suportava com
resignação a presença de um hóspede que não fora convidado, pois,
quando o templo foi construído, dois dos deuses antigos tinham-se recusado a partir. À boa maneira romana, os deuses antigos acabaram por ficar ao lado dos novos.
— Será, Caio Mário, que aceitas jantar comigo amanhã à tarde? —
convidou César.
Mas que surpresa! Caio Mário pestanejou, usando a fração de segundo que esse gesto lhe deu para chegar a uma conclusão. Queria algo?
Indubitavelmente. Mas não algo sem importância. E uma coisa que ninguém podia dizer dos Júlios Césares era que fossem snobes. Um Júlio
César não precisava de ser snobe. Quem podia traçar a sua linhagem
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masculina diretamente até Iulo, Eneias, Anquises e à deusa Vénus tinha
segurança suficiente para se dar com qualquer um, desde um trabalhador
das docas a um Cecílio Metelo.
— Agradeço-te, Caio Júlio — respondeu Mário. — Teria muito gosto em jantar contigo.
Lúcio Cornélio Sula acordou antes da aurora, quase sóbrio, no Dia de
Ano Novo. Estava deitado exatamente no lugar onde devia, constatou,
com a sua madrasta do seu lado direito e a sua amante do seu lado esquerdo, mas cada uma das senhoras — se é que se podia ser eufemístico
ao ponto de assim lhes chamar — estava de costas voltadas para ele
e completamente vestida. Isto indicava-lhe que não lhe tinha sido solicitado que executasse as suas funções, uma dedução reforçada pelo facto de
ter sido acordado por uma enorme e primorosamente dolorosa ereção.
Por um momento, tentou ver o seu terceiro olho a observá-lo por cima
da barriga com um comportamento indecoroso, mas, como era habitual,
perdeu o concurso desigual. Só havia uma coisa a fazer: gratificar o ingrato. Foi com isto em mente que colocou a mão direita de fora e puxou para cima a bainha da túnica da madrasta, enquanto com a mão esquerda
fazia o mesmo à da amante. Foi então que ambas as mulheres, que fingiam estar a dormir, se ergueram na cama e começaram a agredi-lo com
os punhos e a insultá-lo, atingindo-o sem piedade.
— Que fiz eu? — gemeu ele, enrolando o corpo e protegendo as virilhas, onde a sua ereção principesca cedera como um odre de vinho vazio.
Estavam desejosas por contar-lhe, ambas ao mesmo tempo. Contudo, ele próprio lembrava-se agora do motivo; e ainda bem, porque as
duas a gritarem ao mesmo tempo tornavam a explicação ininteligível.
Metróbio, malditos olhos! Ah, mas que olhos! Escuros e brilhantes como
azeviche polido, contornados por pestanas negras tão longas que podiam
enrolar-se em torno de um dedo. Uma pele leitosa, caracóis pretos dançando em torno dos ombros delgados e o traseiro mais encantador do
mundo. Com catorze anos de idade e mil anos de vícios, era o aprendiz
do velho Cílax, o ator, e era também um provocador, um tormento, um
promíscuo e um pequeno tigre.
De um modo geral, ultimamente Sula preferia as mulheres, mas
Metróbio era um caso à parte. O rapaz viera à festa com Cílax, vestido de
Cupido em contraste com a Vénus decadente de Cílax, com um ridículo
par de asas com penas preso às costas e um pano minúsculo, feito de seda de Cós, preso na cintura, tingido com uma imitação barata de açafrão
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COLLEEN McCULLOUGH
que desbotara um pouco porque a sala estava completamente fechada,
abafada e quente, deixando manchas amarelo-alaranjadas no interior das
suas coxas, que chamavam a atenção para o que estava ali escondido, mas
mal.
Desde esse primeiro encontro que ele fascinara Sula, e vice-versa.
Bem, quantos homens no mundo, para além de Sula, tinham pele branca
como a neve, cabelo da cor do sol nascente e olhos tão claros que eram
quase brancos? Já para não falar de um rosto que lançara o pânico em
Atenas há alguns anos, quando um certo Emílio, que permanecerá incógnito, transportara clandestinamente o jovem Sula, com dezasseis anos
e sem dinheiro, de barco para Patras e gozara dos seus favores sexuais
desde Patras até Atenas, pelo caminho mais demorado possível, ao longo
da costa do Peloponeso.
