doc. 01 - Deliberação da Comissão de Greve dos Servidores

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EXMO. SR. DR. JUIZ FEDERAL DA
VARA CÍVEL DE CURITIBA, SEÇÃO
JUDICIÁRIA DO PARANÁ
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pela Procuradora
da República infra-assinada, vem, perante Vossa Excelência, com fundamento
nos arts. 127, caput, e 129, III, da Constituição Federal, bem como na Lei n.
7347/85, propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA, COM PEDIDO DE TUTELA
ANTECIPADA, contra:
1. UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público,
2. UNIVERSIDADE FEDERAL
DO
PARANÁ, autarquia federal, com endereço à Rua
XV de Novembro, 1299, Curitiba/PR,
3. MUNICÍPIO DE CURITIBA, pessoa jurídica de direito público;
pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir expostos.
I - DOS FATOS
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2
A presente ação tem por objeto assegurar o direito à
saúde aos doentes que, a partir da presente data - dia 03 de julho de 2000,
não obstante procurarem tratamento médico no setor de Pronto Atendimento
do Hospital de Clínicas, não serão atendidos face a paralisação dos servidores
do hospital. A decisão da suspensão das atividades foi tomada pela Comissão
de Greve dos Servidores Técnicos –Administrativos do HC-UFPR (doc. 01
anexo)
O
Hospital de Clínicas da Universidade Federal do
Paraná é o maior prestador de serviços ambulatoriais e hospitalares do
Sistema Único de Saúde no Estado do Paraná. Em razão de seu porte e da
excelência de atendimento, a quase totalidade dos tratamentos de saúde, ditos
“complexos”, havidos em todo o Paraná, bem como em outros estados da
federação, são encaminhados pelos outros hospitais ao Hospital de Clínicas.
Ocorre que os servidores do Hospital de Clínicas estão
em greve desde o dia 19 de maio de 2000, reivindicando reajuste salarial, o
que vem comprometendo, dia a dia, o atendimento aos pacientes carentes que
procuram os serviços públicos de saúde do hospital.
Dentro das negociações havidas entre a direção do
Hospital de Clínicas e a comissão de greve, firmou-se, em data de 14 de junho
de 2000, o compromisso de que haveria 250 (duzentos e cinqüenta) leitos
disponíveis para internações nas unidades do hospital. Entretanto, apesar da
diretoria do hospital ter centralizado os pedidos de internações e autorizado
somente os casos de urgência, na tentativa de cumprir o acordo, não se
3
conseguiu reduzir o número de internações, que tem ficado em torno de 300
(trezentos).
Entendendo que não foi honrado o compromisso
assumido pela diretoria do Hospital de Clínicas, os servidores grevistas, em
assembléia do movimento, decidiram, a partir das 00:00 horas do dia 03 de
julho de 2000, não mais dar cobertura ao serviço de Pronto Atendimento do
hospital e, em conseqüência, ao atendimento na internação, até que o número
de leitos ocupados seja reduzido a 250.
O Pronto Atendimento (PA) é a porta de entrada para a
maior parte dos internamentos, sendo que grande parte dos pacientes
avaliados no PA necessita de posterior atendimento técnico-contínuo, o qual é
representado pelos serviços de enfermagem, laboratório, raio-X, nutrição,
farmácia, etc.
O Ministério Público Federal, a par de acompanhar
através da imprensa a greve dos servidores do Hospital de Clínicas (doc.02),
recebeu o Ofício 006/2000-COAD/HC (doc.03), datado de 29 de junho de
2000, encaminhado pelo Presidente do Conselho de Administração do Hospital
de Clínicas, em exercício, no qual é relatada a situação acima referida,
manifestando grave preocupação com a qualidade mínima necessária aos
pacientes internados, que não poderá ser garantida, podendo mesmo chegar
ao extremo de risco de vida. Ademais, informou-se que, a partir de hoje - 03
de julho de 2000 , poderá ser fechado o Pronto Atendimento do hospital, face a
paralisação das atividades dos seus servidores, objetivando evitar que se
ultrapasse o número de 250 pacientes internados, aos quais a Comissão de
Greve se comprometeu a dar o suporte necessário.
4
No dia seguinte, 30 de junho de 2000, este órgão
ministerial convocou os integrantes da Comissão de Greve, assim como da
diretoria do Hospital de Clínicas, para comparecerem em reunião na
Procuradoria da República, na tentativa de garantir a continuidade das
atividades essenciais de saúde (doc. 04). Entretanto, não se conseguiu
demover os integrantes do movimento grevista da decisão de paralisar o
serviço de Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas.
Infelizmente, a resolução tomada pelos servidores
grevistas foi efetivada. O serviço de Pronto Atendimento do Hospital de
Clínicas realmente encontra-se fechado desde as 07:00 horas de hoje – 03
de julho de 2000.
Assim, diante da paralisação do serviço de Pronto
Atendimento do Hospital de Clínicas, a partir do dia 03 de julho de 2000, e
esgotadas as tentativas administrativas objetivando impedir que essa tragédia
se consumasse, recorre o Ministério Público Federal
ao Poder Judiciário,
objetivando garantir o direito à saúde aos doentes que vierem a necessitar dos
serviços públicos de saúde prestados pelo Hospital de Clínicas.
II - DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL
O art. 109, inciso I, da Constituição Federal de 1988,
estabelece:
“Art. 109. Aos juizes federais compete processar e
5
julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou
empresa pública federal forem interessadas na condição
de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de
falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à
Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”.
O Sistema Único de Saúde (SUS), conforme dispõe a
Constituição Federal (art. 198, parágrafo único), é financiado com recursos do
orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios. A maior parte desses recursos provêm, porém, da União,
ficando claro, assim, o interesse da União Federal, e, por conseguinte, a
competência da Justiça Federal.
Com efeito, o interesse da União Federal, na presente
demanda, resta configurado, uma vez que os procedimentos médicos
prestados pelo Hospital de Clínicas não apenas são remunerados com verbas
oriundas de seus cofres, como, também e principalmente, porque a União tem
o dever de garantir a realização desses serviços de saúde. Portanto, é de
competência da Justiça Federal processar e julgar a presente causa, nos
termos do artigo 109, I, da CF.
