Ciência Animal 23(2): 29-35, 2013 INFLUÊNCIA DA QUALIDADE DA ÁGUA SOBRE O DESENVOLVIMENTO EMBRIONÁRIO DE CARPA COMUM (Cyprinus carpio) (Water quality influence on the embryonic development of common carp) Francisco Renan Aragão LINHARES1*, Larissa Teixeira NUNES1, Júlia Trugilio LOPES1, José Agenor Soares GALVÃO2, José Ferreira NUNES1, Carminda Sandra Brito SALMITOVANDERLEY1 1 Universidade Estadual do Ceará. 4Departamento Nacional de Obras Contra as Secas - DNOCS RESUMO O estado do Ceará se destaca pela presença de açudes que auxiliam a piscicultura. Dentre estes reservatórios de água, destaca-se o açude Pereira de Miranda, que se encontra atualmente em estado de eutrofização. Dessa forma, a presente pesquisa objetivou avaliar a influência da qualidade da água do açude Pereira de Miranda sobre o desenvolvimento embrionário de carpa comum. Para tanto, os gametas obtidos foram fertilizados e o acompanhamento do desenvolvimento embrionário foi realizado até a eclosão dos ovos para se estimar as taxas de fertilização e eclosão. O tipo de clivagem foi meroblástica discoidal, típica de ovos telolécitos. A taxa de fertilização média encontrada foi de 17,25 ± 1,19%. Porém, a taxa de eclosão foi nula, observando-se embriões degenerados na sua totalidade. A baixa taxa de fertilização e não eclosão pode estar relacionada as alterações da maioria dos parâmetros de qualidade de água analisados tais como: temperatura (28,63 ± 0,67ºC), oxigênio dissolvido (4,38 ± 0,41 mg/L O2), dureza (216,6 mg/L de CaCO3), alcalinidade (156 mg/L de CaCO3), pH (7,5 a 10,9), amônia (1,09 mg/L) e nitrito (0,104 mg/L) que permaneceram fora da faixa ideal para o desenvolvimento inicial desta espécie. Assim, conclui-se que a eutrofização do açude Pereira de Miranda pode prejudicar a reprodução de carpa comum nas estações de piscicultura abastecidas pelo açude, o que torna urgente a definição de uma série de ações para melhoria de suas águas. Palavras-chave: fertilização assistida, piscicultura, reprodução ABSTRACT The state of Ceará is highlighted by the presence of dams that help fish farming. Among these water reservoirs, there is the dam Pereira de Miranda, which is currently suffer from eutrophication. Thus, the present study aimed to evaluate the influence of the reservoir water quality Pereira de Miranda on the embryonic development of common carp. Therefore, the obtained gametes were fertilized and monitoring of embryonic development was carried out until the eggs hatch to estimate the fertilization and hatching rates. The type of cleavage was meroblastic discoidal typical of telolecithal eggs. The average fertilization rate was found to be 17.25 ± 1.19%. However, the hatching rate was zero, observing degenerate embryos in its entirety. The low rate of fertilization and not hatch may be related changes in most water quality parameters analyzed such as temperature (28.63 ± 0.67ºC), dissolved oxygen (4.38 ± 0.41 mg/L O2), hardness (216.6 mg/L CaCO3), alkalinity (156 mg/L CaCO3), pH (7.5 to 10.9), ammonia (1.09 mg/L) and nitrite (0.104 mg/L) which have remained outside the optimal range for the initial development of this species. Thus, it is concluded that the eutrophication of the dam Pereira de Miranda can impair reproduction of common carp in fish culture stations supplied by the dam, which makes it urgent to design a series of actions to improve their waters. Keywords: assisted fertilization, fish farming, reproduction ________________________ *Endereço para correspondência: [email protected] INTRODUÇÃO MATERIAL E MÉTODOS Atualmente, a carpa comum (Cyprinus carpio) representa o quarto pescado da aquicultura continental mais produzido no Brasil (Boletim estatístico da pesca e aquicultura, 2011). De acordo com o mesmo boletim, o Nordeste representa a segunda maior produção aquícola continental de pescado, estando o estado do Ceará na liderança entre as regiões nacionais. A espécie foi introduzida no final do século XIX com a chegada dos primeiros imigrantes (Silva, 2005) e no Nordeste, através do Departamento Nacional de Obras Contras às Secas (DNOCS) no ano de 1977 (DNOCS, 