Em Atenas, Sula fora despejado sem cerimónias. O Emílio em causa
era demasiado importante para se arriscar a ter qualquer estigma associado à sua masculinidade. Os romanos desprezavam a homossexualidade;
os gregos consideravam-na a mais enlevada forma de amor. Por isso
o que uns escondiam por medo e pavor, os outros ostentavam diante dos
olhos dos seus deslumbrados semelhantes. Contudo, para Sula, uns não
eram melhores do que os outros, pois não havia dúvida de que o medo
e o pavor apimentavam um pouco as coisas e providenciavam pagamentos generosos. Os gregos (depressa descobriu) opunham-se a pagar por
aquilo que lhes era disponibilizado sem qualquer encargo, mesmo quando
o prémio era tão invulgar como Sula. Por isso, chantageou o referido
Emílio para que lhe pagasse a viagem, em primeira classe, de regresso
a Itália e a Roma, e deixou Atenas para sempre.
É claro que a idade adulta mudara tudo. Depois de a sua barba crescer o suficiente para ter de se barbear todos os dias e de lhe nascer no
peito um tufo de pelos acobreados, a atração que os homens tinham sentido por ele desapareceu, bem como os pagamentos generosos. As mulheres, descobrira, eram mais tolas e tinham o desejo ardente de assentar,
o que as tornava fáceis de explorar. Na infância, não conhecera muitas,
pois a mãe morrera antes de ele ter idade suficiente para guardar memórias suas que pudesse acarinhar, e o pai, um bêbado arruinado, preocupava-se pouco com qualquer um dos seus filhos. Sula tinha uma irmã, Cornélia Sula, dois anos mais velha do que ele; igualmente bela, aproveitara
uma oportunidade de casamento com um rústico muito rico de Piceno,
chamado Lúcio Nónio, e viajara para norte com ele para gozar dos luxos
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que Piceno pudesse ter. Isso fizera com que Sula, com dezasseis anos, tivesse de tomar conta do pai sem ajuda, o que afetara a qualidade das suas
vidas sobretudo ao nível da higiene.
Mais tarde, quando Sula fez vinte e quatro anos, o pai voltou a casar-se. Não foi o acontecimento social do ano, mas trouxe algum alívio ao
jovem, que durante anos estivera habituado a ter de arranjar dinheiro suficiente para sustentar a sede insaciável do pai. Acontece que a nova mulher do pai (chamada Clitumna, uma camponesa nativa de Úmbria) era
viúva de um mercador muito rico e conseguira herdar todos os bens do
falecido marido, despachando a sua única filha para Calábria como mulher de um vendedor de óleo.
O que Clitumna vira no decadente Sula Sénior escapava, de início,
à compreensão do filho; foi então que Clitumna convidou o filho para
partilhar a sua cómoda casa no Gérmalo do Palatino e saltou prontamente da cama do seu novo marido para entrar na do jovem Sula. Nesse momento, este descobriu que ainda lhe restava uma pequena centelha de
lealdade e de afeto pelo pai importuno, uma vez que se desenvencilhou
de Clitumna com o maior tato possível e saiu imediatamente de casa.
Conseguira juntar algum dinheiro e descobriu dois quartos numa
enorme ínsula no Esquilino, perto do Agger, por uma renda que conseguia pagar à justa: três mil sestércios por ano. Esse espaço providenciava-lhe um quarto para si próprio e outro para o seu servo pessoal dormir
e cozinhar, e o serviço adicional de tratamento de roupa era realizado por
uma rapariga que vivia dois andares acima no edifício a desmoronar-se,
e que fazia outro tipo de serviços para vários inquilinos. Uma vez por semana ela levava as suas roupas sujas pela viela abaixo até um cruzamento
que se alargava do labirinto de ruas até formar uma minúscula praça irregular; nela existia um altar de encruzilhada, uma sala onde se reuniam os
membros do colégio da encruzilhada e uma fonte que vertia um fio de
água pela boca de um feio e velho Sileno para dentro de um tanque de
pedra, doado à cidade — um dos muitos — por aquele grande e velho
historiador, Catão, o Censor, um homem tão pragmático quanto fora humilde o seu nascimento. Lutando por um espaço para se mexer à vontade, ela batia as túnicas de Sula nas pedras, pedia ajuda a outra lavadeira
para torcer cada peça de roupa até ficar seca (tendo feito o mesmo pela
sua colega) e depois trazia-lhe a roupa de volta impecavelmente dobrada.
O seu preço era simples; uma visita rápida, sem que ninguém soubesse,
especialmente a velha azeda com quem morava.
Foi nessa altura que ele conheceu Nicópole. «Cidade da Vitória» era
o significado do nome dela na sua língua nativa, o grego. Era isso que
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