Com efeito, a União é repassadora de vultosas verbas
ao Hospital de Clínicas, face a prestação de atendimentos públicos de saúde,
possibilitando a continuidade dos seus serviços em prol da comunidade
doente.
Ademais, é de se invocar a decisão do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região, exarada pelo Juiz Amir José Finocchiaro
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Sarti, no Agravo de Instrumento n.º 97.04.13637-4/PR, interposto pelo
Ministério Público Federal, o qual foi julgado procedente, reconhecendo-se a
competência da Justiça Federal, que assevera:
“Quando a ação tiver de ser proposta contra a União,
nesse caso a competência será de uma das Varas
Federais “onde houver ocorrido o ato ou o fato que deu
origem à demanda”(artigo 109, § 2º), ou ainda, “onde
esteja situada a coisa”(artigo 109, § 2º), conforme o
caso. Não se aplica à hipótese o artigo 2º, da Lei
7347/85, salvo no que coincidir com o preceito
constitucional (o “local onde ocorrer o dano” não raro
será o mesmo onde houver ocorrido o ato ou fato que
deu origem à demanda, ou o lugar “onde esteja situada
a coisa”), pela simples e óbvia razão de que a regra
infraconstitucional não prevalece contra a norma de
hierarquia superior”. (grifou-se)
Neste sentido dispõe, também, o acórdão do Tribunal
Regional da 1ª Região, de 13.06.94, proferido pela Juíza Eliana Calmon, no
Agravo de Instrumento n. 0103278:
“A regra inserta no artigo 2º, da Lei n.º 7347/85,
estabelecendo a competência do juízo do local do dano
para as ações civis públicas, não se aplica às
demandas em que a União Federal, suas autarquias e
empresas públicas figurarem no pólo passivo da ação,
como rés, opoentes ou assistentes.
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2. Ao ressalvar a competência da Justiça Federal para a
ação civil o artigo 93, da Lei n.º 8078/90, afastou a
competência da Justiça Estadual para a causa, prevista
no artigo 2º, da Lei n.º 7347/85, quando figurar no feito a
União Federal, suas autarquias e suas empresas
públicas.
3. Nessa hipótese, incide a regra de competência
concorrente prevista no § 2º, do artigo 109, da CF/88,
podendo a ação ser ajuizada na seção judiciária
federal em que tiver domicílio o autor, naquela onde
houver ocorrido o dano ou onde esteja situada a
coisa, ou, ainda, no distrito federal”. (grifou-se)
Com efeito, o Hospital de Clínicas, em razão da
relevância do interesse público que o caracteriza, realiza suas atividades com
recursos provenientes principalmente da União Federal.
Ademais, é de se observar que a ré Universidade
Federal do Paraná constitui-se em entidade da Administração Pública Federal
indireta, conforme termos expressos da lei, sob a forma de autarquia.
Por ser demandada a Universidade Federal do Paraná
na presente ação civil pública, mais uma vez está fixada a competência da
Justiça Federal.
Não fosse isso, é reconhecida a competência da Justiça
Federal quando se trata de ação promovida pelo Ministério Público Federal,
consoante decidido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça:
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“Processual - Ministério Público Federal - competência Justiça Federal.
Se o Ministério Público Federal é parte, a Justiça
Federal é competente para conhecer do processo.”
(Conflito de Competência n. 93/0013202, 1ª Seção do
STJ, julgado em 14.09.1993, rel. Min. Humberto Gomes
de Barros).
III - DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO
PÚBLICO FEDERAL
A legitimação do Ministério Público Federal para a
propositura da presente ação está consagrada na Constituição Federal em seu
art. 127, caput:
“Art. 127 - O Ministério Público Federal é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime
democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis”.
O Ministério Público Federal exerce papel fundamental
na administração da justiça, conforme se depreende do perfil que lhe foi
atribuído pelo art. 127, da Carta de 1988. Contudo de nada valeria a dicção
constitucional, estando relegada à mera nominalidade, se não fossem
outorgados institutos jurídicos-processuais instrumentais à realização da
competência. Logo, efetivando tal desiderato, o artigo 129, III, do diploma
maior,
conferiu
os
meios
à
realização
das
atribuições
conferidas,
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estabelecendo:
“Art. 129 - São funções institucionais do Ministério
Público Federal:
...........................................................................
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para
a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivo”.
No caso em tela, trata-se de flagrante lesão aos
interesses difusos, consubstanciado no direito à saúde, bem como de afronta
ao interesse da coletividade como um todo, que espera e exige respeito para
com a saúde pública e, especialmente, para com seus doentes.
Além disso, incumbe ao Ministério Público Federal
defender os direitos constitucionais dos cidadãos, garantindo seu efetivo
respeito pelos Poderes Públicos e pelos prestadores de serviços relevantes,
conforme dispõe o art. 11, da Lei Complementar n. 75/93 (Lei Orgânica do
Ministério Público da União).
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n.
124.236, já teve oportunidade de se manifestar acerca da legitimidade do
Ministério Público para ajuizar ação civil pública, objetivando a verificação do
funcionamento do Sistema Único de Saúde, conforme ementa a seguir
transcrita:
“AÇÃO
CIVIL
PÚBLICA
–
LEGITIMIDADE
–
MINISTÉRIO PÚBLICO – SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
– DIREITO COLETIVO. Tem o Ministério Público
10
legitimidade para propor ação civil pública em
defesa do patrimônio público e social visando a
verificação da situação do Sistema Único de Saúde e
sua operacionalização”.(Relator: Ministro Garcia
Vieira)
Mostra-se, de tal maneira, inquestionável o cabimento
da ação ora proposta pelo Ministério Público Federal, que se apresenta como
medida necessária à garantia da prestação de serviços públicos de saúde
essenciais à população como um todo, especialmente àqueles doentes que
buscam atendimento junto ao Hospital de Clínicas e que não o terão, face a
paralisação nos serviços de Pronto Atendimento desse hospital. A decisão da
suspensão das atividades foi tomada pela Comissão de Greve dos Servidores
Técnicos –Administrativos do HC-PR (doc. 01, em anexo)
Ora, o presente caso versa, evidentemente, sobre
direitos coletivos definidos pelo art. 81, parágrafo único, inciso I, da Lei
8078/90, como os “transindividuais de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com parte contrária
por uma relação jurídica base”.