2009). Neste contexto, os açudes construídos no Ceará apresentam grande importância para a piscicultura do estado. Dentre estes reservatórios de água, destaca-se o açude Pereira de Miranda, com barragem localizada no município de Pentecoste, Ceará e distante 85 km de Fortaleza. O mesmo, foi construído pelo DNOCS entre os anos de 1950 e 1957, visando o abastecimento de água, a irrigação, a geração de energia elétrica e a piscicultura. No entanto, o açude citado encontra-se em estado de eutrofização, podendo prejudicar entre outras utilidades a piscicultura da região (COGERH, 2015). Diante deste quadro, a avaliação dos parâmetros físicos, químicos e microbiológicos da água do açude em questão, será fundamental para se monitorar a sobrevivência e reprodução dos peixes no ambiente em que vivem. Dessa forma, a presente pesquisa objetivou avaliar a influência da qualidade da água, por meio de análises de parâmetros fiscos, químicos e microbiológicos do açude em estado de eutrofização Pereira de Miranda sobre o desenvolvimento embrionário de carpa comum. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética para o Uso de Animais da Universidade Estadual do Ceará (11516665-3/63). O trabalho foi realizado no Centro de Pesquisas em Aquicultura (CPAq) do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) em Pentecoste - Ceará, situando-se a 3° 45' 00" de latitude sul e 39° 10' 24" de longitude oeste, local onde o abastecimento de água é realizada pelo açude Pereira de Miranda. Para a realização da fertilização assistida, um pool de sêmen foi formado a partir da coleta de sêmen de três machos sexualmente maduros de comprimento médio de 43,2 ± 2,8 cm e peso médio de 1,51 ± 0,2 kg, que receberam dose única de extrato hipofisário de carpa (EHC) de 1 mg/kg de peso vivo. Doze horas após a indução hormonal da reprodução, os animais foram mergulhados individualmente num tanque contendo solução anestésica de Eugenol (Cequímica Ltda., Brasil) diluído em álcool absoluto e água (1:10:1000) por aproximadamente dois minutos. Durante a coleta do sêmen, os animais foram contidos em decúbito lateral sobre uma esponja (D33) e envolvidos com um pano úmido sobre os olhos para minimizar o estresse. O orifício urogenital foi enxuto com papel toalha e o sêmen foi coletado em tubos graduados de polietileno realizando-se uma pressão abdominal no sentido ântero-posterior. As amostras foram conservadas sobre gelo em escamas em caixas térmicas a uma temperatura de aproximadamente 5 °C até as realização da fertilização artificial assistida. Para a seleção das amostras, foi estimada a análise subjetiva da motilidade utilizando um microscópio óptico (Nikon Eclipse E200 – ampliação de x400) após a mistura de uma alíquota de 2 µL 30 Ciência Animal 23(2):29-35, 2013 de sêmen e 100 µL de água do tanque, considerando-se como 0% (zero) nenhum espermatozoide móvel e 100% (cem) todos os espermatozoides móveis. Somente as amostras com o valor superior a 80% de motilidade foram utilizadas, enquanto aquelas contaminadas com água, fezes, urina ou sangue foram descartadas. Para a coleta de ovócitos, foram utilizadas duas fêmeas, de comprimento médio de 46 ± 5,7 cm e peso médio de 2,38 ± 0,6 kg, submetidas à indução da desova pela aplicação de duas doses de 0,5 e 5,0 mg/kg de peso vivo de EHC, num intervalo de doze horas entre elas. A partir do material coletado, formou-se um pool de ova do qual foram retiradas cinco amostras de 25 g (aproximadamente 21.800 ovócitos) de ovócitos para fertilização a seco de cada amostra com 157,5 µL de sêmen fresco. Essa dose de sêmen correspondia à proporção aproximada de 200.000 espermatozoides por ovócito (Irawan et al., 2010). Os gametas foram então misturados suavemente durante dois minutos a fim de evitar injúrias nos ovócitos. Para a remoção da adesividade dos ovócitos, cada amostra foi imersa durante um hora em 100 mL de solução de ureia, sob homogeneização constante. Completado os 60 minutos, as amostras foram lavadas com 100 mL de solução de ácido tânico puríssimo (0,5 g/L) (Vetec Ltda., Brasil) durante 20 segundos (Billard et al., 1995). Para a remoção desta