Conceitua, ainda, Hugo Nigro Mazzili, in: A Defesa dos
Interesses Difusos em juízo: meio ambiente, consumidor e outros interesses
difusos e coletivos (6ª ed. rev. ampla. e atual. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1991, p. 22):
“Os interesses coletivos compreendem uma categoria
determinada, ou pelo menos determinável, de pessoas.
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Embora o Código do Consumidor faça uma distinção,
que a seguir enunciaremos, na verdade, e em sentido
lato, os interesses coletivos compreendem tanto grupos
de pessoas unidas pela mesma relação jurídica básica,
como grupos unidos por uma relação fática comum.
Com efeito, em ambas as hipóteses temos grupos
determinados ou determináveis de pessoas, unidas por
um interesse compartilhado por todos os integrantes de
cada grupo”.
Sem dúvida, o direito à saúde é direito indivisível, do
qual um grupo determinável é titular: todos aqueles doentes que necessitam
receber tratamento médico do Hospital Clínicas e que não o terão em
decorrência da paralisação das atividades no serviço de Pronto Atendimento.
IV- DO DIREITO
A Constituição Federal, em seu artigo 196, preceitua:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doenças e de outros agravos e ao
acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”.
É nítida aqui, a intenção constitucional de garantir a)o
acesso às ações e serviços para a recuperação da saúde e b) o acesso
universal e igualitário à estas atividades.
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A Lei 8.080/90, editada em regulamento ao preceito
constitucional contido no art. 196, ao estabelecer, em seu art. 5º os parâmetros
para a atuação do Sistema Único de Saúde, determina:
“art. 5º - São objetivos do Sistema Único de Saúde SUS:
.......................................................................
III - a assistência às pessoas por intermédio de ações
de promoção , proteção e recuperação da saúde,
com a realização integrada das ações assistenciais e
das atividades preventivas”.
A saúde é, portanto, direito previsto constitucionalmente,
devendo o Estado concorrer com formas a garanti-la.
Para tanto, foi criado pela própria Constituição Federal,
o Sistema Único de Saúde, descentralizado, com direção única em cada esfera
de governo, o qual é financiado com recursos do orçamento da Seguridade
Social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme
estabelece o art. 198, da Constituição Federal.
Entre as ações de promoção da saúde encontra-se, sem
dúvida, o dever de garantir o pronto atendimento aos doentes que procuram os
hospitais que integram a rede que presta serviços aos usuários do Sistema
Único de Saúde, dentre eles o Hospital de Clínicas de Curitiba, que, por
excelência, constitui-se em centro de referência em inúmeras especialidades,
dentre elas, apenas para exemplificar, o de transplantes de medula óssea.
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Ocorre que não obstante estarem os servidores técnicos
e administrativos do Hospital de Clínicas em greve, os serviços de saúde
continuaram a ser prestados pelos funcionários do hospital, ainda que com a
redução no número de funcionários em atividade.
Entretanto, a partir das 00:00 horas de hoje - 03 de
julho de 2000, os serviços de saúde prestados no Pronto Atendimento foram
paralisados, comprometendo não somente as ações de saúde em mencionada
unidade, como também de outros setores do Hospital de Clínicas.
Vê-se, portanto, que a suspensão das atividades no
Pronto Atendimento, pelos servidores técnicos e administrativos do Hospital de
Clínicas, põe em risco a vida dos doentes que necessitam dos serviços de
saúde prestados pelo hospital e que não serão atendidos, afrontando a Carta
Magna que confere a todos o direito à saúde, garantido por atuações positivas
de todas as esferas de governo.
a) A eficácia da norma do artigo 196 da Constituição
Federal de 1988.
Sempre que se invoca um preceito constitucional vem à
baila a questão da sua eficácia: até que ponto a norma constitucional produz
efeitos
jurídicos
ao
regular,
desde
logo,
as
situações,
relações
e
comportamentos nela indicados. Qual a sua aplicabilidade, exigibilidade e
executoriedade?
1.
Com relação à norma contida no art. 196, da
Constituição Federal, refere-se expressamente, o prof. Luis Roberto Barroso,
14
in: “O Direito Constitucional e a Efetividade de suas normas: limites e
possibilidades da Constituição Brasileira” (2ª ed., Rio de Janeiro, Renovar,
1993, p. 102):
“Superada esta fase, com o reconhecimento da índole
normativa das regras que conferem direitos sociais, nem
por isso sua operatividade prática deixou de ser um
problema à espera de soluções. Esses direitos, como
intuitivo, tutelam, em última análise, interesses e bens
voltados à realização da justiça social. Sem embargo, a
confirmação da regras que os consagram produz efeitos
de natureza vária, que investem os jurisdicionados em
posições jurídicas que se distribuem em três grupos.
Por vezes:
...........................................................................
b) ensejam a exigibilidade de prestações positivas do
Estado.
Aqui, ao contrário de hipóteses anteriores, o dever
jurídico a ser cumprido consiste em uma atuação
efetiva, na entrega de um bem ou na satisfação de um
interesse. Na Constituição de 1988, são exemplos
dessa espécie de direitos à proteção da saúde (art.
196), previdência social (art. 6º e 201), aposentadoria da
mulher após 30 anos de trabalho (art. 202, II)”. (Grifouse)
O supracitado autor classifica o art. 196 da Constituição
Federal como “Norma Constitucional definidora de direito” em contraposição às
normas
constitucionais
de
organização
e
às
normas
constitucionais
15
programáticas, ou seja, entende que o art. 196 estabelece um dever jurídico ao
qual corresponde um direito subjetivo ao administrado de exigir uma
determinada prestação do Estado e não apenas um programa a ser cumprido
por ele.
Entende, ainda, citado autor, que o direito à saúde
proclamado na Constituição Federal é, desde logo, exigível independente de
norma infraconstitucional integradora. É assim que realmente se passa: o
legislador constitucional, ao determinar que “a saúde é direito de todos e dever
do Estado”, não remeteu a integração do preceito a qualquer norma
infraconstitucional, seja para integrá-la, seja para restringi-la, criando-se desde
logo, um direito subjetivo do cidadão de exigir uma prestação estatal no
sentido de proporcionar mecanismo de proteção à saúde, seja preventivos ou
de recuperação.