última solução, todas as amostras (n=5) foram então lavadas três vezes com 100 mL de água do tanque. Posteriormente, cada uma das amostras foram transferidas para incubadoras confeccionadas a partir de canos de PVC (policloreto) teladas no fundo de volume aproximado de 1 L. Inicialmente, o acompanhamento do desenvolvimento embrionário foi realizado a cada meia hora e posteriormente a cada hora até a eclosão dos ovos. Estes foram removidos das incubadoras com auxílio de uma peneira e depositados em placas de Petri para observações em microscópio óptico (Nikon Eclipse E200 – ampliação de x400), equipado com uma câmera fotográfica digital, a fim de documentar e melhor visualizar os ovos. As taxas de fertilização foram calculadas por meio da contagem do número de embriões em estágio de gástrula pelo total de ovócitos fertilizados. A taxa de eclosão foi estimada contando-se o número de larvas e dividindo pelo número total de ovos fertilizados. Foram observados aleatoriamente 200 embriões de cada incubadora para ambos os parâmetros avaliados, sendo realizada uma média das cinco replicatas. Paralelamente ao experimento, foram analisados parâmetros físicos, químicos e microbiológicos da água utilizada na incubação dos embriões. A temperatura, o oxigênio dissolvido (OD) e o pH foram medidos in loco de três em três horas desde o início da fertilização assistida até as fases finais do desenvolvimento embrionário, no qual utilizou-se um medidor de oxigênio dissolvido e temperatura (Phtek, modelo DO100) e pHmetro (KASVI, modelo K39-0014P). Para os parâmetros alcalinidade, dureza, amônia e nitrito foram coletadas amostras de água das incubadoras de embriões do CPAq – DNOCS e refrigeradas a 4°C conforme recomendações do Guia da CETESB (Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental) até serem processadas em Fortaleza pela. Superintendência Estadual do Meio Ambiente do Ceará (SEMACE). Para os parâmetros microbiológicos, foi analisada o número mais provável de coliformes termotolerantes e o número mais provável de Pseudomonas. Para tanto, as 31 Ciência Animal 23(2):29-35, 2013 amostras também foram processadas no mesmo dia pelo LABOMAR: Instituto de Ciências do Mar – UFC. No local, as amostras foram serialmente diluídas em solução salina estéril até 10-5. O Número Mais Provável (NMP) de coliformes termotolerantes foi determinado segundo a técnica dos tubos múltiplos usando meio de cultura Caldo Lauryl MUG (Difco). Para se obter o NMP de coliformes termotolerantes, consultou-se a tabela de Mc Crady (Apha, 2005). O NMP de Pseudomonas spp. foi obtido através da técnica de tubos múltiplos usando caldo asparagina, como citado por Cabrini & Gallo (2001). Dos tubos positivos (com turvação) foram repicadas alçadas para placas de ágar cetrimide e incubadas a 35 °C por 48 h. O surgimento de coloração esverdeada em toda a placa ou de colônias com luminescência verde indicou resultado positivo para a presença de Pseudomonas spp. Para a contagem de bactérias heterotróficas cultiváveis foi utilizada a técnica de plaqueamento pour plate onde uma alíquota de 1 mL de cada diluição sucessiva foi colocado em placa de Petri e coberto com o meio de cultivo Plate Count Agar (PCA), misturado e incubadas em estufa a 35–37 ºC por 48 h de acordo com o Standard Methods (Apha, 2005). RESULTADOS E DISCUSSÃO As imagens registradas para o desenvolvimento embrionário se enquadram no padrão relatado pela literatura para a espécie carpa comum (Cyprinus carpio). O tipo de clivagem foi meroblástica discoidal típica de ovos telolétcitos e o desenvolvimento embrionário, apresentou três períodos bem definidos, divididos em mórula, blástula e gástrula (Leite et al., 2013) (Fig. 1). A taxa de fertilização média encontrada foi de 17,25 ± 1,19%, sendo considerada baixa quando comparada a 75,6 ± 7,5% observada por Irawan et al. (2010) para sêmen fresco. A taxa de eclosão foi nula, observando-se embriões degenerados na sua totalidade. A temperatura é considerada um fator importante para se monitorar a má formação nas larvas, pois segundo Moreira et al. (2001), a temperatura ótima da água para se