Quanto aos efeitos das normas definidoras de direitos
afirma, ainda:
“É, contudo, no tocante às normas definidoras de
direitos que a questão da efetividade das normas
constitucionais, por sua aplicação direta e imediata, se
torna mais relevante”. (grifou-se)
Ademais, a norma do artigo 196, além de permitir a
exigência de uma prestação, possui um efeito negativo, qual seja, o de impedir
a emissão de norma infraconstitucional ou a prática de atos contrários ao seu
sentido e intenção.
2.
De
qualquer
forma,
mesmo
que
se
16
entenda
diversamente, interpretando-se a norma do art. 196 do texto constitucional,
como norma de eficácia limitada de princípio programático, na terminologia de
José Afonso da Silva, in “Aplicabilidade das normas constitucionais” (2ª ed.
rev. e atualizada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982), a qual, em
princípio, não produz o efeito capaz de exigir uma prestação positiva do
Estado, há outros efeitos decorrentes dela que devem ser analisados.
Neste sentido, vale lembrar a lição de Jorge Miranda
(Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 2ª ed., Coimbra Editora, 1988, pg.
219, 220):
“Conquanto o seu sentido essencial seja sempre
prescritiva,
e
não
proibitiva,
elas
possuem
complementarmente, um duplo sentido proibitivo ou
negativo - proíbem a emissão de normas legais
contrárias e proíbem a prática de comportamentos que
tenham a impedir a produção de atos por ela impostos donde inconstitucionalidade material em caso de
violação”.
Quanto aos efeitos do art. 196 da Constituição Federal,
conclui-se, portanto, que:
a) sendo uma norma de aplicabilidade direta e imediata, é possível, a partir
dela, exigir-se uma prestação positiva do Estado para o seu cumprimento.
b) sendo uma norma de aplicabilidade direta e imediata ou uma norma
programática, ainda asssim, ela produz um efeito negativo, qual seja, o de
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impedir a emissão de normas infraconstitucionais ou a prática de atos
contrários ao seu sentido ou intenção.
O que se verifica no caso em tela é que a paralisação
dos serviços de saúde no Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas, em
razão da greve existente, fere o preceito constitucional que garante acesso às
ações de promoção da saúde e mais, o acesso universal e igualitário à estas
atividades.
Em primeiro lugar porque com a suspensão das
atividades no serviço de Pronto Atendimento, face a greve dos seus servidores
técnicos e administrativos, o Hospital de Clínicas da Universidade Federal do
Paraná, por ser um prestador público universitário de serviços de saúde, tem o
dever de garantir atendimento pleno
e
de qualidade a todo doente que
procure os seus serviços.
Em segundo lugar, porque fere o princípio da isonomia:
somente os pacientes que chegaram até as 07:00 horas do dia 03 de julho de
2000 foram atendidos pelo Hospital de Clínicas; já, a partir de referido termo,
aqueles doentes que necessitarem de serviços do Pronto Atendimento não
serão socorridos, restando-lhes, isto se ainda tiverem saúde para tanto, não
apenas buscar, mas o que é mais difícil, encontrar outro hospital que lhes dê
guarida.
A paralisação dos serviços essenciais de saúde
prestados no setor de Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas é
inconstitucional, ilegal, irresponsável e criminosa.
18
Por fim, é necessário seja conferida maior eficácia às
normas constitucionais.
Todas
as
normas
constitucionais,
indistintamente,
dispõem de imperatividade e é tarefa dos operadores do direito confirmar tal
qualidade. Sem conferir efeito transformador às previsões constitucionais, o
direito perde muito do seu sentido e será impossível cumprir os objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Carta
Magna:
“Constituem
objetivos
fundamentais
da
República
Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação“.
Ao direito não basta ser um mero reflexo da realidade,
ele deve ser agente transformador desta realidade, ainda mais quando se
refere aos direitos sociais, e, entre eles, o direito à saúde. Quantos não são os
doentes que, além de passarem por todos os problemas daí resultantes, não
são aceitos em hospitais, estando a cata de atendimento, indo de hospital em
hospital, sem terem a prestação de saúde a que têm direito ? É justo submetêlos a uma situação completamente fora dos parâmetros normais à procura de
assistência médica e, se não bastasse isso, têm ainda, que se ver às voltas
com a paralisação do Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas ?
19
b) Da responsabilidade dos réus
De qualquer forma, não basta que esse MM. Juízo
declare a ilegalidade e inconstitucionalidade existentes na questão em tela,
devendo determinar, também e principalmente, a forma de corrigir tais vícios.
Para tanto, necessário que se verifique a parcela de
responsabilidade que cabe a cada um dos réus.
b.1) Da responsabilidade da Universidade Federal do
Paraná
A Universidade Federal do Paraná, entidade autárquica,
constitui-se em pessoa jurídica de direito público, criada por lei específica.
Já, o Hospital de Clínicas é um hospital universitário
federal, órgão da Universidade Federal do Paraná. Nessa qualidade, presta
serviços essenciais de saúde, quase que exclusivamente públicos. Assim, tem
a Universidade Federal do Paraná, através de seu Hospital de Clínicas, o
dever não só de prestar pleno atendimento médico público aos doentes que
procurem seus serviços, como também de assegurar sua continuidade, ainda
que haja greve de seus servidores.
Com efeito, o Hospital de Clínicas presta serviços
públicos essenciais de saúde. Portanto, é imperativo que a Universidade
Federal do Paraná, por seu Hospital de Clínicas, garanta, não obstante a greve
de seus servidores, o atendimento médico pleno em todos os seus setores,
20
especialmente, no que se refere ao seu serviço de Pronto Atendimento, assim
como naquelas áreas necessárias efetivamente ao tratamento médico
ministrado e sua continuidade regular.
A integral e plena prestação de serviços públicos de
saúde é dever do Hospital de Clínicas. A completa realização dos
procedimentos, mormente em áreas críticas, como a da saúde pública, exige
não apenas o atendimento médico, mas que este se realize com qualidade e
excelência, de modo a dar ao paciente continuidade no tratamento recebido.
De fato, o Hospital de Clínicas tinha internado, antes do
movimento grevista, de 400 a 430 pacientes-dia, em todas as suas áreas, que
vão desde as UTIS, transplantes, pediatria, maternidade para gestantes de alto
risco e outros serviços de alta complexidade. A partir da greve, o Hospital de
Clínicas deixou de internar mais de 100 pacientes-dia, o que levou ao
saturamento dos demais hospitais da cidade e da região metropolitana. Isto é,
com a greve os demais hospitais que prestam serviços de saúde aos usuários
do Sistema Único de Saúde estão lotados.