realizar a reprodução induzida das carpas comuns, situase entre 22 a 28 ºC. Assim, a temperatura média de 28,63 ± 0,67 ºC (Tab. 1) encontrada no presente trabalho está no limite para os padrões de outros estudos na área de desenvolvimento inicial de carpas, podendo ter ocasionado má formação dos embriões e não eclosão. A concentração de oxigênio dissolvido para um desenvolvimento embrionário ideal em carpa comum encontra-se entre 6 a 9 mg L-1 O2, sendo considerada uma das espécies mais exigentes (Boryshpolets et al., 2009). No entanto, o valor médio encontrado para o oxigênio dissolvido nas incubadoras dos embriões foi de 4,38 ± 0,41 mg/L O2 (Tab. 1), sendo inferior ao relatado na literatura para a espécie. A dureza e a alcalinidade apresentaram níveis de 216,6 e 156 mg/L de CaCO3 (Tab. 1) podendo ser classificadas como águas brandamente duras e, portanto, sem aplicação biológica (Graeff & Mondardo, 2006). Além disso, esses dois parâmetros podem ter ocasionando uma grande oscilação do pH de 7,5 a 10,9 (Tab. 1). A concentração de amônia encontrada de 1,09 mg/L (Tab. 1) foi considerada alta, apesar de permanecer dentro da tolerância de 0,6 e 2 mg/L usualmente reportados. O nível de nitrito foi de 0,104 mg/L, estando fora das 32 Ciência Animal 23(2):29-35, 2013 concentrações letais para a espécie estudada (Golombieski et al., 2005). No que diz respeito às análises bacteriológicas, verificou-se a ocorrência de coliformes termotolerantes (17 x 102 100 mL-1) (Tab.1) indicando presença de efluentes de esgotos domésticos, assim como também a ocorrência de Pseudomonas sp. (4,5 x 102 100 mL-1) (Tab.1), consideradas patógenos oportunistas na infecção de ovos de peixes. De fato, Sorensen et al. (2014) verificou que a interferência microbiana em ovos fertilizados de enguia (Anguilla anguilla) afetou significativamente a taxa de eclosão e a longevidade larval. Além disso, observou-se na água a presença de uma grande quantidade de zooplâncton, podendo ser responsável também pela degeneração de embriões em desenvolvimento. Podemos concluir que a eutrofização do açude Pereira de Miranda pode prejudicar a reprodução de carpa comum nas estações de piscicultura abastecidas pelo açude, o que torna urgente a definição de uma série de ações para melhoria de suas águas. Figura 1. Estágios do desenvolvimento embrionário de carpa comum (Cyprinus carpio). (A) formação de mórula, (B) formação de blástula e (C) gástrula. Tabela 1. Médias dos valores físicos, químicos e microbiológicos da água do açude Pereira de Miranda nas unidades experimentais durante o experimento. Pentecoste, Ceará. Parâmetros Média ± D. P. Temperatura (°C) 28,63 ± 0,67 Oxigênio dissolvido (mg/L O2) 4,38 ± 0,41 Dureza (mg/L CaCO3) 216,6 Alcalinidade (mg/L CaCO3) 156 pH (0-14) 7,5 a 10,9 Amônia (mg/L) 1,09 Nitrito (mg/L) 0,104 -1 Coliformes termotolerantes (100 mL ) 17 x 102 Pseudomonas sp. (100 mL-1) 4,5 x 102 33 Ciência Animal 23(2):29-35, 2013 AGRADECIMENTOS Agradecemos ao Departamento Nacional de Obras Contra Secas (DNOCS) e Laboratório de Biotecnologia da Reprodução de Peixes (LBRP), por fornecer as instalações e as amostras utilizadas nos experimentos. A Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP) pelo apoio financeiro e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de bolsa de estudos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos – COGERH. Qualidade da água do açude pereira de miranda, ceará: avaliação e recomendações. Fortaleza, 2015. Acessado em 15 outubro de 2012. Disponível em: http://www.srh.ce.gov.br/publicacoes/artigos/ Qualidade-Agua-%20Acude-%20Pereira-deMiranda-Ceara-%20Avaliacao%20Recomendacoes.pdf/view?searchterm=No ne. APHA - American Public Health Association. American Water Works Association, Water Environment Federation. Standard Methods for The Examination of Water and Wastewater Analysis. 21st ed. Washington, D.C.: American Public Health Association, 2005. BILLARD, R.; COSSON, J.; PERCHEC, G.; LINHART, O. Biology of sperm and artificial reproduction in carp. Aquaculture, Amsterdam, v. 129, p. 95-l 12, 1995. 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