Com o fechamento do Pronto Atendimento do Hospital
de Clínicas, pergunta-se: Onde serão internados esses pacientes, em número
de 40 a 50, por dia, visto que a atual rede pública e privada totalmente
comprometida em sua capacidade de atendimento ?
Ademais, outro
questionamento deve ser feito: Como justificar a busca de leitos disponíveis,
quando o Hospsital de Clíncias, em razão da paralisação de seus atividades,
está com a maioria absoluta dos seus leitos ociosos?
21
Tem, assim, a Universidade Federal do Paraná, através
do Hospital de Clínicas, o dever de garantir a manutenção do atendimento
médico aos pacientes. Para tanto deverá valer-se de medidas administrativas
hábeis, objetivando restabelecer, de imediato, os serviços de saúde prestados
no setor de Pronto Atendimento do hospital e áreas afins, inclusive, lançando
mão de medidas coercitivas, instaurando sindicâncias e procedimentos
administrativos correlatos, contra os servidores (ir)responsáveis pelo abandono
do Pronto Atendimento e das áreas de internação dependentes do PA. Para
tanto, deverá fazer o levantamento das respectivas escalas de serviço, de
modo a identificar os faltosos.
b.1) Responsabilidade do Município de Curitiba
O Município de Curitiba, a partir de fevereiro de 1996,
em consonância com o estabelecido na NOB-SUS/96 - a Norma Operacional
Básica do Sistema Único de Saúde–SUS, publicada em 06 de novembro de
1996, pela Portaria n. 2203, foi habilitado pelo Ministério da Saúde, assumindo
a “gestão plena”. Passou, assim, da condição de prestador para a condição de
Gestor do Sistema Municipal de Saúde, ou seja, o município de Curitiba passa
a receber o total de recursos referente a assistência ambulatorial e
hospitalar, competindo-lhe, com exclusividade, dentre outras atribuições, a
emissão de Autorização de Internação Hospitalar (AIH), que é o documento
hábil a autorizar o prestador de serviço hospitalar a realizar e cobrar, o valor
referente ao procedimento executado, constante da Tabela de Procedimentos,
editada pelo Ministério da Saúde.
Assim, estabelece a NOB-SUS/96 (doc. 05), em seu
item 15.2.1, ‘a’, competir ao Município de Curitiba, na “gestão plena” do
22
Sistema Municipal de Saúde, a responsabilidade pelo atendimento integral de
sua população, de modo a garantir aos que necessitem de serviços públicos
de saúde o acesso a esses tratamentos e a disponibilidade das ações e dos
meios para a completa assistência à saúde. Dispõe a NOB-SUS/96:
“15.2. GESTÃO PLENA DO SISTEMA MUNICIPAL
15.2.1. Responsabilidades
...........................................................................
c) Garantia da prestação de serviços em seu
território, inclusive os serviços de referência aos
não-residentes, no caso de referência interna ou
externa
ao
município,
dos
demais
serviços
prestados aos seus munícipes, conforme a PPI,
mediado pela relação gestor-gestor com a SES e as
demais SMS”.
A gestão plena exercida pelo Município de Curitiba
consiste na atividade e na responsabilidade de dirigir o Sistema Municipal de
Saúde, mediante o exercício de funções de coordenação, articulação,
negociação, planejamento, acompanhamento, controle, avaliação e auditoria.
Portanto, cabe ao Município de Curitiba, na gestão
plena do Sistema Municipal de Saúde, a responsabilidade de assegurar o
pleno atendimento aos doentes que procurem o Pronto Atendimento do
Hospital de Clínicas. Para isso, deverá conseguir atenção médica em outro
hospital que preste serviços públicos de saúde, enquanto durar a paralisação
dos serviços do Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas e até que a
direção do hospital retome as atividades regulares essencialmente do Pronto
23
Atendimento do Hospital de Clínicas e também das áreas necessárias à
continuidade dos procedimentos a serem realizados. O Município de Curitiba
poderá valer-se da Central de Leitos, por ele próprio criada e mantida, com o
objetivo de otimizar a utilização dos leitos nos estabelecimentos hospitalares,
de modo a identificar os hospitais que estejam realizando atendimento normal
aos usuários do SUS, com disponibilidade de leitos, fazendo o devido
encaminhamento desses pacientes.
Conforme exposto anteriormente, sendo o art.196 da
Constituição Federal, uma norma de aplicabilidade direta e imediata, é
possível, a partir dela, exigir-se uma prestação positiva do Município de
Curitiba, para o seu cumprimento, de modo a garantir-se o
princípio da
igualdade de todos à assistência médica.
Ademais, não há como o Município de Curitiba escusarse a conseguir que outro hospital que preste serviço público atenda aqueles
doentes que não sejam socorridos pelo Hospital de Clínicas. Na medida que
está o réu – Município de Curitiba – na gestão plena do Sistema Municipal de
Saúde, tem o dever de assegurar o pleno atendimento da população que
necessita dos serviços públicos de saúde. Portanto, não há que se admitir
eventual alegação do Município de impossibilidade na consecução de tal
obrigação.
b.3) Da responsabilidade do União
24
O Sistema Único de Saúde - SUS, constitui-se em uma
unicidade conceitual, em que as ações e serviços públicos de saúde são
exercidos em co-responsabilidade pela União, Estados, Distrito Federal e
Municípios.
Ademais, face o disposto no texto constitucional, em
seu artigo 198, parágrafo único, o Sistema Único de Saúde deve ser financiado
com recursos do orçamento da Seguridade Social, da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios.
Na área da saúde pública, tratando-se de recursos
provenientes, em sua quase totalidade, de verbas federais, cabe à União fazer
o controle efetivo de qualidade dos serviços públicos de saúde realizados.
A partir do repasse aos estados e municípios surge
para a União Federal o dever de controlar a qualidade dos serviços públicos de
saúde prestados aos usuários do Sistema Único de Saúde, assim como a
correta aplicação dessas verbas, exercendo este munus por meio de diversos
mecanismos, tais como os a seguir elencados.
Na forma do art. 33, § 4º, da Lei 8080/90, o Ministério da
Saúde acompanhará através de seu sistema de auditoria a conformidade à
programação aprovada dos recursos repassados a estados e municípios;
aplicando penalidades nos casos de malversação, desvio ou não aplicação dos
recursos repassados.
“Art. 33 - Os recursos financeiros do Sistema Único de Saúde
(SUS) serão depositados em conta especial, em cada esfera
25
de sua atuação, e movimentados sob fiscalização dos
respectivos Conselhos de Saúde.
§ 1º- Na esfera federal, os recursos financeiros, originários do
Orçamento da Seguridade Social, de outros Orçamentos da
União, além de outras fontes, serão administrados pelo
Ministério da Saúde, através do Fundo Nacional de Saúde.
....................................................................................
§ 4º- O Ministério da Saúde acompanhará, através de seu
sistema de auditoria, a conformidade à programação
aprovada da aplicação dos recursos repassados a
Estados e Municípios. Constatada a malversação, desvio
ou não aplicação dos recursos, caberá ao Ministério da
Saúde aplicar as medidas previstas em lei”.
A Lei n. 8689/93, art. 6º, instituiu, no âmbito do
Ministério da Saúde, o Sistema Nacional de Auditoria, com a atribuição de
avaliação técnico-científica, contábil, financeira e patrimonial do SUS :
“Art. 6º- Fica instituído no âmbito do Ministério da Saúde o
Sistema Nacional de Auditoria de que tratam o inciso XIX do
art. 16 e o § 4º do art. 33 da Lei n. 8.080, de 19 de setembro
de 1990.
§ 1º- Ao Sistema Nacional de Auditoria compete a
avaliação
técnico-científica,
contábil,
financeira
e
patrimonial do Sistema Único de Saúde, que será
realizada de forma descentralizada.
§ 2º- A descentralização do Sistema Nacional de Auditoria farse-á através dos órgãos estaduais e municipais e de
26
representação do Ministério da Saúde em cada Estado da
Federação e no Distrito Federal.
§ 3º- Os atuais cargos e funções referentes às ações de
auditoria ficam mantidos e serão absorvidos pelo Sistema
Nacional de Auditoria, por ocasião da reestruturação do
Ministério da Saúde, de que trata o art. 13.
§ 4º- O Departamento de Controle, Avaliação e Auditoria será
o órgão central do Sistema Nacional de Auditoria”.
Portanto, tem a União, através do Ministério da Saúde, a
responsabilidade de fiscalizar e controlar os serviços públicos de saúde
prestados aos usuários do Sistema Único de Saúde.
V - DO PEDIDO DE TUTELA ANTECIPATÓRIA
1. O artigo 12, da Lei de Ação Civil Pública (Lei n.
7347/85) estabelece a possibilidade de concessão de mandado liminar, nos
casos em que, em razão da morosidade na solução da lide, há possibilidade
de dano irreparável ao direito em conflito.
Com efeito, o referido dispositivo tem natureza tanto
cautelar, protetiva da eficácia da jurisdição, quanto de antecipação da tutela
pretendida.
Sendo assim, com a novel redação do artigo 273, do
Código de Processo Civil, essa tutela antecipada vê-se mais uma vez
27
consagrada, em conjunto com o atual sistema processual civil, que alberga,
amplamente, a hipótese de concessão ab initio .
A liminar é medida possível de ser efetivada diante do
poder cautelar geral do juiz, que pode, com isso, “assegurar que o eventual
julgamento com provimento de mérito favorável ao autor não perca o sentido,
garantindo, em última análise, a efetiva existência da matéria à sentença a ser
editada, afastando, por completo, o eventual risco de qualquer inviabilidade
executiva da decisão terminativa de caráter meritório” (FRIEDE, R. Reis,
Aspectos Fundamentais das Medidas Liminares: em mandado de segurança,
ação cautelar, ação civil pública, ação popular. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1993, p. 51). Tal poder é conferido pelos artigos 273 e seguintes
do Código de Processo Civil, quando necessárias medidas provisórias,
instrumentos de garantia ao direito enquanto não definitivamente julgado e
satisfeito.
Visa-se, com esta medida, assegurar o serviço público
de saúde aos doentes que procuram o Hospital de Clínicas, os quais, não mais
serão socorridos, já a partir das 07:00 horas de hoje - 03 de julho de 2000,
face a deliberação tomada pela Comissão de Greve dos servidores técnicos e
administrativos do HC-UFPR, de paralisação nos serviços do Pronto
Atendimento do Hospital de Clínicas.
Os serviços de saúde prestados no âmbito do Sistema
Único de Saúde são utilizados por aqueles que não têm as mínimas condições
econômico-financeiras para suportar o atendimento médico oferecido pelo
sistema
privado.
Seus
usuários,
portanto,
constituem
pessoas
economicamente carentes, maioria em nosso país. Portanto, a falta de
assistência pública médica, se substituída pelo atendimento particular, o que é
28
quase impossível, face o alto custo dos procedimentos, acarretará um
desequilíbrio patrimonial na renda da família do doente.
Numa visão mais realista, infelizmente é necessário
reconhecer que esses doentes que procuram os hospitais que prestam
serviços públicos, dentre eles o Hospital de Clínicas, são pessoas de baixa
renda, que não têm a mínima condição de pagar um tratamento particular e,
nem mesmo, um plano de saúde. Assim, se esses cidadãos não vierem a ser
atendidos pelo Hospital de Clínicas, ficarão na terrível situação de bater de
porta em porta de hospitais da cidade, ainda que debilitados, sem a menor
condição física de realizar tal tarefa, correndo, inclusive, risco de vida, na
tentativa, muitas vezes inglória, de encontrar uma unidade hospitalar que lhes
preste uma atendimento adequado. Aquelas que não obtiverem sucesso nessa
empreitada correrão o sério risco de terem suas vidas ceifadas por absoluta
omissão dos réus. A Universidade Federal do Paraná, através do seu Hospital
de Clínicas, não está garantindo a esses doentes o direito à saúde, na medida
que está com seus serviços de Pronto Atendimento suspensos em decorrência
da greve. Por sua vez, o Município de Curitiba ao não assegurar-lhes
atendimento médico em outro hospital que preste serviços de saúde públicos.
Por outro lado, os tratamentos de saúde, como é público
e notório, não apenas são caros, como também complexos, requerendo
atenções especiais desde o princípio. É justamente por isso que existe, no
Hospital de Clínicas, o serviço de Pronto Atendimento, com o intuito de assistir,
de imediato, os doentes que acorrem ao hospital, objetivando garantir a vida
do paciente, que necessita de cuidados médico-hospitalares específicos.
29
Assim, a omissão no atendimento, ou a ação de saúde
ministrada tardiamente, pode agravar, ainda mais, a situação do doente. É
evidente que um paciente que necessita receber do Hospital de Clínicas um
pronto atendimento médico não pode esperar muito tempo, até que consiga,
por seus próprios esforços, através de uma “romaria”, de hospital em hospital,
ser socorrido em alguma unidade hospitalar pública e privada conveniada.
Oportuno transcrever o disposto no art. 84, par. 3º, da
Lei n. 8078/90, acerca da possibilidade da antecipação da tutela:
“Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo
justificado receio
de ineficácia do provimento final, é
lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ao após
justificação prévia, citado o réu”.
Há dois pressupostos básicos que legitimam a tutela
antecipatória, quais sejam: verossimilhança da alegação e fundado receio de
dano irreparável ou de difícil reparação.
In casu, a verossimilhança traduz-se na greve existente
no Hospital de Clínicas, culminando na paralisação dos serviços de saúde
prestados pelo Pronto Atendimento, a partir das 07:00 horas do próximo dia 03
de
julho
de
2000,
conforme
exaustivamente
tratado
e
comprovado
documentalmente (docs. 01, 02, 03 e 04 em anexo).
De outra parte, a concessão da tutela antecipada
mostra-se imprescindível ante os danos a que se submeterão os doentes que
não serão atendidos pelo Hospital de Clínicas, em decorrência da greve de
seus servidores.
30
Presente, desta forma, o periculum in mora, face a
urgência de impedir, em estrita cautela, que os doentes que procurem o
Hospital de Clínicas fiquem desatendidos. Essa população doente tem, única e
exclusivamente, como plano de saúde o Sistema Único de Saúde, ainda que
precário e com inúmeras deficiências. Justifica-se, deste modo, a tutela
pleiteada, estando o interesse público em jogo e em risco a aplicação da lei
protetiva, diante da demora do provimento definitivo. Constitui-se em medida
necessária para que não se torne inane a solução final do pedido meritório,
diante das conseqüências previsíveis quando do ajuizamento da presente ação
civil pública.
Estamos diante, pois, de um direito cuja existência é
indiscutível.
O perigo na demora é cabal. O doente que necessita de
assistência no Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas não pode ficar
aguardando que acabe a greve dos servidores, e cada momento pode
significar seja abreviada sua expectativa de vida, para não aventar da
possibilidade de vir a morrer por falta de atendimento.
Ademais, sendo esta uma ação coletiva, há que se ter
em mente que muitos dos beneficiários já estão em grau avançado da doença.
Aguardar uma decisão final do processo seria para eles algo totalmente
improvável.
A respeito da antecipação da tutela antes da oitiva do
réu, acentua MARINONI:
31
“Vittorio Denti já deixou claro que a tutela de urgência
constitui um atributo fundamental da função jurisdicional,
nos limites em que é necessária para neutralizar um
perigo de dano irreparável.
O próprio artigo não poderia vedar a concessão da
tutela antes da oitiva do réu, pois nenhuma norma tem o
condão de controlar as situações de perigo. A tutela de
urgência, sem dúvida, não pode ser eliminada onde é
necessária para evitar um prejuízo irreparável. O
princípio
da
inafastabilidade
garante
o
direito
à
adequada tutela jurisdicional e, portanto, o direito à
tutela urgente. A necessidade da ouvida do réu poderá
comprometer, em alguns casos, a efetividade da tutela
urgente. A tutela urgente , antes da ouvida do réu,
poderá ser concedida quando o caso concreto exigir.
Argumentar com lesão ao princípio do contraditório é
voltar a tratar de assunto já encerrado, pois é sabido
que o contraditório pode ser postergado para permitir a
efetividade da tutela dos direitos. Como bem advertiu
Nelson Nery Júnior em sua tese de livre-docência
apresentada na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, não é a cautelaridade ou satisfatividade do
provimento jurisdicional que dá a tônica de respeito ou
desrespeito ao princípio da bilateralidade da audiência
(...). O cerne da questão se encontra na manutenção da
provisoriedade da medida, circunstância que derruba,
ao nosso ver, a alegada inconstitucionalidade das
liminares concedidas sem a ouvida da parte contrária”.
(MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela na
32
reforma do processo civil, São Paulo, Malheiros 1995, p.
60/61).
Não há, portanto, que se cogitar da impossibilidade da
concessão da tutela antecipada no presente caso. Ao contrário, a antecipação
da tutela pretendida é medida necessária e imperiosa para a efetividade do
provimento almejado.
Cumpre ressaltar, por oportuno, que a antecipação da
tutela, in casu, a par de dar guarida a direito notório e evidente, em detrimento
de eventual alegação inconsistente que possam os réus produzir, estará a
assegurar o direito à vida, em detrimento de supostas dificuldades
administrativas em cumprir as ordens judiciais proferidas.
Desta forma, tem-se como perfeitamente cabível e
imprescindível a antecipação da tutela ora requerida pelo Ministério Público
Federal, garantindo-se o direito à vida desses doentes que venham a procurar
o Pronto Atendimento do Hospital de Clínicas, a partir das 07:00 horas do dia
03 de julho de 2000.
Oportuna seja transcrita decisão liminar proferida pelo
MM. Juiz Federal da 7ª Vara Cível de Curitiba, Dr. Álvaro Junqueira, no
Mandado de Segurança n. 99.0025016-8, impetrado por paciente que
necessitava de recursos para a realização da busca internacional de doador
com medula compatível, para fim de ser submetida a transplante de medula
óssea no Hospital de Clínicas.
““Diante do presente quadro processual e fático em cotejo
com as noções de direito aplicáveis à espécie processual
33
tenho que é indispensável tentar resguardar a vida
humana da paciente em questão direito natural e essencial
de todo ser e cidadão brasileiro.
O quadro geral da lide aconselha o provimento
premonitório, não só pela condição sócio-econômica da
impetrante e familiares, como também pelos dispositivos
constitucionais e legais merecedores de chamamento para
acobertar a pretensão, não olvidando da jurisprudência
que vem se plasmando no mesmo sentido.
A impetrante e familiares, como bem demonstrado nos
autos, não possuem recursos suficientes para suportar os
encargos que o contexto clínico da paciente reclama pois
portadora de doença gravíssima cuja única cura é através
do procedimento cirúrgico declinado, como bem
evidenciam os atestados e declarações médicas inseridas
nos autos. Exigir prova pericial neste momento crucial
seria ignorância e exposição de risco da vida de
ADRIANA. Os próprios médicos do nosocômio autorizado
a efetuar o procedimento cirúrgico assim atestam e é a
única forma dela se manter viva.
O art. 196 da CF/88 impõe ao estado o dever jurídico de
prestar o direito à saúde, regendo-o pelo princípio comum
da universalidade de atendimento, principalmente às
pessoas
carentes
que
dele
necessitarem,
independentemente de contribuição pelo assistido.
Igualmente, a Lei 8080/90 instituiu a integralidade da
assistência médica, definindo-as como conjunto articulado
e contínuo das ações e serviços preventivos, individuais e
coletivos exigidos na casuística em todos os níveis de
complexidade do sistema.
...............................................................................
Nesse mesmo compasso, defiro a liminar em termos,
mesmo porque a urgência visa salvaguardar direito
natural, constitucional e legal da impetrante, pena de
morte pela patologia cruel e fatal que a acomete porquanto
presente a conjugação dos pressupostos insculpidos no
art. 7º, II, da Lei n.º 1533/51, determinando às autoridades
impetradas que efetivem os procedimentos indispensáveis
previstos na Lei de regência do SUS e atos normativos
dos três entes da federação, objetivando realizar o
transplante de medula óssea na impetrante, no mais curto
prazo de tempo, colocando à disposição dos órgãos nele
envolvido, inclusive o programa de doação internacional,
34
os recursos financeiros necessários à consecução do
procedimento cirúrgico destinado a salvar a vida da
impetrante, respectivo internamento e posterior tratamento
de radioterapia, tudo conforme disciplinado pelo SUS”.
Assim, faz-se necessária a concessão de tutela initio
litis, pelo que requer, o Ministério Público Federal, sem prévia oitiva dos réus,
determine esse MM. Juízo :
a) Universidade Federal do Paraná, através do Hospital de Clínicas, que, não
obstante a greve de seus servidores, retome, de imediato, os serviços de
saúde no setor de Pronto Atendimento e áreas afins, de modo a garantir o
atendimento médico aos pacientes. Para tanto deverá o Hospital de Clínicas
adotar medidas administrativas hábeis, inclusive, lançando mão de medidas
coercitivas, instaurando sindicâncias e procedimentos administrativos
correlatos, contra os servidores (ir)responsáveis pelo abandono do Pronto
Atendimento e das áreas de internação dependentes do PA. Pleiteia-se
seja cominada multa á Universidade Federal do Paraná, na hipótese de não
cumprimento de tutela deferida.
b) ao Município de Curitiba, por estar habilitado em gestão plena do Sistema
Municipal de Saúde, que garanta o atendimento médico daqueles pacientes
que não receberem serviços médicos do Hospital de Clínicas, enquanto
perdurar a paralisação dos serviços essenciais de saúde prestados pelo
Hospital de Clínicas. Assim, deverá o Município de Curitiba triar um hospital
que
preste
serviços
públicos
de
saúde,
que
esteja
em
normal
funcionamento e realize o tratamento médico necessitado, fazendo o
encaminhamento desses pacientes. Requer-se, outrossim, sejam cominada
multa diária, a ser fixada por esse MM. Juízo, aplicando-se ao Município de
Curitiba, em caso de descumprimento da ordem proferida.
35
c) á União, através do serviço de auditoria do Ministério da Saúde, que
fiscalize o cumprimento, pelos demais réus, das ordens liminares deferidas,
haja vista que é o Hospital de Clínicas um prestador público de serviços aos
usuários do Sistema Único de Saúde, cabendo à União o controle dos
serviços prestados. Quanto ao Município de Curitiba, foi a União que lhe
conferiu a gestão plena do Sistema Municipal de Saúde, sendo, portanto,
responsável por essa habilitação e controle de qualidade na gestão exercida
pelo município, e pelos serviços de saúde prestados à população.
VI - DO PEDIDO
Diante de todo o exposto, requer o Ministério Público
Federal:
a) a citação dos réus, para, querendo, contestarem a presente ação, na forma
dos pedidos, sob pena de revelia;
b) seja confirmada a tutela deferida, emitindo-se ordem à ré Universidade
Federal do Paraná, para que, através do Hospital de Clínicas retome, de
imediato, os serviços de saúde oferecidos pela instituição, não obstante a
greve dos seus servidores.
36
c) a final procedência da pretensão ora deduzida, confirmando-se a tutela
concedida, com a condenação do réu - Município de Curitiba, em garantir
pleno atendimento médico, em outro hospital, cujo funcionamento esteja
regular, aos pacientes que não sejam socorridos pelo Hospital de Clínicas, em
decorrência da greve de seus servidores.
d) a condenação da União em obrigação de fazer, concernente ao efetivo e
regular controle e fiscalização dos serviços públicos de saúde prestados pelo
Hospital de Clínicas, de modo a garantir qualidade e continuidade das ações
de saúde realizadas.
Protestando-se por todos os meios de prova em direito
admitidos, a serem oportunamente especificados, junta o Ministério Público
Federal cópia dos seguintes documentos:
doc. 01 - Deliberação da Comissão de Greve dos Servidores Técnicos
Administrativos do Hospital de Clínicas;
doc. 02 - Ofício 006/2000-COAD/HC;
doc. 03 - Matéria jornalística publicada na Gazeta do Povo;
doc. 04 - Ofício n. 2024/2000-PRDC/PR
doc. 05 - Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde – NOBSUS/96.
doc. 06 - Liminar concedida pelo MM. Juiz Federal da 7ª Vara Cível de Curitiba
Dá-se à causa o valor de R$ 1.000,00 (um mil reais),
para efeitos fiscais.
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Termos em que pede deferimento.
Curitiba, 03 de julho de 2000.
Antonia Lélia Neves Sanches Krueger
Procuradora da República
Procuradora Regional dos Direitos do Cidadão
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